Resumo: Este artigo analisa a questão do direito adquirido no contexto urbanístico, especialmente no que tange à licença de uso de lotes urbanos após alterações legislativas. São examinados os fundamentos teóricos e jurisprudenciais acerca da existência ou não de direito adquirido e a possibilidade de dever de indenização em casos concretos.
Palavras-chave: Direito Adquirido, Licença de Uso, Direito Urbanístico, Alteração Legislativa, Indenização.
Introdução
O estudo dedica-se à análise do direito adquirido em matéria urbanística, considerando a proteção constitucional e os desafios decorrentes de alterações legislativas que impactam o uso de lotes urbanos. A questão central é a existência de direito adquirido em favor do particular titular de licença de uso, bem como a possibilidade de indenização em casos de alteração normativa que prejudique tais direitos.
1. Primeiras Balizas Teóricas
A Constituição da República, no art. 5°, inciso XXXVI, dispõe que a lei não prejudicará o direito adquirido. Alçou-se, assim, o direito adquirido à condição de direito fundamental. No entanto, a Constituição não define o que se entende por direito adquirido.
A lei de introdução às normas do direito brasileiro estabelece em seu artigo 6°, § 2° que se considera adquirido “os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
A definição legal, porém, é lacônica, não solucionando os inúmeros conflitos decorrentes de sucessão de leis no tempo.
A questão se agrava no âmbito do direito urbanístico, pois aqui a legislação tenta acompanhar a intensa dinamicidade dos problemas urbanos surgidos com o desmesurado crescimento das cidades. Ademais, o próprio Estatuto da Cidade determina que o plano diretor seja revisto, pelo menos, de 10 em 10 anos, o que confirma a instabilidade das normas do plano diretor em relação aos problemas que tenta contornar.
Em verdade, instáveis não são as normas do plano, mas sim a realidade urbanística regulada nos planos diretores.
Não se pode também descurar da realidade do planejamento urbano. Todo planejamento é transitório. A efemeridade é uma nota peculiar do planejamento, de modo que executado o que se planejou, ou detectada a impossibilidade de sua execução, torna-se inexorável a realização de novo planejamento. Essa realidade deve ser equacionada pelo direito.
O direito adquirido é tido por parte da doutrina como uma técnica utilizada pela Constituição para limitar a retroatividade das leis. Assegura-se, assim, que a lei nova não atinja os fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor.
Esta é uma máxima decorrente do princípio da segurança jurídica. A lei vige para o futuro, somente retroagindo ou tendo ultra-atividade quando expressamente assim o declare. A segurança jurídica garante estabilidade às relações sociais.
A questão central aqui é desvendar o momento a partir do qual o patrimônio jurídico do cidadão fica infenso às mudanças legislativas futuras. Grande parte da doutrina considera o direito como adquirido quando integrado ao patrimônio de uma dada pessoa, constituindo um bem próprio. Essa constatação não soluciona a questão do momento a partir do qual o direito se incorpora ao patrimônio jurídico da pessoa[i].
Assim, embora a Constituição preserve o direito adquirido, o momento de sua constituição é definido a partir da análise da legislação ordinária. Há que se buscar nas normas do direito urbanístico infraconstitucional o fato que, quando realizado, torna o patrimônio jurídico do particular contrário às alterações legislativas introduzidas pela edição de novo plano diretor.
No domínio do direito urbanístico é preciso distinguir o “direito adquirido” da “expectativa do direito”. O parcelamento, a ocupação e o uso do solo urbano somente são admitidos após a concessão da licença respectiva pelo poder público municipal. A licença urbanística não é concedida por meio de ato administrativo isolado, mas sim no curso de um processo administrativo formal.
Desse modo, para verificar se o cidadão tem direito adquirido ou mera expectativa de direito é preciso analisar o processo administrativo de licenciamento urbanístico.
Segundo o constitucionalista Kildare Gonçalves Carvalho (in Direito Constitucional, Belo Horizonte, 14ª edição, editora Del Rey, 2008, p. 747), a expectativa de direito se verifica quando o direito ainda está em formação, ou seja, quando iniciado o processo tendente à consolidação do direito ainda não tenha ocorrido o fato jurídico que o constitui:
Direito adquirido não se confunde com expectativa de direito, que se verifica quando o direito ainda se acha em formação, e se constitui somente com o advento de seu último elemento. O que não pode ser atingido pela lei nova é o direito adquirido e não o direito em potência: não há falar em direito adquirido a adquirir direito. Enquanto o direito adquirido integra o patrimônio, a expectativa do direito depende de um acontecimento futuro para poder constituir um direito.
Verifica-se, com efeito, que a diferença substancial entre expectativa de direito e direito adquirido está na existência, em relação a este, de fato aquisitivo específico já configurado por completo.
Para se verificar o momento do processo administrativo de licenciamento urbanístico em que se tem por constituído o direito é preciso fazer breve distinção entre as três clássicas operações do direito urbanístico referidas no art. 30, inciso VIII, da CF, a saber, o parcelamento, a ocupação e o uso do solo urbano.
Nesta seara, em qualquer dessas operações é importe registrar que a função social da propriedade é, extreme de dúvida, um conceito inafastável para a definição da existência, ou não, de direito subjetivo do particular. Isso, porque a Constituição da República, além de definir o plano diretor como instrumento básico da política urbana, acrescentou que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências do plano diretor (ver art. 182, §2°, da CF).
O uso refere-se à destinação que pode ser dada à edificação por seu proprietário.
A classificação de usos que mais interessa para o estudo do direito adquirido no domínio do direito urbanístico é a que divide o uso em conforme e desconforme.
Uso conforme é aquele que está em consonância com a lei vigente no momento de sua implantação. O uso conforme não oferece qualquer dificuldade no que toca à questão do direito adquirido, ou o particular instala as atividades previstas em lei como permitidas para a região, ou terá negada a licença para funcionamento. O princípio da legalidade é suficiente para definir eventuais divergências surgidas no campo do uso conforme.
A questão reveste-se de maior dificuldade quando o uso que vinha sendo dado à propriedade sob o manto de uma lei, passa a não mais ser admitido a partir da entrada em vigor de novo diploma legal. Neste caso, o uso conforme se transforma em uso desconforme.
A forma como o direito trata essa desconformidade gerada pela sucessão de leis no tempo é objeto deste artigo.
Surge, então, a necessidade de saber se o proprietário tem direito adquirido a continuar no exercício da atividade na forma como preconizado pela lei anterior já revogada; em outras palavras, é preciso investigar se o uso que se dá à propriedade está em conflito com as mudanças legislativas, ou se a Administração pode exigir que a atividade seja exercida em outra região da cidade.
Há discussão na doutrina especializada quanto à “tolerância do uso desconforme” (excepcionalidade comumente prevista em leis municipais Brasil afora), o que haveria de se dar de forma precária.
Ora, esse regime de precariedade é incompatível com o direito adquirido, pois este, quando incorporado ao patrimônio jurídico de seu titular, pode ser exercido sem necessidade de tolerância de terceiros.
Com efeito, caso se admita que a manutenção do uso instalado sob a égide do regime anterior se encontra dentro do âmbito do direito adquirido do particular, ter-se-ia que entender que o regime de tolerância do uso desconforme é incompatível com a Constituição.
2. Entendimento Jurisprudencial Dominante
A jurisprudência dominante no direito brasileiro, construída a partir do julgamento de precedente no âmbito do c. Supremo Tribunal Federal, no RE 85.002/SP (leading case), tem entendido que o direito adquirido à utilização dos parâmetros urbanísticos previstos na lei anterior se dá com o início da obra na forma do projeto aprovado pela Administração.
Segundo esse entendimento supracitado, após iniciada a construção - não haveria mais de se falar em direito de construir, mas sim em direito de propriedade -, o proprietário teria direito adquirido sobre o construído, não mais podendo ser atingido por legislação nova que venha regular o direito de construir de forma diversa.
O c. STF enfrentou novamente a questão no RE n° 90.059-4/SP, sufragando, mais uma vez, a tese da constituição do direito de construir a partir do início da obra aprovada.
No julgamento do RE n° 85.002/SP e do RE n° 90.059-4/SP o STF não levou em consideração o fato de a nova lei ter ressalvado expressamente a aplicação da lei em vigor no momento do protocolo do pedido de licença para construir. Ao que parecia, independentemente da regulamentação do direito intertemporal contida na nova lei, o direito adquirido somente se constituiria a partir do início da obra. Essa interpretação decorreria da visão do STF do direito de construir como faculdade jurídica exercitável a partir da emissão da licença, podendo esta ser retirada do mundo jurídico até o início efetivo da construção licenciada, fixando a partir desse momento a transformação da faculdade jurídica do direito de construir em direito de propriedade sobre o construído.
Ocorre que no RE n° 93.108/SP o STF entendeu que a Administração poderia retirar a licença já concedida quando não iniciada a obra com fundamento na entrada em vigor de novo regime jurídico urbanístico incompatível com a licença já concedida. No entanto, não poderia indeferir o pedido de licença com base neste mesmo entendimento.
O mesmo entendimento acolhido no RE n° 93.108/SP foi adotado no julgamento do RE n° 88.472-2/SP.
Embora o c. STF tenha decidido pela inexistência de divergência entre o RE n° 85.002/SP e o RE 88.472-2/SP, a discrepância entre as teses vencedoras nos dois julgados mostrou-se notória. Em um decidiu-se que o direito de construir de acordo com os parâmetros urbanísticos previstos no regime jurídico anterior se constitui a partir do início da obra (RE n° 85.002/SP), em outro se assegurou esse mesmo direito a partir do protocolo do pedido de licença para construir, declarando-se a constitucionalidade de lei local que dispunha nesse sentido.
Os quatro recursos extraordinários aqui estudados são oriundos de mudança no ordenamento jurídico ocorrida no Município de São Paulo/SP, de sorte que nos recursos em que imperou a tese da constituição do direito adquirido a partir do início da obra também existia norma que determinava a aplicação da lei em vigor no momento do protocolo do pedido de licença para construir.
Nesse caminho, o c. STF entendeu que a licença não poderia ser indeferida ao fundamento da existência de nova lei incompatível com o pedido formulado, pois o interesse público na aplicação da lei antiga (lei existente no momento do protocolo do pedido de licença) já havia sido apreciado quando da edição da lei nova. Em suma, o STF passou a admitir a extinção da licença desde que não iniciada a obra, mesmo a lei nova assegurando direitos a partir do protocolo do pedido de licença, mas não admitia o indeferimento do pedido de licença já formulado com fundamento na existência de novo regime jurídico em vigor no momento da apreciação do pedido da licença.
Após a promulgação da Constituição de 1988 a jurisprudência do STF continuou trilhando a mesma senda. O primeiro caso enfrentado pelo STF após a promulgação da CR foi o RE 188.226/RJ.
Dois outros julgados, ambos do ano de 1999, dão a perfeita noção do entendimento da jurisprudência do STF sobre o tema do direito adquirido no âmbito do direito urbanístico.
No RE 178.836/SP, relator Ministro Carlos Veloso, o proprietário alegou que adquiriu imóvel com a intenção de construir edifício residencial. No entanto, após a aquisição, o Município de Ribeirão Preto/SP editou a lei municipal n° 5.685/90, transformando a área em que se localizava a propriedade em um “corredor comercial”. Logo, a lei municipal transformou o uso da região de misto em exclusivamente comercial. A licença para construir foi indeferida com base na incompatibilidade entre o pedido administrativo formulado e o uso previsto na legislação local. O proprietário aduziu que o memorial do loteamento da gleba previa que os lotes seriam de uso exclusivamente residencial.
O Ministro relator, não obstante de modo subliminar, entendeu que a convenção estabelecida quando do parcelamento do solo urbano não vinculava o legislador municipal. Logo, nada impedia a edição de lei nova que alterasse parâmetros urbanísticos previstos no memorial descritivo do loteamento constante dos processos administrativos de parcelamento do solo.
Certo é que o STF não decidiu acerca da validade de convenções urbanísticas particulares instituídas quando do parcelamento do solo em relação à lei nova. Limitouse, apenas, a destacar que, quando da formulação do pedido administrativo de licença para construir, já havia sido editada nova lei urbanística que alterava o regime jurídico urbanístico da região em que se localizava a propriedade do recorrente. O caso então não era de conflito de leis no tempo, e sim uma mera questão de legalidade.
Por fim, o RE n° 212.780/RJ, relator Ministro Ilmar Galvão, refere-se ao íntimo liame existente entre o parcelamento e a ocupação do solo urbano para fins de construção. Neste caso, o proprietário havia parcelado a gleba e inscrito no registro imobiliário os parâmetros urbanísticos relativos aos lotes originários do loteamento.
Argumentou o particular a existência de direito adquirido à utilização dos parâmetros urbanísticos contidos no registro do imóvel, ressaltando que as obras de infraestrutura urbana implantadas no local pelo empreendedor privado são proporcionais aos índices urbanísticos previstos no zoneamento urbano.
O c. STF decidiu o caso com base no antigo leading case julgado em 1976 (RE 85.002/SP), segundo o qual a licença deferida implica mera faculdade jurídica de exercício do direito de construir, sendo o direito cristalizado no patrimônio jurídico do proprietário apenas a partir do início da obra. No contexto fático daquele decisum, como o particular havia parcelado o solo urbano, mas não havia, ainda, licenciado a construção de unidades habitacionais nos lotes e iniciado as obras eventualmente licenciadas, não se haveria falar em direito adquirido.
A jurisprudência dos tribunais de justiça estaduais caminhou, quase em uníssono, no mesmo sentido do precedente de referência do STF (direito adquirido a construir de acordo com os parâmetros urbanísticos da lei revogada a partir do início da execução do projeto aprovado, ficando a cargo do Poder Executivo local definir o que se entende por início de obra - RE 85.002/SP). Alguns julgados isolados decidiram que a constituição do direito se opera a partir da concessão da licença e outros se limitam a referendar o disposto nas legislações municipais sobre o tema, não adentrando na constitucionalidade da opção realizada pelo legislador local.
3. Licenças Urbanísticas e Direito Adquirido
O ordenamento do território se dá a partir do controle destas operações. Por seu lado, cada operação origina uma licença urbanística específica. Assim, tem-se a licença urbanística de parcelamento do solo urbano; a licença urbanística para construir no solo urbano (ocupação) e a licença urbanística para o exercício de atividade no solo urbano (licença para funcionamento de atividade empresarial).
Pode-se então afirmar que a licença urbanística é o gênero, do qual são espécies: a licença para parcelar, a licença para construir e a licença de uso.
É ressabido que a licença é um ato praticado no exercício de competência vinculada conferida por lei à Administração Pública. No exercício dessa competência não goza a Administração de liberdade de atuação, pois a lei faz definição adrede de elementos que, configurados, impõem à Administração o dever de praticar o ato.
A tipicidade aqui é fechada, no sentido de que ao administrador cumpre apenas avaliar se o requerente da licença urbanística cumpriu os ditames previstos na norma legal.
Ao decidir o pedido de licença urbanística a Administração faz o cotejo entre o pedido apresentado e os parâmetros urbanísticos definidos em lei. Não pode avaliar se a concessão da licença é oportuna ou conveniente. Do mesmo modo que não tem o poder de concedê-la quando ausentes quaisquer dos pressupostos legais.
Não à toa, afirma-se que a licença urbanística é considerada ato vinculado[ii] e definitivo, gerando para o licenciado direitos subjetivos.
Ao lado do caráter vinculado das licenças urbanísticas, é de se destacar que o direito de construir é uma decorrência do direito de propriedade de estatura constitucional.
O direito de construir encontra-se em alto grau de generalidade e abstração, enclausurado na Constituição no art. 5°, XXII, que garante o direito de propriedade. O grau de generalidade e abstração é mitigado a partir da edição do plano diretor e da lei de parcelamento, ocupação e uso do solo pelo Município.
Nesse momento, definem-se os parâmetros urbanísticos das propriedades urbanas. Até essa fase, o direito de construir ainda é potencial. O proprietário somente pode fazer intervenções na propriedade após a obtenção da respectiva licença.
A licença urbanística se põe como o ato administrativo que empresta efetividade ao direito de construir. Esse é ato que reconhece o direito de construir previamente contido na Constituição e normas urbanísticas. É o ato que transforma o direito de construir potencial em direito de construir real.
Em razão dessas singulares características, nomeadamente por ser um ato que confere efetividade a um direito fundamental previsto na Constituição, é que entende-se que a licença urbanística é o marco na definição da constituição do direito adquirido em matéria de direito urbanístico.
A justa ponderação na instituição do regime de direito intertemporal no direito urbanístico brasileiro demanda a suspensão dos processos administrativos tendentes à concessão de licenças urbanísticas no curso do procedimento de elaboração/revisão de planos diretores (decorrência do princípio do planejamento urbano implícito na Constituição e explícito na legislação infraconstitucional).
Alia-se a esse entendimento a impossibilidade de declaração de decaimento ou de revogação das licenças já concedidas, pois já configurado o direito adquirido. Em homenagem ao interesse público superveniente, admite-se a retirada da licença do mundo jurídico mediante expropriação de direitos.
Ao definirmos a licença como marco para constituição de direito no plano do direito urbanístico, esta-se a afirmar que tanto as licenças para edificar, quanto as licenças para parcelar o solo estão amparadas pelo direito adquirido. Nesse sentido, caso a Administração queira declarar sem efeito uma licença para parcelamento do solo deverá, do mesmo modo que se passa com as licenças para edificar, usar o procedimento expropriatório supracitado.
Não se pode deixar de afirmar que esse entendimento é um corolário do princípio da segurança jurídica.
Não se pretende adentrar neste artigo no tocante ao conflito entre o entendimento aqui advogado (reconhecimento do direito adquirido a partir da expedição da (s) licença (s)) e a jurisprudência consolidada no âmbito do c. STF (reconhecimento do direito adquirido a partir do início das obras), porque tal realidade se dá somente na seara das licenças para parcelar o solo e nas licenças para construir; o que não se coaduna com o caso em tela (licença para uso).
A advogar pelo entendimento de que as licenças para parcelar e para construir estão amparadas pelo instituto do direito adquirido, tem-se na doutrina valiosos estudos acerca desse tema.
MÁRCIA WALQUIRIA BATISTA (in Licença Urbanística, São Paulo, Malheiros Editores, 2001, p. 131), em tese de doutoramento defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, intitulada Licença Urbanística, defendeu o caráter vinculado e declaratório da licença. Nesse caminhar, cumpridos os requisitos contidos legais para obtenção da licença, deve a Administração expedi-la. No que toca ao momento de aquisição do direito, a autora filia-se à posição do STF, entendendo, então, que pode ser decretado o decaimento da licença até o momento anterior ao início da obra:
Assim, para nós, é possível falar em revogação da licença até o momento do início das obras, exatamente como até então tem se posicionado o Supremo Tribunal Federal. Com o início das obras, considera-se adquirido o direito do titular da licença, cabendo apenas a invalidação da licença por vício de ilegalidade, o que, obviamente, não é a mesma coisa que revogação (por motivo de conveniência e oportunidade). De qualquer forma, mesmo que não possa revogar a licença, a Administração conta com a desapropriação, devendo, neste caso, pagar justa e prévia indenização ao proprietário do imóvel.
JOSÉ AFONSO DA SILVA (in Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo, editora Malheiros, 5ª edição, 2008, p. 304) distingue a edificação licenciada, mas não iniciada; a edificação licenciada já iniciada; a edificação concluída, sem “habite-se”; e a edificação concluída, com “habite-se”, para concluir que o direito subjetivo público se transforma em direito adquirido, quando a edificação encontra-se já concluída, mas sem o “habite-se”, é dizer, sem a certificação final de que a obra foi concluída nos termos da licença concedida.
Antes de esposar seu entendimento, aquele autor faz ponderações e críticas ao leading case do STF sobre o assunto para, por fim, expor sua posição. Vê-se, pois, in verbis:
Vamos, aqui, examinar esses aspectos da licença apenas no que reporte ao problema do direito adquirido à implantação da edificação licenciada, porque o estudo da licença em sua problemática teórica mais aprofundada será objeto de consideração quando formos tratar da ordenação da atividade edilícia. (...) Anteriormente fizemos referência ao v. acórdão prolatado pelo STF no julgamento do RE 85.002, que decidiu no sentido de que, nesse caso, se verifica o direito adquirido à conclusão da obra já iniciada, pois, iniciada a construção, a questão deixa de ser direito de construir, para transformar-se em direito de propriedade. Permitimo-nos ponderar, contudo, que essa tese de que a obra apenas iniciada já caracteriza o direito de propriedade encontra graves dificuldades para sustentar-se, pois admitir isso seria concluir que o exercício do direito de construir pela edificação já se esgotara.
(...)
Diferente parece-nos a situação em que a obra já está concluída, dependente apenas do termo de conclusão ou do ‘habite-se’, porque em tal caso já nasceu, sim, o direito de propriedade sobre o produto do exercício do direito de construir, e, então, sobrevindo lei nova que mude a situação, temos para nós que ocorre direito adquirido ao termo de conclusão ou ‘habite-se’ desde que a construção tenha atendido às regras da lei revogada. Se a municipalidade, nessa situação, julgar inconveniente a manutenção da edificação desconforme, e não havendo meio de adequá-la às novas exigências, às suas expensas, querendo o proprietário, terá que desapropriá-la por necessidade pública.
Cumpre observar, com efeito, que os entendimentos doutrinários ora citados dizem respeito, especificamente, às atividades urbanísticas de parcelamento e construção.
A professora Lúcia Valle Figueiredo (in Disciplina Urbanística da Propriedade, São Paulo, 2ª edição, Malheiros editores, 2005, pp. 159/160) entende que o momento de constituição do direito adquirido é a obtenção da licença urbanística pelo interessado. A autora somente empresta relevo à distinção entre o início ou não da obra para fins do cálculo da indenização devida pela Administração, pois a obra já iniciada importa em maiores custos ao particular:
De logo, devemos estabelecer a partir de que momento a licença para edificar integra-se ao patrimônio individual, configurando o contorno do direito adquirido. Entendeu o STF que, uma vez iniciada a obra, o impasse encontrar-se-ia solucionado. Impende, todavia, verificar se, abrigados pelo Texto Constitucional o direito adquirido e o ato jurídico perfeito (art. 5°, inc. XXXVI), pode haver relevância jurídica entre o deferimento da licença a que se seguiu o início da construção ou o deferimento sem que a construção haja, ainda, sido iniciada. Afigura-se-nos deva-se entender que, iniciada a construção, a oscilação do quantum debeatur será cada vez maior, na medida em que a obra prossiga. Mas, de fora parte a questão do quantum indenizatório, a ser apurado em prova pericial, não vemos qualquer conseqüência jurídica diversa na hipótese na hipótese de estar iniciada ou não a obra. (...) A se entender que, como limite à revogação, encontra-se o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, expedida a licença, incorporou-se esta ao direito de propriedade do indivíduo.
Extreme de dúvida que o reconhecimento do direito adquirido em matéria urbanística é absolutamente possível e goza de juridicidade, especificamente no caso de licença para parcelar o solo e no caso de licença para construir, conforme concebem a doutrina e a jurisprudência nacionais.
4. Direito Adquirido, Licença de Uso e Uso em Desacordo com a Norma
Já se versou que para o estudo do direito adquirido no âmbito do direito urbanístico é preciso fazer distinção entre as atividades urbanísticas de parcelamento, ocupação (edificação) e uso do solo urbano, tal como o faz a Constituição em seu art. 30, inciso VIII.
As licenças para parcelamento e edificação extinguem-se com o cumprimento de seu objeto ou com a caducidade (perda do prazo para cumprimento de seu objeto). Geralmente, admite-se apenas uma renovação dessas licenças.
Ao reverso, a licença de uso é de renovação constante. As legislações municipais geralmente determinam que o alvará (instrumento da licença) deva ser renovado anualmente pelo interessado. Essa é uma peculiaridade que o intérprete não pode desconsiderar.
A doutrina faz distinção entre o uso conforme e o uso desconforme para delimitar as fronteiras do tema. O uso conforme é aquele admitido pelos planos urbanísticos. O uso desconforme é aquele contrário ao ordenamento jurídico urbanístico. A questão posta desta forma mostra-se singela. As leis municipais dividem o território em zonas. Para cada zona institui-se um grupo de usos admitidos.
Assim, no momento da concessão da licença, a Administração Pública apenas verifica se o uso pretendido enquadra-se na classificação previamente efetuada na lei.
A questão ganha contornos diferenciados quando há mudança legislativa, e o uso que se afigurava conforme o plano urbanístico passa a ser enquadrado como uso desconforme. Surge então a questão de saber se o particular tem direito adquirido à renovação de sua licença após a mudança legislativa.
É certo que nossa Constituição garante o direito à livre iniciativa em seu art. 170, caput. Entretanto, esse direito fica condicionado à observância de restrições infralegais impostas em benefício do interesse público. Assim, quando a Administração impõe restrição ao exercício de determinada atividade em uma dada região do Município, não veda o exercício dessa mesma atividade em outras zonas de seu território.
Logo, caso a lei nova não admita determinado uso em uma região, pode o particular deslocar esse mesmo uso para outra área do Município. JOSÉ AFONSO DA SILVA (in Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo, editora Malheiros, 5ª edição, 2008, p. 301) bem salienta que “o uso é mutante, dinâmico, pode ser deslocado facilmente pelo território urbano”.
De acordo com a lição desse doutrinador, não se pode falar em direito adquirido ao uso, pois a mesma atividade pode ser exercida em outra zona do Município. Obviamente, deverá a Administração indenizar o proprietário pelos prejuízos decorrentes da medida adotada em nome do interesse coletivo.
Com efeito, qualquer opção urbanística adotada pelo plano diretor somente se sustenta quando fundamentada tecnicamente. Assim, deve a Administração demonstrar por meio de estudos técnicos que os usos permitidos para uma determinada zona são compatíveis com suas características, a saber, de ocupação, de tráfego de pessoas e veículos, de acesso a saneamento básico e água tratada, meio ambiente equilibrado, existência, ou não, de equipamentos públicos etc.
Não se pode falar, então, em presunção absoluta de compatibilidade das alterações do zoneamento com o interesse coletivo.
O caráter de periodicidade da renovação da licença de uso também confirma a ausência do direito adquirido ao uso desconforme. Ora, um dos motivos para a exigência da renovação periódica da licença de uso é justamente certificar se a atividade exercida em uma determinada região está em consonância com o ordenamento jurídico local. Em caso negativo, a licença não será renovada.
Quando se detecta na renovação da licença que o uso anteriormente conforme se transformou em um uso desconforme costuma se admitir a continuidade da exploração da atividade empresarial no local. No entanto, com restrições relativas à ampliação física da atividade e sua transferência para terceiros. Trata-se do chamado “direito de tolerância” ao uso desconforme, o qual deve ser previsto no próprio ordenamento jurídico que promoveu a alteração do zoneamento de uso.
Ora, o direito de tolerância é a demonstração cabal da ausência do direito adquirido no âmbito das licenças de uso. Com efeito, a tolerância não se compadece com o regime de direito adquirido.
O direito adquirido é o direito integrado ao patrimônio do particular, mas ainda não exercido no momento da alteração legislativa. Logo, pode ser exercido mesmo contra a vontade da Administração Pública.
A tolerância ao uso desconforme, com graves limitações de ampliação da atividade, é técnica que evita o pagamento de vultosas indenizações pela Administração em cada alteração de zoneamento.
A tolerância de uso desconforme é antagônica ao regime de estabilidade das relações que preside o instituto do direito adquirido.
Nada impede, no entanto, que o Município não faça previsão desse direito em sua lei local, exigindo o fim da atividade após a alteração legislativa, contudo, compensando-se o proprietário pelos prejuízos sofridos em benefício do interesse coletivo.
Observa-se que a modificação do Plano Diretor Municipal, ao não incluir uma política de tolerância para usos não conformes ou uma transição para atividades agora proibidas em certas áreas urbanas, pode resultar em uma posição desvantajosa para a Administração frente aos cidadãos, que, dependendo do caso, podem exigir indenizações significativas devido à falta de fundamentação técnica para as alterações legais, que deveriam ser justificadas por importantes razões de interesse público.
Por essas razões, entende-se que não se há falar em direito adquirido à renovação da licença de uso após a mudança do zoneamento urbano, mas, a depender do caso, pode-se chegar à conclusão da existência do dever de indenizar o particular por parte da Administração.
Conclusão
A revisão e atualização das normas urbanísticas são processos essenciais para assegurar a função social da propriedade e responder às dinâmicas demandas sociais. No entanto, é imperativo que tais mudanças sejam conduzidas com uma compreensão aprofundada das normas infraconstitucionais e das decisões jurisprudenciais, de modo a preservar os direitos adquiridos. A cautela é necessária para evitar conflitos legais e a eventual necessidade de indenizações, especialmente quando o titular da licença de uso é afetado por alterações legislativas que lhe sejam prejudiciais. Assim, o equilíbrio entre inovação normativa e respeito aos direitos estabelecidos é fundamental para o desenvolvimento urbano sustentável.
Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: RE 85.002/SP, RE 90.059-4/SP, RE 93.108/SP, RE 88.472-2/SP, RE 188.226/RJ, RE 178.836/SP, RE 212.780/RJ.
Plano Diretor do Município de Ariquemes, Lei Municipal 2.341/2019.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 14ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[i] Vicente Ráo (in O direito e a vida dos direitos. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, pp. 370/371) traz entendimento do jurista italiano C. F. Gabba sobre o tema: “Adquirido é todo direito que resultante de um fato capaz de produzi-lo segundo a lei em vigor ao tempo em que este fato se verificou; embora a ocasião de fazê-lo valer se não haja apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo direito; direito este que, de conformidade com a lei sob a qual aquele fato foi praticado, passou, imediatamente, a pertencer a patrimônio jurídico de quem o adquiriu”.
[ii] CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (in Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros editores, 20ª edição, 2005, p. 421 e pp. 424/425) assevera: “É fundamental salientar que deve tratar-se de uma competência discricionária, isto é, que confira ao agente poder jurídico para resolver, no momento em que revoga, de acordo com critérios de conveniência e oportunidade. Com efeito, se houvera vinculação atual, o decidido pelo ato anterior seria ainda na atualidade a única decisão legal possível. Então, descaberia modificar o decidido ou eliminar o que tinha e tem que existir em decorrência de imposição da lei, sob pena de ofendê-la, caso em que a revogação seria ilegítima”. Mais adiante, ao tratar dos limites ao poder de revogar, o mesmo doutrinador vaticina: “No caso dos atos concretos a revogação quer fazer cessar uma relação presente, para dispor de outro modo. Respeita efeitos passados, mas alcança uma relação atual, presente, pondo um termo final em seus efeitos. Portanto, atinge uma concreta relação jurídica já constituída. Eis porque geram situações irrevogáveis: c) os atos vinculados enquanto o sejam, pois descabe modificar ou extinguir uma situação que esteja constituída em termos que inadmitem outra solução perante a lei”.
Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal e Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BOTELHO, JOSE EDUARDO RODRIGUES. A Proteção do Direito Adquirido em Matéria Urbanística e a Licença de Uso: Fundamentos e Implicações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2024, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/65885/a-proteo-do-direito-adquirido-em-matria-urbanstica-e-a-licena-de-uso-fundamentos-e-implicaes. Acesso em: 23 dez 2024.
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