RESUMO: O presente artigo visa analisar a doação de imóveis públicos a entidades privadas sem fins lucrativos, abordando os requisitos legais e constitucionais que devem ser observados para evitar a nulidade da doação. Dentre esses requisitos, destaca-se a necessidade de inclusão da cláusula de reversão, que permite ao Poder Público reaver o bem doado caso a entidade beneficiada deixe de cumprir a finalidade pública para a qual foi instituída. A partir da legislação brasileira, especialmente o Código Civil e a nova Lei de Licitações (Lei n.º 14.133/2021), o estudo examina os aspectos jurídicos relacionados à doação de bens públicos, a obrigatoriedade de encargos e o papel da cláusula de reversão em doações com finalidade social. Também é abordada a nulidade de doações sem a condição resolutiva e a aplicação de medidas judiciais ou administrativas para reverter o bem ao patrimônio público. O artigo ainda destaca a importância da atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio público e a imprescritibilidade da pretensão de retomada de bens públicos, conforme jurisprudência consolidada.
ABSTRACT: The present article aims to examine the donation of public real estate to private nonprofit entities, focusing on the legal and constitutional requirements that must be observed to avoid nullification of the donation. Among these requirements, the inclusion of a reversion clause is highlighted, allowing the Public Authority to reclaim the donated asset if the benefiting entity ceases to fulfill the public purpose for which it was instituted. Based on Brazilian legislation, particularly the Civil Code and the new Public Procurement Law (Law No. 14,133/2021), the study analyzes the legal aspects related to the donation of public assets, the mandatory imposition of obligations, and the role of the reversion clause in donations with a social purpose. It also addresses the nullity of donations lacking a resolutory condition and the application of judicial or administrative measures to revert the asset to public ownership. The article further underscores the importance of the Public Prosecutor's Office in protecting public assets and the imprescriptibility of claims for the recovery of public assets, as established in consolidated jurisprudence.
INTRODUÇÃO
É comum a administração pública fazer doação de bem imóvel a entidade governamental sem fins lucrativos, como uma forma de fomentar a assistência social. Entretanto, para que essa doação não seja anulada, ela deve atender a requisitos legais e constitucionais, é necessário, especificamente, que seja estabelecido expressamente a cláusula de reversão do bem ao Poder Público, que permite que o doador recupere o bem doado, caso o beneficiário da doação deixe de atender aos fins sociais para evitar dano ao erário.
Nesse sentido, o presente artigo analisará a doação de imóvel público a entidade privada, sob a luz da legislação pátria, especialmente nos casos em que a beneficiária deixar de cumprir a finalidade pública para a qual foi criada. Outrossim, realizará uma breve análise da nulidade da doação, caso o referido ato não possua a previsão de condição resolutiva e cláusula de reversão no ato de doação, e os mecanismos processuais que poderão ser usados para reverter o bem ao patrimônio público.
DESENVOLVIMENTO
O instituto da doação tem previsão no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no Código Civil. O referido instituto é uma espécie de contrato “em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”, conforme dita o art. 538 do Código Civil. A Lei n.º 14.333/2021 (nova Lei de Licitações) prevê a doação de bens públicos, assim como a Lei n.º 8.666/93, que já trazia em seu conteúdo a regulamentação desse tipo de doação.
Conforme ensinamento do doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello: “bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, Estado Distrito Federal, Município (...) bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público.” É cediço que a Administração Pública pode doar bens públicos, desde que os fins da doação convirjam para o interesse da coletividade. Nessa esteira, são as lições do saudoso e clássico autor Hely Lopes Meirelles:
“A administração pode fazer doações de bens móveis ou imóveis desafetados do uso público, e comumente o faz para incentivar construções e atividades particulares de interesse coletivo. Essas doações podem ser com ou sem encargos e, em qualquer caso, independem de lei autorizadora, que estabeleça as condições para sua efetivação, de prévia avaliação do bem a ser doado e de licitação. Só excepcionalmente poderá promover concorrência para doações com encargos, a fim de escolher-se o donatário que proponha cumpri-los em melhores condições para a Administração ou para a comunidade. Em toda doação com encargo é necessária a cláusula de reversão para a eventualidade do seu descumprimento.”
Ainda, sim, nas doações públicas devem ser aplicadas as normas do Direito Público e, subsidiariamente, as normas do Direito Privado.
A doutrina civilista traz, para fins didáticos, algumas classificações de doações. Entre elas, tem-se a doação com um encargo ou modo, que, na lição do civilista Flávio Tartuce, é estabelecida como:
“A doação modal ou com encargo é aquela gravada com um ônus, havendo liberalidade somente no valor que exceder o ônus (art. 541, do CC). Não sendo atendido o encargo, cabe a revogação da doação, como forma de resilição unilateral. A título de exemplo, alguém doa um terreno a outrem para que o donatário construa em parte dele um asilo.”
No tocante à doação do bem público, essa tem requisitos específicos, consoante elucida Hely Lopes Meyrelles:
“Doação é um contrato pelo qual uma pessoa (doador), por liberalidade, transfere do seu patrimônio um bem para o de outra pessoa o donatário), que aceita. É um contrato civil, e não administrativo, fundado na liberalidade do doador, embora possa ser com encargo. Dependendo sempre da aceitação do donatário, quer se trate de doação pura ou com encargo. O Município pode fazer doações de bens móveis ou imóveis sem encargos, e em qualquer caso dependem de autorização legislativa que estabeleça condições para sua efetivação, e de desafetados do uso público, e comumente o faz para incentivar construções e atividades a particulares de interesse local e convenientes à comunidade. Essas doações podem ser com ou prévia avaliação do bem a ser doado, não sendo exigível licitação para o contrato alienativo.”
Sendo assim, quando o Poder Público realiza a doação de um imóvel para atender a uma finalidade filantrópica específica e essa finalidade deixa de ser cumprida, o bem deve ser revertido ao doador, sob pena de evidente violação aos princípios constitucionais de legalidade, moralidade e eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da CF/88).
Em se tratando de bem público doado sob condição resolutiva de atender fins filantrópicos, ou seja, que tem uma destinação específica, prevista no instrumento de doação, seu gozo e disposição são limitados, e, de pronto, já poderia ser revertido ao doador em caso de descumprimento do encargo. Isso porque a doação condicional é um negócio jurídico misto que, em parte, é liberalidade, mas também funciona como negócio oneroso, e uma vez descumprido, a revogação estará justificada.
Essa possibilidade de reversão da doação, nos casos de descumprimento do encargo, encontra respaldo na doutrina:
“Procurando evitar uma operação triangular, quando, por vias transversas e obscuras, o bem público tende a parar indevidamente nas mãos de um particular, a Lei estabelece que os imóveis doados pela Administração Pública a ela revertam no caso de cessação das razões que justificaram a doação.” (BITTENCOURT)
A jurisprudência pátria também tem entendimento pacificado quanto ao tema:
EMENTA 1) ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. DOAÇÃO DE IMÓVEL PÚBLICO COM ENCARGO. DESCUMPRIMENTO. AUSÊNCIA DE UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL POR PARTICULAR. INTERESSE PÚBLICO NA RETOMADA DO IMÓVEL PARA CONSTRUÇÃO DA CASA DE CUSTÓDIA. IMPRESCRITIBILIDADE DA PRETENSÃO DE RETROCESSÃO DOS BENS PÚBLICOS. POSSIBILIDADE. a) A Administração Pública pode fazer doações com encargos de bens móveis ou imóveis públicos, por intermédio de lei, visando incentivar atividades particulares de interesse coletivo. Em toda doação com encargo, é necessária a cláusula de reversão do bem público para a eventualidade do seu descumprimento. b) No caso, o Agravante, devido à urgência de utilização do imóvel para a construção da nova Casa de Custódia, requereu a reversão do mencionado bem público, considerando a ausência de utilização do imóvel, nos termos acordados. c) E, realmente, na doação de imóvel público com encargo, visando atender ao interesse público, o descumprimento das condições impostas gera, automaticamente, a reversão do bem ao patrimônio do Município, assegurando-se a função social da propriedade. d) Vale frisar, ainda, que, apesar da decisão agravada se fundamentar no sentido de que a ação de anulação ou reversão do bem público por descumprimento do encargo estaria sujeita ao prazo prescricional previsto para as ações pessoais, entendo que a retomada de imóvel público é imprescritível. Prescritível pode ser, ao contrário, a exigência do encargo. e) Nos termos dos artigos 183, § 3º, e 191 , parágrafo único, da Constituição da República, os bens públicos não são suscetíveis de usucapião, que é uma modalidade de prescrição aquisitiva da propriedade. Daí decorre a imprescritibilidade das ações que visam à retrocessão dos bens públicos. f) Nesse contexto, a presente Ação de reversão do bem público por descumprimento do encargo é imprescritível, de modo que deve ser deferida, em sede de cognição sumária, a tutela recursal, autorizando-se a utilização do bem pelo Agravante. 2) AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJPR - 5ª C.Cível - 0030611-85.2018.8.16.0000 - Guarapuava - Rel.: Desembargador Leonel Cunha - J. 16.04.2019)
Ementa: REMESSA NECESSÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADE NA DOAÇÃO DE BEM PÚBLICO. ARTIGO 17 DA LEI N. 8.666 /93. ATO LEGISLATIVO MUNICIPAL CONTRÁRIO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. SENTENÇA CONFIRMADA. 1. Torna-se possível a doação de bem público quando o ente municipal se baseia na norma reguladora, qual seja, na Lei de Licitações , observando os pressupostos da supremacia do interesse público, da legalidade, da prévia avaliação e autorização legislativa, todos previstos no artigo 17 da Lei n.º 8.666 /93. 2. Constatadas irregularidades na doação dos bens imóveis do município, para que seja reestabelecida a moralidade administrativa, deve ser declarada a nulidade do ato, por ser incapaz de gerar qualquer efeito jurídico. 3. REMESSA NECESSÁRIA CONHECIDA E DESPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA. (TJ-GO - PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Remessa Necessária Cível 2441354820198090127 PIRES DO RIO Jurisprudência. Acórdão Publicado em 03/05/2021)
Além disso, a decisão do Tribunal Mineiro deixa clara que a doação do bem público sempre está vinculada ao interesse público que justificou a doação:
EMENTA: APELAÇÃO. DOAÇÃO DE BEM PÚBLICO. INOBSERVÂNCIA DA FINALIDADE DO USO DO BEM. DESCUMPRIMENTO DA CONDIÇÃO. REVERSÃO DO BEM DOADO. POSSIBILIDADE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. 1. Na lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro,"... a doação condicionada é feita para que o donatário utilize o imóvel para fins de interesse público; se deixar de haver essa utilização, o bem volta ao patrimônio do doador. A idéia evidente é a de manter o bem doado vinculado ao fim de interesse público que justificou a doação. Se deixar de atender a esse objetivo, o bem volta ao patrimônio público." 2. Nesse viés, se o donatário, como no caso dos autos, deixou de cumprir a condição e a finalidade impostas pelo Município no ato da doação do imóvel, impedindo a municipalidade de dar ao imóvel a destinação que o bem da coletividade exige, evidencia-se o desvio de finalidade a justificar a reversão do imóvel ao patrimônio público. (TJ-MG - Apelação Cível: AC 10702160225596002 Uberlândia. Jurisprudência. Acórdão. Publicado em 17/05/2019
Ademais, a reversão se dá com fundamento na lei, especialmente o Código Civil, que dispõe sobre a possibilidade de revogação por inexecução do encargo:
Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.
Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.
Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.
Art. 562. A doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.
À vista disso, quando esse fim social deixa de ser executado, o doador, como legítimo proprietário do bem, tem a competência de adotar as medidas necessárias para garantir que patrimônio público seja usado adequadamente, inclusive tomando as medidas administrativas pertinentes contra particulares, garantindo sua utilização aos fins sociais ao qual o bem foi destinado.
Nesse sentido, é importante destacar que a Lei n.º 14.133/2020, (nova Lei das Licitações) em seu art. 76 estabelece requisitos para alienação de bens da Administração Pública, quais sejam: a presença de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação, tenha autorização legislativa; haja imposição de encargos ao donatário e determine o prazo para cumprimento; além da cláusula de reversão.
Fica evidente, portanto, que a doação de bens públicos é permitida, desde que atendidos os requisitos legais, e que, em caso de descumprimento da finalidade social estabelecida, deve ocorrer a reversão do bem.
No cotidiano forense, é comum que o beneficiário de uma doação de bem público, mesmo sem ter cumprido os requisitos legais e constitucionais, busque medidas judiciais para garantir a propriedade do bem. Frequentemente, esse particular alega usucapião. No entanto, o instituto da usucapião não se aplica a bens públicos, pois tal alegação configura uma clara violação à Constituição Federal, que proíbe expressamente a usucapião de bens públicos ao dispor:
Art. 183. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Art. 191. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Isso ocorre porque, quando um particular ocupa um bem público, não se pode falar em posse propriamente dita, mas apenas em detenção, visto que o particular é apenas um detentor do bem. Por esse motivo, não pode recorrer ao instituto da proteção possessória em seu favor.
Nessa seara, pode ser citado o julgado abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMÓVEL DOADO PELA MUNICIPALIDADE COM ENCARGO E CLÁUSULA DE REVERSÃO. IMPENHORABILIDADE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. 1. A impenhorabilidade do bem constitui matéria de ordem pública, não se encontrando sujeita à preclusão, desde que inexistente decisão anterior no processo acerca do assunto. 2. O bem doado pela municipalidade com encargo de destinação específica para fim de interesse social e cláusula de reversão em caso de descumprimento, é impenhorável. 3. Recurso provido. (TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv: AI 10529130005463001 Pratápolis. Jurisprudência ,Acórdão publicado em 03/05/2019)
Outrossim, o beneficiado deve reverter a propriedade do bem à administração, mas quando ocorrer resistência, é preciso que esse contrato/ato seja anulado, por afronta à ordem jurídica. Essa anulação tanto pode ser feita administrativamente como judicialmente e, reconhecida a nulidade, as áreas públicas voltam intactas ao patrimônio público, ou seja, o Poder Público deve por mecanismos administrativos ou até mesmo judiciais para buscar reverter o bem.
Diante da ausência, porém, de uma medida por parte do Poder Público, o Ministério Público, com guardiã da sociedade, pode e deve utilizar a Ação Civil Pública, prevista na Lei n.º 7.347/85, para buscar junto ao Judiciário a revogação da doação feita pelo ente público ao particular, para se evitar prejuízos ao erário. Inclusive, já é consolidado o entendimento da legitimidade do Ministério Público para impetrar o referido instrumento processual.
Nesse sentido, o grande doutrinador Hugo Mazzilli assim discorre:
Dentre as funções atribuídas pela Constituição Federal ao Ministério Público destaca-se o dever de defender o patrimônio público e social. Na hipótese de a legitimação ordinária não ser exercida diretamente pelo Estado, a Constituição prevê dois mecanismos suplementares, quais sejam, a ação popular e a ação civil pública. Nestas ações, o cidadão e o Ministério Público defendem o patrimônio público e social por meio da substituição processual da entidade pública lesada, já que eles não são seus representantes processuais. A legitimidade do Ministério Público para a defesa do patrimônio público é, portanto, indiscutível em vista da posição fundamental que a instituição ocupa no ordenamento jurídico brasileiro (MAZZILLI, Hugo Nigri, O Ministério Público em Defesa da Constituição. Artigo na Revista Digital do MPC - /https://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/patrpub_MPC.pdf)
Isso não significa que está ocorrendo qualquer intervenção entre os Poderes, posto que a ingerência do Poder Judiciário tem o viés de controle do ato administrativo nulo, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal que assim decidiu:
EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DOAÇÃO DE BEM PÚBLICO. ATO JURÍDICO NULO. CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. SÚMULAS 279 E 280/STF. 1. Não afronta o princípio da separação dos Poderes o controle exercido pelo Poder Judiciário sobre atos administrativos tidos por abusivos ou ilegais. 2. A resolução da controvérsia demanda uma nova análise da legislação local aplicada à espécia e o reexame dos fatos e do material probatório constantes dos autos, providências vedadas neste momento processual. Incidência das Súmulas 279 e 280/STF. 3. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não houve prévia fixação de honorários advocatícios de sucumbência. 4. Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015. (ARE 1045609 AgR. Órgão julgador: Primeira Turma. Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO. Julgamento: 25/08/2017 Publicação: 11/09/2017
É essencial registrar que uma das consequências da anulação do ato administrativo é o cancelamento do registro cartorário do imóvel já consumado, posto que, por expressa previsão do art. 236 da Constituição Federal, o registro é um ato administrativo, praticado por um particular, delegado de um serviço público, fiscalizado pelo Poder Judiciário que exerce o controle da legalidade de seus atos.
Por outro lado, é importante lembrar que, em nome do princípio da legalidade, o registro só será válido se o negócio jurídico que lhe deu origem também for válido. O Código Civil, em seu art. 166, descreve as nulidades de pleno direito ao estabelecer categoricamente:
Art.166. É nulo o negócio jurídico quando:
I- celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II- for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III -o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV- não revestir a forma prescrita em lei
V- for proferida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII- a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
O mesmo Código Civil, em seu art. 1.247, também garante a ratificação ou anulação do registro imobiliário:
“Art. 1.247/CC. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.
Parágrafo único. Cancelado registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.”
Além disso, a Lei n.º 6.015/73 em seu art. 214, prevê a invalidade do registro diante da nulidade de pleno direito:
“Art. 214- As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no independentemente de ação direta.
§ 3º Se o Juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda sem a oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel.
§ 4º Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio.”
Assim, entende a doutrinadora Maria Sylvia Zanella di Pietro ao discorrer:
“Quando se compara o tema das nulidades no Direito Civil e no Direito Administrativo, verifica-se que em ambos os ramos do direito, os vícios podem gerar nulidades absolutas (atos nulos) ou nulidades relativas (atos anuláveis); porém, o que não pode ser transposto para o Direito Administrativo, sem atentar para as suas peculiaridades, são as hipóteses de nulidade de anulabilidade previstas no art. 166 e 171 do Código Civil.
No Direito Civil, são as seguintes diferenças entre nulidade absoluta e a relativa, no que diz respeito às suas consequências: 1. na nulidade absoluta, o vício não pode ser sanado; na nulidade relativa, pode; 2. a nulidade absoluta pode ser decretada pelo juiz, de ofício ou mediante provocação do interessado ou do Ministério Público (art. 168 do Código Civil); a nulidade relativa só pode ser decretada ser provocada pela parte interessada.
No Direito Administrativo, essa segunda distinção não existe, porque, dispondo, a Administração do poder de autotutela, não pode ficar dependendo de provocação do interessado para decretar a nulidade, seja absoluta seja relativa. Isto porque não pode o interesse individual do administrado prevalecer sobre o interesse público na preservação da legalidade administrativa.”
Logo, a partir do momento em que o ato administrativo se desvia da legalidade ou que contraria, mesmo implicitamente, os princípios específicos do direito público, deverá ser decretada a sua invalidade através da anulação para poder restituir a legalidade necessária.
Em suma, revogada a doação, seja, administrativa ou judicialmente, é necessária a anulação do registro cartorial. Desse modo, quando o particular beneficiado com adoção não atender o fim social, o bem deve ser revertido para o erário, por meio de medida implementada pelo Poder Público. Mas, diante da inércia, o Parquet tem legitimidade para impetrar medida judicial e anular a doação em nome do interesse público.
CONCLUSÃO
A doação de bem público, apesar de ser um artefato legítimo para fomentar o interesse social, deve estar sempre subordinada aos princípios que regem a Administração Pública, em especial a legalidade, moralidade e eficiência. A ausência de uma cláusula de reversão nos contratos de doação compromete a possibilidade da volta do bem ao patrimônio público, especialmente quando o beneficiário não cumpre os fins sociais estabelecidos. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência confirmam que a reversão do bem público é imprescritível e necessária em situações de descumprimento das obrigações pactuadas.
Ademais, o Ministério Público pode atuar para garantir que o patrimônio público seja revertido ao seu destino original, antecipando, assim, qualquer lesão ao erário. O rigor, portanto, no cumprimento dos requisitos legais para a doação e a garantia da cláusula de reversão constituem ferramentas essenciais para assegurar a correta utilização e preservação dos bens públicos, mantendo sua destinação social.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Sidney. Licitação Passo a Passo. 9. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 201.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 31 dez. 1973.
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 235.
MAZZILLI, Hugo Nigri. O Ministério Público em Defesa da Constituição. Revista Digital do MPC. Disponível em: https://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/patrpub_MPC.pdf. Acesso em: 19 out. 2024.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 844.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 497.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal. 6. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. Atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 347.
Promotora de Justiça do Ministério Público da Paraíba, titular do cargo de 4º Promotor de Justiça de Bayeux, com atribuição extrajudicial na defesa do Patrimônio Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, maria edligia chaves. Cláusula de reversão nas doações de bem público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66952/clusula-de-reverso-nas-doaes-de-bem-pblico. Acesso em: 23 dez 2024.
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