RESUMO: Trata-se o presente artigo de uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade do regime inicial de cumprimento de pena fechado em caso de crimes hediondos. Os fundamentos utilizados foram o princípio da individualização da pena e o dever de fundamentação das decisões judiciais. Ocorre que o referido princípio também influencia a atuação do legislador, que submete-se a um poder-dever municiado pela Constituição Federal de reprimir mais severamente os crimes mais graves, consoante opção política dos representantes do povo. No mais, não cabe alegar ausência de fundamentação, afinal nada mais democrático que obedecer ao estabelecido pela lei a partir de um mandamento constitucional.
Palavras-chave: crime hediondo, regime inicial de cumprimento de pena, princípio da individualização da pena
ABSTRACT: This article is an analysis of the Federal Supreme Court's decision regarding the unconstitutionality of the initial regime for serving a closed sentence in the case of heinous crimes. The grounds used were the principle of individualization of the sentence and the duty to justify judicial decisions. It turns out that the aforementioned principle also influences the actions of the legislator, who submits to a power-duty provided by the Federal Constitution to repress the most serious crimes more severely, depending on the political option of the people's representatives. Furthermore, it is not possible to allege a lack of justification, after all, there is nothing more democratic than obeying what is established by law based on a constitutional commandment.
Keywords: heinous crime, initial sentence regime, principle of individualization of punishment
Introdução e a evolução da jurisprudência do STF
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) havia decidido pela constitucionalidade do regime integralmente fechado para o cumprimento de penas por crime hediondo. Essa decisão foi objeto do habeas corpus 69.657, julgado em 18.12.1992.
Já em 23 de fevereiro de 2006, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus n.º 82.959-7-SP, decidiu que o artigo 2°, § 1°, da Lei n.º 8.072/90, padecia de vício de inconstitucionalidade por vedar a progressão de regime prisional aos condenados por crimes hediondos, o que ofenderia o princípio da individualização da pena.
Após essa decisão, o legislador modificou o artigo 2°, § 1°, da Lei n.º 8.072/90, introduzindo na lei a obrigatoriedade do regime inicial fechado para o cumprimento de pena em caso de crimes hediondos.
Atualmente, entende o STF que também é inconstitucional o estabelecimento de regime inicial fechado decorrente da condenação de crimes hediondos, conforme decidido em sede de repercussão geral no recurso extraordinário com agravo 1.052.700 Minas Gerais. Segundo a Corte, ofende novamente o princípio da individualização da pena e a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, de modo que só poderia ser aplicado o regime inicial mais gravoso caso a decisão fundamentasse a partir de elementos casuísticos a escolha pelo regime mais adequado.
O Princípio da Individualização da Pena
A constituição federal prevê expressamente, em seu artigo 5º, inciso XLVI, que a lei regulará a individualização da pena e adotará outros tipos de restrição de liberdade, como a perda de bens, de multa, de prestação social alternativa, e de suspensão ou interdição de direitos, consagrando o princípio da individualização da pena que, propõe uma adaptação da pena de acordo com as necessidades e características pessoais do condenado.
O Princípio da Individualização da Pena tem como objetivo garantir ao condenado a pena justa e proporcional ao mal praticado, devendo ser suficiente e necessária à prevenção e repressão do crime, tornando o condenado único e diferenciado, inclusive entre eventuais coautores ou partícipes.
Segundo Nucci:
“A individualização da pena tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e aos efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais infratores, ainda que coautores ou mesmo corréus. Sua finalidade e importância é a fuga da padronização da pena, prescindindo da figura do juiz, como ser pensante, adotando-se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à pena pré-estabelecida, segundo um modelo unificado, empobrecido e, sem dúvida”.
A partir de uma hermenêutica constitucional, percebe-se que a primeira incidência do princípio ocorre na atuação do poder legislativo, devendo o legislador selecionar as condutas que “atacam os bens mais importantes”. (GRECO, 2012, p.69). Por meio de um critério político-criminal, é mister do representante eleito pela sociedade atribuir a cada tipo penal uma ou mais penais que devem ser proporcionais ao bem jurídico protegido e a gravidade da ofensa, individualizando, assim, as penas de cada infração penal.
A constitucionalidade do regime inicial fechado
Não há qualquer vício de inconstitucionalidade no § 1 ° do artigo 2º da Lei n.º 8.072/90. O legislador a editou com o intuito de individualização da pena, visto que os delitos contidos na Lei dos Crimes Hediondos merecem maior rigor da constrição da liberdade. São delitos que o legislador, por determinação constitucional, considerou especialmente repulsivos e que, por essa razão, recebem tratamento penal e processual penal mais gravoso que os demais delitos.
A Constituição Federal exara mandados de criminalização, apontando expressamente a existência de crimes mais graves, afirmando, inclusive, que crimes como racismo são imprescritíveis. Menciona também que os crimes hediondos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, não definindo, entretanto, quais são os delitos hediondos.
Acrescenta-se que a espécie dos crimes hediondos tem previsão constitucional, obra do poder constituinte originário, que indicou na Carta Maior a necessidade de repressão mais intensa a certos crimes etiquetados como hediondos. É certo, ainda, que o poder constituinte concedeu o poder-dever ao legislador infraconstitucional para a escolha e catalogação desses crimes que, nos termos da lei, são considerados de maio gravidade.
Trata-se, portanto, de intenção do poder constitucional de promover um tratamento mais gravoso em caso de crimes de maior ofensividade aos bens jurídicos mais importantes da sociedade. Uma opção democrática que vincula o legiferante a, no exercício de sua função típica, conferir um regime mais gravoso a tais crimes.
É cediço que o ordenamento jurídico brasileiro adota a tripartição de poderes, sendo cada poder responsável por suas atribuições constitucionais. Nesse sentido, cabe ao legislador a criação de leis, como atividade típica, ao judiciário a sua interpretação e aplicação e ao executivo a gestão pública nos seus estritos termos.
Quando o legislador edita uma lei, ela nasce com presunção de constitucionalidade, podendo ser afastada a presunção por decisão do STF, órgão de cúpula responsável pela higidez da constituição e do ordenamento jurídico pátrio. A despeito da indiscutível importância da função constitucional de ultimo interprete da Carta Política, tal função deve ser exercida com deferência e razoabilidade, sob o risco de desequilíbrio entre os poderes.
A atividade legiferante deve obedecer às formalidades necessárias bem como aos direitos fundamentais. Todavia, quando o legislador fizer uma opção democrática, deve ser respeitada, salvo se ferir frontalmente qualquer disposição constitucional. Isso deve ser visto com prudência e técnica, não podendo ser fruto de posições ideológicas e doutrinárias de um poder não eleito.
Sem dúvidas que o poder judiciário deve ser livre para decidir, vinculado apenas á Constituição e a sua consciência. Essa liberdade no exercício de sua competência não é absoluta, notadamente em casos que a própria Carta Política confere um poder-dever ao legislador como faz no caso dos crimes hediondos, ocasião em que o poder constituinte originário delega ao legislador infraconstitucional a escolha de delitos mais graves a fim de etiqueta-los com hediondos.
Nesse diapasão, não se mostra válida a decisão de inconstitucionalidade do regime inicial fechado em caso de crimes hediondos em razão do princípio da individualização da pena e da necessidade de fundamentação das decisões jurídicas, pois afasta uma função constitucionalmente dirigida ao poder legislativa de promover um tratamento mais gravos a certas espécies de crimes.
Cabe salientar que o princípio da individualização da pena não tem caráter absoluto e tem incidência sobre a atuação não só do poder judiciário, mas também sobre a atuação do poder legislativo. Assim, é plenamente possível a escolha política do legiferante no sentido de determinar por meio de lei o início da execução penal no regime fechado.
Entender diferente seria defender a inconstitucionalidade do artigo 33, §2º, “a”, do Código Penal, dispositivo em que há previsão de regime fechado para criminosos que recebam uma condenação penal superior a 8 anos. Trata-se se um valor pré-estabelecido de forma abstrata pelo legislador, fazendo parte de seu juízo de conformação política, razoável e proporcional. Se foi escolhido determinado quantum para o início da execução penal em regime fechado, por qual motivo não poderia ser escolhida uma determinada espécie de crime para iniciar a execução da pena no regime mais gravoso?
Com efeito, não pode o juiz, a pretexto de ajustar a pena ao indivíduo, afastar-se dos preceitos legais que disciplinam o apenamento e sua execução. É dizer, não pode aplicar pena de natureza diversa da correspondente ao tipo penal, reclusão por detenção ou multa; multa por detenção. Não é permitida a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos quando a condenação decorre de crime praticado com violência a pessoa ou quando excedente, a primeira, ao quantitativo escolhido pelo legislador.
A Constituição, ainda que com expressa previsão do princípio da individualização da pena, permite ao legislador dosar as penas de acordo com a maior ou menor gravidade do crime cometido, regulando sua aplicação e execução. Concede ao Poder Legislativo um juízo de conveniência e oportunidade a respeito da política criminal, reprimindo crimes mais graves com sanções mais severas.
No mesmo sentido a Constituição Federal proíbe a concessão de graça e anistia aos crimes hediondos. O legislador dentro de seu espectro de atuação, incluiu outra proibição, qual seja, a concessão de indulto, sendo certo que o Pretório Excelso já se manifestou sobre o tema, atestando a constitucionalidade dessa inovação legal.
Ademais, todo tratamento mais gravoso aos crimes hediondos será necessariamente previsto de forma abstrata e prévia, em prejuízo às particularidades do caso concreto. Isso porque, a matéria penal deve ser veiculada por lei em sentido formal, em homenagem ao princípio da legalidade, mais especificamente, princípio da reserva legal. Desse modo, como característica da própria lei, é impositiva a sua generalidade, abstração e impessoalidade, sendo impossível, por questão lógica, a observância pelo legislador de possíveis individualidades de um caso concreto.
O princípio da individualização da pena é de aplicação no âmbito da criação da lei, do julgamento do caso concreto e da execução penal. O mesmo princípio pode ser aplicado de forma diferente em situações diferentes, isso fica claro quando esse tipo de norma entra em conflitos com outros princípios. Há ponderação, aplicando em maior ou menor escala a depender da situação. No caso da escolha pelo regime inicial fechado não se trata propriamente de uma ponderação, mas de uma aplicação diferente em momentos diversos, à luz de uma opção democraticamente e constitucionalmente proporcional, ressaltando que o referido princípio não é absoluto.
Também não se justifica o fundamento de ofensa ao dever de fundamentação. O magistrado sempre fundamentará sua decisão, mas, assim como no caso do artigo 33, §2º, “a” do Código Penal, o fundamento - seja para prisão em regime fechado, seja para adoção do regime inicial mais gravoso - será a própria lei, instrumento democrático de regulamentação de condutas.
Por derradeiro, cabe destacar que decisão do STF acaba por ofender o princípio da isonomia, já que redundará em tratamento jurídico idêntico para situações ontologicamente desiguais. A Constituição da República determina que o legislador deva tratar mais severamente os crimes hediondos. O regime inicial mais gravoso é uma opção política, lastreada na vontade constitucional, que ao ser afastada pela Suprema Corte gera como consequência o tratamento idêntico entre o agente que pratica um furto e o homicida qualificado.
Conclusão
O artigo 2°, § 1°, da Lei n.º 8.072190, que estabelece o regime inicial fechado para cumprimento de pena decorrente de decisões judiciais transitadas em julgado não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade, já que o legislador constituinte deixou ao encargo do legislador ordinário a fixação dos parâmetros de individualização da pena, com a expressa previsão de mandados de criminalização a fim de proteger bens jurídicos caros à sociedade. O fundamento é a própria lei, que indiretamente cumpre uma determinação constitucional. A escolha feita pela Casa do Povo não pode ser substituída pela vontade do juiz aquilatando a constitucionalidade de um dispositivo legal pelas suas predileções pessoais sobre a melhor forma de se proceder à execução da pena de forma mais severa em caso de crimes mais graves, bem como incorrendo em ofensa à isonomia.
Bibliografia
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O regime inicial de pena nos crimes hediondos não precisa ser obrigatoriamente o fechado. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/429e4a44bec547a527df987730b19aab>. Acesso em: 22/01/2024
NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.34.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORREA, victor cypriano. A (in)constitucionalidade do regime inicial fechado da pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2024, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64497/a-in-constitucionalidade-do-regime-inicial-fechado-da-pena. Acesso em: 22 nov 2024.
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