RESUMO: Este artigo examina a revisão geral anual dos servidores públicos, conforme prevista no artigo 37, inciso X, da Constituição Federal. Analisamos a conformidade legal e constitucional das revisões salariais, destacando a necessidade de lei específica para a implementação de aumentos salariais, a importância da generalidade e isonomia, e os princípios fundamentais que orientam esses processos. Além disso, discutimos a jurisprudência relevante do Supremo Tribunal Federal (STF) e as implicações das decisões judiciais sobre o tema. Concluímos com uma análise das especificidades do caso da Agência Municipal de Regulação de Ariquemes (AMR), ilustrando as complexidades da aplicação prática desses princípios constitucionais.
Palavras-chave: Revisão Geral Anual, Servidores Públicos, Constituição Federal, Legalidade, Isonomia, Jurisprudência, AMR.
1. Introdução
A revisão geral anual dos vencimentos dos servidores públicos é uma garantia constitucional destinada a preservar o poder aquisitivo dos salários frente à inflação. Este estudo visa esclarecer os aspectos legais e constitucionais que regem essa revisão, com base na análise sobre a revisão salarial dos servidores da Agência Municipal de Regulação de Ariquemes (AMR).
2. Fundamento Constitucional da Revisão Geral Anual
Como mecanismo de recomposição inflacionária dos valores percebidos pelos servidores públicos e agentes políticos, a Constituição Federal preconiza, para além da reserva legal ao tema, a garantia de que isso se dê com periodicidade anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices. Vê-se, pois:
Constituição Federal
Art. 37. Omissis:
(...)
X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices.
(grifou-se e destacou-se)
3. Necessidade de Lei Específica
A mais importante alteração trazida a esse dispositivo pela Emenda Constitucional 19/1998 foi a exigência de lei específica para que se fixe ou altere a remuneração (em sentido amplo) dos servidores públicos.
Isso quer dizer que a alteração de remuneração de qualquer cargo público deverá ser feita por meio da edição de uma lei ordinária que somente trate desse assunto; a mesma lei pode cuidar da remuneração de um ou de mais de um cargo, ou ainda de todos os cargos do respectivo ente federado, como ocorre nos casos da revisão geral anual exigida pelo dispositivo constitucional ora em foco.
4. Generalidade e Isonomia na Revisão Geral
Quanto ao alcance do supracitado texto da Constituição da República, MARCELO ALEXANDRINO e VINCENTE PAULO (in Direito Administrativo Descomplicado. 25. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 363) ensinam, in verbis:
Embora a redação do inciso X do art. 37 não tenha usado o vocábulo “vencimentos”, convém anotar que este é frequentemente adotado para indicar a remuneração dos servidores estatutários que não recebem subsídio. Os “vencimentos”, nessa acepção, também constituem espécie do gênero “remuneração” (em sentido amplo). Eles são compostos pelo vencimento básico do cargo acrescido das vantagens pecuniárias de caráter permanente estabelecidas em lei. Não é raro, quando se esteja versando sobre servidores públicos estatutários, que a palavra “remuneração” seja usada em um sentido estrito, como sinônimo de “vencimentos”, conforme aqui definidos (para piorar, é comum, ainda, o termo “vencimento”, no singular, ser usado como sinônimo de “vencimento básico”).
Portanto, o enunciado do inciso X do art. 37, ao mencionar “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio”, está, na verdade, englobando as duas espécies remuneratórias que os servidores públicos estatutários podem perceber (vencimentos e subsídios). Não é alcançado pelo citado dispositivo constitucional o “salário”, nome dado ao pagamento de serviços profissionais prestados em uma relação de emprego, sujeita ao regime trabalhista, regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (os empregados públicos recebem salário).
A revisão geral tem o objetivo, ao menos teoricamente, de recompor o poder de compra da remuneração do servidor, corroído em variável medida pelo fenômeno econômico da inflação. Não se trata de aumento real da remuneração ou do subsídio, mas apenas de um aumento nominal - por isso, chamado, às vezes, “aumento impróprio”.
Deve restar claro que a revisão geral de remuneração e subsídio mencionada no dispositivo constitucional em exame não se implementa mediante a reestruturação de algumas carreiras. As reestruturações de carreiras não são “anuais” nem “gerais” (limitam-se a cargos específicos), além de não guardarem ligação lógica, sequer em tese, com a perda de valor relativo da moeda nacional; essas podem implicar, ou não, em aumento real da remuneração ou subsídio (quase sempre implicam).
Noutro giro, já a revisão geral, diferentemente das reestruturações de carreiras, tem que alcançar todos os servidores públicos estatutários de todos os Poderes do ente federado que a esteja implementando, e deve ocorrer a cada ano.
O autor JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (in Manual de Direito Administrativo, 14ª ed. rev. e ampl. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2005. p. 582) explica objetivamente a diferença ora tratada:
No que concerne ao realinhamento da remuneração dos servidores, cumpre distinguir a revisão geral da revisão específica. Aquela retrata um reajustamento genérico, calcado fundamentalmente na perda de poder aquisitivo do servidor em decorrência do processo inflacionário; esta atinge apenas determinados cargos e carreiras, considerando-se a remuneração pega às respectivas funções no mercado comum de trabalho, para o fim de ser evitada defasagem mais profunda entre as remunerações do servidor público e do empregado privado. São, portanto, formas diversas de revisão e apoiadas em fundamentos diversos e inconfundíveis.
(destaques no original)
A revisão geral pressupõe alguns requisitos particulares.
O requisito formal é a exigência de lei específica (reserva legal) para sua efetivação e pegamento (legalidade).
Há o requisito da generalidade, indicativo de que a revisão deverá ser geral, processando-se de forma ampla, em ordem a alcançar o universo integral dos servidores, incluindo-se, também, aqueles do Poder Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público.
Pelo requisito da anualidade, a revisão deverá ter periodicidade de um ano. E em relação a esse pressuposto, ressalte-se que cabe a cada ente federativo fixar o momento dentro do ano em que se dará a revisão. A anualidade é a periodicidade mínima, onde se infere que nada obsta a que a periodicidade seja menor.
Finalmente, impõe-se a presença do requisito isonômico, pelo qual se exige que sejam idênticos os índices revisionais.
5. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O c. STF entende (v. ADI 3.599 e ADI 2.061) que a lei de concessão da revisão geral anual é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo de cada ente, enquadrando-se, por simetria quando houver, no disposto no art. 61, §1º, II, alínea “a”, da Constituição Federal.
Anote-se que é pacífico na doutrina que a revisão geral anual, tal qual descrita na Carta Política, trataria-se de direito subjetivo dos servidores e obrigação imposta (por norma cogente preceptiva) ao gestor. Como exemplo, pede-se vênia para trazer trecho da lição de HELY LOPES MEIRELLES (in Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. Editora Malheiros. São Paulo: 2009. p. 490), o qual, citando o julgado pelo STF na ADI nº 2.061, defende a ligação entre o comando constitucional relativo à revisão geral e a irredutibilidade real das remunerações:
(...). A revisão já era prevista pela mesma norma na sua antiga redação, que, todavia, não a assegurava. Agora, no entanto, na medida em que o dispositivo diz que a revisão é “assegurada”, trata-se de verdadeiro direito subjetivo do servidor e do agente político, a ser anualmente respeitado e atendido pelo emprego do índice que for adotado, o qual, à evidência, sob pena de fraude à Constituição e imoralidade, não pode deixar de assegurar a revisão. Tais considerações é que nos levam a entender que, agora, a Constituição assegura a irredutibilidade real, e não apenas nominal, da remuneração. Este aumento não obsta, (...), ao aumento impróprio.
Ocorre, contudo, que o c. STF, no julgamento do RE 905.357/RR (tema 864), firmou tese em repercussão geral de que “a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos depende, cumulativamente, de dotação na Lei Orçamentária Anual e de previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias”.
Independente do tipo de revisão, se geral ou setorial, o gestor deve observar a regra disposta no art. 169, § 1º, da CF/88, no sentido de que a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, só poderão ser realizados se houver prévia dotação orçamentária e autorização específica na Lei de Diretrizes Orçamentárias e, no caso específico tratado no presente artigo, necessário também a previsão do índice na LOA.
Ressalte-se, também, que a decisão proferida no RE 565.089/SP pelo STF, fixou a seguinte tese de repercussão geral: “o não encaminhamento de Projeto de Lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos previsto no inciso X, do artigo 37, da Constituição Federal de 1988, não gera direito subjetivo a indenização”.
Direito constitucional e administrativo. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inexistência de lei para revisão geral anual das remunerações dos servidores públicos. Ausência de direito a indenização.
1. Recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, contra acórdão do TJ/SP que assentara a inexistência de direito à indenização por omissão do Chefe do Poder Executivo estadual quanto ao envio de projeto de lei para a revisão geral anual das remunerações dos respectivos servidores públicos.
2. O art. 37, X, da CF/1988 não estabelece um dever específico de que a remuneração dos servidores seja objeto de aumentos anuais, menos ainda em percentual que corresponda, obrigatoriamente, à inflação apurada no período. Isso não significa, porém, que a norma constitucional não tenha eficácia. Ela impõe ao Chefe do Poder Executivo o dever de se pronunciar, anualmente e de forma fundamentada, sobre a conveniência e possibilidade de reajuste ao funcionalismo.
3. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a fixação da seguinte tese: “O não encaminhamento de projeto de lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no inciso X do art. 37 da CF/1988, não gera direito subjetivo a indenização. Deve o Poder Executivo, no entanto, pronunciar-se de forma fundamentada acerca das razões pelas quais não propôs a revisão”.
(RE 565089, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 25/09/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 27-04-2020 PUBLIC 28-04-2020)
Insta ressaltar, com efeito, que a jurisprudência da Corte Suprema não aceita, há muito (vide RE 247.387/GO, no Informativo STF nº 257, de fevereiro/2002), que haja a vinculação da revisão geral a índices federais de correção monetária (ver Súmula 681, STF), e, muito menos, que haja a aplicação automática desse instituto de acordo com o tal índice.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.278/2004, DO ESTADO DE MATO GROSSO, QUE ESTABELCE A POLÍTICA DE REVISÃO GERAL ANUAL DA REMUNERAÇÃO E SUBSÍDIO DOS SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. VINCULAÇÃO AO ÍNDICE NACIONAL DE PREÇOS AO CONSUMIDOR – INPC, CALCULADO PELO IBGE. ATRELAMENTO REMUNERATÓRIO A ÍNDICE DE CORREÇÃO EDITADO POR ENTIDADE FEDERAL. CONCESSÃO DE REAJUSTE AUTOMÁTICO. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 37, XIII, DA CF, E DO ENUNCIADO DA SÚMULA VINCULANTE 42. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.
I - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi firmada no sentido de que é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies de reajuste para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público. Art. 37, XIII, da CF. Precedentes.
II - É inconstitucional a vinculação do reajuste de vencimentos de servidores estaduais ou municipais a índices federais de correção monetária por afrontarem a autonomia dos entes subnacionais para concederem os reajustes aos seus servidores. Súmula Vinculante 42. Precedentes.
III - Os dispositivos questionados promovem vinculações remuneratórias e, por isso, ensejam a concessão de reajustes automáticos, tão logo ocorra a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC, calculado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 8.278/2004, do Estado de Mato Grosso.
(ADI 5584, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 06/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-245 DIVULG 13-12-2021 PUBLIC 14-12-2021)
Nos termos da Súmula Vinculante 42, tem-se que “é inconstitucional a vinculação do reajuste de vencimentos de servidores estaduais ou municipais a índices federais de correção monetária”.
E essa regra vale, também, para a vinculação aos índices do salário mínimo, conforme consagra a histórica jurisprudência do c. STF.
6. A Revisão Geral Anual na Prática: O Caso da AMR
Eis o texto de lei que se pretende analisar, in totum:
LEI MUNICIPAL Nº 2.603/21, DE DEZEMBRO DE 2.021.
DISPÕE SOBRE A CONCESSÃO DE CORREÇÃO AOS VENCIMENTOS DOS SERVIDORES PÚBLICOS NOMEADOS NA AGÊNCIA MUNICIPAL DE REGULAÇÃO, PARA RECOMPOSIÇÃO DA DEFASAGEM INFLACIONÁRIA ANUAL, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
Art. 1º Para recomposição da defasagem inflacionária do valor dos vencimentos dos servidores municipais ativos da Agência Municipal de Regulação, referente ao período de 2017 a 2020, ficam corrigidos os vencimentos dos cargos, com base no reajuste do salário mínimo vigente no país, na forma estabelecida no Anexo I desta Lei.
Art. 2º As despesas decorrentes desta Lei correrão por conta das dotações próprias do orçamento vigente que, se necessário, poderão ser suplementadas mediante Decreto do Executivo.
Art. 3º Fica determinado que no mês de janeiro de cada ano, haverá correção nos salários dos servidores da Agência Municipal de Regulação, conforme índice do INPC acumulado do exercício anterior.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação revogando as disposições contrárias, em especial o valor das remunerações dos cargos constantes no ANEXO I da Lei Municipal nº 1.991/2016.
Verifica-se que, muito embora a intenção do legislador da Lei Municipal 2.603/2021 pareça ter sido conceder revisão geral pelo o uso de expressões como “recomposição da defasagem inflacionária” e “corrigidos os vencimentos dos cargos” (art. 1º, caput, Lei Municipal 2.603/2021), aquele diploma acabou por trazer verdadeiro reajuste a servidores específicos.
A despeito de a norma haver materializado a revisão geral anual a todos os servidores efetivos do município, observa-se que a lei municipal não foi de caráter universal a abranger igualmente os servidores comissionados, violando-se, em tese, os arts. 5º e 37, X, ambos da Constituição da República.
Apesar da pretensão ter como objetivo a concessão de reajuste remuneratório, que se direciona a reengenharia ou revalorização de carreiras específicas, mediante reestruturações de tabela e, por isso, não dirigida a todos os servidores públicos, o que de fato restou materializado no texto da lei foi a concessão de revisão geral anual, a qual tem natureza genérica, provocada pela alteração do poder aquisitivo da moeda, cujo aumento, portanto, deveria ter sido estendido a todos os servidores, independentemente da classe, pois o objetivo é manter o equilíbrio da situação financeira.
O art. 37, X, da Constituição, corolário do princípio fundamental da isonomia, não é, porém, um imperativo de estratificação da escala relativa de remuneração dos servidores públicos existentes no dia da promulgação da Lei Fundamental: não impede, por isso, a nova avaliação por lei, a qualquer tempo, dos vencimentos reais a atribuir a carreiras ou cargos específicos, com a ressalva única da irredutibilidade. (...) Constitui fraude aos mandamentos isonômicos dos arts. 37, X, e 39 e § 1º da Constituição a dissimulação, mediante reavaliações arbitrárias, de verdade do simples reajuste monetário dos vencimentos de partes do funcionalismo e exclusão de outras. (...) Plausibilidade da alegação de que, tanto a regra de igualdade de índices na revisão geral (CF, art. 37, X), quanto as de isonomia de vencimentos para cargos similares e sujeitos a regime único (CF, art. 39 e § 1º) não permitem discriminação entre os servidores da administração direta e os das entidades públicas da administração indireta da União (autarquias e fundações autárquicas).
(ADI 525 MC, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 12-6-1991, P, DJ de 2-4-2004)
Sobre este ponto, cumpre conferir: ARE 672.424 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 27-3-2012, 2ª T, DJE de 12-4-2012; e ARE 672.428 AgR, rel. min. Rosa Weber, j. 15-10-2013, 1ª T, DJE de 29-10-2013.
Como visto em linhas transatas, a revisão geral não pode ser destinada a alguns servidores apenas, mas, in casu, a Lei Municipal 2.603/2021 dá a recomposição das remunerações apenas aos servidores ocupantes dos cargos em comissão da AMR, ignorando-se, indevidamente, os cargos efetivos integrantes daquele quadro.
Desta feita, diante da impossibilidade de se outorgar interpretação diversa ao texto da lei, bem como a impossibilidade de se determinar aumento de vencimento a servidores públicos da mesma entidade política sob o fundamento de isonomia (Súmula Vinculante 37 do STF), vislumbra-se que a Lei Municipal 2.603/2021, aparentemente, está acoimada de inconstitucionalidade.
Observa-se a existência de inconstitucionalidade também na vinculação daquela concessão legal ao “reajuste do salário mínimo vigente no país” (ver art. 1º, caput, Lei Municipal 2.603/2021), em contrariedade à ampla jurisprudência do STF sobre esse assunto.
7. Da Lei Municipal 2.603/2021 e sua Interpretação Conforme a Constituição Federal para preservar sua higidez.
Mesmo diante das inúmeras irregularidades e inconstitucionalidades encontradas na Lei Municipal 2.603/2021, faz mister sopesar a possibilidade de manutenção de sua vigência e eficácia.
Voltado à segurança jurídica e à eficiência administrativa, sobretudo para proteger o jurisdicionado de incertezas e custos excessivos, o princípio da consequencialidade indica que a manutenção dos atos administrativos no mundo jurídico, quando questionados, deve passar por um juízo de valor de razoabilidade e de proporcionalidade que leve em consideração as consequências jurídicas e administrativas dessa decisão, com o fito de ponderar os riscos e efeitos positivos e negativos disso.
A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), com as alterações trazidas pela Lei nº 13.655/2018, traz em seu art. 20 usque art. 30 esses novos paradigmas de Direito Público, de observância cogente.
O princípio da consequencialidade está positivado no texto do art. 21, da LINDB, in verbis:
Decreto-Lei nº 4.657/1942
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Calçado na segurança jurídica, e no princípio da confiança, os objetivos das disposições legais transcritas acima são: a) aprimorar a qualidade decisória dos órgãos administrativos, de controle ou judicial no nível federal, estadual ou municipal, ao concretizar a motivação decisória e ao definir balizas à interpretação e a aplicação de normas sobre gestão pública; b) estabelecer um regime para que as negociações entre autoridades públicas e particulares contenham transparência, e eficiência, por permitir o diálogo; c) admitir a responsabilidade subjetiva do agente público que atuar dolosamente ou cometer erro grosseiro.
E dentro desses critérios estabelecidos no art. 21 da LINDB e, pautando-se na realidade dos fatos, entende-se que a manutenção da lei municipal no ordenamento jurídico protegerá a boa-fé existente entre o poder público municipal e os administrados (servidores públicos), sem deixar de considerar a situação fática existente à época e que deu ensejo à edição da lei municipal, cujo reajuste salarial concedido fortalece a orientação de salvaguardar as situações jurídicas já consolidadas (segurança jurídica), pois negar a sua executoriedade - depois de quase um ano de vigência - significaria, em última consequência, a anulação de todos os pagamentos dos salários dos servidores da AMR no ano de 2022.
Há muito, a doutrina de Direito Administrativo debate a legitimidade dos atos administrativos, em interpretação global, notadamente em nível principiológico, do ordenamento jurídico (bloco de legalidade).
MARCELO ALEXANDRINO e VINCENTE PAULO (in Direito Administrativo Descomplicado. 25 ed. rev. e atual.. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 234) ressalvam o que diferencia, dentro do raciocínio do princípio da legalidade administrativa, a atuação legal e a atuação legítima da Administração:
Por vezes, ainda, os autores diferenciam atuação legal de atuação legítima, adotando a primeira expressão para assinalar que a administração agiu de acordo com as disposições de uma lei formal, ou de um ato com força de lei, tal como uma medida provisória, e a segunda para indicar que a administração procedeu em conformidade com os princípios jurídicos, ou, em um sentido mais amplo, com o ordenamento jurídico globalmente considerado.
Assim, em situações que conduzem à invalidação do ato, contrato, ajuste, processo, norma administrativa, e por analogia qualquer lei em sentido amplo, é pacífico quer na doutrina ou na jurisprudência, que a decisão deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
E na hipótese em apreço, é certo que a retirada da Lei Municipal nº 2.603/2021 do ordenamento jurídico, por estar aparentemente acoimada de vício de inconstitucionalidade, trará consequências gravosas aos servidores da Agência Municipal de Regulação de Ariquemes, mormente pelo fato das situações já estarem constituídas há quase um ano e seu desfazimento representar a anulação de todos os pagamentos de remunerações de todo corrente ano.
Com efeito, justifica-se ser mais apropriada a hipótese de se outorgar interpretação conforme a Constituição Federal, para manter a higidez da norma municipal e, com isso, evitar o real e possível agravamento das situações fáticas consolidadas se, eventualmente, reconhecida a negativa de sua executoriedade e/ou sua inaplicabilidade com efeitos ex nunc.
8. Considerações Finais
A revisão geral anual é um mecanismo constitucional essencial para a preservação do poder aquisitivo dos servidores públicos. A exigência de lei específica, a observância da generalidade e da isonomia, e o respeito aos princípios da legalidade e da reserva legal são fundamentais para a sua implementação. A análise do caso da AMR destaca a importância de uma gestão transparente e conforme a lei, ilustrando as complexidades da aplicação prática desses princípios constitucionais. O futuro da revisão geral anual depende de uma contínua adequação das práticas administrativas aos preceitos legais, promovendo justiça e eficiência na administração pública.
Referências
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
Supremo Tribunal Federal. RE 905.357/RR (Tema 864).
Supremo Tribunal Federal. RE 565.089/SP.
Constituição Federal de 1988.
Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal e Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BOTELHO, JOSE EDUARDO RODRIGUES. A Revisão Geral Anual dos Servidores Públicos e a Conformidade Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2024, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/65716/a-reviso-geral-anual-dos-servidores-pblicos-e-a-conformidade-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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