EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA – PERDIMENTO DE BEM DECRETADO EM SENTENÇA CRIMINAL – VEÍCULO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – POSSIBILIDADE – RESSALVADOS DIREITOS DE TERCEIRO DE BOA FÉ – REMANESCENTE DO VALOR QUE DEVE SER REPASSADO PARA UNIÃO – ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. O veículo alienado fiduciariamente pode ser objeto de perdimento nas hipóteses legais – ilícitos penais e tributários – entendimento inverso geraria verdadeiro salvo-conduto para tais práticas, permitindo que a parte, eventualmente, permaneça com o veículo em atividade, impossibilitando a atuação do judiciário, enquanto pendente o contrato de fidúcia. Inadmissível o entendimento de que enquanto o comprador adimplir as prestações do financiamento possa ficar na posse do bem, mesmo que o faça com dinheiro proveniente de práticas ilícitas e que dele utilize-se para tal. Inexistindo qualquer elemento que indique participação do credor fiduciário do bem nas atividades ilícitas, revela-se plenamente caracterizada a figura do “terceiro de boa-fé”, o qual deve ter seus direitos ressalvados, devendo assim, o veículo alienado ser-lhe devolvido, mas com a ressalva de que vendido para pagar o financiamento, o que restar deve ser depositado em favor da União.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da Seção Criminal do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade, conceder parcialmente a segurança, nos termos do voto do relator, em parte com o parecer. Ausentes, por férias, o Des. Manoel e, justificadamente, a Desª. Marilza.
Campo Grande, 25 de outubro de 2011.
Des. Dorival Moreira dos Santos – Relator
RELATÓRIO
O Sr. Des. Dorival Moreira dos Santos
Trata-se de mandado de segurança, com pedido liminar, impetrado pelo Banco Bradesco S/A, contra o Juízo da Vara Criminal da Comarca de Ponta Porã/MS, objetivando a anulação de ato praticado pela autoridade coatora que nos autos da ação penal n. 019.08.102754-9, está onerando patrimônio de terceiro que não é parte da demanda.
Aduz que na ação de nº 019.08.102754-9 foi preso em flagrante Cícero de Lima, pela prática do delito no art. 33, da Lei nº 11.343/2006, e apreendido o caminhão Scania R 124 GA 4x2 NZ 360, ano e modelo 2000/2000, RENAVAM 730619460, chassi n. 9BSR4X2A0Y3513402, PLACA IJI 2967, alienado ao Banco Bradesco, ora impetrante.
Afirma que somente com o pagamento total da dívida e dos encargos previstos no contrato de abertura de crédito para o financiamento é que o devedor obtém a propriedade do bem, o que não ocorreu na hipótese, portanto, a instituição financeira é a real proprietária do bem, tratando-se de terceira de boa-fé.
Sustenta que a pena de perdimento do bem, sem sequer dar ciência ao Banco, foi ato extremamente arbitral e que merece revogação, sendo que a Constituição Federal assegura a ampla defesa e o contraditório.
As fls. 510-513 foi indeferida de plano a inicial do mandamus. Interposto agravo regimental dessa decisão (fls. 516-520), decidiu-se pelo conhecimento do presente writ (fls. 524-530).
Em decisão de fls. 542-543 foi determinada a suspensão de qualquer medida no sentido de alienar o bem, até que se decida o presente mandado de segurança.
As fls. 547-569 foram prestadas informações pela autoridade apontada como coatora.
A Procuradoria de Justiça opinou pela concessão da segurança (fls. 535-541).
VOTO
O Sr. Des. Dorival Moreira dos Santos (Relator)
Consoante relatado, cuida-se de mandado de segurança, com pedido liminar, impetrado pelo Banco Bradesco S/A contra o Juízo da Vara Criminal da Comarca de Ponta Porã/MS, objetivando a anulação de ato praticado pela autoridade coatora que nos autos da ação penal n. 019.08.102754-9, determinou o perdimento do caminhão Scania R 124 GA 4x2 NZ 360, ano e modelo 2000/2000, RENAVAM 730619460, chassi n. 9BSR4X2A0Y3513402, PLACA IJI 2967, sob argumento de que se está onerando patrimônio de terceiro que não é parte da demanda.
Pois bem. Em relação ao perdimento dos bens envolvidos na atividade de tráfico de entorpecentes, dispõe a Constituição Federal:
“Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.”
Paralelamente, a Lei de Drogas – Lei nº 11.346/06 – dispõe:
Art. 62. Os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte, os maquinários, utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza, utilizados para a prática dos crimes definidos nesta Lei, após a sua regular apreensão, ficarão sob custódia da autoridade de polícia judiciária, excetuadas as armas, que serão recolhidas na forma de legislação específica.
[...]
Art. 63. Ao proferir a sentença de mérito, o juiz decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor apreendido, seqüestrado ou declarado indisponível.
§ 1o Os valores apreendidos em decorrência dos crimes tipificados nesta Lei e que não forem objeto de tutela cautelar, após decretado o seu perdimento em favor da União, serão revertidos diretamente ao Funad.
§ 2o Compete à Senad a alienação dos bens apreendidos e não leiloados em caráter cautelar, cujo perdimento já tenha sido decretado em favor da União.
§ 3o A Senad poderá firmar convênios de cooperação, a fim de dar imediato cumprimento ao estabelecido no § 2o deste artigo.
§ 4o Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz do processo, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, remeterá à Senad relação dos bens, direitos e valores declarados perdidos em favor da União, indicando, quanto aos bens, o local em que se encontram e a entidade ou o órgão em cujo poder estejam, para os fins de sua destinação nos termos da legislação vigente.
Ademais, registro que não é a simples existência de contrato de leasing que inviabiliza a decretação do perdimento do bem, quando, como no caso, existe cláusula de aquisição ao final do contrato.
A propósito, colho precedente do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO - PENA DE PERDIMENTO DE VEÍCULO - TRANSPORTE IRREGULAR DE MERCADORIAS - POSSIBILIDADE - VEÍCULO ADQUIRIDO EM CONTRATO DE LEASING.
1. Não se aplica a Súmula n. 7/STJ, quando a matéria a ser decidida é exclusivamente de direito.
2. A pena de perdimento de veículo por transporte irregular de mercadoria pode atingir os veículos adquiridos em contrato de leasing, quando há cláusula de aquisição ao final do contrato.
3. A pena de perdimento não altera a obrigação do arrendatário do veículo, que continua vinculado ao contrato.
4. Admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais.
5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido.”
(REsp 1153767/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 26/08/2010)
No mesmo sentido o STJ já decidiu monocraticamente:
“[...] admitir o entendimento de que o veículo que esteja alienado fiduciariamente não pode ser alvo de apreensão fiscal e possível pena de perdimento, quando flagrado no cometimento de ilícitos tributários e até penais, é dar verdadeiro salvo conduto a tais práticas. É possibilitar que a parte permaneça com o veículo em atividade sem qualquer possibilidade de atuação do Fisco, enquanto pendente o contrato de fidúcia.” (REsp 1217929; Min. Castro Meira; 30.06.2011)
Embora se entenda cabível a determinação de perdimento de bem - desde que comprovado o nexo de instrumento (uso do bem para a consecução do ilícito) ou de causa (aquisição com recursos provenientes da atividade criminosa) com os delitos insculpidos na Lei de Tóxicos, mesmo de veículo alienado fiduciariamente - devem ser resguardos direitos de terceiros de boa-fé, alheios à atividade criminosa, conforme salienta o Código Penal, in verbis:
“Art. 91 - São efeitos da condenação:
I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;
II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:
a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;
b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.
In casu, o veículo em questão foi objeto de alienação fiduciária em favor do banco impetrante, modalidade de operação em que o credor tem o domínio resolúvel e a posse indireta do bem e o devedor a posse direta, por ser seu depositário. No financiamento de veículo com alienação fiduciária é sabido que o devedor oferece como garantia adicional o próprio bem que pretende adquirir, perdendo a posse somente em caso de inadimplência.
O banco impetrante afirmou que somente com o pagamento do total da dívida e dos encargos previstos no contrato de abertura de crédito para o financiamento é que o devedor obtém a propriedade do bem, portanto, o caminhão do qual se decretou o perdimento pertence-lhe e, por ser terceiro de boa-fé, a ele deve ser restituído.
O contrato de alienação fiduciária é regido pelo Código Civil, que o conceitua no art. 1.361, verbis:
“Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. § 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. § 2º Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa. § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.
No ensinamento de Sílvio de Salvo Venosa:
“o instituto vem servindo para dinamizar o crédito direto ao consumidor de coisas móveis” e “tem por finalidade primordial propiciar maior facilidade ao consumidor na aquisição de bens, e garantia mais eficaz ao financiador, protegido pela propriedade resolúvel da coisa financiada enquanto não paga a dívida, propiciando-lhe o legislador instrumentos processuais eficientes.” (in: Direito Civil. Volume 5, Direitos Reais. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. Págs. 550-1).
Desse modo, inexistindo qualquer elemento a indicar a participação do credor fiduciário do bem nas atividades ilícitas, revela-se plenamente caracterizada a figura do “terceiro de boa-fé”. Contudo, no que tange à restituição do bem, cumpre tecer ainda algumas considerações.
O Código Civil no seu art. 1.364 dispõe que:
“Vencida a dívida e não paga, fica o credor obrigado a vender a coisa a terceiros e aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança e a entregar o saldo, se houver, ao devedor”.
Em comentário ao referido artigo, ensina Maria Helena Diniz:
“Logo, se o fiduciante for inadimplente, o preço alcançado naquela venda será aplicado no pagamento do crédito do fiduciário e das despesas havidas com a cobrança, entregando, é obvio, ao fiduciante (devedor) o saldo que, porventura, houver.” (Código civil anotado; Edt. Saraiva: 2005; p. 1.092)
Na hipótese, nota-se, a prima facie, que as primeiras parcelas da dívida foram pagas com recursos provenientes da atividade ilícita de tráfico de entorpecentes (nove parcelas de R$ 3.450,00, totalizando R$ 31.050,00, consoante informações da própria impetrante), conforme reconhecido na sentença que determinou o perdimento do bem.
Diante disso, entendo que do valor arrecadado com o leilão do bem, para pagamento do financiamento, deve ser reservado a União o remanescente.
Por fim, em relação ao prequestionamento alçado, registro que a matéria foi devidamente apreciada, sendo prescindível a indicação expressa de todos os artigos legais mencionados.
Posto isso, em parte com o parecer, concedo parcialmente a ordem, para que o veículo seja entregue ao credor, mas com a ressalva de que, vendido para pagar o financiamento – se isto já não ocorreu – o que restar deve ser depositado em favor da União.
Comunique-se, com urgência, ao juiz da causa da ação de busca e apreensão de n. 0805188-45.2011.8.12.001- 18ª Vara Cível de Competência Especial - acerca desta decisão, enviando-lhe cópia do julgado.
DECISÃO
Como consta na ata, a decisão foi a seguinte:
POR UNANIMIDADE, CONCEDERAM PARCIALMENTE A SEGURANÇA, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR, EM PARTE COM O PARECER. AUSENTES, POR FÉRIAS, O DES. MANOEL E, JUSTIFICADAMENTE, A DESª. MARILZA.
Presidência do Exmo. Sr. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte.
Relator, o Exmo. Sr. Des. Dorival Moreira dos Santos.
Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Desembargador Dorival Moreira dos Santos, Juiz Francisco Gerardo de Sousa e Desembargadores Claudionor Miguel Abss Duarte, João Carlos Brandes Garcia, Romero Osme Dias Lopes e Carlos Eduardo Contar.
Campo Grande, 25 de outubro de 2011.
TJMS - Av. Mato Grosso - Bloco 13 - Fone: (67) 3314-1300 - Parque dos Poderes - 79031-902 - Campo Grande - MS<br>Horário de Expediente: 8 as 18h. Home: www.tjms.jus.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, TJMS - Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul. TJMS - Civil e Processo Civil. Mandado de segurança. Perdimento de bem decreado em sentença criminal. Veículo com alienação fiduciária. Possibilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Jurisprudências /33454/tjms-civil-e-processo-civil-mandado-de-seguranca-perdimento-de-bem-decreado-em-sentenca-criminal-veiculo-com-alienacao-fiduciaria-possibilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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