RESUMO: O presente trabalho possui como objetivo a análise acerca do impacto da reforma tributária sobre o aspecto material do IPVA, tendo em vista que passou a constar expressamente do texto da Constituição Federal de 1988 a possibilidade de incidência do referido imposto sobre embarcações e aeronaves. Aspectos relevantes como o efeito backlash e a (im)possibilidade de constitucionalização superveniente das leis estaduais anteriores à EC nº 132/2023, à luz do entendimento do STF, são objeto de destaque.
Palavras-chave: Reforma Tributária. IPVA. Aspecto Material. Efeito Backlash. Constitucionalização Superveniente.
1.INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal (STF), há muito, firmou a sua jurisprudência no sentido de que o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) poderia incidir apenas sobre veículos automotores terrestres. Isto é, a propriedade de embarcações e aeronaves não poderia ser considerada para fins de tributação do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA).
Contudo, com a EC nº 132/2023, também conhecida como “Reforma Tributária”, passou a constar expressamente do texto da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a possibilidade de tributação do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos, além dos veículos automotores terrestres, como já era admitido pela jurisprudência.
Por conta disso, o presente trabalho possui o escopo de elucidar a questão referente à reversão legislativa ocorrida e a (im)possibilidade de as antigas leis estaduais que já previam a incidência do IPVA sobre a propriedade de embarcações e aeronaves serem reaproveitadas.
Assim, foi realizada ampla pesquisa bibliográfica e descritiva visando o adequado deslinde do tema.
1.O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA PLENA DOS ESTADOS PARA LEGISLAR SOBRE O IPVA
O imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), nos termos do art. 155, III, da CF/88, trata-se de um imposto cuja competência para a instituição foi atribuída aos Estados e ao Distrito Federal.
A respeito da competência legislativa, cabe mencionar que a matéria envolvendo direito tributário, encontra-se no âmbito da competência legislativa concorrente (art. 24, I, da CF). No âmbito da legislação concorrente, cabe à União legislar sobre as normas gerais (art. 24, §1º, da CF/88) e, aos Estados e ao Distrito Federal (DF), cabem suplementar o regramento editado pela União, no que couber, considerando as suas peculiares (art. 24, 2º, da CF/88).
Caso não seja editada uma norma geral pela União a respeito das matérias elencadas nos incisos do art. 24 da CF/88, os Estados e o DF poderão exercer a competência legislativa plena, editando a regulamentação necessária para atender as suas peculiaridades e interesses (art. 24, §3º, da CF/88). E, caso seja editada uma lei federal sobre normas gerais em momento posterior, a eficácia da lei estadual, no que contrariar a lei federal, será suspensa (art. 24, §4º, da CF/88).
A questão envolvendo o IPVA se encontra inserida nesse contexto. Como não há uma regulação de caráter nacional, os Estados passaram a ter competência legislativa plena, conforme autorização constitucional (art. 24, §3º, da CF/88).
Dito isso, todos os Estados, no exercício da competência legislativa plena, editaram leis para viabilizar a instituição e cobrança do imposto sobre a propriedade de veículos automotores. Além de ser um tributo de caráter predominantemente fiscal ou arrecadatório, conferindo grandes receitas para o Estado, certo é que a medida também decorre de um mandamento legal.
O art. 11 da Lei Complementar nº 101/2000, também conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, prevê que “Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.”. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal dispõe que “É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos.”.
Com isso, certo é que eventual abstenção do Estado em editar lei prevendo a instituição do IPVA seria duplamente desvantajosa. A uma, pois deixaria de arrecadar valores significativos para fazer frente às despesas públicas. A duas, pois incorreria na vedação contida na LRF a respeito do recebimento de transferências voluntárias.
Não há dúvidas de que a edição de lei estadual sobre a temática, além de possível, com base na CF/88 e na LRF, é medida desejável, tendo em vista a supremacia do interesse público e visando uma gestão fiscal planejada e equilibrada.
A falta de uma lei geral e o exercício da competência legislativa plena por parte dos Estados culminou na existência de diversos diplomas legais tratando sobre o IPVA. Tais legislações esparsas, em determinadas hipóteses, tornaram-se problemáticas, na medida em que muitas das vezes foram editadas com dispositivos inconstitucionais, conforme será detalhado a seguir.
2.O IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES (IPVA) E O SEU ASPECTO MATERIAL
O aspecto material do IPVA, isto é, o fato gerador que determina a incidência do referido imposto, é a propriedade, posse ou titularidade de direito real sobre veículo automotor. Destaca-se, portanto, que não se restringe à propriedade.
Por expressa autorização do art. 110 do Código Tributário Nacional (CTN), é possível utilizar as definições e conceitos contidos no Código Civil (CC) e no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) de “propriedade”, “posse”, “direito real” e “veículo automotor” no âmbito do Direito Tributário.
O Código Civil elenca nos incisos do art. 1.225 quais são os direitos reais. Dentre eles, destaca-se o direito de propriedade, que envolve a prerrogativa de “usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (art. 1.228 do CC). Por sua vez, a posse envolve o “exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” (art. 1.196 do CC).
Cabe mencionar, ainda, que o CTB apresenta a definição de veículo automotor. Para fins de elucidação, transcreve-se o conceito apresentado pelo mencionado Código:
VEÍCULO AUTOMOTOR - veículo a motor de propulsão a combustão, elétrica ou híbrida que circula por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas, compreendidos na definição os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico). (Redação dada pela Lei nº 14.599, de 2023)
Leandro Paulsen trata sobre o tema com propriedade:
Propriedade é o direito real por excelência, o mais amplo, que envolve as prerrogativas de usar e dispor. Já o conceito de veículos automotores compreende as coisas movidas a motor de propulsão, que circulam por seus próprios meios e que servem normalmente para o transporte viário de pessoas ou coisas, conforme o anexo I do Código Brasileiro de Trânsito.
Apesar de ser possível, em tese, incluir embarcações e aeronaves no conceito de veículo automotor, o STF, há muito, já se manifestou no sentido de que a propriedade de embarcações e aeronaves não poderia ser considerada para fins de tributação do IPVA. Isto é, apenas a propriedade de veículos terrestres poderia ser tributada.
A Suprema Corte justificou o seu posicionamento com base, principalmente, em dois fundamentos. Os primeiros deles se relaciona diretamente com a ideia que o IPVA possui origem na Taxa Rodoviária Única (TRU), que se tratava de um tributo federal que incidia apenas sobre veículos automotores, cuja finalidade era a de arrecadar receitas para melhorias na infraestrutura nacional de transportes.
O segundo fundamento, relacionado à ideia de licenciamento do veículo automotor terrestre versus registro de embarcações, pode ser facilmente identificado a partir da seguinte transcrição, extraída do voto do Ministro Cezar Peluso quando do julgamento do RE nº 379.572:
c) outras normas constitucionais corroboram o entendimento segundo o qual veículos automotores são apenas os terrestres, como é o caso do artigo 23, § 13, da Constituição Federal, acrescentado pela EC nº 27/85, que destina cinquenta por cento do produto da arrecadação do imposto para o Município onde estiver licenciado o veículo. Só faz sentido falar-se em “Município onde estiver licenciado o veículo” se estiver em jogo a propriedade de veículos terrestres, únicos que, “em face da legislação e pela ondem natural das coisas, estão sujeitos a licenciamento nos municípios de domicílio ou residência dos respectivos proprietários”, nos termos do Código Nacional de Trânsito.
d) em contraste, as embarcações estão sujeitas a registro no Tributal Marítimo (ou nas Capitanias dos Portos, para embarcações com menos de vinte toneladas), cujo efeito é o de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade. As aeronaves, por sua vez, sujeitam-se ao Registro Aeronáutico Brasileiro, do Ministério da Aeronáutica. Como observou o Ministro Francisco Rezek, em voto-vista proferido na ocasião, “navios e aeronaves não se vinculam, por nenhum ato registral, à célula que é o município. Sequer aos Estados, visto que existem capitanias de portos que abrangem mais de uma unidade federada. E o registro aeronáutico é único – aí não se trata apenas de escapar às municipalidades, mas também a qualquer vínculo estadual”. Segue-se, daí, a impossibilidade de licenciamento de aeronaves e embarcações em cada um dos milhares de municípios brasileiros;
Nesse julgado, o STF concluiu que é inconstitucional lei estadual que preveja pagamento de IPVA pela propriedade de embarcações ou de aeronaves. Ocorre que, mesmo diante de tal conclusão, diversos diplomas legais estaduais passaram ou continuaram a prever a incidência do IPVA sobre embarcações ou aeronaves.
A título de exemplo, a Lei Estadual nº 14.937/2003, do Estado de Minas Gerais, prevê no seu art. 1º que o IPVA incide sobre veículo automotor de qualquer espécie e, a partir da leitura de outros artigos, como dos arts. 7º, II e 10º, VI, percebe-se que a regulamentação abrange também as embarcações, em franca contrariedade ao entendimento firmado pelo STF:
Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA - incide, anualmente, sobre a propriedade de veículo automotor de qualquer espécie, sujeito a registro, matrícula ou licenciamento no Estado.
Art. 7º A base de cálculo do IPVA é o valor venal do veículo.
(...)
II - em relação a embarcação e aeronave, o valor venal declarado pelo contribuinte, nos termos do regulamento, desde que não inferior ao do respectivo contrato de seguro.
Art. 10. As alíquotas do IPVA são de:
VI - 3% (três por cento) para embarcação;
Já a Lei Estadual nº 6.967/96, do Estado do Rio Grande do Norte, prevê expressamente seu art. 2º que o IPVA incide não apenas sobre o veículo automotor terrestre, mas também sobre o aquático e o aéreo:
Art. 2º O imposto tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor, terrestre, aquático e aéreo, sendo devido no local onde o veículo deva ser registrado ou licenciado.
Em contrapartida, observa-se que a Lei Estadual nº 2.877/97, do Estado do Rio de Janeiro, foi atualizada recentemente pela Lei nº 7.068/15, de forma que consta expressamente do seu art. 1º que o IPVA incide sobre os veículos automotores terrestres:
Art. 1º - O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores Terrestres - IPVA, devido anualmente, tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor terrestre por proprietário domiciliado ou residente no Estado do Rio de Janeiro.
A existência de diversos diplomas legais tratando sobre o IPVA se justifica, conforme já exposto, pelo fato de que não há qualquer menção ao referido imposto no Código Tributário Nacional (CTN) ou em outra lei de caráter nacional. Um dos pontos problemáticos citados acerca dessa dinâmica é, justamente, dispositivos como esses acima transcritos, editados em confronto com o ordenamento jurídico como um todo.
3.A GRANDE NOVIDADE TRAZIDA PELA REFORMA TRIBUTÁRIA SOBRE O IPVA
Conforme destacado anteriormente, o entendimento consolidado do STF era no sentido de que a propriedade de embarcações e aeronaves não poderia ser considerada para fins de tributação do IPVA. Tal vedação decorreu de uma construção jurisprudencial, pois não constava da CF/88 ou de outro diploma normativo.
Ocorre em dezembro do ano de 2023 foi publicada a Emenda Constitucional nº 132/2023, responsável por alterar Sistema Tributário Nacional. Trata-se de uma reestruturação profunda nesse sistema, sendo possível afirmar, até mesmo, que se trata da primeira ampla reforma tributária realizada no Brasil sob a égide da CF/88.
Além da unificação dos impostos, a Reforma Tributária propõe, a partir do fortalecimento do pacto federativo, corrigir disparidades regionais e trazer maior transparência na gestão fiscal do Brasil. Tais pretensões podem ser observadas, de plano, pela inclusão de determinados princípios no texto da Constituição Federal, como os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente (art. 145, §3º, da CF/88).
O Governo Federal, por meio do Ministério da Fazenda, destacou os três grandes objetivos da Reforma Tributária, nos seguintes termos:
• Fazer a economia brasileira crescer de forma sustentável, gerando emprego e renda: a reforma tributária eliminará as principais distorções causadas pelo atual sistema tributário brasileiro na nossa economia. Com o fim da cumulatividade dos tributos, da guerra fiscal, de discussões e litígios administrativos e judiciais de todas as ordens, a reforma tributária reduzirá custos e acabará com ineficiências para as empresas e para o poder público, que hoje diminuem o potencial de crescimento da economia brasileira. Essa transformação gerará um maior crescimento da economia, o que, por consequência, aumentará o emprego e a renda dos cidadãos brasileiros. Quando a economia cresce mais, todos ganham: as empresas, os cidadãos e os governos.
• Tornar nosso sistema tributário mais justo, reduzindo as desigualdades sociais e regionais: os tributos atuais incidem em parte na origem – Estados e Municípios onde estão localizadas as empresas que fornecem bens e serviços – o que concentra a arrecadação em entes federativos que usualmente já são mais desenvolvidos. Nosso modelo tributário atual acaba, portanto, agravando as desigualdades regionais no nosso país. Com a adoção do princípio do destino pela Reforma Tributária, a arrecadação passará da produção para o consumo, ou seja, para os Estados e Municípios em que estão localizados os consumidores. O princípio do destino beneficia, portanto, os Estados e Municípios menos desenvolvidos, promovendo uma redistribuição de receitas e reduzindo as desigualdades regionais. Da mesma forma, o princípio do destino acabará com a guerra fiscal e todas as distorções e ineficiências que ela causa. A reforma também reduzirá as desigualdades sociais, dado que beneficiará mais os brasileiros mais pobres, cujo consumo hoje é mais tributado do que o dos mais ricos. A adoção de uma alíquota-padrão como regra geral e a possibilidade de devolução de parte do imposto pago – o cashback – são fatores que contribuem para o alcance desse objetivo.
• Reduzir a complexidade da tributação, assegurando transparência e provendo maior cidadania fiscal: com a Reforma, as empresas gastarão menos tempo e dinheiro para apurar tributos e enfrentar litígios administrativos e judiciais. Além disso, algumas características do novo sistema como base ampla, não cumulatividade plena e regras uniformes melhoram o ambiente de negócios, eliminam distorções, trazem mais segurança jurídica e estimulam a concorrência leal, resultando em bens e serviços de mais qualidade e com preços mais baixos. A simplificação também significa mais transparência, pois o valor dos tributos cobrados nas aquisições de bens e serviços passará a corresponder exatamente à carga tributária suportada pelos cidadãos, o que hoje não ocorre. Ao saber quanto pagam de tributos, as pessoas podem atuar de forma mais efetiva no exercício da cidadania fiscal, exigindo contrapartidas do Estado e serviços públicos de melhor qualidade.
Considerando que se trata de uma alteração recente, certo é que as suas novas diretrizes ainda serão palco de diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Ademais, diversos dispositivos carecem de regulamentação, de forma que o Poder Legislativo também terá atuação de destaque nos próximos meses e anos.
Em atenção à delimitação do presente artigo, realça-se, por ora, a alteração constante do art. 155, §6º, III, da CF/88:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
III - propriedade de veículos automotores.
(...)
§ 6º O imposto previsto no inciso III:
III - incidirá sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, excetuados: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios, inclusive aquelas cuja finalidade principal seja a exploração de atividades econômicas em águas territoriais e na zona econômica exclusiva e embarcações que tenham essa mesma finalidade principal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
d) tratores e máquinas agrícolas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
A partir da leitura do dispositivo supratranscrito, percebe-se que passou a ser possível, por previsão expressa no texto da Constituição, a tributação de IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos, além dos veículos automotores terrestres, como já era admitido pela jurisprudência.
Essa reversão legislativa é conhecida como uma espécie de efeito backlash, inserida no contexto de diálogos institucionais. Sobre o mencionado efeito, Vidal Serrano Nunes Júnior explica:
A palavra backlash pode ser traduzida como uma forte reação por um grande número de pessoas a uma mudança ou evento recente, no âmbito social, político ou jurídico. Assim, o efeito backlash nada mais é do que uma forte reação, exercida pela sociedade ou por outro Poder a um ato (lei, decisão judicial, ato administrativo etc.) do poder público. No caso do ativismo judicial, como afirma George Marmelstein, “[...] o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, decorrente de uma reação do poder político contra a pretensão do poder jurídico de controlá-lo”.
Verifica-se, portanto, a clara intenção do legislador em alterar o panorama a respeito do aspecto material do IPVA que vinha sendo adotado em razão da jurisprudência adotada pelo STF. Contudo, certo é que tal alteração não ocorrerá de pronto.
Revela-se necessária a edição de uma lei complementar para detalhar a forma como se dará a incidência do imposto sobre os aquáticos e aéreos, observadas as exceções indicadas no próprio texto constitucional, bem como que os Estados, a partir desse momento, também legislem sobre tal possibilidade.
4.A IMPOSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTOS DAS LEIS ESTADUAIS QUE JÁ PREVIAM A INCIDÊNCIA DO IPVA SOBRE EMBARCAÇÕES E AERONAVES.
O ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria da nulidade da lei ou ato inconstitucional. Isso significa que uma norma editada em desconformidade com o teor da Constituição é nula desde a sua origem e, portanto, incapaz de produzir quaisquer efeitos no mundo jurídico.
Por este motivo, a decisão que reconhece determinada inconstitucionalidade possui, via de regra, natureza declaratória, isto é, apenas reconhece a invalidade existente desde a edição da norma. O efeito dessa decisão é, portanto, retroativo (ex tunc), ressalvada a possibilidade de modulação dos efeitos, em atenção ao princípio da segurança jurídica.
A respeito da aplicabilidade da teoria da nulidade e a medida excepcional de sua mitigação, transcreve-se trecho de recente julgado da Suprema Corte:
Mesmo antes do advento da Lei n. 9.868/1999 este Supremo Tribunal tinha mitigado a aplicação da teoria da nulidade em casos pontuais preservando alguns dos efeitos produzidos pela norma declarada inconstitucional. Ao proceder à modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, este Supremo Tribunal pondera entre preceitos constitucionais com a finalidade de preservar a unidade da Constituição e os princípios da segurança jurídica e da confiança no sistema jurídico. É de responsabilidade deste Supremo Tribunal Federal a efetivação dos direitos fundamentais pelas prestações positivas, a demonstrar a insuficiência do modelo de nulidade da lei inconstitucional para a proteção desses direitos. [ADI 2.154 e ADI 2.258, rel. min. Dias Toffoli, red. do ac. min. Cármen Lúcia, j. 3-4-2023, P, DJE de 20-6-2023.]
Considerando a teoria da nulidade, questiona-se: é possível que as leis estaduais editadas anteriormente à EC nº 132/2023, que previam a incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves, sejam consideradas válidas? Essas leis podem produzir efeitos e regulamentar a incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves?
A resposta para estes questionamentos é negativa. O Supremo Tribunal Federal possui entendimento firme a respeito da inadmissão do fenômeno da constitucionalização superveniente. Isto é, uma lei que nasceu inconstitucional não pode se tornar constitucional em razão de uma circunstância superveniente.
Francisco Maia Braga expõe o entendimento da Suprema Corte sobre o tema:
Na verdade, o que temos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de forma bastante clara e tranquila é justamente a rejeição da constitucionalidade superveniente. Em outras palavras: a Suprema Corte, em mais de uma oportunidade, afirmou expressamente não ser admissível o fenômeno da constitucionalização superveniente de um ato que nasceu incompatível com a Constituição.
Nesse sentido, por exemplo, o STF já acolheu recurso de agravo (RE 592152 AgR, julgado em 18/04/2017) para dar seguimento a recurso extraordinário que havia sido julgado prejudicado por conta da modificação do parâmetro constitucional de controle e fez isso justamente para evitar que, ficando prejudicado o recurso extraordinário, o resultado fosse a constitucionalidade superveniente do ato impugnado na ação.
Com isso, não restam dúvidas de que os Estados não poderão utilizar as suas legislações antigas, que divergiam do entendimento do STF e consideradas inconstitucionais, para legitimar a cobrança futura do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Desta feita, os entes deverão editar novas leis para legitimar a incidência do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos.
Nesse sentido é a exposição de Leonardo Vieira:
Sobre o assunto, é importante lembrar que diversos entes federados já tinham em suas legislações previsões da incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Essas normas, no entanto, por mais que eventualmente não tivessem sido expurgadas do ordenamento jurídico diretamente por alguma espécie de ação de controle de constitucionalidade, eram naturalmente enfrentadas como inconstitucionais pelo entendimento do STF acima minudenciado.
Como se sabe, o ordenamento jurídico brasileiro, ao adotar a teoria da nulidade no controle de constitucionalidade, não admite a teoria da constitucionalização superveniente. Isso faz com que as legislações anteriores à reforma se mantenham inconstitucionais. Ou sejam, não podem, agora com a reforma tributária, serem “reaproveitadas". Deve o legislador local, portanto, editar norma posterior à reforma tributária prevendo a incidência do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos.
Há certo risco de o STF ter que se debruçar novamente sobre o tema, mas não se acredita que haverá a manutenção do entendimento anterior, porque a emenda da reforma tratou de trazer imunidades específicas, deixou clara a repartição no que tange às embarcações e aeronaves e, principalmente, porque o entendimento anterior do Supremo era já muito antigo e tinha embasamento muito mais histórico que jurídico.
Ante o exposto, chega-se à inarredável conclusão, considerando a rejeição da constitucionalidade superveniente das leis, que o aproveitamento das legislações estaduais anteriores à Reforma Tributária não é medida adequada. Devem os Estados, portanto, editarem novas leis para viabilizar a cobrança do IPVA sobre embarcações e aeronaves.
5.CONCLUSÃO
A matéria atinente ao aspecto material do IPVA é sensível e cara aos Estados. Considerando o caráter predominantemente fiscal do referido imposto, alterações relativas aos fatos geradores podem ensejar significativo aumento das receitas nos cofres públicos.
Dessa forma, o presente trabalho demonstrou que a Reforma Tributária, no que tange à possibilidade de tributação do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos, configurou verdadeira reação legislativa, pois tal incidência, nos termos da jurisprudência firmada pelo STF, era vedada. O entendimento antes adotado pela Corte Suprema, após a EC nº 132/2023, não subsiste.
Contudo, considerando a teoria da nulidade aplicada ao controle de constitucionalidade e a rejeição da constitucionalidade superveniente das leis, certo é que os Estados não poderão reaproveitar a sua legislação antiga para justificar a cobrança futura do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Será necessário que os entes procedam à edição de novas leis prevendo a incidência do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos.
6.REFERÊNCIAS
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Servidora pública do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG). Advogada. Pós-graduada em Direito Tributário. Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LADEIA, Maria Vitória de Resende. O impacto da reforma tributária sobre o aspecto material do IPVA Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2024, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/65371/o-impacto-da-reforma-tributria-sobre-o-aspecto-material-do-ipva. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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