RESUMO: O presente artigo propõe uma reflexão sobre o tema da violência obstétrica, suas repercussões práticas e a abordagem do tema no âmbito do Poder Judiciário, com enfoque à proteção da dignidade humana da mulher e as dificuldades na responsabilização dos agentes de saúde, notadamente pela equiparação equivocada a erro médico. Far-se-á uma reflexão sobre as mudanças necessárias para que haja efetiva proteção à vida e à saúde da parturiente e do respectivo feto.
Palavras-chave: Violência obstétrica, reponsabilidade civil, dignidade humana, gravidez.
ABSTRACT: This article proposes a reflection on the topic of obstetric violence, its practical repercussions and the approach to the topic within the scope of the Judiciary, focusing on the protection of women's human dignity and the difficulties in holding health agents accountable, notably due to the mistaken equivalence to medical error. There will be a reflection on the changes necessary to effectively protect the life and health of the woman in labor and her fetus.
Keywords: Obstetric violence, civil responsibility, human dignity, pregnancy.
INTRODUÇÃO
Nos corredores dos hospitais a alegria e a desesperança dividem espaços e geram cenários completamente distintos. Por vezes, ao lado um paciente que recebe alta, outro ainda acamado padece de um mal maior.
A rotina estressante de um ambiente assim pode influenciar na saúde física e mental dos profissionais de saúde envolvidos, que, como seres humanos, não estão imunes a essas vivências.
Esse cenário, aliás, ficou escancarado durante o período da Pandemia da Covid-19. Segundo estudo divulgado pela FIOCRUZ, o sofrimento mental durante a pandemia mostrou elevadas taxas de adoecimento entre os profissionais de saúde, prevalecendo sintomas de ansiedade que variam entre 44,6% e 62%; cerca de 30% tinham nível moderado ou grave de ansiedade e em torno de 50% dos profissionais apresentou sintomas depressivos[1].
Não obstante, na outra ponta do atendimento se encontra o paciente que necessita de cuidados especiais. Em não raras vezes, a pessoa que busca atendimento médico está em posição de vulnerabilidade e sequer possui condições de contestar um diagnóstico ou tratamento recebido.
Dentro desse contexto surge uma problemática que, embora não seja nova, tem atraído atenção de especialista, dados os crescentes números de denúncias: a violência obstétrica sofrida por mulheres grávidas e parturientes em ambiente hospitalar.
Por definição, a violência obstétrica não se confunde com erro médico, uma vez que prescinde da caracterização da imperícia pelo profissional. Em verdade, se encontra situada numa zona intermediária, já que o dano não será necessariamente físico, podendo se caracterizar, por exemplo, com o agravamento de uma dor preexistente.
Tais conceitos serão mais bem detalhados nos tópicos seguintes, onde se analisará os pressupostos jurídicos da responsabilidade civil e, após, a contextualização da violência obstétrica no ordenamento jurídico e seu tratamento jurisprudencial.
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Nas palavras de Marcus Cláudio Aquaviva:
Quando um interesse protegido pelo direito é injustamente lesionado, imperioso seu ressarcimento por quem o feriu. Se a natureza do ressarcimento é patrimonial, configura-se a responsabilidade civil [...] O fundamento da responsabilidade civil é o neminem laedere (não lesar o próximo) e pode ter origem em ato ilícito (responsabilidade por ato ilícito), na inexecução de contrato (responsabilidade contratual) ou na própria lei (responsabilidade legal). (2001)
A palavra “responsabilidade” vem do verbo latino respondere. Esse vocábulo traz a ideia de garantia, ou alguém que seja responsável por algo. Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, essa responsabilização significa “a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de sua atividade, contendo, ainda, a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vinculava, no direito romano, o devedor nos contratos verbais”[2].
O instituto da responsabilidade civil nasce de uma obrigação, imputando-se ao causador de um dano, total ou parcialmente, o ônus decorrente de sua conduta, visando restituir à situação anterior (a quo).
Apresentada essa premissa, destaca-se que a matéria deve ser analisada a partir de suas espécies: a responsabilidade civil e a penal. Como ensina Aguiar Dias[3],
“certos fatos põem em ação somente o mecanismo recuperatório da responsabilidade civil; outros movimentam tão somente o sistema repressivo ou preventivo da responsabilidade penal; outros, enfim, acarretam, a um tempo, a responsabilidade civil e a penal, pelo fato de apresentarem, em relação a ambos os campos, incidência equivalente, conforme os diferentes critérios sob que entram em função os órgãos encarregados de fazer valer a norma respectiva”.
O objetivo principal desse estudo não é dissecar a matéria, haja vista sua imensidão e a profundidade que se exigiria. Abordaremos o assunto apenas para acentuarmos questões preliminares, que serão como luz a nos orientar para o objeto final deste trabalho.
E dentro do aspecto civil, pode-se verificar a responsabilidade contratual ou extracontratual, a depender do que está sendo infringido pelo agente. Se houve descumprimento de um contrato, haverá a responsabilidade de indenizar as perdas e danos, nos termos do art. 389 do Código Civil, sem prejuízo do que se convencionou.
De outro lado, quando a responsabilidade não deriva de contrato, diz-se que ela é extracontratual (aquiliana) e, neste caso, incide o disposto no art. 186 do Código Civil: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
Independentemente do fundamento da responsabilização – contratual ou extracontratual –, de maneira majoritária a doutrina aponta os seguintes elementos como necessários: a) a ação, sendo comissiva ou omissiva; b) culpa genérica ou lato sensu; c) o dano, podendo ser patrimonial ou moral; e d) nexo de causalidade entre o dano e a ação.
Ressalta-se que ao se referir à culpa em sentido amplo, genérica ou lato sensu, está sendo mencionado dolo e a culpa estrita (stricto sensu) e o dolo, cada qual com seus pressupostos próprios. No escólio de Flavio Tartuce[4]:
“O dolo constitui uma violação intencional do dever jurídico com o objetivo de prejudicar outrem. Trata-se da ação ou omissão voluntária mencionada no art. 186 do CC. Nos termos do que consta do art. 944, caput, do Código Civil, presente o dolo, vale a regra do princípio da reparação dos danos, o que significa que todos os danos suportados pela vítima serão indenizados. Isso porque, presente o dolo do agente, em regra, não se pode falar em culpa concorrente da vítima ou de terceiro, a gerar a redução por equidade da indenização. Porém, se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano (art. 945 do CC).
O dolo, na responsabilidade civil, merece o mesmo tratamento da culpa grave ou gravíssima. A conclusão, de que o dolo equivale à culpa grave, vem do brocardo latino culpa lata dolo aequiparatur, originário do Direito Romano, e com grande aplicação na atualidade. (...)
A partir das lições do italiano Chironi, a culpa pode ser conceituada como o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente uma intenção de violar o dever jurídico. Na doutrina nacional, Sérgio Cavalieri Filho apresenta três elementos na caracterização da culpa: a) a conduta voluntária com resultado involuntário; b) a previsão ou previsibilidade; e c) a falta de cuidado, cautela, diligência e atenção. Conforme os seus ensinamentos, “sem suma, enquanto no dolo o agente que a conduta e o resultado, a causa e a consequência, na culpa a vontade não vai além da ação ou omissão. O agente quer a conduta, não, porém, o resultado; quer a causa, mas não quer o efeito”. Concluindo, deve-se retirar da culpa o elemento intencional, que está presente no dolo”
Acrescente-se, por relevante, que em uma visão subjetiva presente no atual modelo jurídico, a culpa se desdobra em: imprudência (falta de cuidado relacionada à ação do agente); negligência (ausência de cautela relacionada à omissão do agente) e/ou imperícia (relacionada à culpa profissional).
Nesse contexto, especificamente em relação à responsabilidade civil do médico, esta será, em regra, de natureza subjetiva. Assim:
“Se denomina responsabilidade médica situação jurídica que, de acordo com o Código Civil, gira tanto na orbita contratual como na extracontratual estabelecida entre o facultativo e o cliente, no qual o esculápio assume uma obrigação de meio e não de resultado, compromissando-se a tratar do enfermo com desvelo ardente, atenção e diligência adequadas, a adverti-lo ou esclarecê-lo dos riscos da terapia ou da intervenção cirúrgica propostas e sobre a natureza de certos exames prescritos, pelo que se não conseguir curá-lo ou ele veio a falecer, isso não significa que deixou de cumprir o contrato”[5].
Acrescente-se que tal compreensão está igualmente delineada no § 4º do art. 14 do CDC, segundo o qual “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”, em que pese seja cabível a inversão do ônus da prova “quando configurada situação de hipossuficiência técnica da parte autora” (STJ. AgInt no AREsp n. 1.872.697/DF, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 21.02.2022).
A questão ganha novos contornos a atribuição de erro médico envolve não apenas o prestador de serviços, mas uma instituição hospitalar que tenha igualmente intervindo na relação. Isso porque, segundo a Corte Superior, havendo vínculo, a qualquer título, do médico com o hospital, responde este solidariamente com aquele, apurada a culpa do profissional, nos termos do art. 14 do CDC (REsp 1.579.954/MG, Terceira Turma, julgado em 08/05/2018, DJe 18/05/2018; AgInt no AREsp 1.532.855/SP, Quarta Turma, julgado em 21/11/2019, DJe 19/12/2019).
Em síntese, no que tange à responsabilidade civil dos médicos e hospitais, o entendimento vigente na Corte de Justiça pode ser assim delimitado[6]:
(i) as obrigações assumidas diretamente pelo complexo hospitalar limitam-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados à prestação dos serviços médicos e à supervisão do paciente, hipótese em que a responsabilidade objetiva da instituição (por ato próprio) exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado (artigo 14, caput, do CDC);
(ii) os atos técnicos praticados pelos médicos, sem vínculo de emprego ou subordinação com o hospital, são imputados ao profissional pessoalmente, eximindo-se a entidade hospitalar de qualquer responsabilidade (artigo 14, § 4º, do CDC); e
(iii) quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional. Nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII, do CDC).
Em síntese, a responsabilidade civil decorrente de erro médico é subjetiva – demanda a apuração da culpa profissional –, devendo ser diferenciado da responsabilidade atribuída à instituição hospitalar, que pode ser solidária ou por ato próprio, a depender vínculo que se tenha com o prestador, assim como a contribuição no evento danoso.
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
As considerações expostas estão relacionadas à responsabilidade civil de profissionais da saúde no desempenho de seu mister, os quais, como seres humanos, estão suscetíveis a erros. Ainda que não tenham agido com intenção, podem ser responsabilizados, por exemplo, pelo cometimento de eventual ato imperito na condução de um determinado procedimento.
Essa concepção clássica, contudo, se mostra insuficiente para abranger todas as situações vivenciadas na prática, mormente quando não há um erro médico em si, mas uma conduta que agrava situação de aflição ou impõe ao paciente constrangimentos desnecessários.
Há uma profusão de infelizes exemplos quando o atendimento é prestado em favor de pacientes gestantes ou parturientes, as quais estão em manifesta situação de vulnerabilidade e demandam atenção especial de todas os profissionais que se dispõem ou são contratados para auxiliar antes, durante e após o parto.
Relembre-se, dentre diversos casos, o relato prestado pela atriz Carolinie Figueiredo e divulgado pelo Jornal Estadão, em que relatou ter havido privação de água e comida durante o parto do seu primeiro filho, assim como ouvido palavras de descrédito e humilhação, agravadas pelo uso da “manobra de Kristeller”.[7]
Ao rememorar sua experiência passada, afirmou que “Essas dores estão vivas nas nossas células, na sensação física de limites que foram atravessados. Fica a vontade de chorar, o nó na garganta, as memórias que estão gravadas e emergem nos registros do corpo”.
Esse panorama deixa assente que a violência não se confunde com o erro médico (stricto sensu), na medida em que abrange condutas de apropriação do corpo das mulheres gestantes, parturientes e em puerpério, sem respeito às suas escolhas, vontades e decisões.
Em verdade, trata-se de uma espécie “desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas”.[8]
A violência obstétrica, portanto, é o inverso do parto cuidadoso, em que a mulher, suas escolhas e seus valores assumem o protagonismo, sendo o médico um auxiliador técnico para que a experiência do nascimento seja de júbilo e não de amargura, sofrimento.
As dores do parto não necessitam ir além do natural, esperado para o momento. Aliás, o papel da equipe médica é, na medida do possível, mitigar o quadro de tensão, fazendo com que o ambiente hospitalar se torne um antro de aconchego para quem vivencia, em não raras vezes, um dos momentos mais aguardados da sua vida.
Por isso, a violência obstétrica se caracteriza como uma conduta desrespeitosa do profissional que, por exemplo, inicia um procedimento sem comunicação e explicação eficiente à paciente, tocando seu corpo de forma exacerbada ou de maneira incomum.
Da mesma forma, comete ato ilícito o profissional que desrespeita a escolha feita pela mulher de uma determinada forma de parto e, sem que haja consentimento, utilizada de sua posição de vantagem para impingir a vontade médica em detrimento da paciente.
Retira-se da mulher a autonomia quanto ao próprio corpo e desconsidera suas vontades durante a gestação, assim como seus direitos e capacidade de autodeterminação.
A amplitude do que pode caracterizar a violência obstétrica deixa assente o equívoco em reduzir esses atos à definição clássica de erro médico, pois, ainda que não exista uma ação culposa desqualificada pela imperícia, poderá ocorrer a violação à integridade física, moral ou espiritual da mulher.
Esse é o alerta feito por Maiane Cibele de Mesquita Serra em sua dissertação de mestrado sobre o tema[9]:
“Ao enquadrar as situações de violência obstétrica como um erro médico minimiza-se a potencialidade de uma iatrogenia que acomete muitas mulheres no ciclo gravídico-puerperal, naturalizando condutas reprováveis, descaracterizando as especificidades dos casos e contribuindo para que as situações sejam encaradas de modo controverso e isolado e não como uma violação de direitos humanos e um grave problema institucional de saúde pública na assistência ao parto”
Essa diferenciação não é de somenos importância, mas decorre da necessidade da tutela específica de um caro direito das mulheres.
Aliás, neste aspecto, importa ressaltar que a busca pelo reconhecimento da autonomia dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, inclusive para dispor de seus próprios corpos, passou por longa trajetória e somente encontrou expressa definição e afirmação a partir da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento de 1994, também denominada Conferência do Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, de Pequim, realizada em 1995.
Na oportunidade foi elaborado o Plano de Ação do Cairo encampando diversos princípios, dentre eles o de nº 04, segundo o qual “O progresso na igualdade e equidade dos sexos, a emancipação da mulher, a eliminação de toda espécie de violência contra ela e a garantia de poder ela própria controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento”.
De outro lado, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), incorporado ao sistema jurídico pelo Decreto nº 4.377/2002, estabeleceu em seu art. 12, 1, que os Estados-Partes devem adotar medidas “apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar”.
E o Comitê criado pela CEDAW emitiu a Recomendação Geral nº 24, instando os Estados-Partes, dentre outras garantias, a “Exigir que todos os serviços de saúde sejam consistentes com os direitos humanos das mulheres, incluindo os direitos à autonomia, privacidade, confidencialidade, consentimento e escolhas informadas” (item 31, “e”).
Relembre-se que no âmbito do Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), o Estado brasileiro foi condenado no famigerado caso “Alyne Pimentel”, em decorrência da falta de assistência médica em favor da vítima, que se encontrava grávida e, em decorrência de sucessivas omissões, morreu em virtude de uma hemorragia digestiva, à espera de leito num hospital público no Estado do Rio de Janeiro.
Na oportunidade foram feitas recomendações ao Estado brasileiro, dentre elas se destaca:
(i) assegurar o direito da mulher à maternidade saudável e o acesso de todas as mulheres a serviços adequados de emergência obstétrica;
(ii) realizar treinamento adequado de profissionais de saúde, especialmente sobre direito à saúde reprodutiva das mulheres; (iii) reduzir as mortes maternas evitáveis, por meio da implementação do Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna e da instituição de comitês de mortalidade materna;
(iv) assegurar o acesso a remédios efetivos nos casos de violação dos direitos reprodutivos das mulheres e prover treinamento adequado para os profissionais do Poder Judiciário e operadores;
(v) assegurar que os serviços privados de saúde sigam padrões nacionais e internacionais sobre saúde reprodutiva; e
(vi) assegurar que sanções sejam impostas para profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres.
Tais recomendações no tocante à saúde da mulher na gravidez foram encampadas pela Organização Mundial da Saúde – OMS, a qual, em declaração emitida no ano de 2014, reconheceu que “Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente”..
Já no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, a Convenção de Belém do Pará, promulgada pelo Decreto nº 1.973/96, fixou que toda mulher “tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (art. 3), afirmando-se “direitos a que se respeite sua integridade física, mental e moral” (art. 4, “b”).
Pelo que se viu, não são poucas as diretrizes que se tem para determinar e resguardar a incolumidade física e psicológica no que diz respeito a atos de violência obstétrica.
Essa é a tendência que se observa em recentes julgados que, de forma acertada, compreendem que a violência obstétrica não decorre necessariamente de um ato imperito do profissional que atende a mulher:
APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. ERRO MÉDICO. DANO MORAL CONFIGURADO. MAJORAÇÃO DEVIDA. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE DOS DANOS MATERIAIS. RECURSO DO DISTRITO FEDERAL CONHECIDO E DESPROVIDO. RECURSO DA PARTE AUTORA CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A parturiente, a par da episiotomia intempestiva e indevida, fruto de erro médico com a insistência na realização de um inviável parto pela via baixa, conforme expressamente consta do laudo pericial, foi submetida posteriormente a parto cesariana com manobra de Zavanelli, intercorrências e internação da recém-nascida em UTIN por 28 dias. A responsabilidade civil do Estado desponta, diante da prova escorreita do dano e do nexo causal, guardando amparo jurídico o dever de indenizar, na hipótese, o dano moral, nos termos do que dispõem os arts. 37, § 6º, da Constituição Federal e 12 do Código Civil. 2. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência como a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis. A identificação com a violência obstétrica e psicológica sofrida pela parturiente configura o dano moral que deve ser compensado como um lenitivo à vítima, bem assim à recém nascida, se presentes os elementos da responsabilidade civil. 3. É evidente, portanto, que a insistência indevida com o parto inviável por via baixa, culminando com episiotomia intempestiva e indevida, bem assim a imperícia e a imprudência a que submetida a autora no sensível momento do parto, posteriormente efetivado por cesariana com manobra de Zavanelli e intercorrências, representou um quadro de traumático sofrimento, agravado em seguida pela angustiante permanência da recém-nascida, com saúde comprometida e risco de vida, em leito de UTIN por 28 dias, a amparar a pretensão de majoração da indenização fixada para o valor pretendido de R$50.000,00 (cinquenta mil reais). 4. De igual modo, a indenização à criança merece majoração para R$40.000,00 (quarenta mil reais), a despeito de inexistir sequela ou incapacidade permanente atual, isso porque, conforme consta expressamente do laudo pericial, padeceu de sofrimento intenso e injustificado, diante do tocotraumatismo com anóxia intraparto e sofrimento fetal agudo, com várias intercorrências durante os 28 dias na UTNI, tais como Infecção presumida, sepse tardia, hemorragia digestiva alta, flebites em local de punção venosa. 5. A majoração, desse modo, atende ao critério bifásico, às circunstâncias específicas que envolvem a lide e a anseios de razoabilidade que o Direito exige. 6. Quanto ao dano material, a inexistência de nexo de causalidade impede a indenização. Com efeito, conforme laudo as aderências intra-abdominais seriam resultantes do ato cirúrgico, intercorrência possível e que não pode ser imputada a erro médico. Assim, o laudo afastou o liame causal entre a conduta médica e o alegado dano experimentado pela parte com as despesas médicas contraídas para realização de intervenção cirúrgica posterior. Nessa diretriz, em relação aos lucros cessantes, não é outra a conclusão a ser adotada, se a alegada perda da Bolsa Atleta, ou da bolsa de estudos informada na petição inicial, decorreria das dores que a impediam de correr, como atleta de alto rendimento, em razão das aderências, que a seu turno não podem ser valoradas como fruto de erro médico. 7. Recurso do Distrito Federal conhecido e desprovido. Recurso das autoras conhecido e parcialmente provido.
(TJDFT. Acórdão 1300512, 00229072120158070018, Relator: SANDRA REVES, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 11/11/2020, publicado no DJE: 26/11/2020)
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – ERRO MÉDICO – RESPONSABILIDADE PROFISSIONAIS MÉDICOS – HOSPITAL – PLANO DE SAÚDE – RELAÇÃO DE CONSUMO – SOLIDARIEDADE – CULPA PROFISSIONAL – DANOS FÍSICOS E ESTÉTICOS – PARALISIA CEREBRAL QUADRIPLÁGICA ESPÁTICA – NEXO DE CAUSALIDADE NÃO DEMONSTRADO – PROVA PERICIAL – VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA CARACTERIZADA – DIREITO DA MULHER – AUTODETERMINAÇÃO DO PRÓPRIO CORPO – INTERVENÇÕES MÉDICAS – MANOBRA DE KLISTELLER – EPISIOTOMIA – SUCESSIVOS TOQUES – DESRESPEITO AO DIREITO DE ACOMPANHANTE – DANOS MORAIS CONFIGURADOS –LESÃO A DIREITOS DA PERSONALIDADE – RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO, CONTRA O PARECER. Insurgem-se os Requerentes contra a sentença proferida em primeiro grau, que afastou a condenação dos Requeridos ao pagamento de indenização por danos materiais, morais e estéticos decorrentes de erro médico. As imputações feitas à inicial dizem respeito a supostos erros médicos cometidos por ocasião do nascimento do Requerente, diagnosticados com "Paralisia Cerebral Quadriplágica Espástica e Transtorno Específico Misto do Desenvolvimento", quadro clínico que acarreta incapacidade permanente da criança. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que, havendo vínculo, a qualquer título, do médico com o hospital, responde este solidariamente com aquele, apurada a culpa do profissional, nos termos do art. 14 do CDC (REsp 1.579.954/MG, Terceira Turma, julgado em 08/05/2018, DJe 18/05/2018; AgInt no AREsp 1.532.855/SP, Quarta Turma, julgado em 21/11/2019, DJe 19/12/2019). Em relação ao plano de saúde, o Superior Tribunal de Justiça "reconhece que a operadora de plano de saúde é solidariamente responsável pelos danos decorrentes de falha ou erro na prestação de serviços do estabelecimento ou médico conveniados" (REsp n. 1.901.545/SP, relator Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 08.06.2021, DJe de 11.06.2021) De acordo com as provas dos autos, não há elementos que comprovem os supostos erros médicos que teriam causado as lesões incapacitantes do Requerente, pois a perícia médica, elaborada sob o crivo do contraditório, não apurou nenhuma conduta que tenha sido a razão dos danos físicos causados à criança. A causa de pedir está lastreada em eventuais fatos ocorrido na 36ª semana de gravidez, na data do nascimento do Requerente. Com relação ao uso do fórceps e extrator a vácuo, segundo a prova pericial e os depoimentos de especialistas, constituem métodos assistenciais que não necessariamente causam lesão física ou neurológica em recém-nascido. A par das doenças preexistentes da Requerente (genitora), que podem ter contribuído para a deficiência apresentada pela criança, não há provas da conduta dos Requeridos, tampouco do nexo de causalidade entre a ação/omissão destes e os prejuízos descritos à inicial. Contudo, as provas denotam que houve atos de violência obstétrica, cujo conceito, embora próximo, não se confunde com erro médico (stricto sensu). A violência obstétrica está relacionada a procedimentos e condutas adotadas pela equipe médica durante o período gestacional da mulher que impliquem violação à integridade física e psicológica da parturiente, atingindo inclusive aspectos não aferidos diretamente em sua fisionomia. Conforme doutrina especializada e orientações emanadas pelo Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde, a violência obstétrica consiste no desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas. Segundo se extraiu dos autos, o médico que realizou todo pré-natal da Requerente agiu de forma omissiva, quebrando o elo de confiança estabelecida entre paciente/familiares e médico, na medida em que, embora tenha se comprometido, não compareceu à sala de parto para assumir os trabalhos. O médico plantonista, por sua vez, admitiu a realização de manobras que causaram dores desproporcionais à paciente, sem que houvesse justificativa plausível para tanto, como a manobra de Klisteller, que há tempo não é mais recomendada pelas Autoridades Pública na área da saúde. Além de não considerar a vontade da paciente e sua autonomia quanto à modalidade do parto, ficou a mesma desassistida de companhia durante o período expulsivo, justamente no momento de maior tensão durante o parto. Presentes os pressupostos legais, deve ser reconhecido direito da Requerente à indenização por danos morais, afastando-se, entretanto, a imputação feita em relação aos profissionais que não tiveram a culpa demonstrada (pediatra, médica residente e médica que admitiu a paciente no hospital). Recurso conhecido e parcialmente provido, contra o parecer. (TJMS. Apelação Cível n. 0801532-69.2016.8.12.0045, Sidrolândia, 5ª Câmara Cível, Relator (a): Desª Jaceguara Dantas da Silva, j: 15/02/2023, p: 16/02/2023)
Tais precedentes oferecem uma diretriz de como a matéria deve ser enfrentada nos casos práticos, sem o viés de redução dos problemas, mas de ampliação, compreendendo a violência obstétrica como uma ramificação distinta da clássica conceituação de erro médico.
CONCLUSÃO
Sem a pretensão de esgotar todas as nuances do tema, o presente trabalho buscou apresentar um vislumbre inicial da questão envolvendo a violência obstétrica que aflige inúmeras mulheres pelos rincões deste país, muitas delas que sequer possuem a exata compreensão de que eventualmente foram/são vítimas desse ato lesivo.
Observa-se um crescente – e necessário – movimento de conscientização de pacientes e profissionais médicos a respeito dos cuidados à maternidade em todos os seus ciclos, de modo a reduzir casos que possam representar violação aos direitos da mulher, mormente a autodeterminação do próprio corpo e as prerrogativas de escolha quanto à eventual intervenção antes, durante e após o parto.
Com isso, faz-se necessário que o Poder Judiciário acompanhe o tema para aplicação em proteção aos direitos da mulher, a fim de que o tratamento não se dê apenas quando houver a associação com eventual erro médico.
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TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.
[1] Disponível em https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/52850#::text=Cerca%20de%2050% 25%20dos%20profissionais,de%20ansiedade%20e%20de%20depress%C3%A3o>. Acesso em 01/10/2023.
[2]GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. - 4. ed. - São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 924.
[3]AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; 10. ed., 1997, p. 8.
[4] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 726
[5] CROCE, Delton. Erro médico e direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 03
[6] AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.895.660/AL, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 28.03.2022, DJe de 04.04.2022
[7] Disponível em https://www.estadao.com.br/emais/gente/carolinie-figueiredo-relata-estupro-e-violencia-obstetrica-essas-dores-estao-vivas/. Acesso em 08.10.2023.
[8] Disponível em https://www.as.saude.ms.gov.br/wp-content/uploads/2021 /06/livreto_violencia _obstetrica-2-1.pdf. Acesso em 08.10.2023.
[9] SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Violência obstétrica em (des)foco: uma avaliação da atuação do Judiciário sob a ótica do TJMA, STF e STJ. 2018. 227f. Dissertação (Mestrado em Direito/CCSO) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís. p. 185.
. Disponível em https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf
O presente artigo visa à análise do conflito existente entre dois direitos fundamentais – dignidade da pessoa humana e direito de propriedade – que possam eventualmente incidir dentro do contexto de violência doméstica, notadamente quando a mulher necessita residir na propriedade comum de seu atual e ex-companheiro. Buscar-se-á, por intermédio de pesquisa bibliográfica, fazer o levantamento concernente aos embates envolvendo os temas e as soluções que podem ser alcançadas, à luz dos direitos humanos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, BRUNO MARQUES DE. Violência obstétrica e suas repercussões sobre a vida das parturientes: uma reflexão normativa e jurisprudencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2023, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64135/violncia-obsttrica-e-suas-repercusses-sobre-a-vida-das-parturientes-uma-reflexo-normativa-e-jurisprudencial. Acesso em: 23 dez 2024.
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