Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar uma reflexão sobre a teoria do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida pelo jurista alemão Günther Jakobs, com a obra literária “O processo” de Franz Kafka. O Direito Penal, tem o papel de buscar a paz social, selecionando os comportamentos humanos mais relevantes que afrontem valores fundamentais. Com o grande aumento da criminalidade e a formação de organizações criminosas mais especializadas, algumas pessoas possuem mais periculosidade, sendo considerados inimigos, havendo ao Estado pela teoria do Direito Penal do Inimigo a faculdade de suprimir algumas garantias fundamentais em benefício da sociedade. A relação com a obra “O processo” e a teoria defendida por Jakobs é o modo autoritário que o Estado trata o personagem principal da obra.
Palavras-Chave: o processo; Direito Penal; inimigo; funcionalismo
Abstract: This article aims to reflect on the theory of Criminal Law of the Enemy, developed by the German jurist Günther Jakobs, with the literary work “The process” by Franz Kafka. Criminal Law has the role of seeking social peace, selecting the most relevant human behaviors that face fundamental values. With the great increase in criminality and the formation of more specialized criminal organizations, some people are more dangerous, being considered enemies, and the State has the power to suppress some fundamental guarantees for the benefit of society through the theory of the Criminal Law of the Enemy. The relationship with the work “The process” and the theory defended by Jakobs is the authoritarian way that the State treats the main character of the work.
Key words: the process; Criminal Law; enemy; functionalism
Introdução
A obra “O processo” de Franz Kafka, traz a história de um bancário que foi acusado e detido, por agentes públicos em seu quarto na pensão em que vivia, sem qualquer prova, não sabendo sequer o motivo da acusação. No decorrer da história, é visível a atuação do Estado de forma autoritária, sem observar direitos fundamentais, trazendo em evidência uma grande semelhança com a Teoria do Direito Penal do Inimigo.
O Direito Penal, tem o papel de buscar a paz social, selecionando os comportamentos humanos mais relevantes que afrontem valores fundamentais. Com o passar do tempo houve o desenvolvimento de várias escolas de teorias em Direito Penal defendidas pela doutrina como o causalismo, neokantismo, finalismo e funcionalistas, sendo esta última que merece mais destaque no presente trabalho.
A doutrina penal apresenta várias correntes funcionalistas, que buscam atribuir ao Direito Penal uma função específica, que pode desenvolver na sociedade, havendo divergência sobre qual seria realmente essa função. As duas principais correntes funcionalistas são sustentadas por Claus Roxin (funcionalismo teleológico), Günther Jakobs (funcionalismo sistêmico). Por uma questão de delimitação do tema, mais relacionado a obra “O processo” de Franz Kafka, o foco será mais dirigido ao funcionalismo sistêmico defendido por Jakobs.
O jurista alemão Günther Jakobs, fundamentou a função do sistema jurídico-penal. Com isso, o sistema jurídico se torna um subsistema social caracterizado funcionalmente pela presença de um código binário peculiar, de natureza normativa trazendo o que seria lícito ou ilícito.
Com base no funcionalismo sistêmico Jakobs criou em 1985 a teoria do Direito Penal do Inimigo, que vem gerando grande celeuma no meio jurídico, pelas mudanças consideradas radicais no atual paradigma penal e a teoria tem atraído mais críticos do que adeptos.
A grande polêmica que a teoria defendida por Jakobs possui, é em relação a necessidade de haver uma divisão entre cidadãos e não-cidadãos (inimigos), promovendo um tratamento diferenciado para cada um desses grupos, criando-se dois Direitos Penais. Jakobs ao fazer essa divisão de cidadãos e inimigos, utiliza-se de uma base filosófica contratualista de Estado, fundamentando nos pensadores Rosseau, Kant, Hobbes e Fichte. Dentre as principais características da teoria, seria o momento que ocorre a atuação penal contra o indivíduo, que passa a ser prospectivo ao invés de retrospectivo, ou seja, o inimigo deve ser interceptado em estado prévio, devido a sua periculosidade contra a sociedade, consagrando-se um Direito Penal do autor.
O objetivo do presente artigo é realizar uma análise da teoria do Direito Penal do Inimigo, mostrando a sua origem, base filosófica, características e influência na legislação, demonstrando alguns de seus aspectos inseridos na história da obra literária “O processo” de Franz Kafka.
O trabalho foi baseado em pesquisas dedutivas e qualitativas, com pesquisas a doutrinas, literatura e legislação.
1. Breve resumo da obra “O processo” de Franz Kafka
A história inicia no trigésimo aniversário de Josef K, com a frase “Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal”. (KAFKA, 2009, p. 05). Josef K., estava em seu quarto acordando no dia de seu aniversário, quando é surpreendido por oficiais de justiça que começam a interpela-lo, quando ainda está de pijama na cama e avisam que estaria detido. Josef K., fica surpreso e afirma que não fez nada de errado e fala que somente podem ter sido caluniado por alguém, e quer saber o motivo pelo qual está detido, mas nenhum dos oficiais de justiça quer dizer o motivo nesse primeiro momento.
Os funcionários oficiais de justiça, estão no quarto de Josef K., na pensão onde reside para avisar que estaria detido. Josef K., não faz ideia do que tenha acontecido. Os vizinhos da pensão ficam curiosos e a todo o momento olham o que está acontecendo pela janela. Os oficiais de justiça até comem o café da manhã que seria destinado a Josef K., impedido que se alimente. Um oficial de justiça chega a perguntar se Josef K. queria se alimentar e poderia ir até comprar para ele café da manhã se lhe desse dinheiro. Josef K. se recusa e come uma maça que tinha guardada em seu quarto.
Josef K quer falar com o superior dos oficiais de justiça para poder saber o que está acontecendo. No quarto ao lado de Josef K., que pertence a uma vizinha que no momento da chegada dos funcionários da justiça ela não se encontrava, estava esperando Josef K., um suposto superior dos oficiais de justiça que primeiramente comunicaram Josef K. que estaria detido.
Josef K se veste e vai conversar com o superior que se encontrava no quarto ao lado, mas também ao ser indagado, não deu maiores detalhes do motivo de estar detido, e disse apenas que era para aguardar um telefonema do tribunal para que se apresentasse. Já estava quase no horário de Josef K. sair para ir ao trabalho e o agente de justiça superior disse que não seria pelo motivo de estar detido que a vida iria parar, sendo autorizado pelo superior a ir fazer as suas atividades de rotina.
A vida de Josef K. vai seguindo normalmente, onde saia para trabalhar no Banco, se alimentava na pensão que morava, visitava uma prostituta de vez em quando, mas a partir daquela manhã Josef K., carrega consigo uma preocupação com o processo.
Em determinado momento, Josef K., recebe um telefonema do tribunal, sendo convocado a se apresentar, não informando o endereço, número da sala e horário, somente é informado que seria domingo pela manhã.
Josef K., vai até um local que aprece ser uma vila, onde há vários moradores e por não saber onde deveria se apresentar, inventa o nome de uma pessoa quem estaria procurando para justificar o motivo de ficar batendo de porta em porta no interior da vila. Após várias tentativas, Josef K. consegue descobrir a sala do tribunal.
Na sala do tribunal, existiam várias pessoas e Josef K., ao entrar foi cumprimentado com reverência pelos presentes, como se estivesse sendo aguardado. O Juiz da sessão fala a Josef K., que teria chegado atrasado em 01 hora e 05 minutos, mas Josef K., não sabia o horário que deveria se apresentar. Durante a audiência Josef K., não sabe o que dizer, pois não tem conhecimento sobre o que seria a sua acusação e acaba sendo muito arrogante, achando que estaria em uma situação muito privilegiada. De repente houve-se barulho de duas pessoas fazendo sexo na sala do tribunal. Josef K., sai do tribunal e vai para a sua casa e volta a sua rotina de vida normal.
O tio de Josef K., descobre que estava sendo processado e fica preocupado com o sobrinho. Josef K., não sabe dizer para o seu tio o que estaria acontecendo e o seu tio fica ainda mais preocupado e resolve levar Josef K. até a casa de um amigo que é advogado. O advogado é um senhor de idade e está acamado e não consegue se levantar. O advogado por estar doente, possui uma enfermeira jovem e muito bonita e Josef K. e a enfermeira, trocam olhares durante a conversa com o advogado junto com seu tio. Josef K. começa a explicar a situação para o advogado, mas é interrompido. O advogado diz que já sabe que está sendo processado, devido a estar sempre pelo tribunal já tinha conhecimento do processo que Josef K. estava sofrendo.
Em certo momento, Josef K., percebe que o advogado não está ajudando e no fim somente atrapalhando, e resolve dispensar os seus serviços. Nesse meio tempo, Josef K. conhece uma outra pessoa que também está sendo processada e com o mesmo advogado e com mais alguns outros. Josef K. é alertado que o processo é temeroso e que um advogado só não vai dar conta, mas Josef K. recebe uma dica para procurar o pintor.
O pintor trabalha para o tribunal, e fica desenhando os perfis das pessoas que lá estão, e este trabalho é tipo que um “bico”, mas por conta disso, está sempre por dentro de tudo do que acontece no tribunal. O pintor é uma pessoa miserável que mora em um quarto pequeno e a janela não abre e fica sendo perturbado a todo o momento por crianças, mesmo quando conversa com Josef K. O pintor diz para Josef K., que se foi processado alguma coisa de errado foi feito e que nenhum inocente é processado. O pintor também diz as maneiras de ir levando o processo e uma delas seria deixar o processo correr que uma hora ele vai caducar, prescrever e ir recorrendo da primeira para a segunda instância, dentre outras soluções que se dá com “jeitinho”, mas no fim, não tem como Josef K. escapar desse processo. A partir dessa conversa com o pintor Josef K., fica mais despreocupado com o processo.
O chefe do Banco, onde Josef K. trabalha, pede para que leve um cliente italiano para conhecer a catedral da cidade. Josef K. combina o horário para se encontrar lá com o cliente italiano na catedral. Josef K. ao chegar no local combinado não encontra ninguém. Josef K. senta no banco da catedral e fica aguardando o cliente italiano, quando percebe que o padre estava no púlpito se arrumando para começar a fazer um sermão. O padre começa a contar uma parábola para Josef K. A história da parábola seria: a lei é representada por um prédio gigante e se tem um camponês e na portaria desse prédio um porteiro. Para entrar na lei, primeiramente o camponês precisa passar pelo porteiro, só que o porteiro diz para o camponês que não vai poder passar. O camponês fica esperando, mas o porteiro diz que não adianta insistir, que não vai poder passar e entrar. O porteiro informa o camponês que existem vários outros porteiros nos níveis seguintes além dele e que se quisesse olhar não teria problema, mas a força da justiça era tão forte que não se consegue olhar nem o terceiro guarda. O porteiro chega a dar para o camponês um banquinho para esperar. O camponês fica irritado e começa a subornar o porteiro, dando presentes para que possa entrar na lei. O porteiro diz que vai receber os presentes para que o camponês não fique chateado. Isso dura anos, e quando o camponês está para morrer faz a grande pergunta para o porteiro, dizendo que não viu mais ninguém querendo entrar na lei durante esse tempo e porque só ele passou a sua vida inteira tentando entrar na lei. O porteiro responde que a porta estava aqui só para ele, mas agora que está morrendo a porta não tem mais serventia nenhuma e o porteiro tranca a porta e vai embora.
Josef K. e o padre ficam discutindo sobre a parábola. Josef K. defende que o camponês foi enganado a vida toda pelo porteiro. O padre diz que não é bem assim.
Sobre o processo que está sofrendo, Josef K. diz para o padre que não é culpado e isso seria um erro e como um homem pode ser culpado, todos nós somos homens aqui, tanto uns como outros. O padre diz que é certo isso, mas é assim que se falam os culpados.
Após a conversa com o padre Josef K. fica mais preocupado com o processo, afetando as suas atividades cotidianas. Josef K. já se encontrava sem ânimo para prosseguir na luta contra o processo, no qual nada tinha conhecimento da verdadeira acusação, estava apático e indiferente.
Josef K. é condenado, quando passado um ano, no seu aniversário de trinta e um anos é morto por dois homens.
2. O papel do direito penal e o funcionalismo sistêmico
O comportamento do ser humano em seu âmbito social, fundamenta-se nas ciências para reduzir e produzir teorias dos problemas que atingem a sociedade, uma vez que o ser humano é complexo e necessita ser observado ontologicamente, por meio da busca na natureza das coisas, no mundo do ser e com isso limite as liberdades das decisões do legislador para que se tenha um ordenamento jurídico mínimo que garanta direitos fundamentais ao cidadão, intervindo o Estado somente quando necessário, em especial na esfera do Direito Penal que tem a função de proteção de bens jurídicos.
O Direito Penal é o seguimento do ordenamento jurídico que tem a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves que atingem a coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descreve-los como infrações penais, atribuindo as respectivas sanções, além de estabelecer regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação (CAPEZ, 2011, p. 20).
A finalidade do Direito Penal para Luiz Regis Prado (1999, p. 47), se tem como "o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos - essenciais ao indivíduo e à comunidade".
O Direito Penal é um importante instrumento para regular a convivência dos homens em sociedade, havendo várias funções: i) Direito Penal como proteção de bens jurídicos: os valores e interesses que são reconhecidos pelo Direito mais relevantes são elevados a categoria de bens jurídicos penais; ii) Direito Penal como instrumento de controle social: cabe ao direito a preservação da paz pública, conforme compreendida na ordem em determinada coletividade; iii) Direito Penal como garantia: só pode ocorrer punição caso sejam praticados os atos expressamente previstos na lei como infração penal; iv) Função ético-social do Direito Penal: tem origem na vinculação tradicionalmente existente na matéria penal e os valores éticos fundamentais de uma sociedade, buscando um efeito moralizador que deve reinar em toda a comunidade. Com isso, o Direito Penal atua com uma função educativa em relação aos cidadãos fomentando valores éticos-sociais; v) Função simbólica do Direito Penal: essa função se reflete a todas as leis, não dizendo respeito somente para as normas penais. Não produz efeitos externos, mas somente na mente dos governantes e cidadãos; vi) Função motivadora do Direito Penal: motiva os indivíduos a não violarem as normas mediante ameaça de imposição de maneira coercitiva de sanção na hipótese de ser lesado ou colocado em perigo determinado bem jurídico tutelado; vii) Função de redução da violência estatal: o Direito Penal moderno apresenta uma nova finalidade a de reduzir ao mínimo a própria violência estatal, já que a imposição de pena embora seja legítima, representa sempre uma agressão aos cidadãos; viii) Função promocional do Direito Penal: não se deve se preocupar em manter os valores da sociedade na qual se insere, mas sim atuar como um instrumento de transformação social (MASSON, 2010, p. 11).
A ciência do Direito Penal foi se expandindo e evoluindo com o passar do tempo, construindo seus fundamentos sob a influência das diversas fases históricas, surgindo escolas com novas correntes de teorias defendidas pela doutrina, e dentre as mais relevantes podemos destacar o causalismo, neokantismo, finalismo e mais recentemente o funcionalismo penal.
O funcionalismo penal teve início na Alemanha, no início da década de 1970, quando da ocorrência de forte revolução entre os penalistas, com a intenção de submeter a dogmática penal aos fins específicos do Direito Penal. Tratou-se, portanto, de movimento pós finalista, que pretendeu abandonar o tecnicismo jurídico no enfoque da adequação típica, possibilitando ao tipo penal desempenhar sua efetiva função, qual seja, a de assegurar a paz social e aplicar a política criminal defendida, por isso, fora denominado sistema funcional. O funcionalismo penal, questionou a validade do conceito de conduta elaborado pelos sistemas clássico e finalista, e, ao conceber o Direito como instrumento de regulação social, delimitou o âmbito das expectativas normativas da conduta, dando à luz à moderna teoria da imputação objetiva do resultado (CARVALHO; PRADO, 2006, p.65).
Para a teoria funcional, conduta é ação ou omissão voluntária e consciente capaz de evidenciar uma autêntica manifestação da personalidade ou ainda seria a ação voluntária e consciente capaz de evitar o resultado, desde que seja juridicamente exigível que assim o faça (NUCCI, 2011, p. 205).
Na estrutura jurídica do crime, o sistema funcional trabalha com duas vertentes: a teoria da imputação objetiva e a ampliação da culpabilidade para a categoria de responsabilidade. A primeira delas, nos crimes de resultado, passa a exigir, além da relação material de causalidade, um nexo normativo de causalidade, a fim de aferir se o resultado produzido pelo agente pode, juridicamente, ser a ele imputado. A segunda coluna do funcionalismo, ampliando o conceito de culpabilidade para o de responsabilidade, exige, sempre, a aferição da necessidade preventiva (especial ou geral) da pena, sem a qual se torna impossível a imposição desta (GRECO, 2015, p. 474).
O funcionalismo teleológico defendido por Claus Roxin, tem fortemente a sociologia infiltrada que suplanta o próprio direito. Essa corrente sustenta que se deve partir da premissa de que um moderno sistema de Direito Penal deve ser estruturado teleologicamente, atendendo as finalidades valorativas. A função maior do Direito Penal é de proteger a sociedade, de modo que todas as soluções dogmáticas incompatíveis com essa linha devem ser afastadas, mantendo-se apenas as de ordem político-criminal. A finalidade é extraída do contexto social e visa propiciar a melhor forma de convivência entre os indivíduos. O Estado estabelece estratégias de políticas criminais, com vista a defesa da sociedade, e o desenvolvimento pacífico e harmônico dos cidadãos e a aplicação da justiça ao caso concreto. (CAPEZ, 2011, p. 157).
A política criminal implica em estratégias a serem adotadas dentro do Estado no que concerne à criminalidade e a seu controle, sendo uma disciplina que não tem um método próprio e que está disseminada pelos diversos poderes da União, bem como pelas diferentes esferas de atuação do próprio Estado (SHECAIRA, 2004, p. 41).
No tocante ao Indivíduo é a pessoa que age no contexto social, sendo um sujeito de normas de imputação. A dogmática jurídico-penal é formada em conceitos e categorias da teoria dos sistemas sociais, enquanto a culpabilidade é absorvida por conceito de prevenção geral, com o exercício da fidelidade ao Direito, sem levar em conta a capacidade do autor (ROXIN, 2002, p. 205).
A radicalização da sistemática na proposta de Jakobs, apresenta uma concepção normativista de Direito Penal, sob uma ótica distinta da de ROXIN, mas também diametralmente oposta ao ontologismo finalista. Em uma comparação, o normativismo dualista (teleológico-funcional), defendido por Roxin, admite que a sua lógica objetiva, seja acrescida de uma razão prática, onde os valores protegidos pelo sistema penal estejam limitados por um substrato material fático externo ao próprio sistema; no entanto, o normativismo monista (funcionalista-sistêmico), sustentado por Jakobs, caracteriza-se pela radicalização do critério funcional, de modo que os parâmetros necessários para o desenvolvimento estrutural do sistema penal e, por conseguinte, da dogmática, encontram-se no interior do próprio sistema, não se sujeitando a limites externos (BITENCOURT, 2012, p. 97).
Jakobs, desenvolve a sua teoria da imputação objetiva com esforços voltados no sentido de desenvolver uma teoria do crime voltada aos fins do Direito Penal e é influenciado pela teoria sistêmica de Niklas Luhmann, devido defenderem que a sociedade seria o centro do sistema, ficando o homem como um subsistema, ou seja, os seres humanos são subprodutos da sociedade.
O Direito Penal para Jakobs, está determinado pela função que cumpre no sistema social, sendo considerado um sistema autônomo, autorreferente e autopoiético, dentro do sistema mais amplo da sociedade, havendo as suas regras próprias e a ela se submete. O Direito Penal tem como função assegurar os valores éticos e sociais da ação. Deve-se aplicar o comando contido na norma penal, pois somente sua reiterada incidência lhe confere o merecido respeito (MASSON, 2010, p. 76).
O funcionalismo sistêmico defendido por Jakobs, representado pelo funcionalismo sociológico, não tem a função de proteção de bens jurídicos, mas a proteção da norma. A conduta é considerada com um comportamento humano voluntário causador de um resultado evitável, violador de um sistema, frustrando as expectativas normativas.
Sobre o funcionalismo sistêmico, Rogério Sanches Cunha, (2016, p. 188) assevera que:
As premissas sobre as quais se funda o funcionalismo sistêmico deram ensejo à exumação da teoria do Direto Penal do Inimigo, representando a construção de um sistema próprio para o tratamento do indivíduo considerado “infiel ao sistema”. Considera que àquele que se dedica a determinados crimes não se deve garantir o status de cidadão, merecendo, ao revés, punição específica e severa, uma vez que o seu comportamento põe em risco, de forma ímpar, a integridade do sistema.
Nesse contexto, Jakobs com base no funcionalismo sistêmico que defende, parte da premissa de que a aplicação constante da norma é o que imprime uma maior garantia de validade do sistema, cuja essa concepção se coaduna com o Direito Penal do Inimigo, colocando em foco de discussão, qual a real efetividade do Direito Penal.
3. Base filosófica do Direito Penal do Inimigo
A denominação de Direito, seria o vínculo entre pessoas que são titulares de direitos e deveres ao passo que a relação com um inimigo não se determina pelo Direito, mas pela coação. No entanto, todo o Direito se encontra vinculado à autorização para que seja empregada a coação, e o Direito Penal, possui a coação mais intensa. Consequentemente, pode-se dizer que qualquer pena ou inclusive qualquer legítima defesa se dirige contra um inimigo. Essa argumentação é nova mas conta com destacados percussores filosóficos (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 25).
Günther Jakobs, utiliza além dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, uma base de pensadores iluministas e teses contratualistas, para sustentar a sua teoria como os filósofos Kant, Rosseau, Fichte e Hobbes.
O pressuposto necessário para a admissão de um Direito Penal do Inimigo, consiste na possibilidade de se tratar um indivíduo como tal e não como pessoa. Sendo assim, Jakobs inspira-se em autores que elaboram uma fundamentação "contratualista" do Estado. Assim, para essa linha contratualistas a prática de um crime é uma infração ao Contrato Social e quem viola o contrato, não tem direito de usufruir dos seus benefícios.
Nesse sentido, escreve Damásio Evangelista de Jesus, (2008):
O pressuposto necessário para a admissão de um Direito Penal do Inimigo consiste na possibilidade de se tratar um indivíduo como tal e não como pessoa. Nesse sentido, Jakobs inspira-se em autores que elaboram uma fundamentação "contratualista" do Estado (em especial, Hobbes e Kant).
Para Jacques Rosseau, o homem nasceria bom, mas a sociedade o corromperia. Sendo livre, mas acorrentado por fatores, como a sua própria vaidade, tornando-se escravo das suas próprias necessidades e daqueles que o rodeiam, visando preservar aquela liberdade inerente a sua pessoa, garantindo o bem-estar e a sua segurança, abre mão de parte dessa liberdade, por meio de um contrato social, no qual prevalece a soberania da sociedade (SOUSA, 2017).
Jacques Rosseau (2003, p. 46), faz referência ao membro do Estado que contrariasse o contrato que traz o consenso social, era considerado um traidor por ter a colocado a sociedade em estado de guerra:
Os processos e a sentença são as provas e declaração de que violou o tratado social, e já não é, por conseguinte, membro do Estado; ora, como ele assim se reconheceu, quando mais não fosse pela sua estada, cumpre ser isolado dele, ou pelo exílio como infrator do pacto, ou com a morte, como inimigo público; que tal inimigo não é uma pessoa moral, mas um homem, e eis quando o direito da guerra é matar o vencido.
Na mesma linha Thomas Hobbes e Johann Gottlieb Fichte, entendem, respectivamente, que, em casos de alta traição contra o Estado, o indivíduo considerado inimigo, deveria ser castigado, como traidor da pátria e não como súdito; e quem abandona o Contrato Social, também deve ser abandonado pela Sociedade (SOUSA, 2017).
Nesse sentido, assevera Jakobs apud Fichte (2010, p. 26):
quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano e passa a estar em um estado de ausência completa de direitos.
Thomas Hobbes, esclarece de forma mais clara, quem deveria ser considerado inimigo e ter um tratamento diferenciado. Segundo Hobbes, quem infringir a lei, continua sendo considerado um cidadão, mas por esta desobediência terá contra si um castigo proporcional a sua conduta. Esse castigo, tem a finalidade de “corrigir aquele que pecou ou melhorar aqueles que se sentem arrependidos” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, apud HOBBES, p. 114).
Para Kant o inimigo seria aquele que pratica reiterados atentados contra o Estado, ameaçando a sociedade como um todo, não podendo tratar como cidadão aquele indivíduo que se recusa a entrar em um Estado cidadão, que costumeiramente o ameaça.
Immanuel Kant (2008, p. 23), em sua obra, assevera que:
Admite-se comumente que não se pode proceder hostilmente contra ninguém, a não ser quando ele de fato já me lesou, e isto também é inteiramente correto quando ambos estão no estado civil-legal. Pois, pelo fato de que entrou nesse estado, ele dá àquele (mediante a autoridade que possui poder acima de ambos) a segurança requerida. Mas o homem (ou o povo) no puro estado de natureza tira de mim está segurança e me lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato (facto), pela ausência de leis de seu Estado, pelo que eu sou continuamente ameaçado por ele, e posso forçá-lo ou a entrar comigo em um Estado comum legal ou a retirar-se de minha vizinhança.
A expressão utilizada por Kant “estado civil-legal”, leva a conclusão de que seria o que hoje temos por Estado de Direito. Nesse sentido, Paulo Dourado de Gusmão (2000, p. 350), refere que Estado de Direito como sendo “o Estado submetido ao Direito por ele mesmo criado ou reconhecido, dotado de eficácia e que, tendo estabilidade, possa servir de base para profecias de como decidirão as autoridades e os juízes". Já a expressão “estado de natureza”, seria aquela caracterizada pela ausência de leis.
Ademais, é de se destacar, que Kant e Hobbes, reconhece um Direito Penal do Cidadão, contra pessoas que a princípio, não delinquem de modo persistente e um Direito Penal do Inimigo, contra quem se desvia por princípio. Este exclui aquele deixa incólume o status de pessoa. O Direito Penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa, mas o Direito Penal do Inimigo é Direito em outro sentido. Certamente o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que costumam praticar reiteradas vezes crimes (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p.29).
Em resumo, temos que o indivíduo, ao infringir o contrato social, deixa de ser pessoa e membro do Estado, estando em guerra contra ele. Logo, deve morrer como tal (ROUSSEAU); o abandono do contrato de cidadão perde todos os seus direitos, mesmo que fundamentais (FICHTE); deve ser castigado e considerado como inimigo em casos de alta traição contra o Estado (HOBBES); a ameaça constante contra o Estado não aceitando um “estado comunitário–legal”, deve ser tratado como inimigo (KANT) (GOMES, 2004).
4. Direito Penal do Inimigo e suas características
Com a evolução da sociedade, as formas de se praticar crimes também acompanharam esse avanço e ficaram cada vez mais modernas, organizadas, estruturadas e com grande aporte econômico de financiamento, surgiram grupos terroristas e criminosos especializados em determinadas condutas que trazem mais perigo e afetam a vida dos cidadãos.
O caráter de gestor de riscos e de problemas sociais que assume o Direito Penal na sociedade do risco a distância do seu núcleo clássico, ou seja, do homicídio cometido por um autor individual, isso já não cabe mais nos dias atuais. Os delitos decorrentes da globalização, que rapidamente se instalou nas sociedades mundo a fora a chamada macrocriminalidade, como a criminalidade econômica e organizada, terrorismo, tráfico de armas e pessoas, exigem um caráter de prevenção e praticidade do Direito Penal, o qual passa a ter um âmbito supranacional e unificado (ROXIN, 2001, p. 468).
O Direito Penal do Inimigo seria um modelo de direito penal, que tem por finalidade detectar, separar dentre os cidadãos, aqueles que devem ser considerados como inimigos (terroristas, autores de crimes sexuais violentos, criminosos organizados, etc.). Esses indivíduos são pessoas perigosas e em guerra constante contra o Estado e não merecem as mesmas garantias humanas fundamentais, pois em regra não respeitam os direitos individuais alheios estando, portanto, fora do sistema, sem merecerem as garantias do contraditório, ampla defesa, podendo ser flexibilizados, inclusive os princípios da legalidade, da anterioridade e taxatividade (NUCCI, 2011, p. 396).
Para Jakobs, o inimigo não é pessoa, ou seja, o indivíduo que não admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. Como não-pessoa, não é um sujeito processual, logo não pode contar com direitos processuais, cabendo ao Estado não reconhecer os seus direitos ainda que de modo juridicamente ordenado. Contra esse indivíduo, não se justifica um procedimento penal, mas sim um procedimento de guerra. (BIANCHINI; GOMES, 2011).
A transição do indivíduo considerado cidadão ao status de inimigo, ocorrerá através: i) da reincidência; ii) habitualidade na pratica de crimes; iii) delinquência profissional e iv) integração em organizações criminosas estruturadas (SÁNCHEZ, 2013, p. 141).
O Direito Penal do Inimigo, possui em geral três principais características: i) antecipação da tutela penal; ii) a desproporcionalidade das penas; e iii) relativização das garantias penais e processuais.
Analisando a proposta de Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá (2010, p. 79) esclarece os três elementos característicos:
Segundo Jakobs, o Direito penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas.
Existe uma maior punição aos atos meramente preparatórios, além de um aumento na tipificação de delitos de perigo abstrato e de mera conduta sem que haja uma redução da pena, caracterizando a desproporcionalidade das sanções a serem aplicadas aos indivíduos considerados como inimigos.
A metodologia da construção da teoria do Direito Penal do Inimigo Günther Jakobs, (2010, p. 30), define como sendo:
O Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra. Esta coação pode ser limitada em um duplo sentido. Em primeiro lugar, o Estado, não necessariamente, excluirá o inimigo de todos os direitos. Neste sentido, o sujeito submetido à custódia de segurança fica incólume em seu papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o Estado não tem por que fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não fechar a porta a um posterior acordo de paz.
Os fatores que levam favoravelmente a adoção da teoria do Direito Penal do Inimigo segundo Jakobs são: i) o direito penal do cidadão é o direito de todos; já o direito penal do inimigo é daqueles que formam uma frente contra o Estado, embora possa haver, a qualquer tempo, um acordo de paz; ii) um indivíduo que se recusa a ingressar no estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa, pois quem ganha a guerra determina o que é norma, quem perde há de submeter a essa determinação; iii) para não privar o cidadão do Direito Penal vinculado à noção do Estado de Direito, deve-se denominar de outra forma o conjunto de normas penais voltadas ao combate à criminalidade; iv) a vigência dos direitos humanos contínua a ser sustentada, embora o seu asseguramente dependa do destinatário; v) o inimigo perigoso pede regras próprias; vi) um direito penal do inimigo delimitado e menos perigoso, na ótica do Estado de Direito, o que se empregar todo o Direito Penal com regras específicas e duras próprias do direito penal do inimigo. (NUCCI, 2011, p. 398).
As principais características desta política criminal utilizada nos últimos tempos, como expansão do Direito Penal, são as seguintes: i) hipertrofia legislativa irracional (caos normativo); ii) instrumentalização do Direito Penal; iii) inoperatividade, seletividade e simbolismo; iv) excessiva antecipação da tutela penal (prevencionismo); v) descodificação; vi) desformalização (flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais); vii) prisionização (exploração carcerária) (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 55).
Sobre a política criminal, existe a distinção entre o Direito Penal voltado ao cidadão e o Direito Penal do Inimigo. Nesse sentido, Luiz Regis Prado (2010, p. 133) leciona:
O Direito Penal do Inimigo constitui uma construção teórica, compatível com o funcionalismo sistêmico, fundada basicamente na distinção entre o Direito Penal de cidadãos e Direito Penal de inimigos, como polos existentes de um mesmo ordenamento jurídico, e na separação entre os conceitos de pessoa e não pessoa. Nesse sentido, o inimigo é o indivíduo que não oferece a mínima segurança cognitiva de submissão à ordem jurídica, dada sua evidente intenção de destruí-la, e, por isso, é considerado não pessoa. Caracteriza-se pela antecipação da punibilidade, pelo notável incremento e desproporcionalidade de penas, pela supressão ou redução de diversas garantias individuais no âmbito do Direito, Processo e Execução Penal.
O inimigo possui assistência por parte do Estado, mas não receberá um tratamento como pessoa, ou seja, não terá em seu benefício garantias fundamentais, as quais poderão ser suprimidas, por ser considerado uma “não pessoa”. Essa interpretação dogmática que se faz, na teoria do direito penal do inimigo na distinção de pessoas de direito e de não pessoas de direito.
O professor Jesus-Maria Silva Sánchez, apresenta a teoria das velocidades do Direito Penal, com a preocupação da consolidação de um direito penal moderno, buscando-se evitar a modernização generalizada caracterizada pela expansão e flexibilização dos princípios político-criminais e regras de imputação inerentes às penas privativas de liberdades (MASSON, 2010, p. 82).
Segundo Jesus-Maria Silva Sánchez, (2013, p. 193) as duas velocidades do Direito Penal seriam:
Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal “da prisão”, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não se tratar já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional à menor intensidade de sanção.
A ideia proposta parte de que o Direito Penal possui em seu interior dois conjuntos de crimes, sendo o primeiro com infrações penais que são apenadas com pena privativa de liberdade e o segundo com ilícitos penais que são mais próximas do administrativo e suas sanções como multas, penas restritivas de direitos, etc. Trata-se de uma modelo dualista de sistema penal.
Sobre a terceira velocidade do direito penal Jesus-Maria Silva Sánchez, (2013, p. 193) afirma que:
Sem negar que a "terceira velocidade" do Direito Penal descreve um âmbito que se deveria aspirar a reduzir a mínima expressão, aqui se acolherá com reservas a opinião de que a existência de um espaço de Direito Penal de privação de liberdade com regras de imputação e processuais menos estritas que as do Direito Penal da primeira velocidade, com certeza, é, em alguns âmbitos excepcionais, e por tempo limitado, inevitável.
O direito penal de terceira velocidade é um misto entre as ideias que trazem a primeira e segunda velocidades. Nesse sentido, se faz um resgaste da pena privativa de liberdade, bem como a flexibilização de direitos e garantias materiais e processuais, surgindo nesse contexto a teoria do Direito Penal do Inimigo desenvolvida por Günther Jakobs.
5. Exemplos de Direito Penal do Inimigo na legislação brasileira
Diante do grande aumento da criminalidade nos últimos anos e a formação de organizações criminosas cada vez mais especializadas, a legislação penal, vem sofrendo influências da teoria do Direito Penal do Inimigo em vários países do mundo.
No direito brasileiro são muitos os exemplos de tratamento diferenciado os quais são tratados sem um justo motivo como verdadeiro Direito Penal do autor. Os autores de crimes hediondos, (Lei 8.072/1990), cumprem a pena em regime integralmente fechado, não podem ter indulto individual ou coletivo, não podem ter liberdade provisória sem fiança etc. são tratados como inimigos (BIANCHINI; GOMES, 2011).
No Código Penal Brasileiro no crime de petrechos para falsificação de moeda, previsto no artigo 291, que tipifica como crime autônomo a conduta de “fabricar, adquirir, fornecer, a título oneroso ou gratuito, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente destinado à falsificação de moeda”, (BRASIL, 1940), criminaliza atos preparatórios, sancionado o autor ainda que ele não falsifique uma nota ou moeda sequer.
A Lei de Combate ao Crime Organizado, Lei 12.850/2013, que trouxe a definição do que seria organização criminosa, bem como determinar os crimes praticados pelos seus integrantes e a forma diferenciada com que esses crimes poderão ser investigados. Essa lei cuidou, ainda, de legitimar os mais variados meios de obtenção de provas, cujos procedimentos parte da doutrina entende que, não raras vezes, ofendem direitos e garantias fundamentais do investigado (BRASIL, 2013).
Destaca-se na Lei a influência do Direito Penal do Inimigo, quando há previsão para obtenção de provas, permitindo-se a invasão à esfera da vida privada do investigado por períodos extremamente longos, possibilidade da ação controlada, infiltração de agentes policiais, cujas afrontas vem, quase sempre, amparados em interesse social que deve prevalecer sobre o individual.
Uma das grandes evidências do Direito penal do inimigo pode ser identificada na legislação brasileira é no chamado regime disciplinar diferenciado – RDD. Esse regime foi introduzido na Lei de Execução Penal, artigo 52, pela Lei 10.792/2003. A primeira situação que permite tratamento diferenciado ao preso decorre da prática de crime doloso que ocasione a subversão da ordem ou disciplina internas. Nessa situação, pune-se o sujeito pelo que ele “fez”, só restando ver a questão da proporcionalidade da medida. Nos §§ 1º e 2º, existe a previsão de um tratamento diferenciado ao preso que apresente alto risco para a segurança ou quando revele fundadas suspeitas de envolvimento com organizações criminosas, não há como deixar de enxergar exemplos de Direito Penal do Inimigo: pune-se o preso pelo que “é”, não pelo que ele fez (BIANCHINI; GOMES, 2011).
O RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), não se trata de mais um regime de cumprimento de pena que estão previstos no artigo 33 do Código Penal, mas sim um novo regime carcerário especial, caracterizado por maior grau de isolamento do preso e de restrições ao contato com o mundo exterior, a ser aplicado como sanção disciplinar ou com medida de caráter cautelar, tanto ao condenado como ao preso provisório, nas hipóteses previstas em lei (MIRABETE, 2007, p. 149).
Para garantir a segurança do espaço aéreo nacional, a Força Aérea Brasileira tem respaldo legal para derrubar aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de drogas. A Lei nº 9.614/1998, incluiu o parágrafo 2º no artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986), as hipóteses em que as aeronaves podem ser abatidas. O Decreto nº 5.144/2004, regulamentou a lei que é conhecida como “Lei do Abate” ou “Lei do Tiro de Destruição”, trata-se de alterações feitas pela, que possibilitou que aviões considerados hostis possam ser derrubados, após uma série de procedimentos ignorados pelo piloto da aeronave suspeita. Essa previsão legal tem influência da teoria do Direito Penal do Inimigo (BRASIL, 1986).
Na Lei 13.260/2016, que disciplina o terrorismo, temos mais uma grande influência da teoria do Direito Penal do Inimigo, quando no seu artigo 5º dispõe sobre os atos preparatórios de terrorismo como passíveis de repressão criminal, desde que sejam praticados com o propósito inequívoco de consumar tal delito. Além disso, para aplicar a pena será a correspondente ao crime visado, na modalidade consumada, diminuída de um quarto até a metade (BRASIL, 2016).
Essa Lei foi inserida em nosso ordenamento jurídico, em virtude dos jogos Olímpicos Rio 2016, e nesse dispositivo, está bem evidente a característica do Direito Penal do Inimigo a criminalização de atos preparatórios antecipando-se a punibilidade, relativizando o entendimento de presunção de não culpabilidade da pratica do crime.
6. Relação entre o direito penal do inimigo e a obra “O processo” de Franz Kafka
O livro escrito por Franz Kafka é inacabado, possuindo dez capítulos e começou a ser escrito no ano de 1914 e publicado em 1925 pelo seu amigo Max Brod.
Na localidade que vivia o autor Franz Kafka, Tchecoslováquia preponderava um Estado autoritário, havendo várias lutas pelo poder e paralelamente havia a Primeira Guerra Mundial, que proporcionava ações arbitrárias das autoridades, e por esse ambiente, influenciou a obra ser uma crítica ao sistema judiciário no geral.
A obra “O processo’, foi escrita no início do século XX e passados praticamente cem anos, o Poder Judiciário ainda não é visto pelo cidadão com bons olhos, devido a sua ineficácia na prestação jurisdicional, não atinge a todos de forma uniforme, muitas pessoas não têm acesso, linguagem utilizada muito complexa o que dificulta o entendimento, grande burocracia, corrupção nos seus bastidores e a sua grande morosidade.
O desenrolar da história se dá com muito suspense, cenários sombrios, personagens que colocam uma grande densidade psicológica em cima do protagonista Josef K., que no fim é processado sem saber qual o real motivo de sua acusação por um tribunal desconhecido, corrupto, burocrático, sem conhecimento de seus julgadores, sem garantias processuais.
O desconhecimento do motivo da acusação que é feita contra Josef K., e de seus julgadores que integram o tribunal, revela a arbitrariedade que o Estado tratou o personagem, deixando Franz Kafka, opinião que pode ser percebida pelo leitor, de que o sistema é ilegítimo, injusto e falho.
A supressão de garantias constitucionais defendida por Jakobs em sua teoria do Direito Penal do Inimigo, visa em algumas situações a possibilidade do Estado verificando um determinado indivíduo que seja considerado inimigo, suprimir direitos e garantias fundamentais como a ampla defesa, contraditório, presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana.
A existência de um movimento punitivista, mais do que se orienta a um determinado agente, visa a todo custo a conferir a maior eficácia possível ao castigo, à sanção, sem se importar com os direitos e garantias individuais e processuais, aí sim, aí se transforma em Direito penal do inimigo. O caso de é a ferrenha e enfezada incidência do Direito penal (com toda sua carga de estigmatização, que é distribuída de modo seletivo e, muitas vezes, discriminatório) contra determinadas pessoas com a flexibilização das garantias, sejam elas penais, processuais ou constitucionais que gera a combinação necessária para a existência de uma manifestação do Direito penal do inimigo (BIANCHINI; GOMES, 2011).
Sobre a perspectiva do ordenamento jurídico, para a observância de sua aplicabilidade, nas lições de Norberto Bobbio (1982, p. 49) assevera que:
as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento possui uma norma fundamental, que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado de ordenamento.
Na história do livro “O processo”, temos afronta a vários direitos fundamentais previsto na Constituição Federal, como: i) direito quanto a identificação dos responsáveis pela sua prisão ou interrogatório policial (artigo 5º, LXIV, CF); ii) direito ao contraditório e ampla defesa aos litigantes em processo judicial ou administrativo, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, LV da CF); iii) direito a presunção de inocência, quando ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (artigo 5º, LVIII da CF); iv) direito a não violação de seu domicílio, (artigo 5º, XI da CF); v) é assegurado dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da CF); vi) todas as decisões judiciais deverão ser fundamentadas (artigo 93, IX da CF).
Os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, são frutos de uma construção histórica e permanecem em constante evolução, garantindo aos cidadãos os direitos mais básicos inerentes a sua vida em sociedade, representando um controle do poder do Estado na prática de atos autoritários que são abusivos na vida cotidiana, havendo uma importância da natureza constitucional de sua previsão para a defesa desses direitos em prol do cidadão.
O direito penal do inimigo por sua característica de ser inevitavelmente seletivo, por eleger os supostos inimigos para se fazer um direito penal do autor, aplicando-se um direito discriminatório contra esses sujeitos, não observando as garantias que estariam previstas na Constituição Federal, ferindo assim regras sensíveis de direitos fundamentais.
No caso da acusação sem um aparente motivo contra o protagonista do livro “O processo”, seguida da falta de informações e obscuridade que tramita o processo, Josef K. é tratado como inimigo pelo Estado, tendo os seus direitos mais básicos suprimidos, não tendo acesso a qualquer prova, mesmo que seja ilícita, ou fundamento legal da sua detenção, ficando bem evidente as características da teoria de Jakobs na obra, que vai contrariamente ao que defende o garantismo penal.
O garantismo penal o qual estabelece critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, de modo a assegurar a efetivação dos direitos e garantias fundamentais que, por sua vez, fixam o objeto e o limite do Direito Penal, vai de encontro com o que preceitua o Direito Penal do Inimigo. O poder punitivo estatal é restringindo e a pessoa recebe garantias contra atos arbitrários. Os direitos e garantias fundamentais são, portanto, instrumentos essenciais e hábeis a orientar a ação estatal e corrigir excessos e equívocos por parte do Estado sancionador. Há limites que não podem ser ultrapassados, mesmo que sob o fundamento de controle social e punição de criminosos. As regras garantistas consagradas na Constituição orientam o sistema penal, não podendo o intérprete desconsidera-las na aplicação do Direito em um caso concreto. Portanto, dentro de um Estado Democrático de Direito, por força do princípio de igualdade, não haveria possibilidade de se enxergar o inimigo, já que todos são cidadãos e como tal devem ser reconhecidos (SOUSA, 2017).
Por fim, a obra literária de Franz Kafka, permite inúmeras interpretações, na sua história, principalmente levando o leitor a deduzir os motivos que poderiam ser a real acusação ou se simplesmente não haveria qualquer acusação contra Josef K., além de outras passagens que geram grandes reflexões. No campo jurídico o fato dos abusos cometidos contra Josef K., por parte de todo o sistema que compõe o Estado em face de um cidadão que aparentemente é trabalhador, honesto e responsável, ficando evidente muitas características do Direito Penal do Inimigo, que vem sendo desenvolvido e aplicado aos poucos nas legislações de vários países do mundo para o combate principalmente do terrorismo e crime organizado.
Conclusão
A obra o processo de Franz Kafka, considerada uma das mais importantes da literatura, mesmo estando inacabada, é de notar que o leitor possui uma enorme possibilidade de interpretações que a história em geral possa ter, não havendo necessariamente uma conexão entre os seus capítulos, mas a obra traz grandes reflexões, baseados em situações reais e outras as quanto absurdas. Kafka faz uma mistura de situações reais e surreais de uma forma bem convincente que provoca grandes enigmas durante a história. A grande crítica ao sistema jurídico é bem contundente e a corrupção que ocorre nos bastidores e o capítulo do pintor é um dos que mais se ilustra essa abordagem.
No capítulo que se passa na catedral, onde se tem o diálogo com o protagonista da obra e o sacerdote, se aborda o aspecto religioso e ao mesmo tempo o aspecto mais realista da obra ao falar da própria lei. A grande densidade de intepretações que é possível o leitor fazer nessa parte da obra, mas o autor não está interessado em mostrar qual é a que seria realmente correta, mas apenas ilustrar todas que são possíveis.
Um dos fatores principais da teoria do direito penal do inimigo e que é de difícil aceitação a sua adoção, seria que “pessoa” teria somente uma concepção normativa ao passo que todo o indivíduo é portador de dignidade humana, sendo este um fator intrínseco a todo o ser humano. A definição de quem seria considerado inimigo é muito complexa e teria que estar em consonância de forma harmônica com todo o ordenamento jurídico nacional e internacional o que na prática não é tarefa simples.
Existem posições favoráveis para aplicação da teoria do direito penal do inimigo, quando estamos diante da necessidade de uma sociedade harmônica e equilibrada, é necessário que seja afastada qualquer tipo de insegurança, causada por grupos armados ou organizações criminosas, (inimigos) contra a segurança e a ordem da sociedade. Em consonância com isso, tem-se a necessidade da implementação de um modelo extremamente repressivo contra esses indivíduos de alta periculosidade, para assegurar assim o bem-estar social.
A teoria do Direito Penal do Inimigo, embora tenha a sua base filosófica em grandes pensadores como Hobbes, Rousseau, Kant e Fitche, tem sido alvo de críticas por parte da doutrina, por não estar condizente com princípios basilares dos Estados Democráticos de Direitos e Convenções Internacionais de Direitos Humanos.
Por fim, a obra em geral nos traz uma grande reflexão que pode ser aplicada na nossa atualidade, os abusos cometidos por parte do Estado quando agentes públicos adentrarem no quarto da pensão que vive Josef K. sem mostrar qualquer documento que motive o ato; não informar o motivo da detenção; o processo corre por um tribunal sombrio sem qualquer referência de respeito ao devido processo legal; atos de corrupção e dificuldade de acesso à justiça, situações essas que ainda em muitos casos acontece em nossa sociedade, mesmo que legalmente não se tenha a adoção da teoria do Direito Penal do Inimigo.
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Delegado de Polícia Civil no Estado do Amazonas. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista - UNIP (2004). Doutor em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de Bauru - Instituição Toledo de Ensino - CEUB-ITE (2024). Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA (2017). Pós Graduado em Direito Púbico pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus - FDDJ (2007). Pós Graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior Batista do Amazonas - ESBAM (2011). MBA executivo em Administração, Finanças e Geração de Valor - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS (2020)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANTONIAZZI, Guilherme de Andrade. Uma análise da teoria do Direito Penal do Inimigo com base na obra “O Processo” de Franz Kafka Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2024, 05:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66080/uma-anlise-da-teoria-do-direito-penal-do-inimigo-com-base-na-obra-o-processo-de-franz-kafka. Acesso em: 23 dez 2024.
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