RESUMO: O acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 13.964/2019 e sua aplicação, de forma retroativa, é objeto de divergência doutrinária e jurisprudencial. O presente trabalho tem o objetivo de avaliar a possibilidade de aplicação retroativa do instituto e a definição de um marco processual em que ainda é possível a realização do acordo não persecutivo. Para isso, realizou-se estudo de caso de decisão proferida pelo STF, em conjunto com a revisão da jurisprudência e de entendimentos doutrinários.
Palavras-chaves: ANPP, retroatividade, marco processual.
1. INTRODUÇÃO
Com o objetivo de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, a Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, introduziu, no ordenamento jurídico pátrio, o acordo de não persecução penal (ANPP), acrescentando o art. 28-A no Código de Processo Penal (CPP).
Tão logo o novel instituto entrou em vigor, começaram a surgir questionamentos perante os tribunais acerca da sua retroatividade para os processos em curso, sobrevindo diferentes posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a fixação do marco temporal e/ou processual de sua aplicação.
A partir do estudo de caso de decisão proferida pelo STF, à luz da doutrina e da jurisprudência, o presente trabalho busca discutir a aplicação retroativa do instituto e a definição de um marco processual em que ainda é possível a realização de acordo não persecutivo entre o autor de um delito e o Ministério Público.
Desse modo, tendo como premissa o entendimento majoritário acerca da retroatividade da norma que inaugura o ANPP para os casos em que ainda não recebida a denúncia, analisa-se a argumentação jurídica construída para os demais posicionamentos, especialmente quanto à retroatividade para os processos não sentenciados ou sem condenação definitiva e à irretroatividade do instituto.
2. APRESENTAÇÃO DO CASO
O paciente do HC 191.464/SC foi condenado em primeira instância pela prática de crime contra a ordem tributária. A condenação foi confirmada pelo respectivo Tribunal de Justiça e mantida pelo STJ, que não conheceu do recurso especial e negou seguimento ao recurso extraordinário.
Com o advento da Lei nº 13.964/2019, a defesa solicitou que o processo fosse encaminhado para o Ministério Público, a fim de que este se manifestasse sobre a possibilidade de propositura de acordo de não persecução penal. A vice-presidência do STJ indeferiu o pedido de remessa ao Órgão Ministerial e a corte especial, por unanimidade, não conheceu do agravo em recurso extraordinário, ensejando a impetração do referido habeas corpus.
Após decisão monocrática do relator negando seguimento ao habeas corpus, no respectivo agravo regimental, a primeira turma do STF decidiu pela aplicação do acordo de não persecução penal para os fatos ocorridos anteriormente à vigência da Lei nº 13.964/2019. Após decidir pela retroatividade do instituto, definiu-se o recebimento da denúncia como o marco processual para a sua aplicação, sendo fixada tese no sentido de que “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”.
Entre as razões de decidir, destaca-se o fato de que o novo instituto é norma penal híbrida (penal e processual penal) – pois tem o condão de evitar a instauração da ação penal (natureza processual) ao mesmo tempo em que viabiliza a extinção da punibilidade do agente que cumpre o acordo (natureza penal) – devendo prevalecer a aplicação retroativa benéfica ao réu, nos termos do art. 5º, inciso XL, da CF/88 (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).
Partindo da interpretação literal do art. 28-A do CPP – que utiliza o termo “investigado” (e não “réu”) – e da consequência legal do descumprimento ou da não homologação judicial do ANPP (oferecimento da denúncia); a primeira turma do STF entendeu que o ANPP está inserido em uma fase específica da persecução penal, anterior ao recebimento da denúncia (etapa pré-processual), devendo ser prestigiada a marcha progressiva do processo.
Ademais, assim como os institutos da transação penal, da suspensão condicional do processo e da colaboração premiada, o ANPP também excepciona a obrigatoriedade da ação penal. Por esse motivo, o colegiado adequou a ratio decidendi firmada no enfrentamento da aplicação intertemporal da suspensão condicional do processo (HC 74.305, j. 09/12/1996) no sentido de que a “retroatividade penal benéfica deve se adequar às finalidades para as quais foi editada a lei penal”.
Considerando que a finalidade do acordo não persecutivo é evitar que se inicie processo, a turma entendeu que o ANPP “se esgota antes do oferecimento e do recebimento da denúncia”, fixando o ato de recebimento da denúncia como marco limitador da retroatividade do instituto.
Por fim, em obter dictum, também foi utilizado argumento de ordem consequencialista: a restauração da etapa pré-processual – já efetivada em conformidade com as leis processuais vigentes – acarretaria, por consequência, um colapso do sistema criminal. Caso se admita a retroatividade do art. 28-A do CPP para abranger os processos com decisões transitadas em julgado, “praticamente todos os processos – em curso, julgados, em fase recursal, em cumprimento de pena –” deveriam ser remetidos para o órgão ministerial avaliar a viabilidade de oferta do ANPP.
Diante do exposto, a primeira turma do STF, por unanimidade, negou provimento ao Ag.Reg. no HC 191.464/SC, pois “na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP”.
3. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA
De início, é importante ressaltar que a quinta turma do STJ vem acompanhando o entendimento proferido pela primeira turma do STF. Neste sentido:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ANPP. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 28-A DO CPP. DESCABIMENTO. DENÚNCIA RECEBIDA ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N. 13.964/2019. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. O art. 28-A possui, sim, eficácia retroativa, para abranger as infrações penais cometidas antes de sua entrada em vigor; no entanto, a celebração de ANPP somente será viável se ainda não tiver sido recebida a denúncia.
2. No caso dos autos, a denúncia foi recebida em 2/9/2018 (e-STJ, fls. 9-11), ou seja, antes da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, de modo que não há falar em aplicação do instituto do ANPP.
3. Agravo regimental desprovido. (STJ, Quinta Turma, Ag.Reg. no Recurso Especial 1.913.308/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 30/03/2021).
Além do entendimento majoritário pela retroatividade do art. 28-A do CPP desde que ainda não recebida a denúncia, outros dois posicionamentos jurisprudenciais merecem destaque: (i) retroatividade desde que não prolatada a sentença – conforme julgados proferidos pelos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e de São Paulo – e (ii) retroatividade enquanto não houver o trânsito em julgado – conforme julgados proferidos pela sexta turma do STJ e pelos Tribunais Regionais Federais da 4ª e 5ª Região.
Ao enfrentar a solicitação de envio dos autos de processo já sentenciado para o parquet avaliar a possibilidade de oferecimento de ANPP, o TJ-MG entendeu que a retroatividade da norma não pode ocorrer de maneira irrestrita, fixando como momento limítrofe a prolação da sentença pelo magistrado a quo:
EMENTA OFICIAL: PENAL - ARTIGO 14 DA LEI 10.826/03 - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - REDUÇÃO DA PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA E DA MULTA - INVIABILIDADE - ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL - LEI 13.964/19 - INAPLICABILIDADE - ISENÇÃO DO PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS - PEDIDO PREJUDICADO - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [...] 3. O acordo de não persecução penal (ANPP), espécie de medida despenalizadora pré-processual, tem como natureza jurídica tratar-se de um ajuste entre as partes que objetiva o não ajuizamento da ação penal. Já tendo sido proferida sentença penal, ainda que em fase recursal, não há falar em retorno dos autos para eventual aplicação do ANPP, pois a medida se torna inócua, já que transcorrida a instrução probatória, sob pena de se alterar a própria natureza jurídica do instituto. (TJ-MG, 5ª Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 1.0699.17.001658-7/001, Rel. Des. Pedro Vergara, j. 13/07/2021).
Entre as razões de decidir, o tribunal mineiro utiliza – como argumento de autoridade – entendimento doutrinário que aponta a necessidade de oferecer tratamento isonômico entre os casos com ação penal em curso ainda não sentenciados e os casos sem oferecimento da inicial acusatória, fazendo também referência ao entendimento jurisprudencial do TJ-SP.
Por conseguinte, o tribunal paulista enfatiza a disposição topográfica do ANPP no Código de Processo Penal, denotando interpretação teleológica no sentido de que o instituto “possui a finalidade de se tornar uma alternativa à propositura da ação penal” (TJ-SP, Apelação Criminal nº 0000286-76.2016.8.26.0369, Rel. Des. Freitas Filho, j. 09/07/2020), “reduzir o número de demandas processuais criminais, bem como afastar eventual constrangimento decorrente de desnecessária submissão do agente às agruras de uma instrução criminal” (TJ-SP, ED na Apelação Criminal nº 0000971-75.2018.8.26.0544, Rel. Des. Ely Amioka, j. 04/05/2020).
Desse modo, considerando que o ANPP exige a confissão formal (art. 28-A, caput, do CPP) e que a dilação probatória – momento adequado para a confissão – estava encerrada nos processos já sentenciados ao tempo da vigência do Pacote Anticrime, o TJ-SP conclui pela preclusão da pretensão de remessa dos autos ao órgão ministerial. Entendimento diverso (cabimento de ANPP para os processos em fase recursal) seria um contrassenso, pois teria o condão de rescindir sentença condenatória hígida.
Ademais, a retroatividade da norma que rege o ANPP assemelha-se à retroatividade permitida no surgimento da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/1995): impossibilidade de oferecimento do sursis processual após a prolação de sentença. Esta analogia é pautada pelo princípio da segurança jurídica, uma vez que a rescisão de um julgamento válido por vontade exclusiva das partes afrontaria a integridade do sistema processual.
Noutro giro, existe corrente de entendimento que admite a retroatividade do art. 28-A do CPP para os processos que estavam em fase recursal no início da vigência da Lei nº 13.964/2019. Essa retroatividade enquanto não houver o trânsito em julgado é capitaneada pela seguinte decisão proferida pela sexta turma do STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATURA MISTA. RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF).
2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime - Lei n. 13.964/2019). (STJ, Sexta Turma, Ag.Reg. no HC 575.395/RN, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 08/07/2020).
O TRF-4 também decidiu que o magistrado deve “aferir a possibilidade de acordo de não persecução penal aos processos em andamento (em primeiro ou segundo graus), quando a denúncia tiver sido ofertada antes da vigência do novo artigo 28-A, do CPP”. Estando presentes os requisitos legais para um possível acordo, o relator deverá determinar “a suspensão da ação penal e da prescrição e abaixa em diligência ao primeiro grau para verificação da possibilidade do benefício legal” (TRF-4, 8ª Turma, Correição Parcial nº 5009312-62.2020.4.04.0000/RS, Rel. Des. João Pedro Gebran Neto, j. 13/05/2020).
Entre as razões de decidir, destaca-se o entendimento sobre a natureza jurídica do ANPP: por ser novatio legis in mellius, deve retroagir em benefício ao réu, inclusive para os casos em que o processo se encontra em grau recursal. Ademais, ainda que o art. 28-A do CPP disponha sobre a aplicabilidade do ANPP na fase pré-processual – para as investigações em andamento e nos casos futuros – é certo que o legislador não vedou sua formalização para os processos em curso.
Destarte, é razoável que o réu (assistido por seu defensor) tenha a oportunidade de rever sua estratégia processual, realizando a confissão formal do fato – tendo em vista o incentivo estabelecido pela norma – e se submetendo ao acordo.
Nesse diapasão, entendeu o TRF-5 que “não é justo, razoável, proporcional e legítimo não aplicar o ANPP em sede de apelação”, uma vez que a “intenção do instituto – numa interpretação finalística e benéfica ao réu – não é apenas impedir o início de uma ação criminal, mas sim o próprio movimento da máquina jurisdicional” (TRF-5, 2ª Turma, Apelação Criminal nº 0000624-95.2015.4.05.8100, Rel. Juiz Federal Carlos Vinicius Calheiros Nobre, convocado, j. 10/12/2021).
O relator dessa apelação também enfatizou que as decisões do STF e do STJ – no sentido de a retroatividade do acordo não persecutivo ficar limitada aos casos em que ainda não recebida a denúncia – não constituem precedentes obrigatórios capazes de condicionar a interpretação sobre o novo instituto.
Sob outra perspectiva, convém esclarecer que a dissonância inicialmente pugnada pela sexta turma do STJ – retroatividade do ANPP até o trânsito em julgado (Ag.Reg. no HC 575.395/RN, j. 08/07/2020) – já foi dissolvida no âmbito daquele Tribunal Superior. A turma reviu o entendimento sobre a retroatividade do ANPP, no sentido de que ela deve ficar limitada à fase pré-processual (posição já defendida pela quinta turma):
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. ART. 28-A DO CPP, INTRODUZIDO PELA LEI N. 13.964/2019. NORMA HÍBRIDA: CONTEÚDO DE DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RETROATIVIDADE. POSSIBILIDADE ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. O art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, que passou a vigorar a partir de 24/01/2020, traz norma de natureza híbrida, isto é, possui conteúdo de Direito Penal e Processual Penal.
2. Infere-se da norma despenalizadora que o propósito do acordo de não persecução penal é o de poupar o agente do delito e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime, abrindo a possibilidade de o membro do Ministério Público, caso atendidos os requisitos legais, oferecer condições para o então investigado (e não acusado) não ser processado, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Ou seja: o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente sobre o qual há, em tese, justa causa para o oferecimento de denúncia se aplica ainda na fase pré-processual, com o claro objetivo de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal.
3. Se, por um lado, a lei nova mais benéfica deve retroagir para alcançar aqueles crimes cometidos antes da sua entrada em vigor – princípio da retroatividade da lex mitior, por outro lado, há de se considerar o momento processual adequado para perquirir sua incidência – princípio tempus regit actum, sob pena de se desvirtuar o instituto despenalizador.
4. Ao conjugar esses dois princípios, tem-se que é possível a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal, desde que não recebida a denúncia. A partir daí, iniciada a persecução penal em juízo, não há falar em retroceder na marcha processual.
5. Agravo regimental desprovido. (STJ, Sexta Turma, Ag.Reg. no HC 628.647/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Laurita Vaz, j. 09/03/2021).
Não obstante o entendimento aparentemente uniforme das turmas criminais do STJ, a terceira seção decidiu submeter a controvérsia ao rito dos recursos repetitivos (afetação dos recursos especiais 1.890.344/RS e 1.890.343/SC), sem suspender o trâmite dos processos pendentes. Conforme tema repetitivo 1.098/STJ, afetado em 15/06/2021, a seguinte questão está pendente de julgamento: "(im)possibilidade de acordo de não persecução penal posteriormente ao recebimento da denúncia".
Além disso, tendo em vista que “a retroatividade e potencial cabimento do acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP) é questão afeita à interpretação constitucional, com expressivo interesse jurídico e social”, a matéria também foi afetada ao plenário do STF, em 22/11/2020. Aguarda-se, desde então, o julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF a fim de abrandar a divergência jurisprudencial.
4. ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO
Como espécie de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, o acordo de não persecução penal pode ser conceituado como um negócio jurídico extrajudicial:
celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso – devidamente assistido por seu defensor -, que confessa formal e circunstanciadamente a prática de um delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de não perseguir judicialmente o caso penal extraído da investigação penal, leia-se, não oferecer a denúncia, declarando-se a extinção da punibilidade caso a avença seja integralmente cumprida. (LIMA, 2021, p. 238).
Respaldado na liberdade individual e na autonomia de vontade do indivíduo, esse acordo de vontades enseja concessões e obrigações recíprocas. Desse modo, enquanto “o Estado, representado pelo Ministério Público, renuncia à persecução processual criminal e à aplicação da pena tal como cominada ao delito em abstrato”; o investigado precisa colaborar com o “reconhecimento da prática do crime e a aceitação das condições de forma voluntária, sempre mediante a compreensão integral de seus termos, devendo necessariamente ser assistido por um advogado”. (MOTA, 2020, p. 165-166).
Por exigir cedências recíprocas, Mendonça, Camargo & Roncada (2020, p. 66) enfatizam que “a falta de assentimento de uma das partes não pode ser suprida por decisão judicial” e que a pactuação do ANPP deve observar as particularidades do caso concreto, não devendo ser tratado como um contrato de adesão.
Em relação ao momento para a celebração do acordo, não resta dúvidas de que “a própria natureza do instituto parece sugerir que a proposta deverá ser feita na fase pré-processual”, uma vez que o art. 28-A do CPP aponta a possibilidade de oferecimento da denúncia ou prosseguimento das investigações como consequência do descumprimento ou não homologação do acordo de não persecução penal. (PACELLI & FISCHER, 2021, p. 140).
Tendo em vista o objeto do presente trabalho, é possível vislumbrar os seguintes entendimentos quanto à aplicação do direito intertemporal para o instituto: (i) irretroatividade do ANPP; (ii) retroatividade do ANPP desde que ainda não recebida a denúncia; (iii) retroatividade do ANPP enquanto não proferida sentença condenatória; (iv) retroatividade do ANPP até o trânsito em julgado; e, por fim, (v) retroatividade do ANPP para os processos transitados em julgado.
Partindo-se do pressuposto de que a norma que rege o acordo não persecutivo (art. 28-A do CPP) possui natureza híbrida (penal e processual penal), conclui-se pela retroatividade do novo instituto para abranger os fatos delituosos praticados anteriormente à sua vigência. Nesse sentido, convém salientar que:
O acordo de não persecução penal tem nítida implicação no direito de punir, afinal é capaz de afastar a privação da liberdade em troca da aplicação de condições que, cumpridas, levam à extinção da punibilidade do/a agente. É inegável que, embora se trate de alteração à lei processual, existe flagrante caráter penal. Por essa razão, embora o tema seja complexo e controverso, não vemos óbice algum, ao menos no campo dogmático, à aplicação retroativa da norma, concedendo a possibilidade de acordo àquelas pessoas que não tiveram a oportunidade porque a lei não havia sido implementada. Esse entendimento se aplica especialmente aos casos em que o trânsito em julgado ainda não se operou (a exemplo das situações em que a denúncia foi ofertada, mas está pendente de recebimento, e em que a instrução foi iniciada, mas não foi concluída). (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 79).
Pacelli & Fischer (2021, p. 147) asseveram que “não cabe cogitar a aplicação do ANPP aos casos com denúncia já recebida, pois não mais condiz com a natureza do instituto mais benéfico e, portanto, com a sua finalidade (não haver ‘processo’)”. Para os autores, a aplicação retroativa do ANPP a processos com denúncias recebidas contraria expressamente o art. 28-A, caput, do CPP – que dispõe que o acordo só será possível “não sendo caso de arquivamento”. Assim, privilegiando a legalidade e a correspondência lógica ao tempo, resta concluir que:
Aos fatos cometidos anteriormente (retroatividade), mas com denúncia recebida, não cabe o ANPP, pois processualmente há um óbice claro e expresso: somente pode ser aplicado desde que não recebida a denúncia, pois o momento de que trata a lei processual é o da fase do art. 28-A do CPP, quando, não sendo o caso de arquivamento do inquérito, estejam reunidas as condições para se evitar a ação penal, mediante acordo com o investigado. (PACELLI & FISCHER, 2021, p. 148).
Para a corrente que admite a retroatividade enquanto não proferida sentença condenatória – acordo de não continuidade da ação penal – é fundamental observar o princípio da isonomia, uma vez que o fato de a denúncia ter sido recebida não pode funcionar como óbice à celebração do acordo e possível extinção da punibilidade pelo seu integral cumprimento. (LIMA, 2021, p. 243).
Essa corrente não admite a retroatividade em grau recursal porque “uma vez já tendo sido proferida sentença (condenatória), o acusado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com sua confissão”, que é um “importante trunfo político-criminal para a celebração do acordo”, conforme prevê o art. 28-A, caput, do CPP. (CABRAL, 2020, p. 213, apud LIMA, 2021, p. 243).
Por outro lado, há corrente que admite a celebração de acordo não persecutivo em fase recursal – retroatividade até o trânsito em julgado, fundamentando-se no Enunciado nº 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal:
É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão. (MPF, 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Enunciado nº 98, alterado em 31/08/2020).
Embora seja difícil diferenciar os argumentos dessa corrente frente àqueles que defendem a retroatividade do ANPP para os processos já transitados em julgados, Lima (2021, p. 243) assevera que – como o cumprimento integral do acordo gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP) – esta parte da doutrina entende que “deve ser aplicado o mesmo regramento atinente às regras de direito penal, in casu, o da retroatividade penal mais benéfica”, uma vez que não haveria justificativa para se negar a possibilidade de celebração do acordo para aqueles que possuem processo criminal em andamento.
Extremamente minoritária é a posição de retroatividade do ANPP para os processos transitados em julgado. Sem olvidar que parcela da doutrina apenas cita a existência dessa corrente doutrinária, Betta (2021) sugere a retroatividade ilimitada do ANPP – “com total eficácia e sem limitação temporal” – uma vez que deve ser aplicado o método interpretativo da máxima efetividade da norma constitucional, “para alcançar a maior aplicabilidade e eficácia do direito fundamental” insculpido no art. 5º, XL, CF/88 (retroatividade da lei penal benéfica).
Por fim, em oposição às correntes que entendem pela retroatividade do ANPP, Renato Brasileiro de Lima defende a aplicação do acordo de não persecução penal exclusivamente aos fatos delituosos cometidos a partir da vigência da Lei nº 13.964/2019. Ao dispor sobre a irretroatividade do ANPP, ele assevera que as correntes anteriores:
[...] deixaram de levar em consideração um fator crucial para definir a regra do direito intertemporal a ser aplicada à controvérsia sob debate, qual seja, o fato de que, ao introduzir o acordo de não persecução penal no CPP, de cujo cumprimento integral pode resultar inclusive a declaração da extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13), a Lei n. 13.964/2019 também alterou o Código Penal para fins de prever que, antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal (CP, art. 116, IV). (LIMA, 2021, p. 243).
Desse modo, tendo em vista que a novo diploma normativo trouxe – para além do ANPP – uma nova causa suspensiva da prescrição, ele deve ser compreendido como mais prejudicial ao acusado/réu, sob pena de “patente violação ao princípio da irretroatividade da lex gravior”. (LIMA, 2021, p. 243).
5. NORMAS QUE REGULAMENTAM A MATÉRIA
O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. (LIMA, 2021, p. 240).
Por se tratar de norma infralegal que inaugurava novo instituto na esfera processual penal, surgiu acirrado debate acerca da constitucionalidade da Resolução nº 181/2017-CNMP, tendo sido ajuizada a ADI 5.790/DF perante o STF sob o argumento de que era necessária uma lei ordinária, editada pela União (art. 22, I, CF/88), regulando o tema. Essa ADI teve sua análise prejudicada com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime).
Desse modo, ao acrescentar o art. 28-A no Código de Processo Penal – que regulamenta, de forma definitiva, o acordo de não persecução penal –, a controvérsia existente fica encerrada, uma vez que “temos, enfim, uma lei ordinária versando sobre a matéria, em fiel observância ao art. 129, I, da Constituição Federal” (LIMA, 2021, p. 242).
Inicialmente, é importante destacar que o ANPP deve ser visualizado como uma segunda opção dentre as técnicas de autocomposição em matéria criminal (art. 28-A, caput e § 2º, I, CPP), uma vez que ele só poderá ocorrer quando não for o caso de arquivamento e não couber a aplicação do instituto da transação penal, nos termos do art. 76 da Lei nº 9.099/95.
Dessa forma, primeiramente deverá ser avaliada a existência de indícios mínimos de autoria e materialidade que sustentam o início da persecução penal. Caso contrário, o Ministério Público deverá promover o arquivamento das peças de informação, conforme art. 28 CPP. Não sendo caso de arquivamento, deverá ser verificada a viabilidade da propositura de transação penal. Se inviável, resta verificar, em último caso, se é cabível o oferecimento do acordo de não persecução penal.
Convém salientar que o oferecimento do ANPP é uma faculdade do Ministério Público, que deverá avaliar se para o caso concreto o acordo é necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (art. 28-A, caput, CPP). Caso o parquet decida pelo não oferecimento do acordo, resta ao investigado requerer a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público, que avaliará a pertinência ou não do oferecimento do acordo, nos termos da respectiva lei orgânica (art. 28-A, § 14, CPP).
Por outro lado, como o próprio nome sugere (acordo de não persecução penal), é obrigatória a participação do investigado – que precisa confessar formal e circunstancialmente a prática de infração penal – e de seu defensor (art. 28-A, caput e § 3º, CPP). Após a formalização da proposta por escrito, o acordo é encaminhado para homologação pelo juiz, que realizará audiência com o investigado, acompanhado de seu defensor, para verificar a sua voluntariedade; momento em que também verificará a legalidade do pacto (art. 28-A, §§ 3º e 4º, CPP).
Quanto à análise da legalidade do acordo, o magistrado examinará se os requisitos mínimos de cabimento do ANPP foram cumpridos e se não incide alguma das vedações legais que impedem sua celebração.
Nesse sentido, verificar-se-á se a infração penal foi cometida sem violência ou grave ameaça e a pena mínima é inferior a 04 anos – já computadas as causas de aumento e diminuição (art. 28-A, caput e § 1º, CPP); bem como se não se trata de investigado reincidente ou com indícios de conduta criminosa habitual, reiterada ou profissional, se não foi beneficiado com técnica autocompositiva nos 05 anos anteriores (transação penal, ANPP ou suspensão condicional do processo) e se o crime não foi praticado no contexto de violência doméstica ou familiar, ou contra mulher por questão de gênero (art. 28-A, § 2º, CPP).
Transcorrida as análises da voluntariedade e da legalidade, resta ao magistrado verificar se as condições ajustadas entre as partes são adequadas e suficientes para a prevenção e reprovação do crime.
O texto legal apresenta um rol exemplificativo de condições que podem ser impostas pelo Ministério Público, cumulativa ou alternativamente, no momento da pactuação do ANPP (art. 28-A, caput, e incisos I a V, CPP). É o caso da reparação do dano ou restituição da coisa; renúncia voluntária de bens e direitos (indicados como instrumento, produto ou proveito do crime); prestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas (por período correspondente à pena mínima cominada reduzida de um a dois terços); pagamento de prestação pecuniária à entidade pública ou de interesse social; ou qualquer outra condição, por prazo determinado, se proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Caso o magistrado considere inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições pactuadas no ANPP, este será devolvido ao Ministério Público para reformulação da proposta, com a concordância do investigado e seu defensor (art. 28-A, § 5º, CPP). Caso o magistrado discorde da readequação realizada pelas partes ou entenda que o ANPP não preenche os requisitos legais, ele deverá recusar sua homologação (art. 28-A, § 7º, CPP).
Da recusa da homologação judicial cabe a interposição de recurso em sentido estrito (art. 581, XXV, CPP) pelas partes, bem como o prosseguimento das investigações ou o oferecimento da denúncia pelo parquet (art. 28-A, § 8º, CPP), se assim entender cabível.
De outro modo, a homologação judicial do ANPP ensejará a devolução dos autos para o Ministério Público – que iniciará sua execução perante o juízo de execuções penais (art. 28-A, § 6º, CPP) – e a intimação da vítima, a qual deverá tomar ciência do acordo e de seu eventual descumprimento (art. 28-A, § 9º, CPP).
O descumprimento de qualquer uma das condições estipuladas no ANPP acarretará a rescisão do acordo (art. 28-A, § 10, CPP), que poderá servir de justificativa para a recusa no oferecimento da suspensão condicional do processo – nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95 – (art. 28-A, § 11, CPP). Ademais, considerando que a prescrição não corre enquanto não cumprido ou não rescindido o ANPP (art. 116, IV, CP), sua rescisão provocará posterior oferecimento de denúncia.
Por fim, o cumprimento integral do acordo de não persecução penal acarretará a extinção de punibilidade, não devendo sua celebração e cumprimento constar de certidão de antecedentes criminais, exceto para impedir a realização de um novo acordo no prazo de 05 anos (art. 28-A, §§ 12 e 13, CPP).
6. ANÁLISE CRÍTICA
Como toda construção das ciências jurídicas envolve diferentes opiniões e posicionamentos, o surgimento do acordo de não persecução penal pela Lei nº 13.964/2019 trouxe inúmeros argumentos favoráveis e contrários ao novo instituto.
Tendo em vista a realidade carcerária brasileira e o déficit de defensores públicos, Mendes & Martínez (2020, p. 65) se posicionam desfavoravelmente ao ANPP, enfatizando que embora o acordo pressuponha uma paridade de armas entre acusação e defesa, sua implementação no país tem como pano de fundo uma imensa desvantagem do mais fraco em relação ao mais forte. Ademais, a exigência de confissão formal e circunstanciada (art. 28-A, caput, CPP) – contida na proposta – “é de flagrante inconstitucionalidade, representando na práxis um modo de vulneração da pessoa acusada”.
Em relação à argumentação de que o ANPP desafogaria o sistema de justiça, as autoras contrapõem-se no sentido de que é preciso:
considerar que grande parcela do sistema carcerário brasileiro continua a ser composta por pessoas negras, pobres e que praticaram crimes contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça, como é o caso do furto simples, melhor teria sido a opção legislativa aquela que, se não descriminalizasse tal conduta, a tornar-se crime de ação privada. Seguramente, medida como essa “desafogaria” mais o sistema de justiça criminal e os cárceres brasileiros do que a fictícia situação na qual uma pessoa furtadora será posta em uma mesa de “negociações” sem o devido acompanhamento técnico, tendo o Ministério Público de outro lado. (MENDES & MARTÍNEZ, 2020, p. 65).
Noutro giro, ao dispor que o ANPP deve ser compreendido como um critério de seleção orientado pelo princípio da intervenção mínima, Lima (2021, p. 238) assevera que o acordo de não persecução penal “representa uma alternativa promissora para tornar o nosso sistema de justiça criminal um pouco mais eficiente, com uma escolha mais inteligente das prioridades, levando-se a julgamento tão somente aqueles casos mais graves”.
De igual modo, ao vislumbrar o ANPP como oportunidade de derivação para a justiça restaurativa, Mendonça, Camargo & Roncada (2020, p. 91-92) também entendem que o instituto representa um grande avanço para revolucionar a persecução penal no Brasil, “ao permitir que o sistema punitivo seja reservado para situações de maior gravidade, assegurando, também, uma prestação jurisdicional mais célere e a diminuição da estigmatização do investigado pelo processo”. No mesmo sentido, é possível destacar que:
Mesmo diante das incongruências normativas e abrandamento das penalizações, o recurso à justiça negociada representa uma solução alternativa à crise de eficiência do sistema processual penal. É uma mudança estrutural, que embora atinja pilares antes reputados como inalteráveis, como os princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, encontra legitimação na autonomia individual, na ação positiva da Constituição Federal e nos princípios da proporcionalidade, efetividade, celeridade e economicidade. (MOTA, 2020, p.191).
Diante do exposto, em que pese a existência de entendimento contrário, não resta dúvidas de que os benefícios advindos com o acordo de não persecução penal superam as críticas ao recente diploma normativo. Desse modo, torna-se ainda mais relevante a análise sobre o direito intertemporal quanto à aplicação do ANPP para os fatos ocorridos anteriormente à vigência do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019).
É possível afirmar que a solução para o acalorado debate doutrinário e jurisprudencial – consubstanciado por cinco correntes de entendimento – tem início a partir da delimitação do marco processual quanto à retroatividade do ANPP: (i) até o recebimento da denúncia, (ii) até a prolação da sentença, ou (iii) até o trânsito em julgado.
Nesse primeiro momento, resta asseverar que o Código de Processo Penal dispõe expressamente que o acordo de não persecução penal só é cabível em “não sendo o caso de arquivamento” (art. 28-A, caput), que a consequência da recusa da homologação é a “complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia” (art. 28-A, § 8º) e que o descumprimento do acordo enseja sua rescisão e “oferecimento da denúncia” (art. 28-A, § 10). Assim, conclui-se que a delimitação legal é o recebimento da denúncia.
Nesse diapasão, considerando apenas a delimitação de um marco processual para a retroatividade e tendo em vista a legislação vigente, filia-se ao entendimento de Pacelli & Fischer (2021, p. 140) no sentido de que a retroatividade do ANPP só poderá ocorrer até o recebimento da denúncia:
Compreendemos que admitir a aplicação do acordo de não persecução penal em ações penais em andamento, sob o escudo geral (e até “genérico”) de que consistiria em “providência mais benéfica ao infrator”, configura uma criação sem base dogmática e sistemática legal [...]. Contrariando frontalmente a opção do legislador (de verdadeira política criminal), a “escolha” de outros marcos de incidência do ANPP como até o início da instrução, até a sentença, até a condenação em segundo grau, até o trânsito em julgado ou qualquer outro momento, decorreria de mero “ativismo” (para não dizer decisionismo) sem qualquer racionalidade à luz do ordenamento jurídico vigente. (PACELLI & FISCHER, 2021, p. 141).
É importante ressaltar que essa delimitação processual tem por fundamento a natureza híbrida da norma que dispõe sobre o acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP). Sua natureza penal e processual penal enseja a coexistência dos seguintes princípios de aplicação do direito intertemporal: retroatividade da lex mitior penal (art. 5º, XL, CF/88) e tempus regit actum – irretroatividade da norma processual (art. 2º do CPP).
Por conseguinte, evidencia-se que a natureza híbrida do art. 28-A do CPP é razão suficiente para afastar o posicionamento que defende a retroatividade do ANPP para os processos transitados em julgado. A retroatividade máxima do ANPP – independentemente de ter ocorrido o integral cumprimento da pena, a extinção da punibilidade e, até mesmo, para afastar os efeitos da reincidência (BETTA, 2020) – considera apenas “que a regra do ANPP é ‘mais benéfica’ sob o aspecto penal (desvinculando-a da limitação temporal feita pelo legislador)” (PACELLI & FISCHER, 2021, p. 148).
Desse modo, em observância à soberania popular (art. 1º, parágrafo único, CF/88) e à separação dos Poderes (art. 2º, CF/88), princípios organizativo-estruturantes do Estado Democrático de Direito, resta concluir que o marco processual delimitado pelo Poder Legislativo deve predominar sobre outros entendimentos:
De se realçar que, se o legislador aprovasse o acordo de não continuidade da ação penal (que pressuporia processo, com denúncia recebida), também haveria um limite temporal: o início da instrução processual [...]. O que não se pode é, por interpretações isoladas, ampliativas e sem visão sistemática, pretender aplicação retroativa (exclusivamente) da parte penal quando ela se revela absolutamente incompatível com outra exigência existente na mesma norma (que é igualmente constitucional), a não existência de processo, pois se trata de norma híbrida. (PACELLI & FISCHER, 2021, p. 147).
Diante do exposto, caso seja admitida a retroatividade do ANPP, concorda-se com o posicionamento de que o acordo de não persecução penal só poderá retroagir enquanto não ocorrer o recebimento da denúncia, conforme jurisprudência majoritária elaborada pelas turmas criminais do STJ e pela primeira turma do STF: Ag.Reg. no HC 191.464/SC, j. 11/11/2020 (STF, 1ª turma), Ag.Reg. no REsp. 1.913.308/RS, j. 30/03/2021 (STJ, 5ª turma) e Ag.Reg. no HC 628.647/SC, j. 09/03/2021 (STJ, 6ª turma).
Após a delimitação do marco processual, passa-se a análise quanto à irretroatividade do instituto. Em síntese, esse segundo momento tem o condão de verificar se o art. 28-A do CPP: (i) retroagirá para as infrações penais anteriores sem o recebimento da denúncia ou se ele (ii) incidirá apenas para delitos cometidos após a vigência da Lei nº 13.964/2019 (irretroatividade do ANPP).
Destarte, é importante trazer à baila que o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) aperfeiçoa tanto a legislação penal (codificada e extravagante) como a legislação processual penal, de modo que a sua análise quanto ao direito intertemporal exige uma visão holística: ao mesmo tempo em que a Lei nº 13.964/2019 introduziu o acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico pátrio (inserindo o art. 28-A no CPP), ela também estabeleceu nova causa suspensiva da prescrição (inserindo o inciso IV no art. 116 do CP).
Se de um lado o ANPP pode ser visualizado como um instituto benéfico – pois o cumprimento do acordo acarreta a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, CPP) – sendo recomendável sua retroatividade até o recebimento da denúncia, por ter natureza híbrida; de outro, eventual descumprimento ocasionará a persecução penal a qualquer tempo – a se iniciar pelo oferecimento da denúncia (art. 28-A, § 10, CPP) – uma vez que o prazo prescricional ficará suspenso por todo o período.
Logo, filia-se ao posicionamento do professor Renato Brasileiro de Lima pela irretroatividade do ANPP:
Ora, se a celebração do acordo de não persecução penal trouxe consigo, inexoravelmente, uma nova causa suspensiva da prescrição, norma de natureza penal nitidamente mais prejudicial, à controvérsia em questão deve ser aplicada a regra da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Logo, sua aplicação deverá ficar restrita aos crimes cometidos após a vigência do Pacote Anticrime, é dizer, a partir do dia 23 de janeiro de 2020. (LIMA, 2021, p. 243).
Adere-se ao posicionamento pela irretroatividade do art. 28-A do CPP pelos mesmos fundamentos expostos na anterior delimitação do marco processual para eventual retroatividade do instituto: observância dos princípios da soberania popular e da separação dos poderes, que fundamentam o mandamento constitucional de legalidade, norteador do Estado Democrático de Direito. Ademais:
[...] nem se diga que o acordo poderia ser celebrado sem a necessária suspensão da prescrição, sob pena de se admitir que o julgador atue como legislador positivo, criando-se uma terceira lei (lex tertia), em clara e evidente violação ao princípio da legalidade e da separação dos poderes. (LIMA, 2021, p. 243-244).
7. CONCLUSÃO
Este trabalho buscou analisar a incidência do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica do direito intertemporal, para verificar a possibilidade de aplicação do instituto recém-criado aos fatos típicos ocorridos anteriormente à vigência do Pacote Anticrime.
Diante da acentuada controvérsia doutrinária refletida perante os tribunais, foi constatada que eventual retroatividade da norma que rege o ANPP deve ser limitada pelo momento anterior ao recebimento da denúncia – conforme entendimento majoritário proferido pelas turmas criminais do STJ e pela primeira turma do STF – uma vez que a utilização de outro marco processual afrontaria princípios organizativo-estruturantes do Estado Democrático de Direito.
Todavia, a partir de uma visão abrangente das alterações normativas sobre a mesma base principiológica do Estado Democrático de Direito, conclui-se mais assertivo o posicionamento minoritário que defende a irretroatividade do acordo de não persecutivo, de forma que a Lei nº 13.964/2019 somente seria aplicável aos crimes cometidos após sua vigência.
Por fim, espera-se que a controvérsia judicial seja atenuada a partir do julgamento do HC nº 185.913/DF, pelo plenário do STF, e do tema repetitivo 1.098, pela terceira seção do STJ.
REFERÊNCIAS
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Auditor do Estado da Controladoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul (CGE-MS). Advogado inscrito na OAB/MS. Especialista em Gestão Pública e em Direito Processual. Graduado em Farmácia, ocupou o cargo de Técnico em Regulação e Vigilância Sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALCANTARA, Helder Braz. Acordo de não persecução penal e direito intertemporal: análise sobre a retroatividade e possível delimitação de marco processual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2023, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64236/acordo-de-no-persecuo-penal-e-direito-intertemporal-anlise-sobre-a-retroatividade-e-possvel-delimitao-de-marco-processual. Acesso em: 26 dez 2024.
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