Resumo: O presente artigo versa sobre decisão do Supremo Tribunal Federal (07/11/2019), a qual vetou a possibilidade de prisão aos condenados em Segunda Instância e sua relação com o princípio da vedação ao retrocesso, também conhecido como “efeito Cliquet”. Tem por objetivo analisar matéria constitucional que versa sobre qual seria o momento de privação de liberdade de quem está em julgamento no sistema judiciário. O presente artigo busca, também, expor o princípio constitucional da presunção de inocência como sendo cláusula pétrea. Por fim, conclui-se que a presente decisão proferida pela nossa Suprema Corte está inteiramente ligada ao princípio da vedação ao retrocesso, eis que ao vedar a prisão em segunda instância preservou o princípio da presunção de inocência, da dignidade humana, da liberdade e fez jus aos dispositivos de nossa Magna Carta.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; Prisão em segunda instância; Princípio da vedação ao retrocesso; Efeito Cliquet; Cláusulas Pétreas; Princípio da presunção de inocência.
Abstract: This article deals with a decision of the Federal Court of Justice (07/11/2019), which vetoed the possibility of imprisonment for those convicted in Second Instance and its relation to the Backward sealing principle, also known as the “Cliquet effect”. It aims to analyze constitutional matters that deal with what would be the moment of deprivation of liberty of those who are on trial in the judicial system. This article also seeks to expose the constitutional principle of the presumption of innocence as a stone clause. Finally, it is concluded that the present decision handed down by our Supreme Court is entirely linked to the Backward sealing principle, behold, by prohibiting imprisonment at second instance, preserved the principle of the presumption of innocence, human dignity, freedom and lived up to the provisions of our Magna Carta.
Keywords: Federal Court of Justice; Second instance arrest; Backward sealing principle; Cliquet Effect; Stone Clauses; Principle of the presumption of innocence.
INTRODUÇÃO
No dia 7 de novembro de 2019, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram por 6 votos a 5, fazer jus ao artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, julgando não ser possível a execução da pena antes do trânsito em julgado, firmando jurisprudência a ser seguida no sentido de que, ninguém poderá ser preso para começar a cumprir pena até o julgamento de todos os recursos possíveis em processos criminais, incluindo, quando cabível, tribunais superiores.
Na referida decisão, em seus votos contrários à prisão em segunda instância, os ministros utilizaram-se do entendimento de que a Constituição Federal é clara quanto ao princípio da presunção de inocência e não abre campo para controvérsias semânticas.
Outrossim, não há espaço para interpretar de forma diversa o que já está escrito com clareza solar na Constituição Federal e ainda na legislação processual penal, independentemente da bandeira social e política que se hasteie para justificar a flexibilização das garantias constitucionais, que, não nos esqueçamos, a todos alcança.
No ordenamento jurídico brasileiro temos como carta fundamental a Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição cidadã. A qual traz em seu corpo uma série de direitos e garantias de extrema importância para a defesa dos indivíduos contra o próprio Estado. Algumas das muitas garantias constitucionais individuais também foram citadas neste trabalho, como por exemplo, o princípio da presunção de inocência, esculpido em nosso artigo 5º, LVII, prelecionando que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, artigo este considerado cláusula pétrea.
Mas o princípio exaltado neste, o qual está implícito em nossa Magna Carta, é o princípio da vedação ao retrocesso, também conhecido como efeito cliquet. Na ordem constitucional, esse princípio tem a intenção de impedir que direitos já reconhecidos na ordem jurídica possam ser suprimidos e enfraquecidos pelos governantes, pois isto implicaria num retrocesso em detrimento das conquistas históricas da humanidade, especialmente no que é mais caro ao homem, como a dignidade e a liberdade. É ainda este princípio garantidor da efetividade das normas constitucionais e assegurador da segurança jurídica.
Em suma, o objetivo geral do presente trabalho é a discussão que versa sobre a relação da citada decisão do STF com o princípio da vedação ao retrocesso e qual seria o momento de privação de liberdade de quem está em julgamento no sistema judiciário.
Para orientar a confecção do artigo fora utilizado o método dedutivo, isto é, buscara posições jurídicas que sustentassem ou negassem a prisão em segunda instância. Buscou ainda categorias de conceitos e pesquisa bibliográfica qualitativa que compreendera revisão doutrinária em obras jurídicas e artigos relativos ao tema discutido.
O estudo foi dividido em apresentação do histórico de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisão em segunda instância, sobre o princípio da vedação ao retrocesso e do princípio da presunção de inocência como sendo cláusula pétrea. Após, foram apresentados os argumentos favoráveis à prisão em segunda instância buscando a constitucionalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal sob a ótica da nossa Magna carta e dos autores estudados.
1. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA
1.1 Breve relato histórico de decisões e entendimentos do Supremo Tribunal Federal sobre prisão em segunda instância
Desde a vigência da Constituição Federal de 1.988 até o ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal permitia a execução da pena antes do trânsito em julgado, houveram diversos julgamentos registrados nesse período que autorizaram as prisões.
Já no ano de 2009 até fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, assentou o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal ("ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"), decidindo ser inconstitucional a execução antecipada da pena. À época, por 7 a 4, o plenário concedeu o HC 84.078 para permitir a um condenado pelo TJ/MG que recorresse em liberdade, sendo assim, o STF passou a exigir o trânsito em julgado e só permitir prisões provisórias durante o processo.
Em fevereiro de 2016, por sua vez, também em HC (126.292), e com o mesmo placar (7x4), mas com composição diversa, o plenário alterou a jurisprudência afirmando ser possível a prisão após segunda instância. Na ocasião, a jurisprudência foi guiada pelo ministro Teori Zavascki. O entendimento foi firmado em respeito ao caso concreto. A mudança gerou insegurança jurídica: os próprios ministros da Corte passaram a decidir, monocraticamente, de formas distintas.
Desde 2016, o Supremo permitia que juízes determinassem a execução provisória das penas, ou seja, que condenados após a decisão da segunda instância já poderiam começar a cumprir suas penas na prisão. A Suprema Corte autorizou a prisão após segunda instância quatro vezes, mas a análise de mérito de três ações (ADCs 43, 44 e 54) no STF sobre esse tema permanecia em aberto.
1.2 Da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre prisão em segunda instância
No dia 7 de novembro de 2019, por 6 votos a 5, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram que não é possível a execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em 2ª instância, somente após o trânsito em julgado.
Teriam sido então finalmente julgadas, as ADCs 43, 44 e 54, firmando jurisprudência a ser seguida no sentido de que, ninguém poderá ser preso para começar a cumprir pena até o julgamento de todos os recursos possíveis em processos criminais, incluindo, quando cabível, tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal). Antes disso, somente se a prisão for preventiva.
2. DO PRÍNCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO – EFEITO CLIQUET
O Princípio da Vedação ao Retrocesso, também chamado de “Efeito Cliquet”, consiste em instrumento apto a vedar qualquer medida normativa ou política com objetivo de supressão ou enfraquecimento dos direitos fundamentais.
A expressão efeito “Cliquet”, de origem Francesa, significa “garra”, referindo-se aos instrumentos utilizados pelos alpinistas para escalar montanhas, e que denota que a partir de determinado ponto “não é possível retroceder”, mas somente avançar, ou seja, permitindo-se somente o movimento de subida na escalada.
Sob o prisma normativo, esta vedação busca impedir a revogação de normas que consagram direitos fundamentais, ou que a substituição destas não seja por equivalentes normativos. De outro modo, sob o prisma concreto ou prático, o “efeito Cliquet” busca vedar a implementação de políticas estatais que versem sobre a supressão ou flexibilização desses direitos.
Esse postulado foi consagrado na Constituição Federal de 1988 (implicitamente) com as chamadas cláusulas pétreas que impedem o próprio poder constituinte reformador de suprimir os Direitos e Garantias Fundamentais, admitindo-se apenas ampliá-los. Isto é, os Direitos são conquistas irreversíveis, não podendo retroceder, devendo apenas avançar na tutela da dignidade da pessoa humana, sendo este o maior objetivo do Estado Brasileiro.
O referido princípio possui algumas características bastante claras, trata-se de princípio constitucional implícito, garantidor da efetividade das normas constitucionais, assegurador da segurança jurídica, e portador de certa relatividade, a qual fica condicionada pela manutenção de um núcleo mínimo de direitos ou do oferecimento de alternativas ou compensações legais.
Segundo o Jurista Português, J. J Gomes Canotilho, que é um dos grandes defensores deste instituto, trata-se de um postulado que atua frente ao próprio legislador reformador criando-lhe um obstáculo formal e material de modificação normativa, e desta forma, impedindo a restrição de direitos fundamentais, assinalando que “A mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam, efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas.”
Canotilho ainda pontua que, a "proibição do retrocesso nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas [...], mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos", sob pena de afronta aos postulados da legítima confiança e da segurança dos cidadãos. Isso porque "o núcleo essencial dos direitos já realizados e efetivados através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido", sendo inconstitucional a sua supressão, "sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios".
Segundo o jurista e professor Ingo Sarlet, o princípio da vedação ao retrocesso, no âmbito do direito brasileiro, está implícito na Constituição Federal de 1988, e decorre do princípio do Estado democrático e social de direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, da segurança jurídica, da proteção da confiança, entre outros. Em suas palavras, ensina que o princípio da proibição do retrocesso decorre:
“a- do princípio do estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e a manutenção de um nível mínimo de continuidade da ordem jurídica, além de uma segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um modo geral; b- do princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a satisfação – por meio de prestações positivas (e, portanto, de direitos fundamentais sociais) – de uma existência condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar; c – do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, contido no artigo 5º, parágrafo 1º, e que necessariamente abrande também a maximização da proteção dos direitos fundamentais.”
No mesmo sentido, o então ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso acrescenta que:
“o mencionado princípio [...] é uma derivação da eficácia negativa, particularmente ligada aos princípios que envolvem os direitos fundamentais. Ela pressupõe que esses princípios sejam concretizados através de normas infraconstitucionais (isto é: frequentemente, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária) e que, com base no direito constitucional em vigor, um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos fundamentais. Partindo desses pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar.”
Na jurisprudência pátria, há precedentes de aplicação do efeito cliquet, pois o Supremo Tribunal Federal admite o Princípio da Vedação ao retrocesso como baliza axiológica Constitucional, e em diversas oportunidades já se manifestou a respeito, a saber:
“[…] A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v. G.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.- (ARE 639337 AgR, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)”
Não dando ênfase somente aos aspectos teóricos acima demonstrados, ainda existem exemplos práticos de aplicação do aludido instituto. A instituição da pena de morte na atual evolução dos direitos fundamentais representa evidente retrocesso. A diminuição da proteção ambiental instituída pelo ordenamento pátrio também. Da mesma forma, a permissão da prisão em segunda instância também seria um caso de retrocesso frente aos direitos já adquiridos constitucionalmente.
3.DA RELAÇÃO DO EFEITO CLIQUET COM A PRESENTE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Conforme anteriormente demonstrado, o efeito Cliquet, reconhecido em nosso ordenamento jurídico como princípio da vedação ao retrocesso, é instrumento apto a vedar qualquer medida com objetivo de suprimir ou enfraquecer os direitos fundamentais. Não sendo permitido retroceder, somente avançar na conquista de nossos direitos individuais já adquiridos.
Este efeito está diretamente relacionado às cláusulas pétreas, que são dispositivos constitucionais que não podem ser alterados, nem mesmo por proposta de emenda à constituição. As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.
Os direitos e garantias fundamentais estão dispostos na Constituição Federal de 1988, em seu Título II. Como o próprio nome já revela, são direitos garantidos, hoje, a todos os seres humanos, enquanto indivíduos de direito. Tratam-se, assim, de garantias formalizadas ao longo do tempo, inerentes aos indivíduos. Enquanto os direitos fundamentais se referem aos direitos propriamente ditos constantes na Constituição, as garantias fundamentais se referem a medidas previstas e visam à proteção desses direitos. Assim, são exemplos de direitos fundamentais o direito à vida e à liberdade. E são exemplos de garantias fundamentais o Habeas Corpus e o Habeas Data, além de outros remédios jurídicos.
O artigo 5º da Constituição Federal traz consigo os direitos e deveres individuais e coletivos, apresentando uma série de direitos e garantias que são fundamentais à vida humana digna. Dentre estes direitos e garantias individuais, considerados cláusulas pétreas, está o inciso LVII, que preleciona desde 1.988 o seguinte, in verbis:
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"
Por conseguinte, seria um dispositivo que em tese não poderia ser suprimido nem enfraquecido, eis que considerado cláusula pétrea e direito individual adquirido, levando sua mudança como inconstitucional, ferindo inclusive o direito da liberdade.
No citado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, está positivado o princípio da presunção de inocência, sendo considerado macroprincípio do processo penal e, sob sua ótica, podemos inferir a qualidade de um sistema processual por meio do seu nível de observância. Cumpre ressaltar que a presunção de inocência foi, a nível mundial e histórico, insculpida na Declaração dos Direitos do Homem de 1789.
A presunção de inocência é reconhecida também como princípio do estado de inocência ou da não culpabilidade, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de direito, constituindo-se em relevante garantia constitucional, de cunho humanitário na proteção do indivíduo em face do poder punitivo e repressivo do Estado.
Essa consagração constitucional do princípio da presunção de inocência, cujo respeito é de fundamental importância para a efetiva garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana, vem sendo referida com frequência pelos meios de comunicação, sendo objeto atual de comentários e análise por eminentes juristas. Estas referências decorrem de uma temática que vai muito além das especulações de natureza teórica, mas também do interesse de todas as pessoas por sua influência na vida prática.
O constitucionalista, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, José Afonso da Silva, em sua obra “Comentário Contextual à Constituição” (Ed. Malheiros, 2014), observa que “a norma constitucional do artigo 5º, inciso LVII, garante a presunção de inocência por meio de um enunciado negativo universal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”. Esclarece, em seguida, que “o trânsito em julgado se dá quando a decisão não comporta mais recurso ordinário, especial ou extraordinário“ (pág.158).
De acordo com Rogério Sanches “tal princípio versa sobre a vedação do afastamento da inocência de alguém até o trânsito em julgado do processo, que somente ocorre após o esgotamento recursal”. O doutrinador Alexandre de Moraes complementa afirmando que “dessa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal”. Logo, violar tal mandamento é atentar contra o texto constitucional, conduta esta contrária ao papel de guardião da Constituição, conferido ao Supremo Tribunal Federal.
O que vinha ocorrendo no Brasil até o momento da positivação da referida decisão do STF, com frequência, era o desprezo de princípios e normas constitucionais, inclusive nas práticas judiciais, levando a decisões sem fundamento jurídico, contrariando princípios e normas da Constituição, entre os quais o da “presunção de inocência”. Em diversas situações, a interferência de fatores não jurídicos na formulação e apuração de vários casos, sem que houvesse fundamentação jurídica, acarretava, por vezes, condenações igualmente desprovidas de fundamentos jurídicos. Essa agressão aos princípios e normas constitucionais teria levado a que, em lugar da presunção de inocência teria sido utilizado o oposto, ou seja, a “presunção de culpa”, como ofensa ostensiva aos princípios e normas constitucionais.
Salienta-se que em última decisão, os seis Ministros do Supremo Tribunal Federal que tiverem posicionamento contrário à possibilidade de execução antecipada da pena, sendo eles, Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, seguiram o mesmo entendimento de que a Constituição Federal é clara quanto ao princípio da presunção de inocência e não abre campo para controvérsias semânticas.
Cumpre salientar ainda que, tratando-se o princípio da presunção de inocência como macroprincípio do processo penal, recentemente entrou em vigor a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, também conhecida como Lei Anticrime, que busca aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, a qual alterou o artigo 283 do Código de Processo Penal, sendo que este artigo também estaria relacionado com a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre prisão em segunda instância. Tal artigo passou a ter a seguinte redação, in verbis:
“Art.283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).”
Mais uma vez o legislador afirma que, ninguém poderá ser preso, senão em virtude de condenação criminal transitada em julgado, ou seja, enquanto não tiver esgotadas as possibilidades recursais e não tiver o trânsito em julgado, ninguém pode ser preso, em total consonância com o art. 5º, LVII, da Constituição Federal, restando com clareza solar que a prisão após segunda instância seria inconstitucional.
CONCLUSÃO
A decisão do Supremo Tribunal Federal de voltar a proibir a prisão em segunda instância, ou seja, antes do trânsito em julgado, preservou o princípio da presunção de inocência e a constitucionalidade de seus dispositivos, assim como preservou a nova redação do artigo 283 do Código de Processo Penal.
O efeito cliquet na ordem constitucional tem a intenção de impedir que direitos já reconhecidos na ordem jurídica possam ser suprimidos pelos governantes, pois isto implicaria num retrocesso em detrimento das conquistas históricas da humanidade, especialmente no que é mais caro ao homem, como a dignidade e a liberdade.
Evidente que, esse mecanismo de estabilização (efeito Cliquet), mesmo que não seja um empecilho absoluto em nosso ordenamento jurídico, garantiu a efetividade das normas constitucionais, efetivou a segurança jurídica, e principalmente contribuiu para que não tivéssemos um retrocesso constitucional na presente decisão do STF, como já ocorreu e ocorre reiteradamente em nossa história.
Diante de todas as considerações aqui ponderadas, entende-se que o princípio da vedação do retrocesso tem como núcleo essencial os direitos fundamentais, os quais englobam os direitos previstos na Constituição da República de 1988, tais como os individuais e coletivos. Com isto, uma vez adquiridos esses direitos impedem sua reversibilidade frente ao legislador infraconstitucional.
Como já dito, não há espaço para interpretar de forma diversa o que já está suficientemente claro na Constituição Federal e ainda na legislação processual penal, independentemente da bandeira social e política que se hasteie para justificar a flexibilização das garantias constitucionais, que, não nos esqueçamos, a todos alcança.
Portanto, este artigo é concluso no sentido de que o Princípio da Vedação ao Retrocesso está amplamente relacionado e mesmo que implicitamente, foi aplicado na decisão do Supremo Tribunal Federal, impedindo que as garantias individuais, como o art. 5º, LVII da CF, fossem violadas, sendo a referida decisão totalmente e inegavelmente constitucional.
REFERÊNCIAS
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BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
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MIGALHAS. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/314723/stf-volta-a-proibir-prisao-em-2-instancia-placar-foi-6-a-5. Acesso em 07 de novembro de 2019.
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Advogada, graduada pela Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI). Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Legale .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PICHINI, Caroline Maria Maschietto. A prisão em segunda instância e o princípio da vedação ao retrocesso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2023, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64237/a-priso-em-segunda-instncia-e-o-princpio-da-vedao-ao-retrocesso. Acesso em: 23 dez 2024.
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