O presente trabalho tem por objetivo analisar se o aumento da criminalidade tem como principal causa a crise social do Estado contemporâneo, ou seja, a medida que o Estado prioriza sua atuação no mercado e que o corpo político passa a defender os interesses de apenas uma camada privilegiada, a sociedade se vê desprovida de um ente que lhe assegure o mínimo necessário para uma sobrevivência digna, passando a desacreditar nessa instituição chamada Estado e a agir por conta própria.
Desse modo, se os homens deixam de acreditar no Estado, ele perde o porquê de sua existência pois, conforme se verifica das lições dos contratualistas[1], o Estado nasce do pacto, ou do contrato, em que os homens de uma sociedade cedem parte de seus direitos a um homem ou uma assembléia de homens para lhes assegurar direitos mínimos como a vida, a liberdade, a propriedade etc.
Assim, o que se verifica atualmente é o isolamento social de cada indivíduo, onde prevalece a descrença nos padrões de conduta, a falta de valores e de princípios sociais, levando ao não cumprimento das normas que guiam a conduta humana, onde se verifica, ainda, um estado muito próximo àquele descrito por Hobbes: “uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”[2], em que não há um poder comum capaz de assegurar a paz e a defesa comum.
A escolha do tema surgiu portanto do interesse em se verificar se a criminalidade tem aumentado ao passo que o Estado tem deixado de cumprir o fim pelo qual foi instituído, qual seja, garantir a paz, a vida, a liberdade, a propriedade e meios para sua defesa.
O problema de pesquisa proposto e a ser respondido ao final do trabalho é: “O aumento da criminalidade tem como causa a crise social do Estado Contemporâneo?”
A hipótese a ser testada é: “Se o Estado brasileiro está em crise perante sua sociedade, então resultará no aumento da criminalidade”.
A hipótese apresentada será fundamentada através da análise da doutrina relativa à sociologia política, no que diz respeito à formação e função do Estado, na doutrina sociológica a respeito do estado de anomia, bem como da análise de dados estatísticos que tracem um mapa da criminalidade no Brasil, confrontando-os com dados estatísticos relativos à população do país. Assim a metodologia a ser utilizada será a revisão doutrinária.
O capítulo 1 trará a visão dos três principais autores contratualistas a respeito do contrato social e dos fins que levaram à formação do Estado. No capítulo 2 será apresentado o conceito de crise social a ser considerado neste trabalho, qual seja, o de anomia social. Já o capítulo 3 apresentará os conceitos de crime e criminalidade e os dados relativos ao aumento da criminalidade, compreendendo os períodos de 1950, 1975 e 2002. Por fim, no capítulo 4 se dará o teste da hipótese de pesquisa, onde será traçado um paralelo entre a crise social do Estado e o aumento da criminalidade.
1. PRESSUPOSTOS DA TEORIA DO ESTADO
A sociedade em que se vive hoje, com um poder soberano e regida por leis, não existe desde sempre. Segundo os contratualistas, os homens viviam em uma sociedade na qual todos eram senhores de tudo, ou seja, poderiam dispor de tudo o que quisessem, inclusive a vida de outros, pois não havia algo ou alguém que os regulassem ou os dissessem o que é certo ou errado, justo ou injusto. Os homens viviam a mercê da vontade uns dos outros, em completa incerteza e insegurança.
A sociedade civil ou Estado civil, como se conhece hoje, nasce então da vontade dos homens viverem com maior segurança e certeza de que seus direitos seriam salvaguardados por um ente soberano criado para tal fim.
O que se pretende portanto neste capítulo é buscar, dentro das obras dos contratualistas, a formação do Estado e os fins pelos quais ele foi criado e, a partir de tal estudo, traçar como seria a atuação do Estado nos dias atuais.
1.1 Formação e Finalidade do Estado Segundo os Contratualistas
1.1.1 HOBBES: Da Guerra de Todos Contra Todos à Instituição de um Poder Soberano
Para entender o porquê da formação do Estado, os motivos que levaram os homens a se submeterem a um poder soberano, Thomas Hobbes se preocupa em buscar a natureza humana, isto é, busca demonstrar como os homens viviam antes da instituição do Estado, quando eram livres de qualquer tipo de poder coercitivo e viviam em total igualdade e liberdade em relação uns com os outros.
Segundo Hobbes:
A natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito que, (...), a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.[3]
Isso significa que, por natureza, os homens são tão iguais que nenhum poderá dizer que tem direito sobre algo que o outro também não tenha igual direito.
Daí resulta que não há propriedade nesse estado de igualdade, visto que todos têm os mesmos direitos sobre o mesmo objeto.
Se dois homens desejam a mesma coisa, portanto, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos. No caminho para seu fim – que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleito –, esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.[4]
A partir de tal pensamento inicia-se a construção dos motivos pelos quais o Estado civil irá surgir. Pois devido à igualdade de que todos têm para agir conforme lhes aprouver é que surge a desconfiança de uns para com os outros e a necessidade de tomar atitudes que possam garantir sua preservação, posto que um homem irá subjugar o outro e maquinar maneiras de não se ver privado do fruto de seu trabalho ou até mesmo de sua vida, passando a agir antecipadamente, visto que não se sabe o que o outro também está tramando contra ele.
Em tal estado de natureza, vive-se portanto em completa incerteza e insegurança e
torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos homens contra todos os homens.[5]
Questiona-se quais seriam as vantagens do homem continuar vivendo em sociedade, já que não há segurança ou meios eficazes de garantir sua preservação. Ocorre que o homem não consegue prover suas necessidades sozinho, ele necessita da ajuda de outros para garantir sua sobrevivência, portanto deve-se buscar viver em comunidade, porém, introduzindo restrições a si mesmos para que esse convívio seja pacífico.
Surge então a necessidade de se instituir um poder suficientemente grande e que seja comum a todos, capaz de dirigir ações em benefício comum de modo a assegurar a paz e a defesa dos homens.
Para o nascimento de tal poder faz-se necessário que todos submetam suas vontades à vontade de um representante, por meio de pactos recíprocos uns com os outros, conferindo assim toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens. “Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado.”[6]
Estado instituído é quando uma multidão de pessoas concordam e pactuam que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles – ou seja, de ser seu representante –, todos, sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes dos homens.[7]
Para Hobbes esse representante instituído pelos homens é um soberano com poderes absolutos, sendo que seus atos e decisões são considerados como atos e decisões de todos, portanto ele é incapaz de tomar decisões que prejudiquem os súditos, pois tal decisão é considerada como sendo do próprio súdito, e ninguém agiria contrário a si mesmo.
A esse representante incumbe a tarefa de estabelecer as regras que irão regular o Estado, são as chamadas leis civis, as quais todos os membros são obrigados a conhecer e respeitar. São a partir das leis civis que se estabelecem as regras da propriedade, devendo os homens distinguir o meum e o tuum e limitar as ações que podem praticar, bem como saber quais os bens que podem gozar, sem serem molestados por qualquer de seus concidadãos.
As leis civis nortearão ainda todas as ações dos membros do Estado e deverão ser obedecidas por todos, sob pena de uma sanção, “porque a lei é a consciência pública, pela qual (o homem) já aceitou ser conduzido.”[8]
Caso os homens de um Estado já não mais respeitem suas leis e voltem a praticar ataques uns contra os outros, ocorrerá o que Hobbes descreve como “causa que leva à dissolução do Estado”, posto que os homens agirão do mesmo modo como agiam no estado de natureza, subjugando um ao outro e maquinando meios de defender a si e à sua propriedade contra o possível ataque dos outros, portanto, já não haveria razão para o Estado civil continuar a existir pois sua finalidade, assegurar a paz e a segurança pública, não foi cumprida.
1.1.2 LOCKE: Dos Juízes em Causa Própria ao Estabelecimento de um Juiz Comum
Assim como Hobbes, John Locke traça a passagem dos homens de um estado de natureza para um Estado civil, contudo o estado de natureza descrito por Locke é diferente daquele descrito por Hobbes, visto que neste os homens vivem em total insegurança e violência (derivadas da própria índole humana), já naquele os homens gozam de relativa paz e harmonia.
Para Locke a relativa paz e o convívio harmonioso no estado de natureza derivam do fato de que os homens são governados por leis da natureza, isto é, leis que pela própria razão humana os homens têm consciência de que, “sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens.”[9]
Surge então, no estado de natureza lockeano, um dever de solidariedade uns para com os outros, pois qualquer um que presenciar outro violando o direito de terceiro deverá impedir tal violação. Cabe a todos, portanto, assegurar a execução do direito natural, mesmo que isso implique na aplicação de uma punição àquele que transgrediu o direito natural do outro.
Ocorre que “se qualquer um no estado de natureza pode punir o outro por qualquer mal que ele tenha cometido, todos podem fazer o mesmo.”[10] Então, nesse estado, um homem terá um poder sobre o outro quando puder aplicar-lhe uma pena para assegurar a reparação e a prevenção pela transgressão ao direito natural.
Conclui-se que todos os homens são juízes de todos os homens e, ao ser juiz em causa própria, um homem se tornará parcial em relação a si e a seus amigos, impondo ao transgressor uma pena maior que a devida, “e nesse caso só advirá a confusão e a desordem; e certamente foi por isso que Deus instituiu o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens.”[11]
Locke descreve que da parcialidade dos homens ao julgar em causa própria surge o estado de guerra, que é um estado de inimizade e de destruição, onde aquele que transgrediu a lei natural se colocou em estado de guerra em relação ao titular do direito lesionado e o restante da sociedade, visto que, segundo o autor, os homens que não obedecem as leis da razão, seguem a lei da força e da violência e devem ser tratados como criaturas nocivas à coletividade.
A solução para se por fim ao estado de guerra é a lei, “pois a lei tem por finalidade proteger e reparar os inocentes, através de sua aplicação justa a tudo o que está sob sua tutela”[12], e o estado civil, “pois onde há uma autoridade, um poder sobre a terra, onde se pode obter reparação através de recurso, está excluída a continuidade do estado de guerra e a controvérsia é decidida por aquele poder.”[13]
Quando os homens decidem deixar o estado de natureza para viverem num estado civil, eles não estão deixando de ser livres, pois a liberdade se define em:
dispor e ordenar sobre sua própria pessoa, ações, possessões e tudo aquilo que lhe pertence, dentro da permissão das leis às quais está submetido, e, por isso, não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa, mas seguir livremente a sua própria vontade.[14]
Verifica-se que um dos fins da sociedade civil é estabelecer leis que regulem a vida em coletividade, bem como as punições cabíveis ao transgressor da lei, como intuito de reprimi-lo e reparar o dano causado. Contudo o fim maior do governo civil, para Locke, é a preservação da propriedade, entendendo propriedade em sentido genérico como sendo a propriedade da vida, da liberdade e dos bens.
A sociedade civil surge:
através de acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros. (...) E assim cada homem, consentindo com os outros em instituir um corpo político submetido a um único governo, se obriga diante de todos os membros daquela sociedade, ,a se submeter à decisão da maioria e a concordar com ela.[15]
Falou-se dos fins pelos quais surge um estado civil e o modo como ele é criado, cabe agora expor o que leva um estado civil à sua dissolução.
Assim como Hobbes, Locke cita a maneira pela qual pode levar o estado a se dissolver, qual seja, aquela em que o povo é governado de maneira ilegal e graves erros são cometidos pelo governo levando o povo à rebelião.
Os homens suportam certos deslizes e erros do governo, sem revolta ou queixa, contudo, quando se tem um longo período de abusos e fraudes que levem o estado a deixar seus fins de lado e passem a privilegiar os interesses de alguns poucos que detêm o poder, o povo se rebela e tenta “colocar as rédeas nas mãos de quem possa lhe garantir o fim em si do governo.”[16]
A maior ofensa que um governo pode cometer é justamente deixar de cumprir os objetivos pelos quais foi instituído, pois o governo é a parte privilegiada num Estado civil, posto que ele é quem irá produzir as leis e executá-las, ao passo que o povo não tem a quem recorrer pois quem poderia ajudá-lo, foi colocado sob suspeita, restando então a rebelião como meio de restaurar um governo que atenda a seus fins.
O povo será o juiz, que vai julgar se o comissionado ou o mandatário age bem e de acordo com a confiança nele depositada, e deve, por havê-lo comissionado, ter ainda o poder de destituí-lo quando falha em sua confiança.[17]
1.1.3 ROUSSEAU: Da Liberdade Ilimitada e Ilusória à Liberdade Regulada e Segura
Como os demais autores vistos, Rousseau busca os motivos que levaram o homem a deixar sua condição de liberdade no estado de natureza para viverem sob as regras de um governo civil.
Para dar início à sua linha de raciocínio, Rousseau procura a primeira forma de sociedade e encontra a família como sendo a mais antiga de todas as sociedades. Segundo ele a família só se mantém devido à necessidade de conservação de seus membros, pois a primeira lei que rege o homem consiste em zelar pela própria conservação, contudo, a família se mantém unida por convenção de seus membros e não pela força ou autoridade que o pai tem sobre o filho e os demais membros.
A respeito da força, ele diz que a força não faz o direito, isto é, quem obedece alguém por ter sido coagido com o uso da força, não o fez por sua vontade, mas, por necessidade, daí resulta que não há obrigatoriedade em se obedecer uma ordem que deriva da força, posto que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos.
Conclui que:
já que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante, e uma vez que a força não produz direito algum, restam então as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens.[18]
A partir dessa breve explicação sobre a necessidade das convenções entre os homens é que Rousseau inicia a construção de seu pensamento a respeito da maior das convenções, o pacto social.
Inicialmente, é proposto um estado de natureza onde os homens vivem em harmonia e felizes, contudo, nesse estado, não há meios dos homens se desenvolverem, razão pela qual eles permanecem “estúpidos e limitados”, intervindo a sociedade justamente para possibilitar que se adquiram as idéias, a palavra, a consciência moral, enfim, o desenvolvimento.
Nas palavras de Rousseau o contrato social é:
uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes. (...) Esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, o qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.[19]
A esse corpo dá-se o nome Estado.
Apesar do homem perder sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e possa alcançar, pelo contrato social ele ganha a liberdade civil e garante a propriedade de tudo o que possui, posto que, tomada a sua parte, ele deve limitar-se a ela e não ferir a propriedade do outro.
O ponto principal do contrato social em Rousseau é a “vontade geral”, a qual ele distingue da “vontade de todos”, onde esta diz respeito ao interesse privado, sendo uma soma das vontades particulares, enquanto aquela se refere aos interesses comuns. A vontade geral leva o homem ao debate, à discussão do que se pode fazer para o bem de todos, sendo o resultado desse debate a verdadeira vontade da sociedade, pois “se não houvesse um ponto em que todos os interesses concordam, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente com base nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada.”[20]
Tendo em vista que todos os membros da sociedade têm ao menos um interesse em comum, qual seja, o bem comum, eles também têm os mesmos direitos e deveres perante o corpo social, “o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidadãos que todos eles se comprometem sob as mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos.”[21] Do mesmo modo, o soberano jamais poderá onerar mais um súdito que outro, todos são iguais, assim, todo ato autêntico da vontade geral (ou seja, do soberano) obrigará ou favorecerá igualmente todos os cidadãos.
Se pelo pacto social se dá existência e vida ao corpo político, a lei é o que lhe dará o movimento e a vontade, visto que ela é quem estabelecerá todos os direitos e conduzirá a justiça ao seu fim. E, apesar do povo ser o autor delas, ele necessita de um guia que reconheça o bem comum e preserve as leis da sedução das vontades particulares, a esse guia dá-se o nome de legislador que, para Rousseau, é “um homem extraordinário no Estado”, pois será ele quem conduzirá a sociedade por meio das leis.
O homem que não obedece as leis e as viola será processado e julgado e a declaração de que ele rompeu o tratado social o excluirá do Estado. Por outro lado, se vários homens já não obedecem as leis daquele Estado isso é um sinal de que o Estado está em decadência e já não atende à seu fim. O mesmo ocorre quando o príncipe administra o Estado em desacordo com as leis e usurpa o poder soberano, nesse momento rompe-se o pacto social e todos os cidadãos são reintegrados de sua liberdade natural. Esses são alguns dos meios pelos quais se degenera o Estado, segundo Rousseau.
1.2 O Estado Contemporâneo sob a Ótica Contratualista
O pensamento de Thomas Hobbes deu grande legitimidade ao absolutismo, posto que, segundo ele, o soberano era quem detinha todo o poder para governar o povo, sem limites nem controles, e a este, por sua vez, restava apenas o dever de obediência ao soberano.
A partir do pensamento lockeano constrói-se a idéia de que o poder do soberano advém do povo, o qual transfere parte desse poder para que o soberano governe o Estado, portanto, o soberano recebe, legitimamente, apenas parte do poder, restando outra parcela com o próprio povo. Verifica-se então que quem legitima o governo do soberano são os próprios súditos.
Com o pensamento de Rousseau chega-se à construção do Estado Democrático, onde o povo, através da vontade geral, governa a si próprio. A Carta Magna Brasileira de 1988 trouxe a idéia em seu art. 1º, parágrafo único:”Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes...”
Há ainda a idéia de direitos do homem opostos contra o Estado, ou seja, direitos que o Estado tem o dever de respeitar. Surge assim a necessidade de positivação de tais direitos, bem como das regras que irão nortear a conduta do próprio Estado. É o que se chama de “Estado Democrático de Direito”.
Contudo, verifica-se hoje que o Estado idealizado pelos contratualistas sofreu grandes modificações, inclusive convivendo com situações que, segundo eles, o Estado se dissolveria, por exemplo, para Hobbes caso os homens de um Estado já não mais respeitem suas leis e voltem a praticar ataques uns contra os outros, ocorreria o que ele descreve como “causa que leva à dissolução do Estado”, posto que os homens agiriam do mesmo modo como agiam no estado de natureza, subjugando um ao outro e maquinando meios de defender a si e à sua propriedade contra o possível ataque dos outros, portanto, já não haveria razão para o Estado civil continuar a existir pois sua finalidade, assegurar a paz e a segurança pública, não foi cumprida.
A situação acima descrita pode ser constatada nos dias atuais, onde os meios de comunicação revelam que diariamente as leis são transgredidas tanto pelo povo quanto pelo Estado, há total descaso às normas editadas para regulamentar a vida em sociedade.
Constata-se ainda, como previu Hobbes, que os homens agem como no Estado de natureza descrito por ele, ou seja, com total desrespeito à vida e à propriedade do outro, restando aos homens maquinar meios de defender a si e aos seus bens.
Lembrando o que diz Locke a respeito do descumprimento das leis e regras da vida em sociedade, o governo é a parte privilegiada num Estado civil, posto que ele é quem irá produzir as leis e executá-las, ao passo que o povo não tem a quem recorrer pois quem poderia ajudá-lo, foi colocado sob suspeita.
Do mesmo modo, Rousseau prevê que se vários homens já não obedecem as leis daquele Estado isso é um sinal de que o Estado está em decadência e já não atende à seu fim.
Pode-se concluir que o aumento da violência nos dias atuais é um reflexo da crise pela qual passa o Estado, pois, conforme disse Rousseau:
Num Estado bem governado poucas são as punições, não porque se concedem muitos indultos, mas porque há poucos criminosos: a abundância de crimes assegura sua impunidade quando o Estado decai.[22]
Assim, sob a ótica constratualista, o Estado contemporâneo é um Estado em crise, a qualquer momento podendo ser dissolvido. Então pergunta-se: “Como deveria ser a atuação do Estado nos dias atuais?”. Buscar-se-á a resposta a essa pergunta no item seguinte.
1.3 A Atuação Hipotética do Estado nos Dias Atuais
Nos itens anteriores foi visto como se deu a formação do Estado e a finalidade pela qual foi criado. Agora fazer-se-á uma análise de como seria a atuação do Estado na contemporaneidade seguindo a linha de raciocínio apresentada pelos contratualistas, qual seja, o cumprimento do contrato social.
Como apresentado, a finalidade do Estado dentro das obras de Hobbes, Locke e Rousseau pode ser resumida como sendo a preservação do homem e de sua propriedade, bem como os meios que possam garantir tal preservação, caso contrário, não haveria necessidade dos homens instituírem um poder soberano e legitimá-lo para agir em nome de todos.
Atualmente a questão da finalidade do Estado é apresentada de forma satisfatória por Dalmo Dallari, segundo o qual não há como se chegar a uma idéia completa do que seja Estado sem ter consciência de seus fins, pois:
a falta de consciência das finalidades é que faz com que, não raro, algumas funções importantes, mas que representam apenas uma parte do que o Estado deve objetivar, sejam tomadas como finalidade única e primordial, em prejuízo de tudo o mais.[23]
O Estado, segundo Dallari, é uma unidade conseguida pelo desejo de se realizar inúmeros fins particulares, contudo tais fins estão ligados a um único interesse que os converge, o fim geral do Estado, que é o bem comum. Mas o que é o bem comum? Dallari adota o conceito de bem comum formulado pelo Papa João XXIII, como sendo o mais completo: “O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consistam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana.”[24]
Portanto, ao se afirmar que o Estado tem por finalidade o bem comum, isso significa que ele busca a criação de condições que permitam que cada homem e cada grupo social alcance seus respectivos fins particulares. Caso uma sociedade se organize de modo que só promova o bem de uma parcela de seus integrantes, é sinal de que ela está mal organizada e afastada dos objetivos que justificam sua existência.
Entende-se assim que, apesar das diferenças entre os indivíduos na sociedade, o Estado é o instrumento capaz de trazer a igualdade de condições para se alcançar os fins almejados por cada um. Utilizando-se da interpretação que Paulo Krischke faz do neocontratualista John Rawls: “a idéia do contrato pode ser utilizada exatamente para considerar e solucionar os problemas da desigualdade existente na sociedade.”[25]
É difícil a tarefa de se caracterizar uma crise, principalmente quando se fala em crise da sociedade. Por esse motivo, para se tratar da crise social do Estado brasileiro, buscar-se-á configurá-la como “anomia social”, tema tratado pela literatura jurídica e sociológica.
Primeiramente, necessário se faz a conceituação do termo anomia. O Dicionáiro Michaelis dá a seguinte denotação:
anomia é a ausência ou negação do ordenamento jurídico vigente. Ausência de lei ou regra; anarquia; estado da sociedade nos quais os padrões normativos de conduta e crença tem enfraquecido ou desaparecido; condição semelhante em um indivíduo comumente caracterizada por desorientação pessoal, ansiedade e isolamento social.[26]
Maria Helena Diniz, no Dicionário Jurídico, traz o seguinte conceito:
1.(...) 2. Teoria geral do direito. Ausência de norma. 3. Ciência política. a) Anarquia; b) situação numa sociedade em que os padrões normativos de conduta e crença estão enfraquecidos ou desapareceram.[27]
A Enciclopédia Saraiva do Direito dá a seguinte conceituação:
é a situação onde os padrões de conduta e crença enfraqueceram ou desapareceram, levando à inexistência de lei fixa; anarquia. Há um segundo sentido, que representa o estado individual caracterizado pelo isolamento social, desorientação e ansiedade. É a ausência de normas, a falta de valores e de princípios sociais. Tal situação desorienta o indivíduo, impedindo-o de saber com certeza qual o caminho que deve seguir.[28]
O tema “anomia” foi muito estudado pelo sociólogo Émile Durkheim e apresentado em suas obras O Suicídio e Da Divisão do Trabalho Social, às quais passa-se uma breve exposição.
Na obra O Suicídio, Durkheim demonstra que o suicídio, apesar de aparentar ser um fenômeno individual, tem fortes relações com a vida em sociedade. Para fundamentar sua tese ele retratou três diferentes suicídios: o egoísta, o altruísta e o anômico, sendo a análise deste último o que interessa a este trabalho.
Segundo Durkheim o ser vivo somente pode ser feliz se tiver meios para satisfazer suas necessidades. Acontece que o homem não sabe como fixar a quantidade de bem-estar, de conforto que se pode buscar legitimamente, sendo as necessidades, pois, ilimitadas. Mas se os desejos são ilimitados eles são, por definição, insaciáveis. E já que nada os limita, eles sempre ultrapassam os meios de que o homem dispõe para alcançá-los. Portanto, ao perseguir um fim inacessível, o homem condena-se a um “perpétuo estado de descontentamento”.
Para o sociólogo o único meio de se por limites a esses desejos é a regulamentação por parte da sociedade, visto que:
Só a sociedade, seja diretamente e em seu conjunto, seja por intermédio de um de seus órgãos, está em condições de desempenhar esse papel moderador, pois ela é o único poder moral superior ao indivíduo, e cuja superioridade este último aceita. Só ela tem autoridade necessária para dizer o direito e para marcar o ponto além do qual não devem ir as paixões.[29]
Ocorre que:
essa disciplina (por parte da sociedade) só pode ser útil se considerada justa pelos povos que lhe são submetidos. Quando ela já não se mantém (...) o espírito de inquietação e o descontentamento são latentes; os apetites, superficialmente contidos, não tardam a se desencadear.[30]
Assim, o indivíduo encontra-se diante de uma situação de vida em que ele perdeu a confiança nas instituições e no ordenamento em vigor, por não serem justos. Ele vive em sociedade mas não se sente fazendo parte dela, por conseguinte, as normas produzidas pelo corpo social não dizem respeito a esse indivíduo.
Na análise da obra Da Divisão do Trabalho Social, verifica-se que Durkheim busca a relação do indivíduo e a coletividade com trabalho, já que a divisão do trabalho é responsável por uma nova forma de coesão social: a solidariedade orgânica. Tal solidariedade se deve ao fato de existir certa afinidade e um vínculo entre os participantes de um grupo de trabalho, e se diz orgânica por ter cada participante do grupo uma função especializada, equiparando-se aos órgãos do corpo humano, de modo que cada um depende dos demais, exercendo atividades diferentes.
Mas, como no corpo humano, Durkheim prescreve que a solidariedade social produzida pela divisão do trabalho também sofre de algumas patologias, uma delas é “a divisão do trabalho anômica”, a qual se revela quando o indivíduo isola-se em sua atividade, já não mais percebendo a importância de seu trabalho e da de seus colaboradores, perdendo a noção da obra comum.
..., do ponto de vista moral, ao mesmo tempo que é assim posto sob uma estreita dependência da massa, cada um é naturalmente desviado dela pelo próprio desenvolvimento de sua atividade especial, que o chama constantemente de volta a seu interesse privado, de que só vagamente percebe a verdadeira relação com o interesse público...[31]
Assim, como explicitado anteriormente, o indivíduo, ao perder a noção de que faz parte de um grupo social, deixa de cumprir suas normas, resultando em um enfraquecimento de todo o corpo social, visto que o sistema de regras comuns, que constitui o principal mecanismo de regulação das relações sociais, se desmorona.
Trazendo as obras do sociólogo Émile Durkheim à atualidade, pode-se verificar grandes semelhanças entre o que foi descrito e o que se vive hoje, principalmente nos grandes centros urbanos, onde as diferenças sociais são mais sentidas.
Percebe-se que a população de mais baixa renda sente-se à margem do grupo social, pois falta-lhe elementos básicos para uma vida digna, tais como moradia, alimentação, saúde e educação, enquanto que uma pequena parcela da sociedade goza de capacidade para desfrutar das melhores escolas, dos melhores médicos, dos melhores restaurantes, enfim, as diferenças sociais são visíveis, o que ocasiona o espírito de inquietação e o descontentamento descritos por Durkheim, levando, conseqüentemente, essa parcela da população à contestar a própria sociedade, gerando a crise social.
Relembrando ainda o que foi dito no capítulo anterior, os contratualistas previam em suas obras as maneiras pelas quais o Estado se degeneraria e, uma delas, ocorre justamente quando ele deixa de assegurar o bem comum e a paz social aos indivíduos.
Desse modo, o homem que deixa de se sentir fazendo parte do corpo social e deixa de cumprir as normas por ele produzidas já não considera a existência do Estado Civil e passa a viver em estado de natureza com relação aos demais. Quando isso ocorre não apenas com um homem mas com uma grande parcela do grupo, pode-se dizer que esse Estado está falido.
Por tudo o exposto é que esse trabalho se utiliza do conceito de “estado de anomia” para a configuração da crise social do Estado brasileiro, passando a seguir à análise da criminalidade e sua relação com a crise ou anomia social.
3.1 Conceitos de Crime e Criminalidade
Para a melhor compreensão deste capítulo se faz necessário a exposição dos conceitos de crime e criminalidade, pois quando se inicia o estudo de determinado assunto é importante que se defina o objeto desse estudo.
A definição de crime passou por diversas fases, até que se chegasse a um conceito universal, de modo que servisse para identificá-la em todos os tempos e em todos os lugares.
Um dos primeiros autores que tentou conceituar o crime de modo universal foi Enrico Ferrari, na obra A sociologia criminal: “São delitos as ações determinadas por motivos individuais e anti-sociais que alteram as condições de existência e ofendem a moralidade média de um povo em determinado momento.”[32]. Não prosperou por muito tempo tal definição dada por Ferri, por conter algumas impropriedades como a não alusão ao aspecto antijurídico do crime e ausência de critério que apurasse a “moralidade média” ofendida.
Posteriormente, Carrara elaborou uma definição de crime que muito se aproxima da definição atual e tem como principal ponto o reconhecimento de que o crime só existe em função da ordem jurídica. Veja-se: “a infração da lei do Estado, promulgado para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso.”[33]
Por fim, chega-se a uma conceituação de crime que adequa-se à universalidade que se buscava e é utilizada atualmente, Maria Helena Diniz assim o define:
1. Sociologia jurídica. Infração das regras sociais consideradas indispensáveis à existência da sociedade. 2. Direito penal. Violação dolosa ou culposa da norma penal por meio de ato comissivo ou omissivo imputável ao agente; qualquer ação ou omissão que venha a causar dano, lesar ou expor a perigo um bem juridicamente protegido pela norma penal.[34]
Tem-se, portanto, de tal conceito, que o crime é um fenômeno social, é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens juridicamente protegidos. O crime nada mais é do que um ato que provoca um fato jurídico que vem a alterar; criar ou extinguir direitos.
Para melhor entender o conceito de crime necessário se faz a análise de seus elementos, quais sejam o fato típico e antijurídico.
Fato típico é aquele que se amolda ao conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei. É o comportamento humano, através de uma ação ou omissão, dolosa ou culposa, que provoca um resultado e é previsto em lei penal como infração. Por exemplo, o fato de uma mãe, por preguiça ou comodidade, não retirar de cima da mesa de sua casa (omissão) o veneno para matar baratas, que foi posteriormente ingerido pelo seu filho de três anos, provocando-lhe a morte, enquanto aquela, assistia sua novela preferida.
Antijuridicidade é a relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico, ou seja, será antijurídica a conduta que não encontrar uma causa que venha a justificá-la. Por sua vez, as causas que justificam um fato típico estão expressamente previstas no Código Penal, no art. 23. São elas: o estado de necessidade, a legítima defesa, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal. Assim, se uma pessoa age, por exemplo, sob legítima defesa, não estará cometendo crime, pois não será um fato contrário ao direito.
Dado o conceito de crime, pode-se retirar a definição de criminalidade, que, segundo a Enciclopédia Saraiva do Direito, é um conjunto de crimes, ou seja, o crime enquanto fenômeno social.
Maria Helena Diniz o define:
1. Qualidade de quem é criminoso. 2. Grau de crime. 3. História e estatística de crime. 4. Conjunto de crimes que atingem bens jurídicos tutelados pela lei num dado meio social. 5. Qualidade da ação ou da omissão que é tida como crime pela lei penal.[35]
Desse modo, a criminalidade está intimamente relacionada ao grau de integração dos indivíduos de uma sociedade, dado que as normas que traçam padrões de comportamento (tais como as leis penais), são estabelecidas a partir de valores e objetivos de um sistema social, assim, a criminalidade é como um termômetro, que mede o quanto as normas de conduta estão sendo desrespeitadas pelos indivíduos.
De se ressaltar que a criminalidade é considerada ainda em três diferentes níveis, quais sejam:
Legal: que se conhece através das taxas de criminalidade e é mínima em relação à população;
Aparente: que é dada pela desproporção entre atos anti-sociais constatados e condenações havidas;
Real: que diz respeito a todos os delitos cometidos, inclusive os que permanecem escondidos.
Será considerado, para fins de trabalho científico, apenas a criminalidade legal, ou seja, aquela revelada por órgãos oficiais por meio de pesquisas, às quais se passa a sua análise.
3.2 O Aumento da Criminalidade em Números
O aumento da criminalidade será analisado a partir de dados fornecidos pelo IBGE, em pesquisas compiladas na obra Estatísticas do Século XX. Serão comparados os dados relativos aos crimes cometidos nos anos de 1950, 1975 e 2002, sendo este último fornecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Fazer-se-á ainda uma comparação do número de crimes cometidos e a população existente nos respectivos anos sob análise.
Os dados sob análise se encontram nos anexos de A a F[36].
Verifica-se do anexo A que o número total de crimes cometidos no ano de 1950 foi igual a 8.946, sendo o crime de furto o mais cometido (2.683), seguido do crime de homicídio (2.305).
O número de crimes passa para 86.380, no ano de 1975, tendo como os principais crimes: furto (13.435), lesões corporais (11.690), vadiagem (7.565) e homicídio (7.556). Pode-se verificar no anexo B, em apreço, que novas figuras delitivas aparecem com significativas taxas de cometimento, tais como o tráfico e uso de entorpecentes (4.334) e o porte de arma (1.530).
No que diz respeito ao tráfico e uso de entorpecentes, tais crimes ligam-se mais intimamente a implicação sociais do que às conseqüências individuais, posto que o uso de “drogas lícitas”, tais como tabaco e álcool, é difundido na relações interindividuais, levando facilmente ao uso de substâncias entorpecentes ilícitas, para que o indivíduo seja aceito em determinadas rodas sociais, principalmente os jovens.
O uso de entorpecentes também é justificado, por quem os consomem, como remédio contra a apatia de viver num mundo sob crise. Assim, quem faz uso de substância entorpecentes, acredita não estar fazendo mal algum para a sociedade, aumentando cada vez mais a rede que alimenta o tráfico ilícito de drogas e dificultando a repressão aos crimes a ele ligados.
O porte de armas também surge como uma justificativa da sociedade para se defender da violência urbana, contudo, o aumento de armas em circulação, leva, conseqüentemente, ao aumento do número de crimes violentos, constituindo-se, portanto, em um ciclo vicioso.
Pode-se verificar que após 1975 houve grande produção legislativa no que se refere a normas penais. Por exemplo, em 1976 foi publicada a Lei nº 6.368, que dispôs sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes, em resposta ao crescente número da prática desse delito. Em 1990, criaram-se as Leis 8.072 – que definiu os crimes hediondos – e 8.137, a qual definiu crimes contra a ordem tributária e econômica. Com o crescente número de práticas delitivas por grupos organizados para tais fins, em 1995 o governo criou a Lei nº 9.034, que dispôs sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.
Enfim, o país buscou diminuir os índices de criminalidade através da criação de leis e penas mais severas, contudo, como se verificará, tais medidas não trouxeram resultados positivos para o combate à violência, pois, chegou-se ao surpreendente número de 3.522.420 crimes praticados no ano de 2002, sendo o furto (1.784.901) e o roubo (729.204) os crimes mais registrados nesse ano, como pode se verificar no anexo C.
Nos dados pode-se verificar que o crime de furto foi o mais praticado nos três períodos sob análise, o que leva a concluir que o indivíduo está intimamente ligado à posse de bens, como observou Rousseau, a posse das coisas não faz cessar a necessidade que sentimos delas, nem ao menos a diminui, pelo contrário, estimula-a indefinidamente.
Pode-se dizer ainda que o que leva o indivíduo à prática de crimes contra o patrimônio é questão da “injustiça social”, como bem colocou Durkheim, o único meio de se por limites a esses desejos de se obter cada vez mais é a regulamentação por parte da sociedade, contudo:
essa disciplina (por parte da sociedade) só pode ser útil se considerada justa pelos povos que lhe são submetidos. Quando ela já não se mantém (...) o espírito de inquietação e o descontentamento são latentes; os apetites, superficialmente contidos, não tardam a se desencadear.[37] (Grifa-se)
Assim, o que leva um homem à praticar um delito é sua indiferença às regras de uma sociedade que o trata de modo injusto.
Comparando-se a população de cada ano sob estudo com o número de crimes praticados, chega-se à seguinte tabela:
|
1950 |
1975 |
2002 |
POPULAÇÃO |
52.183.359 |
107.145.200 |
174.632.960 |
CRIMES |
8.946 |
86.380 |
3.522.420 |
Nº DE HABITANTES POR CADA CRIME PRATICADO |
5.833 |
1.240 |
50 |
Verifica-se que em 1950 tinha-se, no Brasil, um crime para cada 5.833 habitantes, passando para um crime a cada 1.240 habitantes, em 1975, chegando, em 2002, a ter um crime praticado para cada grupo de 50 habitantes.
Portanto, o aumento da população leva, aparentemente, ao aumento das desigualdades na sociedade e, consequentemente, ao aumento do número de crimes.
Ressalte-se que os números sob estudo são relativos à taxa de criminalidade legal, ou seja, aquela que se conhece através de dados fornecidos por órgão oficiais, coletados a partir de registros de ocorrências que chegaram ao conhecimentos desses órgãos, estando, portanto, fora do estudo os crimes que as vítimas não registraram junto aos órgãos competentes, o que traria uma visão, com certeza, mais alarmante da situação em que se encontra o país.
4. CRISE SOCIAL VERSUS AUMENTO DA CRIMINALIDADE
Foi estabelecido no capítulo 2 que a termo “crise social” seria o equivalente a “anomia social”, para fins desse estudo. Desse modo, este capítulo destina-se a estabelecer o paralelo entre a crise social e o aumento da criminalidade.
Verificou-se no capítulo 1 que o Estado foi criado como um meio para se chegar a um fim, e não como um fim em si mesmo, ou seja, os homens se reuniram e formaram um corpo político com a finalidade de alcançar o bem comum e paz a social, o que seria impossível caso estivessem com seus interesses isolados.
Ocorre que, atualmente, o Estado é tomado como um fim em si, assim, seus membros são tidos como meio de sobrevivência do corpo político, isto é, ao invés do Estado buscar os meios adequados para se assegurar a paz social e o bem de todos, os homens é que devem assegurar a permanência da instituição. Assim, busca-se a satisfação das necessidades do Estado, principalmente no que diz respeito à obtenção de mais recursos financeiros para honrar compromissos com instituições e Estados estrangeiros, e não das necessidades dos indivíduos, ligadas principalmente à questão de sua própria sobrevivência, como moradia, saúde, alimentação e segurança.
Essa inversão leva ao que Durkheim denominou anomia social, onde os indivíduos, descrentes nos padrões de conduta e sem valores e princípios sociais, deixam de cumprir as normas produzidas pelo Estado e, o que é pior, isolam-se, em um sentimento de não mais fazer parte do corpo social.
A partir dessa idéia de anomia social ligada à crise social ou falência do Estado, pode-se verificar que, por mais que se produza normas para regular a vida em sociedade, tais normas estão fadadas à ineficácia, por inobservância das mesmas por seus destinatários: os membros da sociedade.
Esse fato pode ser comprovado a partir dos dados analisado no capítulo anterior, que demonstram que os indivíduos da sociedade brasileira se demonstram indiferentes frente às normas que tipificam certas condutas como crimes, e até mesmo frente ao respeito com os demais membros, por exemplo, o crime de lesões corporais, em 1950, obteve 716 registros de sua prática, Em 1975, passou para 11.690 registros desse delito, chegando a 580.026, em 2002.
Conforme constatado por Damásio de Jesus, o Brasil tem hoje uma das maiores legislações penais do mundo. Existe lei que define como crime ou contravenção para tudo: crimes hediondos, tortura, meio ambiente, lavagem de dinheiro, furto e roubo de automóveis, porte de armas, tóxicos, trânsito, crime organizado. E crimes graves, como homicídio qualificado, seqüestro para fins de extorsão e latrocínio, são considerados hediondos, com severas conseqüências penais[38].
Chega-se então à seguinte pergunta: “Por que, com uma legislação tão abrangente, ocorre esse aumento da criminalidade?”
A resposta a tal pergunta encontra-se justamente na figura da anomia social, posto que a partir do momento em que os indivíduos de uma sociedade deixam de acreditar nas normas por ela produzidas é como se tais normas não existissem.
Há ainda a questão da “injustiça social”, quando o homem encontra-se diante de uma situação de vida em que ele perdeu a confiança nas instituições e no ordenamento em vigor, por não serem justos, ou seja, tratam de modo diverso os membros de uma mesma sociedade. Assim, ele vive em sociedade mas não se sente fazendo parte dela, por conseguinte, as normas produzidas pelo corpo social não dizem respeito a esse indivíduo. Ocorre um enfraquecimento de todo o corpo social, visto que o sistema de regras comuns, que constitui o principal mecanismo de regulação das relações sociais, se destrói.
Verifica-se, pois, que hoje amplia-se o consenso de que a criminalidade avança na esteira da falência do sistema criminal num contexto de marginalização social e segregação urbana. O crime avança na proporção direta da impunidade e da anomia social.
A título de ilustração pode-se analisar o caso dos crimes hediondos. Em 1990 o estado sancionou a Lei nº 8.072, entitulada: “Lei dos Crimes Hediondos”, a qual aumentou substancialmente as penas dos crimes ali previstos, além de suprimir a progressão do regime prisional, dentre outras medidas com o intuito de tornar mais efetiva a repressão a tais crimes. Ocorre que, passados mais de dez anos da vigência da lei, basta acompanhar os noticiários do dia-a-dia para se perceber que a realidade criminal não se alterou. Ao contrário, como constatado pelos dados estatísticos, vem aumentando dia após dia.
O problema de pesquisa proposto nesse trabalho era responder se o aumento da criminalidade tem como causa a crise social do Estado Contemporâneo.
Para se chegar à resposta de tal problema, primeiramente, buscou-se, dentro das obras dos contratualistas, os motivos pelos quais levaram à formação do Estado e os fins do Estado frente aos seus membros. Foi visto então que tanto para Hobbes, como para Locke e Rousseau o fim precípuo do Estado é garantir a paz social e o bem comum de seus membros, ou seja, garantir uma sobrevivência tranqüila aos homens.
Contudo, o Estado contemporâneo tem se demonstrado justamente o contrário do que fora previsto por Hobbes, Locke e Rousseau, podendo ser dissolvido a qualquer momento, visto que os homens agem como no Estado de natureza descrito principalmente por Hobbes, ou seja, com total desrespeito à vida e à propriedade do outro, descumprindo as leis estabelecidas pelo soberano.
Posteriormente, passou-se à análise dessa crise pela qual passa Estado brasileiro, configurando-a, para tanto, no estado de anomia social descrita por Durkheim. Chegou-se, assim, à conclusão de que os indivíduos não mais respeitam as regras impostas pela sociedade, por não mais se sentir fazendo parte dela, pois se trata de uma sociedade injusta.
Para a análise do aumento da criminalidade decorrente da crise e falência do Estado, buscou-se conceito de crime e criminalidade, encontrando, em síntese, que crime é um fenômeno social, é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens juridicamente protegidos. O crime nada mais é do que um ato que provoca um fato jurídico que vem a alterar; criar ou extinguir direitos. E criminalidade é o conjunto de crimes que atingem bens jurídicos tutelados pela lei num dado meio social, estando intimamente relacionada ao grau de integração dos indivíduos de uma sociedade.
Para constatar o aumento da criminalidade analisou-se dados estatísticos referentes aos crimes cometidos nos anos de 1950, 1975 e 2002, fazendo-se a comparação dos dados desses períodos, bem como a comparação do número da população nos referentes anos.
Pode-se verificar que a causa do aumento da criminalidade não está relacionada com a falta de leis ou com as penas aplicadas aos crimes, mas sim com a crise social, pois, como visto, o Brasil é o país que tem hoje uma das maiores legislações penais do mundo, portanto, a explicação mais razoável para se chegar às causas do aumento da criminalidade é justamente a indiferença dos indivíduos face à lei.
Assim, diante do teste da hipótese: “Se o Estado brasileiro está em crise perante sua sociedade, então resultará no aumento da criminalidade”, realizado no capítulo 4, restou comprovado que a principal causa do aumento da criminalidade é a crise social do Estado contemporâneo, a qual leva o indivíduo a perder a noção de que faz parte de um grupo social, deixando de cumprir suas normas, resultando em um enfraquecimento de todo o corpo social.
O que se pretende com a analise de tal resultado é evidenciar que a criação de novas leis e os rigores da penalização não influenciam em nada na queda dos números das taxas de criminalidade, como restou comprovado com o advento da “Lei dos crimes hediondos”, a qual não conseguiu reduzir os índices da prática dos crimes mais violentos que ali estão previstos.
Por tudo o que foi exposto no presente trabalho, para se obter êxito na luta contra o crime deve-se buscar uma justa distribuição de rendas, igualdade de tratamento entre ricos e pobres, brancos e negros, o respeito à dignidade da pessoa humana, com acesso significativo à saúde, à alimentação, à moradia, à educação, enfim, que os homens vejam a sociedade como um meio para possibilitar seu desenvolvimento moral e físico, em meio à paz e ao convívio harmonioso entre todos.
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[1] Filósofos que, entre o século XVI e o XVII, afirmaram que a origem do Estado está em um contrato, em especial, estão: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.
[2] HOBBES, Thomas. Leviatã. Ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 98.
[3] HOBBES, Thomas. Leviatã. Ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. P. 96.
[4] HOBBES, Thomas. op. cit, 96.
[5] Idem, p. 98.
[6] HOBBES, Thomas. p. 131.
[7] Idem, p. 132.
[8] Ibidem, p. 237.
[9] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil:ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 84.
[12] Idem, p. 93.
[13] Ibidem, p. 94.
[14] Idem, Ibidem, p 115.
[15] Idem, p. 140.
[16] Ibidem, p. 221.
[17] Idem, Ibidem, p. 233.
[18] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. 3ª ed. São Paulo: Martins Fotes, 1998, p. 13.
[19] ROUSSEAU, Jean-Jacques. op. cit., 22.
[20] Idem, p. 33.
[21] Ibidem, p. 41.
[22] ROUSSEAU, Jean-Jacques. op. cit., p. 45.
[23] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 102.
[24] Idem. p. 24.
[25] KRISCHKE, Paulo J. O Contrato Social Ontem e Hoje. São Paulo: Cotez, 1993. P. 145.
[26] MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998, p. 161.
[27] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 203.
[28] Enciclopédia Saraiva do Direito, coordenação do prof. R. Limongi. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 453.
[29] DURKHEIM, Émile. O Suicídio. tradução Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 315.
[30] Idem, p. 319.
[31] DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social; tradução de Eduardo Brandão. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 372/373.
[32] Enciclopédia Saraiva do Direito, coordenação do prof. R. Limongi. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 216.
[33] Idem, p. 217.
[34] DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 925.
[35] DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 953.
[36] Os dados estatísticos dos anexos A, B, D e E foram retirados do CD-ROM Estatísticas do Século XX, fornecido pelo IBGE. O dados contidos nos anexos C e F foram fornecidos pelo Ministério da Justiça MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP/ Coordenação Geral de Análise da Informação/ Coordenação de Estatística e Produção de Dados; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no site http://www.mj.gov.br/senasp/noticias/rls260603%20mapacrime.htm, acessado em 31/10/03.
[37] DURKHEIM, Émile. op. cit., p. 319.
[38] JESUS, Damásio de. Aumento da Violência e Impunidade. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, fev. 2002. Disponível em: www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm Acessado em 28/10/03.
Servidora Pública do Distrito Federal. Bacharel em Direito pela UDF. Especialista em Direito Penal e Processual Penal, pelo ICAT/UDF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEROBIM, Juliane Alcântara Pinto. Da crise social do Estado Contemporâneo como causa do aumento da criminalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2009, 09:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Monografias-TCC-Teses-E-Book/17628/da-crise-social-do-estado-contemporaneo-como-causa-do-aumento-da-criminalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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