PITER BORGES AZAMBUJA
(orientador)[1]
RESUMO: Este trabalho de conclusão de curso versa sobre os trabalhos em condições análogas à de escravo e os desafios ao seu combate no Brasil. Se utilizou como método de interpelação, uma pesquisa exploratória e quantitativa, por meio do procedimento bibliográfico e fontes interdisciplinares, se utilizando da análise crítica dedutiva para que se possa demonstrar que o trabalho análogo ao de escravo é fruto do aproveitamento abusivo pelo proprietário dos meios de produção, do possuidor da força de trabalho. Nesse sentido, a presente pesquisa faz o seguinte questionamento: quais são as consequências jurídicas da exploração ilegal do trabalho análogo à de escravo, e o seu combate no Brasil? O objetivo geral deste trabalho é discorrer acerca dos trabalhos em condições análogas à de escravo e os desafios ao seu combate no Brasil. Sendo que o primeiro objetivo específico visa discorrer sobre a abolição da escravidão no Brasil ao trabalho decente na sociedade contemporânea; quanto ao segundo objetivo específico, este visa adentrar nas nuances do trabalho análogo ao de escravidão e os princípios norteadores do direito do trabalho; já, o último objetivo específico, este visa expender sobre os mecanismos e desafios no combate ao trabalho em condições análoga à de escravo no Brasil. Dito isso, conclui-se que trabalho análogo ao de escravo expressa a persistência da violação de direitos humanos, afetando a dignidade das pessoas submetidas a essa prática, além de contribuir para a precarização das condições de trabalho e exploração econômica.
Palavras-chave: Combate. Dignidade. Exploração. Trabalho Análogo ao de Escravo.
ABSTRACT: This course conclusion work deals with work in conditions similar to slavery and the challenges to combating it in Brazil. An exploratory and quantitative research was used as a method of interpellation, through bibliographical procedures and interdisciplinary sources, using critical deductive analysis so that it can be demonstrated that work analogous to slavery is the result of abusive exploitation by the owner of the means of production, of the possessor of labor power. In this sense, this research asks the following question: what are the legal consequences of the illegal exploitation of slave-like labor, and how to combat it in Brazil? The general objective of this work is to discuss work in conditions similar to slavery and the challenges to combating it in Brazil. The first specific objective aims to discuss the abolition of slavery in Brazil and decent work in contemporary society; As for the second specific objective, this aims to delve into the nuances of work analogous to slavery and the guiding principles of labor law; The last specific objective aims to explain the mechanisms and challenges in combating work in conditions similar to slavery in Brazil. That said, it is concluded that work similar to slavery expresses the persistence of human rights violations, affecting the dignity of people subjected to this practice, in addition to contributing to precarious working conditions and economic exploitation.
Keywords: Combat. Dignity. Exploration. Work similar to that of a Slave.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho em condições análogas à de escravo é uma grave violação dos direitos humanos e trabalhistas. Caracteriza-se por condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas, falta de alimentação adequada, ausência de equipamentos de proteção individual e instalações sanitárias precárias. Infelizmente, essa prática ainda é comum no mundo, especialmente em regiões onde não há fiscalização adequada e respeito à legislação trabalhista. Esses trabalhadores, que são explorados e submetidos a condições inaceitáveis, muitas vezes não têm voz e são impedidos de buscar uma vida digna. É necessário que as autoridades tomem medidas severas contra o trabalho escravo e garantam que os direitos humanos e trabalhistas sejam respeitados para todos.
Sendo assim, a presente pesquisa faz o seguinte questionamento: quais são as consequências jurídicas da exploração ilegal do trabalho análogo à de escravo, e o seu combate no Brasil?
Temos como hipótese à problemática deste trabalho, o fato de que a escravidão contemporânea é um problema que afeta muitos trabalhadores brasileiros. A falta de oportunidades de trabalho decente e a necessidade de sobrevivência são fatores que levam essas pessoas a aceitarem condições precárias de trabalho, mesmo que elas próprias não sejam favoráveis a essa situação. O sistema social brasileiro contribui para a exclusão de grande parte da população, o que dificulta o acesso a oportunidades de trabalho dignas.
O combate a essa prática é realizado por meio de fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego, ações conjuntas com o Ministério Público Federal e medidas de conscientização e sensibilização da sociedade em geral. A erradicação do trabalho análogo ao de escravo é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, livre do abuso e exploração do trabalho humano.
A presente pesquisa tem como objetivo geral discorrer acerca dos trabalhos em condições análogas à de escravo e os desafios ao seu combate.
O primeiro objetivo específico visa discorrer sobre a abolição da escravidão no Brasil ao trabalho decente na sociedade contemporânea; quanto ao segundo objetivo específico, este visa adentrar nas nuances do trabalho análogo ao de escravidão e os princípios norteadores do direito do trabalho; partindo para o último objetivo específico, este visa expender sobre os mecanismos e desafios no combate ao trabalho em condições análoga à de escravo no Brasil.
Sendo assim, o presente trabalho consubstanciou-se na metodologia de pesquisa descritiva, numa abordagem qualitativa e de natureza aplicada. O procedimento adotado é de pesquisa bibliográfica, onde será feito levantamento, estudo e análise de obras publicadas de forma a direcionar o trabalho, utilizando-se o método de abordagem dedutivo.
O método dedutivo é um método de abordagem que parte de princípios gerais para chegar a conclusões mais particulares. Com base em premissas gerais, o método dedutivo permite a aplicação de inferências lógicas para a compreensão da realidade, buscando a partir de evidências empíricas, argumentos que sustentem o posicionamento acerca do tema em questão.
A pesquisa mostra-se justificável pela grande relevância no âmbito em que vários trabalhos científicos são desenvolvidos sobre a necessidade do combate à exploração ilegal do trabalho escravo, além disso, a reflexão social acerca do tema se faz importante, pois ainda hoje, existem centenas de pessoas que vivem em condições análoga a de escravo no nosso país e essa situação precisa ser resolvida com extrema urgência. Desta maneira, a pesquisa busca contribuir com mais reflexão social e produção acadêmica em relação ao assunto proposto no tema.
2. DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL AO TRABALHO DECENTE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A existência do trabalho escravo no Brasil remonta aos primórdios de sua história. Dois tipos de escravidão foram predominantes no país: a indígena e a africana negra. Os líderes religiosos defenderam os direitos dos indígenas, e em 1759, um decreto pombalino aboliu a escravidão indígena. Por outro lado, a escravidão africana aumentou devido ao comércio de escravos, com os primeiros africanos chegando em 1531, antes da regulamentação do comércio de escravos no Brasil em 1550 (RAMOS, 2021).
A abolição da escravidão africana no Brasil foi um processo gradual, com o movimento abolicionista ganhando força a partir do século XIX. A Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850, proibiu a entrada de escravos africanos no Brasil. Embora o tráfico internacional tenha cessado em alguns anos, o tráfico interno ainda persistiu. Vinte e um anos depois, em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre foi promulgada, também conhecida como Lei Rio Branco em homenagem a José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, responsável por sancioná-la. Essa lei concedia liberdade às crianças nascidas de mulheres escravizadas (SILVA, 2021).
Somente em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel sancionou a Lei Imperial nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, que oficialmente decretou o fim da escravidão no Brasil (BRASIL, 1888).
Embora tenham se passado mais de cento e trinta anos, desde a promulgação da Lei Áurea, persistem os vínculos que, embora invisíveis, aprisionam milhares de trabalhadores. A realidade das pessoas submetidas a condições semelhantes à escravidão permanece evidente, afetando inúmeros homens e mulheres em um contexto de pobreza, fragilidade social e desesperança, muitas vezes levando-os a cair novamente na armadilha da exploração extrema por parte dos empregadores.
2.1 Dignidade da pessoa humana e os direitos humanos
No início da Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu preâmbulo, percebe-se um enfoque na valorização da pessoa humana.
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988, grifo nosso).
A dignidade humana pode ser comprovada sob duas perspectivas: uma é a do indivíduo, envolvendo a integridade física, mental ou psicológica do indivíduo, relacionada à liberdade negativa apresentada pelos direitos de primeira geração; a outra é a da sociedade, que se refere ao ser humano como parte da sociedade e está relacionado com os direitos de segunda geração. Relevante para as liberdades positivas presentes na terceira geração de direitos fundamentais. Quando se fala de direitos humanos, refere-se aos direitos mínimos que garantem ao ser humano uma vida digna. Portanto, a dignidade humana pode ser considerada como a base dos direitos humanos (MENDES, 2018).
Quando se menciona os Direitos Humanos, refere-se ao conjunto mínimo de direitos que asseguram ao ser humano uma vida digna. Portanto, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como a base dos direitos humanos.
A característica inerente e única de cada indivíduo que o torna merecedor do mesmo nível de respeito e consideração por parte das autoridades estatais e da sociedade, envolvendo um conjunto complexo de direitos e obrigações fundamentais que não apenas o protejam contra qualquer forma de tratamento degradante ou desumano, mas também assegurem as condições básicas necessárias para uma vida saudável. Além disso, esse princípio visa facilitar e estimular a participação ativa e compartilhada de cada pessoa em suas próprias escolhas de vida e na vida em conjunto com outros seres humanos. (SARLET, 2002).
Submeter indivíduos ao trabalho análogo à escravidão equivale, acima de tudo, a privar esses seres humanos do conjunto mínimo de direitos que lhes permitiria viver de maneira digna.
2.2 O trabalho decente/trabalho digno
Considerando que o sistema jurídico do Brasil se fundamenta em princípios como a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana, é proibido tratar o ser humano como mero objeto. Portanto, ao contrário, reduzir o indivíduo a um mero instrumento caracteriza uma forma de trabalho em condições desumanas.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) definiu o trabalho decente como aquele que é devidamente remunerado, realizado em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. A Agenda Nacional de Trabalho Decente de 2006 sustenta que o conceito de trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos.
Respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação);
b) promoção do emprego de qualidade;
c) extensão da proteção social;
d) diálogo social (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2006).
Esses direitos são essenciais para caracterizar o trabalho decente. Negá-los é negar não apenas os direitos humanos, mas também contradizer os princípios fundamentais que os norteiam, incluídos no próprio Direito do Trabalho.
3. TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVIDÃO E OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DO TRABALHO
No Brasil, o trabalho em condições análogas à de escravo também é muito recorrente e necessita de estudos contundentes quanto aos seus impactos e meios de sua irradicação. Assim, para iniciar, tratar-se-á das características do trabalho análogo ao de escravos, que abrange o trabalho forçado, jornada do trabalho exaustiva, condições degradantes e restrição da locomoção do trabalhador. Juntamente serão abordados os princípios basilares do direito do trabalho relacionados com a temática. (BAUMER, 2018).
Assim, ao contrário do estereótipo que surge no imaginário da maioria das pessoas, no qual o trabalho escravo é ilustrado pelo trabalhador acorrentado, morando na senzala, açoitado e ameaçado constantemente, o trabalho em condição análoga à de escravo não se caracteriza apenas pela restrição da liberdade de ir e vir, pelo trabalho forçado ou pelo endividamento ilegal, mas também pelas más condições de trabalho impostas ao trabalhador. (BRASIL, 2011).
3.1 Sujeição da vítima a trabalhos forçados
O termo "trabalho forçado" é utilizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio das Convenções 29 e 105, para descrever as principais formas de exploração do trabalho humano em todo o mundo. Essa prática está intimamente ligada à falta de liberdade. De acordo com o relatório global de princípios e direitos fundamentais no trabalho da OIT, publicado em 2001, o trabalho forçado se manifesta de várias maneiras, mas tem duas características centrais: o uso de coerção e a privação da liberdade (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2001, p. 1-9)..
Diante disso, o trabalho forçado pode ser definido como todo trabalho exigido sob ameaça de sanção e para o qual se apresentou espontaneamente; ou ainda, todo trabalho exigido de alguém sob ameaça de punição, perante o vicio de consentimento quanto à aceitação do serviço, resultado de falsas promessas do empregador (OMMATI, 2004, p.73).
3.2 Sujeição da vítima a jornada exaustiva
A linha que separa a ocorrência de horas extras e a jornada de trabalho exaustiva, na qual os trabalhadores se veem obrigados a trabalhar 14, 15 ou até 16 horas por dia, é bastante tênue. Caso essas horas extras não estejam amparadas por formas específicas permitidas pela legislação, como o turno ininterrupto de revezamento, caracteriza-se a jornada exaustiva mencionada no artigo 149 do Código Penal ((BRITO FILHO, 2017).
Segundo Marinho e Vieira (2019), o trabalhador não é mais valorizado como um indivíduo único, mas sim como um elemento secundário da lógica totalitária do sistema capitalista. Isso significa que ele perde a capacidade de controlar seu próprio tempo e é submetido ao ritmo imposto pela produção.
A jornada exaustiva refere-se à imposição de um período de trabalho que ultrapassa os limites legais estabelecidos pela legislação, causando danos à saúde física e mental do trabalhador devido à condição de submissão forçada, que anula sua vontade. Nesse sentido, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou a Convenção 105, que trata da abolição do trabalho forçado:
Artigo 1º. Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma; a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica, à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como medida de disciplina de trabalho; d) como punição por participação em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa. (BRASIL, 1957).
A problemática da jornada exaustiva vai além das questões de sobrecarga individual do trabalhador. Nesse contexto, seus direitos humanos acabam sendo minimizados em detrimento da busca por lucros excessivos.
3.3 Sujeição da vítima a condições degradantes de trabalho
No que diz respeito à subjetividade do tema, é relevante salientar que o conceito em discussão provoca discordâncias no contexto jurídico. Nucci expõe sua compreensão desse regime, afirmando que “é preciso que o trabalhador seja submetido a um cenário humilhante de trabalho, mais compatível a um escravo do que a um ser humano livre e digno” (2008, p. 691).
Essa situação está intimamente ligada ao ambiente laboral em que o trabalhador em condição análoga à de escravo se encontra, evidenciando-se pela maneira desumana e precária com que é tratado. Melo oferece alguns exemplos simples e de fácil entendimento, como a oferta insuficiente de alimentação e água potável, condições de habitação deficientes nos alojamentos, ausência de equipamentos apropriados para desempenhar suas funções e a transgressão das leis trabalhistas, entre outros elementos (MELO, 2003 p. 15).
De acordo com a Consolidação das Leis Trabalhistas, é dever do empregador fornecer condições mínimas ao seu funcionário (BRASIL, CLT, 2019). Ao negligenciar essa responsabilidade, estará ocorrendo uma violação da dignidade do trabalhador, um princípio consagrado na Constituição brasileira, o que representa um sério desrespeito aos avanços legais relacionados à proteção dos direitos trabalhistas.
3.4 Restrição por qualquer meio da locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto
A prática que constitui o crime de redução à condição análoga à de escravo, resultante de uma dívida adquirida junto ao empregador e conhecida como servidão por dívida, é a restrição da liberdade de movimento do trabalhador (DUARTE, 2019).
Esse tipo de servidão tem sido observado no Brasil desde o período colonial, quando imigrantes eram trazidos ao país por proprietários de terras com a promessa de que, após um certo período, conseguiriam adquirir suas próprias terras. No entanto, ao chegarem, eram obrigados a pagar as dívidas relacionadas às despesas da viagem por meio de trabalho forçado.
A servidão por dívida mencionada é delineada na Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, da Escravatura e das Práticas Análogas à Escravatura, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1956, como:
[...] o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação de dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida (art. 1º, letra “a”) (BRASIL, Decreto, nº 58.563, 2019).
Brito Filho também esclarece que é possível compreender esse método ao traçar uma analogia com o sistema de servidão existente na Idade Média. Dessa forma, fica evidente a influência da antiga escravidão nos territórios nacionais, como já mencionado nos capítulos anteriores (2017, p. 90).
Por fim, a transgressão definida no artigo 149 do Código Penal do Brasil, que aborda a limitação da liberdade de movimento devido a uma dívida, pode ser entendida da maneira seguinte: “a restrição ao direito do trabalhador de deixar o trabalho, por coação ou qualquer outro meio, em razão de dívida, lícita ou ilicitamente constituída, deste para com o tomador de seus serviços ou com seus prepostos” (BRITO FILHO, 2017, p. 105).
4. MECANISMOS E DESAFIOS NO COMBATE AO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO NO BRASIL
Neste capítulo, serão examinados os mecanismos destinados a enfrentar a prática de trabalho em situações semelhantes à escravidão. Essas ferramentas estão principalmente relacionadas à Constituição Federal de 1988, ao Código Penal e à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas também estão vinculadas a outros instrumentos legais e administrativos nacionais e internacionais, bem como a recursos associados a organizações civis e voluntárias. Durante a revisão da literatura e a continuidade da pesquisa, foram abordados aspectos relativos à proteção penal, à compensação por danos morais, ao Ministério do Trabalho e Emprego, ao Ministério Público do Trabalho e às organizações não governamentais que se dedicam ao combate ao trabalho em condições análogas à escravidão.
4.1 Instrumentos Normativos
Constituição da República Federativa do Brasil representa um dos instrumentos mais cruciais na luta contra o trabalho escravo, dado o seu status como a lei fundamental e a base de toda a orientação social do país. Em seu cerne, a Constituição enaltece a primazia da dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho, elementos essenciais no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão.
Na Constituição Federal, no capitulo I, explica:
Art. 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
(...) (BRASIL, 1988).
Ainda, a Constituição no seu capítulo dos Princípios Gerais da Atividades Econômicas, nos termos do artigo 170:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
III - função social da propriedade;
(...)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
(...) (BRASIL, 1988).
Que é combinado com o artigo 186, da mesma constituição com os seus respetivos incisos III e IV:
Art 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (BRASIL, 1988, grifo nosso).
TEXEIRA (2017) destaca também que o artigo 7º da Constituição Federal, em seu inciso XXII, preconiza a mitigação dos riscos inerentes ao trabalho através de normas relacionadas à saúde, higiene e segurança.
Outro pilar fundamental na abordagem desse problema é o Código Penal Brasileiro. Por meio dele, são definidas as condutas criminosas, possibilitando a denúncia e a condenação.
É importante ressaltar que, além do artigo 149 do código penal, que trata da tipificação do crime de redução à condição análoga à de escravo, existem também outros delitos contra a organização do trabalho que comprometem a dignidade do trabalhador e podem resultar em submissão a trabalho escravo. Dentre eles estão o Atentado contra a liberdade de trabalho (artigo 197 do Código Penal), Atentado contra a liberdade do contrato de trabalho e boicotagem violenta (artigo 198 do CP), Frustração de direito assegurado pela legislação trabalhista (artigo 203 do CP), Aliciamento com o fim de emigração (artigo 206 do CP) e o Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (artigo 207 do CP) (BAUMER, 2018).
Na legislação trabalhista, a escravidão é proibida por meio de diversos dispositivos, como a exigência de registro em carteira de trabalho, com violação aos artigos 41, caput, 13 e 29, caput da CLT. O capítulo V da CLT, em seu artigo 145, também aborda esse tema, assim como as Normas Regulamentadas pela Portaria nº 3.214-78 do Ministério de Trabalho (TEXEIRA, 2017).
O Ministério do Trabalho e Emprego é outro mecanismo na luta contra o trabalho escravo. A Portaria nº 1293/2017 desse Ministério trouxe definições claras de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à escravidão com o propósito de garantir o acesso ao seguro-desemprego para trabalhadores resgatados em fiscalizações conduzidas pelo Ministério do Trabalho, conforme o artigo 2-C da Lei nº 7998-1990. Embora a esclarecimento detalhado dessas condutas tenha sido feito por meio de um ato do Executivo (Portaria), o objetivo foi proporcionar uma interpretação mais precisa e linguística dos conceitos mencionados no artigo 149 do CP (ANDRADE, 2018).
A Instrução Normativa MTP nº 2, de 8 de novembro de 2021, também merece destaque, pois trata da fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à escravidão, além de fornecer outras diretrizes (MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA, 2021).
Além disso, é essencial mencionar as convenções pertinentes, como a Convenção nº 105 da OIT sobre a abolição do trabalho forçado (1957), ratificada pelo Brasil em 1965; a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926, juntamente com a Emenda Protocolar de 1953, posteriormente ratificada pelo Brasil em 1966; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, ratificada pelo nosso país em 1992; e a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano e o protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças (BAUMER, 2018).
4.2 Escravidão moderna
No início da era contemporânea, emergiram ideias fundamentais como igualdade, fraternidade, liberdade e os princípios dos direitos humanos. Esses avanços contribuíram para iniciativas de repúdio ao sistema escravista, exemplificados pelo Congresso de Viena em 1815, a Convenção sobre a Escravidão de 1926, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1968. Todas essas instâncias apresentavam conteúdos proibitivos e expressavam forte reprovação às práticas de escravidão (SANTOS, 2013).
De acordo com Melo Filho (2003), o conceito mais contemporâneo de trabalho escravo não se limita apenas à situação em que o trabalhador não concorda voluntariamente. Existem casos em que o trabalhador é enganado por falsas promessas de salários atrativos e condições de trabalho excelentes. Atualmente, essa é a situação mais comum que se observa.
A Convenção n. 105, da OIT, sobre Abolição do Trabalho forçado dispõe:
Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma;
a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica, à ordem política, social ou econômica estabelecida;
b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico;
c) como medida de disciplina de trabalho;
d) como punição por participação em greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1957).
De acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, é obrigação de todos os Estados-Partes reconhecer o direito ao trabalho, que engloba a garantia de que toda pessoa tenha a oportunidade de ganhar a vida por meio de um emprego escolhido ou aceito livremente, e os Estados devem adotar medidas apropriadas para proteger esse direito.
Apesar de todos os esforços contra o trabalho escravo, é evidente que hoje em dia ele se apresenta de forma dissimulada, mantendo um grande número de trabalhadores em condições de trabalho forçado. Um exemplo disso é o Brasil, que foi a última nação do mundo ocidental a abolir oficialmente a escravidão, o que ocorreu apenas no final do século XIX. No entanto, o trabalho escravo ainda persiste de maneira velada, sendo especialmente intensivo no país (BRASIL, 2013). Segundo o Índice de Escravidão Global, elaborado por organizações não governamentais associadas à Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 200 mil trabalhadores no Brasil vivem em condições de escravidão (BAUMER, 2018).
4.3 Divulgação do Trabalho Escravo
O acesso à informação pública é um dos principais pilares na consolidação de um regime democrático. Além de ser essencial para o exercício da cidadania, o acesso à informação se mostra como uma das ferramentas mais eficazes na luta contra o trabalho escravo. Isso tem como objetivo promover a ética e aumentar a transparência no setor público. Um exemplo disso é a publicação da "Lista Suja" do trabalho escravo, que é uma iniciativa similar à divulgação de informações de interesse público no Portal da Transparência mantido pelo Poder Executivo Federal. Nesse portal, são disponibilizadas informações relevantes sobre receitas, despesas e sanções administrativas aplicadas a pessoas físicas e jurídicas, incluindo servidores, para que os cidadãos possam ter acesso à atuação do governo (BRASIL, 2018).
A Lista Suja não apenas desempenha um papel crucial na punição e conscientização, mas também serve como um exemplo global no combate à escravidão contemporânea. O fato de ter sido reafirmada em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal ressalta sua importância para a transparência e a prestação de contas. A inclusão de novos nomes é um sinal de que as autoridades estão atentas e determinadas a erradicar essa prática abominável, ao mesmo tempo em que sublinha a necessidade contínua de vigilância e fiscalização efetivas no país (REPÓRTER BRASIL, 2023d).
Em suma, a atualização da Lista Suja do Trabalho Escravo em 2023 reflete tanto os esforços incansáveis das autoridades em erradicar essa prática quanto a urgência contínua de combater a exploração laboral em diversos setores. Essa lista serve como um farol, guiando o Brasil em direção a um futuro onde todos os trabalhadores são tratados com dignidade e justiça, livre do jugo cruel da escravidão moderna
4.4 Responsabilização penal da pessoa jurídica
Um fator determinante na tentativa de combater o trabalho em condições análogas à escravidão é a possibilidade de imputar responsabilidade penal à pessoa jurídica pela prática de redução à condição análoga à de escravo.
Visto que, em sua maioria, as atividades econômicas são conduzidas por pessoas jurídicas, são elas, normalmente, os principais agentes envolvidos nos delitos tipificados no artigo 149 do Código Penal.
Embora a Constituição da República Federativa do Brasil já preveja a responsabilidade penal da pessoa jurídica para crimes econômicos no artigo 173 § 5º, a legislação infraconstitucional ainda não incorporou essa responsabilização nos casos de crimes relacionados à redução do trabalhador à condição análoga à de escravo. Além disso, o artigo 149 do Código Penal impede a responsabilização penal da pessoa jurídica para esse tipo de crime, uma vez que o sujeito ativo desse delito só pode ser uma pessoa física (SOUZA; LEBRE, 2017).
Entretanto, a controvérsia em torno da responsabilização da pessoa jurídica está ligada à adoção do sistema de dupla imputação, no qual a responsabilidade da pessoa jurídica está atrelada à responsabilidade da pessoa física, sendo esta última frequentemente difícil de comprovar. Isso, por sua vez, inviabiliza a responsabilização da empresa.
Porém, o sistema de dupla imputação é mitigado pelo artigo 225 § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil, que não condiciona, nos casos de crimes ambientais, a responsabilização da pessoa jurídica à da pessoa física. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) inclusive proferiram decisões nesse sentido (RHC 49.433/TO, de 24/03/2015 e HC 128.435/TO, de 20/10/2015) (SOUZA; LEBRE, 2017).
A responsabilização da pessoa jurídica para o tipo penal em questão é de extrema importância, pois uma condenação desse tipo se torna um impedimento eficaz para a prática do delito. Atualmente, as condenações civis e administrativas parecem ter um impacto limitado no combate ao trabalho em condições análogas à de escravidão (BAUMER, 2018)..
Seria essencial também adotar uma abordagem mais rigorosa na responsabilização civil e administrativa, com a aplicação de multas substanciais, de modo que os infratores percebessem as consequências financeiras adversas associadas à prática do delito. Afinal, se a submissão ao trabalho em condições análogas à de escravo é uma decorrência da atividade econômica, seria inevitável o desinteresse na prática se ela acarretasse um impacto econômico considerável e negativo para o infrator.
4.5 Jurisdição penal para o julgamento do trabalho em condições análogas à de escravo
Há também divergências quanto à definição da instância competente para julgar ações relacionadas à tipificação penal do artigo 149 do Código Penal. A redação original do artigo 114, dada pela Constituição Federal de 1988, já estabelecia a competência da Justiça do Trabalho para resolver conflitos e disputas referentes à relação laboral (ALVES, 2009), como evidenciado abaixo:
Art. 114. Compete a Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas (BRASIL, 1988).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 109, inciso VI, determina que os juízes federais têm competência para julgar e processar os crimes contra o direito do trabalho ou a organização trabalhista. Isso já havia sido ratificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com base nas disposições constitucionais. No entanto, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45-2004, houve alterações significativas em relação à competência material da justiça do trabalho (ALVES, 2009).
Mesmo que a Emenda Constitucional 45/2014 tenha ampliado as competências da justiça do trabalho, ainda não ficou clara a abordagem em relação aos aspectos penais envolvendo trabalho em condições análogas à escravidão.
A questão em discussão é que, tratando-se de um assunto correlato à esfera trabalhista, os crimes relacionados no artigo 149 do Código Penal deveriam ser julgados pela Justiça do Trabalho. No entanto, essa não é a interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, o que resulta na rejeição de parte da Emenda Constitucional 45/2004, impossibilitando a competência penal na área trabalhista para os órgãos da Justiça do Trabalho (BAUMER, 2018).
Baumer (2018) segue seu raciocínio, afirmando que a posição adotada em relação a esse tema, foi de que caberia ao Poder Judiciário implementar e dar efetividade à Emenda Constitucional nº 45 no que diz respeito à fixação da competência penal para a Justiça do Trabalho, visto que este órgão judiciário é mais especializado para lidar com condutas relacionadas ao trabalho em condições análogas à escravidão, nos crimes contra a organização do trabalho e nos crimes comuns praticados pelos empregadores, desde que sejam cometidos em razão do vínculo de emprego (BAUMER, 2018).
É incumbência institucional da Justiça do Trabalho processar e julgar os litígios envolvendo trabalhadores, pessoas jurídicas, bem como seus representantes legais ou prepostos, nos casos de crimes tipificados no Código Penal que estão associados à exploração da mão de obra. Isso inclui a possibilidade de conduzir processos trabalhistas que abordem temas de natureza penal, administrativa e trabalhista de forma conjunta. Tal abordagem visa promover a eficiência processual e reduzir a impunidade ao aplicar sanções que abrangem restrições de direitos e liberdades, pagamento de multas relacionadas à fiscalização do trabalho e determinação de ressarcimento dos direitos trabalhistas resultantes de práticas fraudulentas ou abusivas por parte do empregador, inclusive nos casos de dano moral ou existencial (SOUZA; LEBRE, 2017, apud Lebre, 2016).
4.6 Da exploração do trabalho análogo ao de escravo à perda da propriedade rural
O direito à propriedade é um direito fundamental (art. 5º, XXII, da CF/1988), mas não é absoluto. A Constituição Federal estabelece que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXIII, da CF/1988), ou seja, deve ser utilizada de forma a atender aos interesses da sociedade. O descumprimento da função social da propriedade pode acarretar sanções, como a desapropriação.
Assim sendo, a função social da propriedade é um importante instrumento para garantir o bem-estar da sociedade. Ela impede que a propriedade seja utilizada de forma a prejudicar os interesses da coletividade.
A função social da propriedade é um limite ao direito fundamental à propriedade. Ela garante que a propriedade seja utilizada de forma a atender aos interesses da sociedade. As propriedades que não cumprem a sua função social são consideradas socialmente disfuncionais e podem ser desapropriadas (PENTEADO, 2008).
A desapropriação é uma modalidade de perda da propriedade que ocorre quando o Estado toma a propriedade de um particular para fins de interesse público. Ela é considerada especial por duas razões: pertence ao campo do direito público, ou seja, é regulada por normas administrativas; e embora os seus efeitos sejam produzidos no âmbito cível, ou seja, entre o Estado e o particular, a sua legitimidade é baseada em razões de interesse público (SOUZA; THEBALDI, 2015).
No Brasil, a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária é prevista no artigo 184 da Constituição Federal. Esse artigo estabelece que o Estado pode desapropriar imóveis rurais que não estejam cumprindo a sua função social.
A função social da propriedade rural é um conceito jurídico indeterminado que deve ser interpretado de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso. No entanto, o artigo 186 da Constituição Federal estabelece alguns critérios para a aferição do cumprimento da função social da propriedade rural (SOUZA; THEBALDI, 2015), quais sejam:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Além desses critérios, o respeito às normas trabalhistas também é considerado uma condição para o cumprimento da função social da propriedade rural. Isso porque a exploração do trabalho escravo é uma violação flagrante dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana.
O art. 9º da Lei nº 8.629/1993 estabelece que a propriedade rural que explora trabalho escravo não cumpre a sua função social e pode ser desapropriada pelo Estado para fins de reforma agrária.
Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
(...);
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
(...).
§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.
(...).
(BRASIL, 1993).
No entanto, o art. 185, II, da Constituição Federal estabelece que a propriedade produtiva não é susceptível de desapropriação para fins de reforma agrária. Essa exceção tem sido criticada por alguns juristas, que entendem que ela pode ser utilizada para burlar a função social da propriedade rural (PENTEADO, 2008).
Além da responsabilização penal, o trabalho análogo à escravidão também pode resultar em outras sanções, como a responsabilização trabalhista e o confisco de imóveis.
O confisco de imóveis por trabalho análogo à escravidão foi previsto na Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 81/2014. Essa emenda incluiu o inciso V no artigo 243 da Constituição, que estabelece que:
Art. 243. Aos crimes definidos no art. 149 desta Constituição, cuja prática envolva a utilização de trabalho escravo, aplicam-se as penas cominadas em cada tipo penal, e, na hipótese do inciso V, sem prejuízo da perda do imóvel em que o crime foi praticado, que será destinada à reforma agrária e à instalação de assentamentos rurais (BRASIL, 1988).
A inclusão do confisco de imóveis na Constituição Federal foi uma importante conquista da luta contra o trabalho análogo à escravidão (PENTEADO, 2008). Essa sanção é uma forma de punir os responsáveis pela exploração do trabalho escravo e de garantir a reparação às vítimas.
Insta salientar, que atualmente, que em 2013, o senador Randolfe Rodrigues apresentou o Projeto de Lei nº 432/2013, que previa o confisco de imóveis por trabalho análogo à escravidão. O projeto foi arquivado ao final da legislatura, mas em 2019, o senador apresentou uma nova versão, o PLS nº 5.970/2019 (TRENTINE; PORTO, 2023).
O PLS nº 5.970/2019 mantém as principais disposições do projeto anterior, incluindo a definição de trabalho análogo à escravidão, que inclui condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. No entanto, o projeto manteve a exigência de trânsito em julgado de sentença penal condenatória para a aplicação da sanção administrativa do confisco de imóveis. Essa exigência é diferente da prevista para o confisco de propriedades com cultivo de plantas psicotrópicas, que pode ser aplicado mesmo sem trânsito em julgado (TRENTINE; PORTO, 2023).
A exigência de trânsito em julgado pode prejudicar a efetividade da sanção administrativa do confisco de imóveis. Isso porque o processo penal pode levar anos para ser concluído, o que significa que a propriedade do responsável pelo trabalho análogo à escravidão pode permanecer em suas mãos durante todo esse tempo.
O confisco de imóveis é uma medida importante para o combate ao trabalho análogo à escravidão. No entanto, a exigência de trânsito em julgado é uma limitação que precisa ser reavaliada.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o trabalho análogo à escravidão seja diferente da escravidão praticada no início da história do Brasil, uma vez que não é mais permitida à posse de seres humanos, as práticas atuais continuam violando os direitos dos trabalhadores e, principalmente, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que é um objetivo central do Estado Democrático de Direito.
Apesar de o Brasil ter assinado diversos tratados que proíbem o trabalho forçado ou compulsório, como as Convenções nº 29 e nº 105 da OIT, e de o país ser considerado um ator importante na erradicação do trabalho análogo à escravidão por meio de mecanismos de combate, os números divulgados sobre a estimativa de pessoas que ainda vivem essa realidade são alarmantes, levantando questionamentos sobre a eficácia das medidas para erradicar o trabalho escravo contemporâneo.
Ante o exposto, e de modo a responder a primeira parte da problemática que ensejou este trabalho, é possível afirmar que, a exploração ilegal do trabalho análogo ao de escravo no Brasil acarreta sérias consequências jurídicas. Os responsáveis por essa prática estão sujeitos a penalidades criminais, conforme o artigo 149 do Código Penal, que prevê penas de reclusão de 2 a 8 anos, além de multas. Além disso, os infratores podem ser alvo de ações de responsabilidade civil e trabalhista, resultando em indenizações aos trabalhadores explorados, que incluem ressarcimento por danos morais, materiais e salários atrasados. A legislação também permite a interdição do estabelecimento onde ocorre a exploração e o cancelamento do registro empresarial da entidade envolvida. Adicionalmente, empresas flagradas nesse tipo de prática podem ter seus nomes incluídos na "Lista Suja" do Trabalho Escravo, um cadastro mantido pelo governo que identifica e expõe publicamente organizações envolvidas em tal prática.
Além das implicações nacionais, a exploração ilegal do trabalho análogo ao de escravo viola tratados e convenções internacionais, o que pode resultar em sanções e restrições em âmbito internacional. Portanto, as consequências jurídicas dessa prática são significativas e visam tanto punir os infratores quanto proteger os direitos e a dignidade dos trabalhadores, alinhando-se aos princípios fundamentais dos direitos humanos.
Partindo para a segunda parte da problemática, é possível afirmar que, embora o Brasil tenha avançado significativamente no combate ao trabalho análogo ao de escravo, é importante reconhecer que ainda há desafios a serem superados para garantir a plena eficácia das ações estatais nesse sentido, a exemplo da recente lista suja divulgada pelo Ministério Público do Trabalho em 05 de outubro de 2023, onde constatou-se um aumento nos casos de empregadores que submeteram trabalhadores a condições semelhantes à escravidão.
Como visto no tópico anterior, a desapropriação por trabalho análogo à escravidão é um instrumento importante para coibir essa prática. Ela permite que o Estado tome a propriedade do responsável pela exploração do trabalho escravo e a destina à reforma agrária ou à instalação de assentamentos rurais.
Além da desapropriação, o Poder Executivo também pode decretar interesse social nas terras onde existam práticas análogas à escravidão. Esse decreto permite que o Estado fiscalize essas terras com mais rigor e aplique as penalidades cabíveis aos responsáveis pela exploração do trabalho escravo.
Assim sendo, um dos principais pontos de melhoria reside na necessidade de aprimorar a eficiência do sistema judicial para acelerar os processos e garantir que os infratores sejam responsabilizados de maneira célere e efetiva. Além disso, é fundamental fortalecer os mecanismos de prevenção, por meio da implementação de políticas públicas que visem à erradicação dessa prática e à proteção dos direitos dos trabalhadores.
Por fim, é importante destacar a importância da conscientização da sociedade e do setor privado sobre a gravidade dessa violação dos direitos humanos. A colaboração entre o Estado, empresas e organizações não governamentais é fundamental para promover um ambiente de trabalho digno e livre de exploração. Portanto, embora haja avanços notáveis, a eficácia do Estado no combate ao trabalho análogo ao de escravo pode ser ainda mais fortalecida por meio de ações coordenadas e estratégias contínuas de prevenção e repressão.
Dessa forma, pode-se concluir que o trabalho análogo ao de escravo expressa a persistência da violação de direitos humanos, afetando a dignidade das pessoas submetidas a essa prática, além de contribuir para a precarização das condições de trabalho e exploração econômica. O método dedutivo permite, portanto, a análise profissional e objetiva sobre um tema tão sensível e importante para a promoção dos direitos humanos.
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[1] Professor do Curso de Bacharelado em Direito, do ILES/ULBRA Itumbiara/GO e-mail: [email protected].
Discente 10º Período do curso de Direito do Instituto Luterano de Ensino Superior de Itumbiara-GO (ILES/ULBRA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Rafael De Souza. Trabalhos em condições análogas à de escravo e os desafios ao seu combate no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2024, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64461/trabalhos-em-condies-anlogas-de-escravo-e-os-desafios-ao-seu-combate-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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