RESUMO: O processo estrutural surge em razão da necessidade de se autorizar, em determinados casos, uma atuação jurisdicional que resolva não apenas o litígio individual existente entre as partes – típica das relações processuais civis tradicionais -, mas que também possibilite uma efetiva reestruturação dos sistemas públicos causadores daquele litígio, a partir da substituição de um insistente estado de desconformidade por um estado de coisas ideal. Assim, reconhecendo o Juiz estar diante de um problema estrutural, confere-se a este o poder de, no exercício da prestação jurisdicional, resolver um litígio estrutural de forma criativa, com a reformulação da própria estrutura burocrática responsável pela violação ao direito que deu causa ao litígio, bem como pelo estabelecimento de uma transição entre estado de coisas real e o ideal.
Palavras-Chave: Processo estrutural. Litígios estruturais. Decisão estrutural.
ABSTRACT: The structural process arises due to the need to authorize, in certain cases, judicial action that resolves not only the individual dispute between the parties – typical of traditional civil procedural relations – but which also makes it possible an effective restructuring of the public systems that caused that litigation, based on the replacement of an insistent state of non-conformity with an ideal state of things. Thus, recognizing that the Judge is faced with a structural problem, he is given the power to, in the exercise of jurisdictional provision, resolve a structural dispute in a creative way, with the reformulation of the very bureaucratic structure responsible for the violation of the right that gave rise to the litigation, as well as by establishing a transition between real and ideal states of the things.
Keywords: Structural process. Structural disputes. Structural decision.
1.INTRODUÇÃO
O estudo do instituto denominado “Processo Estrutural” tem sua origem no leading case Brown v. Board Education of Topeka, de 1954, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos foi levada à análise da (in)compatibilidade entre o sistema de ensino público então vigente – marcado pela leniência estatal em expurgar a segregação racial, que se refletia na manutenção de escolas públicas separadas para negros e brancos - com a Constituição dos Estados Unidos da América.
No caso, a menina Linda Brown, aos 9 (nove) anos de idade, requereu judicialmente o reconhecimento de seu direito de estudar em uma escola de brancos, mais próxima de sua residência, oportunidade na qual a Suprema Corte Estadunidense percebeu a necessidade de buscar uma atuação judicial que não apenas resolvesse o problema individual da autora, objeto da ação, mas que fosse capaz de implementar uma verdadeira reestruturação no sistema público de ensino, reconhecendo-se, pois, estar diante de um problema estrutural.
No Brasil, a disciplina do processo estrutural ganhou novos contornos a partir da promulgação da Lei nº 13.655/2018. De fato, a novel legislação, ao proceder com uma substancial reformulação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, acrescentou a esta o artigo 21, de cunho consequencialista, cujo parágrafo único prevê a utilização de técnicas processuais de tutela típicas de processos estruturais, aplicáveis quando da decisão de litígios complexos no controle da Administração Pública.
2.PROBLEMA, PROCESSO E DECISÃO ESTRUTURAL
Conforme lecionam Hermes Zanetti Jr., Fredie Didier Jr., e Rafael Alexandria de Oliveira, faz-se necessário estabelecer uma diferenciação entre os conceitos de problema estrutural, processo estrutural e decisão estrutural.
Segundo o autor, o problema estrutural - que também pode ser chamado de litígio estrutural ou situação de desconformidade estruturada -, é uma situação de fato com uma desconformidade consolidada, com grau razoável de permanência. Não obstante, regra geral, derive de uma situação de ilicitude, esta não é condição indispensável para a caracterização do problema estrutural, sendo bastante a existência de uma situação indesejada, desconforme, não ideal. O mais clássico exemplo é a falta de saneamento básico, aceita como algo normal nas áreas mais pobres e negligenciadas do país. Ademais, ressalte-se que o problema estrutural, em razão de suas peculiaridades, não pode ser resolvido em um único ato, mas depende da tomada de uma série de providências que, normalmente, são duradouras e exigem um acompanhamento contínuo.
Por fim, além do já citado exemplo da falta de saneamento básico, o ordenamento jurídico brasileiro convive com diversos outros contextos fáticos de problemas estruturais, todos indubitavelmente violadores de direitos sociais e transindividuais, como: 1) o direito à saúde – ante a precariedade e insuficiência no fornecimento de medicamentos e custeio de tratamentos médicos; 2) o sistema carcerário – caracterizado pela superlotação, insalubridade e não ressocialização dos presos; 3) o sistema educacional – pela não parametrização do ensino, não capacitação do corpo docente, carência de vagas na educação infantil, ensino fundamental e médio; 4) o meio ambiente – em razão do desmatamento desenfreado, poluição do ar, despejo de esgoto nos oceanos, falta de fiscalização de barragens etc.); 5) a acessibilidade das pessoas com deficiência - falta de adequação das vias, logradouros, prédios e equipamentos públicos, escassez de livros em braile, não incentivo à Língua Brasileira de Sinais (libras); 6) os direitos dos povos tradicionais - pela falta de previsão, nas estruturas curriculares do ensino público, de disciplinas ou temas relacionados à história das comunidades afrodescendentes e indígenas, entre outros.
O processo estrutural, por sua vez, deve ser compreendido como o processo judicial que tem por objeto a solução de um problema estrutural, objetivando substituir o estado de desconformidade por um estado de coisas ideal. Possui como fim último a reestruturação dos sistemas públicos que dão causa aos litígios individuais, a ser alcançado pela substituição de inaceitáveis estados de desconformidade por um estado de coisas ideal.
Note-se que, no processo estrutural, há uma nítida flexibilização do Princípio da Congruência (da Adstrição ou Correlação), para conferir ao julgador o poder de resolver um litígio estrutural de forma criativa, com a reformulação da própria estrutura que dá causa à violação do direito que fundamenta o litígio e estabelecimento de uma transição entre estado de coisas real e o ideal.
Em arremate, interessante a conclusão de Fredie Didier, para quem os “processos estruturais” deveriam ser chamados de “processo de reestruturação”, já que o processo, por si só, não é “estrutural”. O problema objeto do processo é “estrutural”, mas o processo em si é de “reestruturação”.
Por fim, ainda segundo Didier, decisão estrutural é a decisão que encerra a primeira fase do processo estrutural, reconhecendo a situação de desconformidade e definindo o estado de coisas a ser alcançado.
É um ato decisório de natureza peculiar, na medida em que não estabelece uma regra definida de conduta. Possui conteúdo principiológico, sem necessariamente estabelecer como será alcançado o estado ideal nela definido. Por essa razão, a decisão estrutural será seguida de uma série de outras decisões posteriores, denominadas por Sérgio Arenhart como “decisões em cascata”, por meio das quais serão determinados o modo, o tempo e o grau da reestruturação, normalmente em etapas.
3.CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS E TÍPICAS DO PROCESSO ESTRUTURAL
Conforme já se pôde inferir de tudo o que foi dito, o processo estrutural possui características peculiares, imprescindíveis ao alcance dos fins que justificam sua própria existência e à superação da rigidez do processo civil tradicional.
A este respeito, confira-se a lição de Edilson Vitorelli:
“Litígios estruturais são litígios coletivos decorrentes do modo como uma estrutura burocrática, usualmente, de natureza pública, opera. O funcionamento da estrutura é que causa, permite ou perpetua a violação que dá origem ao litígio coletivo. Assim, se a violação for apenas removida, o problema poderá ser resolvido de modo aparente, sem resultados empiricamente significativos, ou momentaneamente, voltando a se repetir no futuro.” (VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural processo coletivo processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo: RePro, ano 43, vol. 284, São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 2018, p. 345).
Em que pese haja divergência acerca do nomen iuris atribuído às características do processo estrutural, infere-se da doutrina especializada que o processo estrutural possui 5 (cinco) características essenciais, quais sejam: 1. Conteúdo: o objeto é um problema estrutural; 2. Ideia de transição: estabelece uma transição entre o problema estrutural existente e a situação desejada, o estado ideal de conformidade; 3. Existência de duas fases: o processo estrutural é um procedimento bifásico (semelhante à falência e recuperação judicial). Em um primeiro momento o juiz prolata uma decisão estrutural e, em momento posterior, são adotadas as providências para reestruturação. Ou seja, de início, a atuação judicial é voltada para a apuração do estado de desconformidade e determinação de um estado de coisas a ser alcançado. Apenas após a fixação do estado ideal, passa-se à fase de implementação desse estado de coisas; 4. Flexibilidade: é essencialmente um processo flexível, no pedido, na regra da congruência/adstrição. O próprio CPC confere ao julgador os meios para assim proceder, ao prever a atipicidade das medidas executivas e das modalidades de cooperação, a possibilidade de decisões parciais de mérito etc.; 5. Consensualidade: nitidamente presente no processo estrutural, em especial na solução do litígio. O juiz não é o único ator na solução do problema, sendo essencial a participação de todas as partes envolvidas e a obtenção de acordos.
A par das características essenciais, a doutrina também aponta a existência, no processo estrutural, de 3 (três) características típicas, a saber: 1. Multipolaridade: há diversos polos de interesse no processo estrutural. Ao Contrário da tradicional divisão do processo civil tradicional - autor versus réu – o processo estrutural, em regra, é multipolar; 2. Coletividade: Em regra, os processos estruturais envolvem uma situação coletiva ativa ou passiva; e 3. Complexidade: o litígio pode ser bem resolvido de várias maneiras, havendo quem afirme que, quanto mais complexo, mais soluções o processo pode ter.
Por fim, ressalte-se que a diferença entre as classificações acima se justifica pelo fato de que essas últimas características, em que pese sejam típicas, comuns em processos estruturais, não são essenciais, sendo possível, em tese, que o processo estrutural seja despido de multipolaridade, coletividade e/ou complexidade.
4.CONCLUSÃO
Conforme visto, o instituto do processo estrutural surge no intuito de mitigar a rigidez do processo tradicional e, através dessa flexibilização, conferir ao julgador as ferramentas necessárias para a solução de litígios nos quais haja uma multiplicidade de interesses envolvidos, resolvendo o litígio não só para as partes, como para toda uma coletividade.
Deveras, há quem critique o instituto por entender que a flexibilização procedimental a ele inerente importa em violação ao princípio da “separação de poderes” (art. 2º da CRFB/1988), em especial quando a atuação jurisdicional determina a implementação de políticas públicas.
Com a devida vênia, o entendimento não se sustenta. Se a Administração Pública deixa, reiteradamente, de garantir direitos sociais e transindividuais constitucionalmente previstos - regra geral se escudando em teses abstratas como as da “reserva do possível” e de limitações orçamentárias -, a atuação jurisdicional para a garantia desses direitos é medida que se impõe, e a criação de instrumentos aptos a conferir celeridade e resolutividade à solução da inércia estatal qualifica-se imprescindível.
4.REFERÊNCIAS
VITORELLI, Edilson. Litígios estruturais: decisão e implementação de mudanças socialmente relevantes pela via processual. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marcos Félix (orgs.). Processos Estruturais. 2. ed., São Paulo: Editora Juspodivm, 2019.
Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org.). Processos estruturais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
DIDIER, Fredie; OLIVIERA, Rafael Alexandria de; JÚNIOR, Hermes Zanetti. Notas sobre as decisões estruturantes. Civil Procedure Review. Vol. 8, n. 1: 46-64, jan.-apr., 2017.
CABRAL, Antônio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Salvador: Juspodivm, 2018.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657compilado.htm
Pós-Graduação em Direito Público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP; Graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió - CESMAC. Assessor Judicial no TJAL. Professor de Direito na SEUNE – Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste LTDA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, DIOGO BARROS TORRES DE. Processo estrutural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63894/processo-estrutural. Acesso em: 21 nov 2024.
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