RESUMO: A moralidade administrativa é um princípio constitucional intimamente ligado à boa administração, fomentando a efetividade de serviços e políticas públicas a serviço da população, principalmente dos mais vulneráveis. A Lei 8.429/92, fruto do mandamento constitucional de tutela da probidade administrativa, foi alterada pela Lei 14.230/21, que reduziu o âmbito de proteção da norma, especialmente em relação aos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública, os quais, agora, não são punidos com a perda do cargo público. A nova lei ofende a Constituição Federal, que possui um rol mínimo e obrigatório de sanções em face de atos ímprobos, bem como viola o princípio da proporcionalidade ao gerar uma proteção deficiente do bem jurídico. Isso tudo sem prejuízo de promover um retrocesso social e descumprir acordo internacional do qual o Brasil é signatário.
Palavras-chave: improbidade administrativa, direito fundamental, proteção deficiente, retrocesso social
Abstract: Administrative morality is a constitutional principle closely linked to good administration, promoting the effectiveness of services and public policies at the service of the population, especially the most vulnerable. Law 8,429/92, the result of the constitutional mandate to protect administrative probity, was amended by Law 14,230/21, which reduced the scope of protection of the norm, especially in relation to acts of improbity that violate the principles of Public Administration, which, now, they are not punished with the loss of public office. The new law offends the Federal Constitution, which has a minimum and mandatory list of sanctions in the face of unlawful acts, as well as violating the principle of proportionality, by generating deficient protection of legal interests. All this without prejudice to promoting social regression and failing to comply with the international agreement to which Brazil is a signatory.
Keywords: administrative improbity, fundamental right, deficient protection, social setback
Introdução
A moralidade administrativa refere-se à conduta ética e transparente no âmbito da administração pública, sendo norteada por princípios éticos e valores morais de observância obrigatória por agentes públicos no exercício de suas funções. A ideia por trás da moralidade administrativa é assegurar que a gestão pública seja pautada pela integridade, honestidade e interesse público.
Trata-se de um direito fundamental, de terceira dimensão, essencial para a promoção dos direitos sociais dos cidadãos. A corrupção administrativa, por sua vez, representa uma violação desses princípios éticos, prejudicando não apenas a eficácia das políticas sociais, mas também o combate às desigualdades sociais.
A conduta ímproba gera um custo social que compromete não apenas o erário público, mas também nas iniciativas e políticas públicas que buscam reduzir as desigualdades sociais. Quando recursos destinados a programas sociais são desviados ou mal utilizados devido à corrupção, o impacto negativo sobre a população, especialmente os mais vulneráveis, é significativo.
A gestão pública ética e transparente é um meio para alcançar um objetivo fundamental da justiça social. Em outras palavras, a garantia da moralidade administrativa não é apenas uma questão de legalidade, mas também está intrinsecamente ligada à busca por uma sociedade mais justa e igualitária.
Na contramão das necessidades da população e do interesse público, foi aprovada a Lei 14.230/21 que em sua maior parte é responsável pela depredação da Lei 8.429/92 e por diversas inconstitucionalidades, restringindo-se o presente trabalho à análise do artigo 12, III, da Lei de Improbidade Administrativa.
A fundamentalidade da improbidade administrativa
Prevalece na doutrina que a improbidade administrativa é um direito fundamental de terceira dimensão que decorre tanto do direito à boa administração quanto da indissociabilidade entre uma gestão pública eficiente e a consecução dos demais direitos fundamentais como a saúde, educação e a vida.
É importante destacar que a corrupção do patrimônio público tem sérias consequências econômicas, afetando diretamente o alcance dos objetivos do Estado, especialmente no que diz respeito à promoção dos direitos sociais. Ao praticar atos ímprobos, agentes públicos comprometem o capital que deveria ser direcionado para áreas cruciais, como saúde, meio ambiente e outros direitos sociais essenciais.
O professor Mauro Paolo sustenta:
[...] Como forma de afetação econômica, a corrupção pode: a) reduzir a efetividade dos fluxos de ajuda por meio da diversificação dos fundos, o que é relevante para o desenvolvimento dos países, b) diminuir a arrecadação de impostos quando isso leva à forma de evasão ou de aplicação indevida da discricionariedade na concessão de isenções e pode mesmo afetar a distribuição orçamentária, c) influir nos contratos de aquisição pública de bens e serviços, gerando uma baixa qualidade da infraestrutura pública e de serviços e, por fim, d) a corrupção pode afetar a composição dos gastos governamentais por meio da escolha de tipos de empreendimentos pelos oficiais do governo que permitam coletar propinas com maior facilidade e manter a situação em segredo.
O direito fundamental à boa administração pública garante uma gestão estatal que seja eficiente, eficaz e orientada por princípios éticos. A violação da moralidade por parte dos administradores públicos serve como um obstáculo à aquisição dos direitos da cidadania, um dos fundamentos da república (artigo 1º, II, da CF/88), além de atrapalhar os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º, III, da CF/88, como a redução das desigualdades sociais e regionais.
O professor Juarez, grande defensor da boa administração como direito fundamental, aduz:
Trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o rol de direitos fundamentais não está restrito ao artigo 5º da CF/88, havendo outros interesses marcados pela fundamentalidade ao longo da Carta Política. Sem dúvidas que a proteção do patrimônio público faz parte desse rol. A partir de uma interpretação sistemática da Constituição, verifica-se que os direitos humanos que exigem uma prestação positiva do Estado, como a saúde, são intrinsecamente ligados à boa gestão pública.
Há menos recursos que necessidades, por isso deve a eficiência ser buscada incansavelmente, não havendo lastro para agentes públicos ímprobos, que desperdiçam recursos públicos e se enriquecem à custa da marginalidade de um povo pobre, carente de recursos e serviços públicos.
Inconstitucionalidade do artigo 14, III, da LIA
O poder constituinte tratou de forma expressa da improbidade administrativa, demonstrando a importância da proteção do bem jurídico moralidade administrativa na busca por maior eficiência das políticas públicas, especialmente no Brasil, onde a população em sua maioria é extremamente pobre e dependente dos serviços públicos.
O artigo 14, III, da Lei de Improbidade Administrativa é inconstitucional por ofensa ao princípio implícito da proporcionalidade, observado sob o viés da proibição da proteção deficiente. Esse princípio implica que, ao garantir direitos fundamentais, o Estado deve adotar medidas proporcionais e eficazes para concretizar esses direitos e protegê-los contra violações ilegítimas, seja por parte de particulares ou do próprio Estado.
A Constituição Federal atribui ao Estado a responsabilidade de adotar uma postura que efetivamente concretize os direitos fundamentais. A força normativa constitucional implica em um poder-dever do Estado na promoção e proteção dos direitos fundamentais. A falta de ação eficaz do Estado para proteger esses direitos pode levar à inconstitucionalidade por proteção deficiente. Em outras palavras, se o Estado não age de maneira adequada para assegurar os direitos fundamentais, ele viola a própria Constituição.
Ao prever, no artigo 37, §4º, as sanções de suspensão dos direitos políticos, indisponibilidade de bens, perda da função pública e ressarcimento integral do dano, este último com sua imprescritibilidade reconhecida, a Carta Política elencou um rol mínimo de penas e medidas visando a prevenção e repressão aos servidores que pratiquem atos tipificados com de improbidade administrativa.
A novel legislação não prevê como sanção para a prática de atos de improbidade administrativa que atentem contra os princípios da administração pública a perda do cargo pelo agente infrator. Dessa forma, além de reduzir a proteção contra a improbidade administrativa, como por exemplo o estabelecimento de um rol taxativo de condutas que ofendam princípios administrativos, criou uma espécie de improbidade que não se submete aos preceitos sancionatórios mínimos previstos na Constituição Federal (artigo 37, §4º).
A ofensa aos princípios da administração pública é prevista no artigo 11 da Lei 8.429/92, enquanto as sanções referentes a sua prática estão no artigo 12, III, da LIA. O dispositivo, ao não prever a perda do cargo pública, descumpre diretamente a determinação constitucional, ofendendo a proporcionalidade e criando uma lacuna de proteção, favorecendo a impunidade.
Do mesmo modo que não é possível criar uma espécie de racismo que não seja imprescritível ou um crime hediondo que seja cabível a graça ou anistia, não é concedida ao legislador infraconstitucional liberdade de atuação legiferante para criar um tipo de improbidade administrativa imune à incidência do artigo 37, §4º, da CF/88, sob pena de tornar a Carta Política um instrumento meramente programático, não vinculativo.
A professora Juliana Venturella Nahas Gavião arrazoa:
Desse modo, em não havendo uma proteção normativa ao direito fundamental, no que tange à sua dimensão objetiva (ou seja, como imperativo de tutela), verifica-se ato de omissão estatal flagrantemente inconstitucional, porquanto impedirá a realização e o desfrute do direito fundamental por seu titular. Em outras palavras, não existe liberdade absoluta de conformação legislativa, ainda que deva ser reconhecido o espaço que é conferido ao legislador para adaptar os mandamentos constitucionais.
É nítido o retrocesso social causado pela legislação que altera substancialmente a Lei de Improbidade. A Lei 14.230/21 favorece o agente infrator, enfraquece o combate à corrupção administrativa, e viola a proibição de retrocesso social e de proteção deficiente de direito fundamental. Dissertando sobre a vedação ao retrocesso social, Canotilho explica:
A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fática), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.
Por fim, cabe acrescentar que a repressão à improbidade administrativa é objeto de acordo internacional, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, sendo certo que, ao considerar a proteção do patrimônio público um direito humano, o diploma possui supremacia formal em relação à legislação ordinária, consoante entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal.
Desse modo, a novel legislação desprotege o patrimônio público, ofende a Constituição Federal e descumpre acordo internacional do qual o Brasil é signatário, promovendo verdadeiro retrocesso social, de modo a restar como única solução a declaração de inconstitucionalidade do artigo 12, III, da LIA, repristinando a redação primitiva.
Conclusão
A defesa da moralidade administrativa é um instrumento para a concretização da igualdade social. Não por outro motivo, o constituinte previu de forma expressa a necessidade de repressão contra ofensas à improbidade administrativa, elencando rol mínimo de sanções no artigo 37, §4º, da CF/88, de modo que o legislador infraconstitucional não pode reduzi-lo.
A Lei 14.230/21 é um obstáculo à proteção efetiva do direito fundamental à moralidade administrativa, violando o princípio da proporcionalidade e colocando em risco, além da força normativa e vinculante da Constituição, seus fundamentos e impedindo a consecução dos objetivos da república.
É inegável o retrocesso social causado pela alteração legislativa, que gera uma proteção deficiente a direitos fundamentais, em prejuízo ainda de acordo internacional celebrado pelo Brasil, sendo forçoso concluir pela inconstitucionalidade e inconvencionalidade do artigo 12, III, da LIA, especialmente no que diz respeito à ausência de perda do cargo público como sanção decorrente da prática de atos de improbidade administrativa.
Bibliografia
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORREA, victor cypriano. A inconstitucionalidade do artigo 12, III, da Lei 8.429/93 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2024, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64507/a-inconstitucionalidade-do-artigo-12-iii-da-lei-8-429-93. Acesso em: 22 nov 2024.
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