Trabalho de Curso do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Campus de Guaíba
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INTRODUÇÃO
A década de oitenta, no que tange à economia nacional, pode ser sinônimo de pífio desempenho, ou como dizem, “a década perdida”, sendo que, entretanto, a mesma representa um período de conquista de direitos para os cidadãos brasileiros.
Nos anos 80, o país retomou a democracia lançando os fundamentos de um Estado de Direito qualificado como democrático. O novo ordenamento constitucional nos brindou com um extenso e necessário rol de direitos e garantias fundamentais, ao mesmo tempo reforçando os direitos individuais. Na disciplina das instituições restou evidenciada a ênfase nos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como a eleição da moralidade administrativa para a Administração Pública, tendo um novo modelo institucional sido reservado ao Ministério Público, enaltecendo sua vocação de defesa e promoção dos interesses relevantes da sociedade.
No período supramencionado foi editada a Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), que veio garantir a tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, permitindo que diversos órgãos, em especial o Ministério Público, agisse na defesa de parcela significante da população brasileira, tratando de matérias ligadas ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio cultural, à improbidade administrativa, entre outras.
Elegeu-se o compromisso de ajustamento de conduta como objeto deste trabalho tendo em vista que o tema conjuga, entre tantos outros elementos, a tutela dos direitos transindividuais, a solução extrajudicial de conflitos, bem como a tutela dos direitos do homem enquanto inserido em uma dada coletividade.
Sob o título A eficácia e a efetividade do Compromisso de Ajustamento de Conduta em sede de inquérito civil, o trabalho dividiu-se em três capítulos. O instituto do inquérito civil, como se verá adiante, é de exclusividade do Ministério Público, razão pela qual procurou-se no primeiro capítulo buscar as origens históricas dessa instituição, a sua evolução, o seu surgimento no Brasil, bem como o seu papel em nosso ordenamento jurídico.
Laborou-se no segundo capítulo com o instituto do inquérito civil, que é o instrumento utilizado pelo Ministério Público para promover as investigações extrajudiciais que embasam, ou não, eventual ação civil pública, evidenciando-se o surgimento desse instrumento, bem como conceituando-o. Foram abordadas as características do inquérito civil, a fim de demonstrar a sua finalidade, apontando-se as diferenças e semelhanças com os demais tipos de inquéritos previstos em nosso ordenamento jurídico, em especial o inquérito policial.
Em seguida, abordou-se as hipóteses de dispensa do expediente investigatório, como também teceu-se comentários em relação ao valor relativo (como no inquérito policial) das provas coligidas ao longo da investigação promovida pelo Parquet. Salientou-se, em relação à instauração do inquérito civil, que a decisão compete com exclusividade ao Ministério Público, sempre que necessário instruir-se sobre a existência ou possibilidade de lesão a um dos direitos que a lei lhe cometeu na área civil. Abordou-se as hipótese de incompatibilidade do membro do Ministério Público em instaurar e presidir o inquérito civil, salientando-se que o Parquet estará suspeito se tiver interesse pessoal na solução da lide, bem como, nesses casos, a conveniência da sua recusa em iniciar ou dar continuidade às investigações.
Outros aspectos pertinentes ao inquérito civil foram trabalhados, como a provocação para instaurá-lo, os objetos mais comuns de investigação (meio ambiente, improbidade administrativa, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas portadoras de deficiência, presidiários, toxicômanos, internos em asilos, investidores no mercado de valores mobiliários, contribuintes, favelados, acidentados do trabalho, trabalhadores, beneficiários da previdência social, destinatários de propaganda enganosa, destinatários de propaganda eleitoral, usuários de medicamentos, correntistas, poupadores, ordem econômica, patrimônio público e social, etc.), bem como os seus fins penais, onde teve destaque o tema polêmico que trata da possibilidade do Ministério Público em investigar crimes. Como parte intrínseca do inquérito civil, explanou-se acerca das lesões a contribuintes, a interesses transindividuais e individuais homogêneos, e a defesa do patrimônio público e social, ressaltando que a investigação de eventual enriquecimento do agente público deve ser investigada, independentemente de as contas públicas terem sido aprovadas pelos Tribunais de Contas ou pelo Poder Legislativo.
Por fim, no capítulo final intitulado de “O Compromisso de Ajustamento de Conduta e a possibilidade de transigir”, observou-se a possibilidade que o ordenamento jurídico conferiu ao Ministério Público para, extrajudicialmente, compromissar o causador da lesão (a um dos interesses difusos) em reparar o dano ou a evitar que o mesmo ocorra ou persista. Abordou-se a origem histórica e legal do compromisso de ajustamento, mais precisamente com o advento da Lei n.° 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescenete -, e posteriormente com a Lei n.° 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor, evidenciando-se os legitimados ativos para a negociação dos direitos transindividuais, entre eles órgãos públicos e Ministério Público, bem como os legitimados passivos, ou seja, o causador do dano, seja esse pessoa física ou jurídica. Pontuou-se acerca da forma de celebração do Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta, evidenciando-se que, embora não haja regras legais expressas sobre a forma, o termo deve ser escrito, com clareza em relação às obrigações do compromissário, bem como prever as medidas coercitivas para o cumprimento das obrigações ajustadas. Como conseqüência, priorizou-se o enfoque em relação à eficácia executiva do Termo de Ajustamento de Conduta, salientando-se a supressão da necessidade de cognição pelo juiz, combatendo, por conseguinte, a demora natural do processo de conhecimento, bem como prestando a tutela adequada através da ação de execução. Deu-se ênfase nos últimos tópicos do terceiro capítulo, que trataram, respectivamente, do ajustamento de conduta em ato de improbidade e nos crimes contra o meio ambiente, tendo em vista que na nossa sociedade, ultimamente, não faltam notícias a respeito da degradação do meio ambiente, bem como das denúncias, em número cada vez maior, de corrupção e lesão aos cofres públicos.
1 O MINISTÉRIO PÚBLICO
1.1 Origens e história da instituição do Ministério Público
Os historiadores não indicam a existência de qualquer paradigma passado do Ministério Público que tivesse as características e premissas que a instituição detém na atualidade. Segundo Paes (2003, p. 20), “o termo ‘ministério’ surgiu do vocábulo latino ministerium, que significa ofício, cargo ou função. Primitivamente a figura do Ministério Público relacionava-se à dos agentes do rei, isto é, a ‘mão do rei’, ou a mão da lei.” Diniz (2005, p. 12) observa que “a expressão parquet, que serve para se referir ao Ministério Público, tem origem francesa, haja vista que os procuradores do rei, antes de adquirirem a condição de magistrados e ter assento ao lado dos juízes, ficavam sobre o assoalho (parquet) da sala de audiências, e não sobre o estrado lado a lado à magistratura sentada.” Finalmente, ministério vem de mister, de tarefa exercida pelos então procuradores ou advogados do rei. Já a expressão ‘público’ decorre do interesse público defendido. Os registros históricos focalizam o Parquet como uma instituição milenar, narrando os estudiosos que na antigüidade não havia um órgão encarregado de promover a ação penal, tal qual como hoje a conceituamos.
Dessa forma, infere-se que é controvertida a origem do Ministério Público, porém concordam muitos autores que os primeiros registros remontam o período da civilização egípcia. As atribuições do magiai – empregados reais, espécie de inspetores – assemelhavam-se às dos membros do Ministério Público atual. Nesse sentido, assevera Diniz (2005, p. 12) que:
[....] a instituição precursora do Ministério Público remonta à civilização egípcia, há mais de quatro mil anos, representada pelo magiai - funcionário real no Egito. Tal descoberta se deu com as escavações arqueológicas realizadas no Vale dos Reis em 1933, quando então foram encontrados textos de leis dando conta que aquele funcionário era a língua e os olhos do rei, com atribuições no âmbito da repressão penal para castigar os rebeldes, reprimir os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, acolher os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo os malvados e mentirosos, formalizar acusações e participar das instruções probatórias na busca da verdade, bem como, na esfera civil, defender determinadas categorias de pessoas, como órfãos e viúvas.
Na mesma esteira é o entendimento de Paes (2003, p. 22), quando diz que:
A busca de precedentes do Ministério Público remonta para alguns autores até a civilização egípcia, onde a reorganização dos tribunais auspiciada pela dinastia ptolomaica levou à criação de inspetores especiais que, se bem que não interviessem na determinação da sentença do tribunal, eram indispensáveis para poder iniciar e prosseguir qualquer processo. Esses inspetores ou empregados reais, segundo textos descobertos em escavações no Egito, existiram há mais de quatro mil anos e se chamavam magiai.
A busca das origens do Ministério Público através da História levou os estudiosos a voltarem seus olhos até a Antigüidade Clássica, para investigar entre as instituições que existiam na Grécia e Roma, alguma que, por suas características ou similitude de seu ofício, se possa constituir em semente da Instituição, aduzindo Paes (2003 p. 24) que:
[...] nada seria mais oportuno que buscar as origens de uma instituição de caráter democrático e eminentemente judicial como é o Ministério Público em duas civilizações que se destacaram precisamente por ser uma o berço da democracia - a civilização grega; a outra, por ter logrado elaborar o mais completo e racional ordenamento jurídico que o mundo jamais conhecera - a civilização romana.
Releva notar que as civilizações clássicas se estruturaram sobre o valor da família e se apoiavam na religião doméstica baseada no culto aos antepassados, de forma que o homem pertencia à família. Outrossim, deve-se observar que as civilizações clássicas, tanto a grega como a romana, se organizaram politicamente a partir da cidade - polis grega e a urbe romana. Tanto a polis como a urbs eram núcleos formados por um certo número de famílias que rendiam culto, observando Diniz (2005, p. 13) que as mesmas
[...] tinham, pois, antes de sentido político, um caráter marcadamente religioso. A formação de uma urbe era sempre um ato religioso, não se formando pela lenta incorporação de homens e construções, fundando-se de um só impulso, num só dia. Mas para que isso acontecesse, era necessário que antes se houvesse formado a civitas; ou seja, segundo a concepção antiga, que um certo número de famílias se houvesse associado em torno de uma aspiração comum: a de prosperar e realizar seus ideais ao redor e sob a proteção de uma divindade exclusiva daquele grupo social.
Nesse contexto, a priori, não se encaixaria a Instituição do Ministério Público, aduzindo Paes (2003, p. 25) que:
[...] o cidadão não desfrutava de uma liberdade política ou de direitos de cidadania tal como hoje a entendemos. Ao contrário, estava vinculado ao Estado, ao qual pertencia por inteiro. Isso dificulta admitir que no ordenamento jurídico de civilizações com essas características tenha existido um órgão destinado a exercer a função hoje confiada ao Ministério Público.
Na Grécia, apenas um reduzido número de cidadãos tinham acesso ao governo e a democracia grega só a eles se referia. Os não-cidadãos, quaisquer que fossem seus direitos - coisa que dependia por completo dos governantes -, eram objetos de tratamento desigual em comparação com os cidadãos e, ao mesmo tempo, estavam submetidos inteiramente à autoridade do Estado onde residiam. O cidadão não era independente, afirmando Ribeiro (2003, p. 15) que:
Devemos ter em conta essa realidade histórica do homem antigo, e a natureza das relações cidadão-Estado das sociedades grega e romana, para analisar as possibilidades de que tenha existido entre os gregos e romanos alguma instituição que possa ser considerada como a semente do Ministério Público. É pouco provável que a situação do homem que não pertencia à classe dominante, e, portanto, não se incluía no corpo cívico do Estado em qualquer destas civilizações, se modificara até o ponto de levar o Estado a ocupar-se da salvaguarda de seus direitos de cidadania e da liberdade individual. Entre os estudiosos do Ministério Público existem fartas razões para crer que os gregos não conheceram essa instituição.
Releva notar que os romanos legaram notória contribuição jurídica à posteridade, entretanto, não existe nenhuma instituição ou cargo criado pelos mesmos que, pelas características e natureza do ofício, pudesse ser considerado como um provável ancestral do Ministério Público, apesar de parte da doutrina apontar os procuradores dos imperadores romanos como possíveis antepassados da instituição. Nesse sentidos Paes (2003, p. 30) ensina que “os procuratores caesaris e os advocati fisci eram funcionários que tinham o dever de defender o Estado romano e o tesouro de César, respectivamente.” Ressalta-se que a esses funcionários eram atribuídas certas funções especiais, em certo modo judiciais, como intervir em alguns juízos ou dispor de jurisdição especial. Entretanto, todas elas estavam ligadas à idéia do fiscus, não à função de acusar delinqüentes, sendo que Diniz (2005, p. 13) assevera que “a fiscalização que exerciam sempre era feita no interesse do imperador e que, portanto, sua atuação se limitava à defesa dos interesses privados do príncipe em juízo e à administração de seu patrimônio particular.”
No mesmo sentido, os ensinamentos de Ribeiro (2003, p. 17) ao afirmar que:
Ainda assim, não pensamos que se devam situar no Direito Romano as origens do Ministério Público. A identificação de antecedentes do Ministério Público em instituições gregas, romanas, bárbaras ou outras, valoriza analogias aparentes sem ter em conta as diferenças de natureza e atribuições.
E certo que algumas funções atualmente exercidas pelo Ministério Público já existiam na Grécia, em Roma e no começo da Idade Média. Mas se tratava de funções atribuídas a pessoas que não representavam uma estrutura nem gozavam de um estatuto semelhante ao que hoje caracteriza o Ministério Público.
Apesar de tudo quanto já foi dito até aqui e, em que pese aos pontos de contato entre o Ministério Público e algumas figuras existentes em civilizações mais remotas, os autores, de um modo geral, são unânimes ao apontar a França como o berço do Ministério Público, invocando sua origem nos procuradores do rei do velho direito francês, quando Felipe, o Belo, reuniu tanto seus procuradores, encarregados da administração de seus bens pessoais, como seus advogados, que defendiam seus interesses privados em juízo e que, em conjunto, eram conhecidos pelo nome genérico de les gens du roi, em uma única instituição. Diniz (2005, p. 13) acrescenta que “inegável é a influência da doutrina francesa na história do Ministério Público, tanto que, mesmo entre nós, ainda se usa freqüentemente a expressão parquet, para referir-se à instituição.”
Somente com a formação dos Estados Modernos e o fim da Idade Média que inicia-se a separação dos poderes dos Estados que anteriormente estavam todos concentrados nas mãos do monarca. Na Idade Média, o próprio poder judicante concentrava-se nas mãos do monarca (WIEACKER, 1980).
O Ministério Público, portanto, surge historicamente com o advento da separação dos poderes do Estado Moderno, afirmando Tornaghi (1976, p. 277) que
[...] a sua proximidade mais direta é com os "advocats e procureurs du roi" criados no século XIV na França. Os advogados do rei ("avocats du Roi") foram criados no século XIV e tinham atribuições exclusivamente cíveis. Os procuradores do rei ("procureurs du Roi") surgem com a organização das primeiras monarquias e, ao lado de suas funções de defesa do fisco, tinham função de natureza criminal. O Ministério Público francês nasceu da fusão destas duas instituições, unidas pela idéia básica de defender os interesses do soberano que representava os interesses do próprio Estado.
A Revolução Francesa estruturou mais adequadamente o Ministério Público, enquanto instituição, ao conferir garantias a seus integrantes. Foram, porém, os textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer na atualidade. Com o passar do tempo a instituição deixou de custodiar somente os interesses privados do soberano, passando a exercer funções de interesse do próprio Estado, ou seja, passou a desenvolver uma tarefa pública, em lugar de exercer um trabalho apenas privado (a custódia dos interesses do monarca), sendo que, a partir de então, a designação Ministério Público se consagrou.
Nessa senda, Paes (2003, p. 32) aduz que:
A figura atual do Ministério Público deve ser buscada na Revolução Francesa quando o governo, ante as desconfianças do Poder Judiciário e os excessos cometidos, o pôs fiscalizador do novo Poder judiciário que constituiu. Se converteu assim em um responsável pela legalidade da atuação dos Tribunais, permitindo ao governo vigiar a administração de justiça em todos os seus ângulos.
Destaca-se que a Revolução de 1789 veio encontrar o Ministério Público um tanto desgastado ante a opinião pública, pois o Parquet havia demonstrado uma acentuada tendência para confundir os interesses públicos que representava com as regalias da realeza, sendo que alguns buscavam a extinção da nova instituição. A Assembléia Nacional Constituinte, no entanto, optou por sua manutenção, não sem prescrever-lhe uma ampla reforma, sendo que Ribeiro (2003, p. 20) afirma que “as modificações previstas pela Assembléia Nacional Constituinte de 1789 estavam orientadas a retirar do Ministério Público a natureza política que até então desfrutava, para transformar-lhe em um simples órgão judiciário.”
Mais tarde, já no Império, o Ministério Público veio a ser uma vez mais reorganizado, em 1810, por uma lei que lhe definiu a forma e especificou de maneira definitiva suas funções de representação do Poder Executivo ante a autoridade judicial.
Paes (2003, p.34) nos dá a exata dimensão da evolução do Ministério Público, quando diz que “o Ministério Público, de uma instituição criada para sustentar os arbítrios autocráticos de monarcas medievais, se transformou, lenta mas inexoravelmente, em um baluarte da democracia, como uma conseqüência lógica da transformação de mentalidade política dos povos.”
Observa-se que a ação do tempo e os ventos do liberalismo elevaram o Ministério Público, com as características que hoje ostenta, à posição de guardião da legalidade, esteio da democracia e defensor dos direitos indisponíveis dos cidadãos.
Finalmente, destaca-se que o Ministério Público, criado e desenvolvido na França, transformado pela evolução da sociedade e pelo fortalecimento dos ideais democráticos, penetrou em quase todas as legislações européias, e também na portuguesa e, por ela mediante as Ordenações, chegou até a legislação brasileira, a qual manifestou muitos avanços, principalmente com o advento da República.
1.1 O Ministério Público no Brasil
O Ministério Público é uma das instituições brasileiras que vem apresentado maior grau de mudança no Brasil desde a sua descoberta em 1500. Como bem salienta Macedo Júnior (1995, p. 39), essa instituição nasce como um braço do Poder Executivo.
Como procuradores do rei, os promotores de justiça buscavam defender os interesses da sociedade, então encarnados na figura do Estado, conforme preceituava a teoria liberal da tripartição dos poderes. Tal traço do Ministério Público iria caracterizar uma de suas marcas de nascença, qual seja, representar simultaneamente os interesses do Estado e do Governo, situação que no Brasil perdurou até a Constituição Federal de 1988.
O Ministério Público surge como instituição juntamente com a formação do Estado Moderno europeu, representando uma reação contra a excessiva concentração de poderes na figura do monarca. Nesta fase embrionária, o Ministério Público rege-se basicamente pelos seguintes princípios: a superação da vingança privada (só possível ao poderoso e ao rico); a entrega da ação penal a um órgão público tendente à imparcialidade; a distinção entre Juiz e acusador; a tutela dos interesses da coletividade e não só daquele do fisco do soberano; a execução rápida e certa das sentenças dos juízes.
No Brasil, como bem salienta Macedo Júnior (1995, p. 39), o Ministério Público encontra suas raízes no Direito Lusitano vigente no país nos períodos colonial, imperial e início da república. As Ordenações Manuelinas de 1521 já mencionavam o promotor de Justiça e suas obrigações perante as Casas da Suplicação e nos juízos das terras, sendo que nelas estavam presentes as influências dos direitos francês e canônico. O promotor de Justiça deveria ser alguém letrado e bem entendido para alegar as causas e razões que convinha para a clareza da justiça.
O promotor de Justiça atuava como um fiscal da lei e sua execução. Nas Ordenações Filipinas de 1603 são definidas suas atribuições junto às Casas de Suplicação, destacando-se a fiscalização da lei e da Justiça e o direito de promover a acusação criminal.
Na época colonial, até 1609, apenas funcionava no Brasil a justiça de primeira instância e nesta ainda não existia órgão especializado do Ministério Público. Os processos criminais eram iniciados pela parte ofendida ou ‘ex-officio’, pelo próprio Juiz. O recurso era interposto para a Relação de Lisboa. Em 1609, com a criação do Tribunal da Relação da Bahia foi definida pela primeira vez a figura do Promotor de Justiça que, juntamente com o Procurador dos Feitos da Coroa e da Fazenda, integrava o Tribunal composto por dez desembargadores (MELLO apud MACEDO JÚNIOR, 1995, p. 39).
Somente com o Código de Processo Penal do Império de 1832 foi dado tratamento sistemático ao Ministério Público, colocando o promotor de Justiça como órgão da sociedade, titular da ação penal.
Em 1836 foram criadas novas atribuições para os promotores, como visitar prisões uma vez por mês, dar andamento nos processos e diligenciar a soltura dos réus.
Em 1859 instituía-se o impedimento à advocacia pelos promotores nas causas cíveis que pudessem vir a ser objeto de processo crime. A Lei do Ventre Livre, de 1871, deu ao promotor de Justiça a função de protetor do fraco e indefeso ao estabelecer que a ele cabia zelar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados.
O Código Civil de 1917 deu ao Ministério Público atribuições até hoje vigentes, como a curadoria de fundações, legitimidade para propor ação de nulidade de casamento, defesa dos interesses de menores, legitimidade para propor ação de interdição e a de promover a nomeação de curador de ausente, dentre outras.
O Código de Processo Civil de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em diversas situações, especialmente na condição de custos legis, passado o promotor de Justiça a atuar como fiscal da lei, apresentando seu parecer após a manifestação das partes. A sua intervenção visava proteger basicamente os valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes, como as relações jurídicas do direito de família, casamento, registro e filiação, defesa dos incapazes, defesa da propriedade privada (intervenção em feitos de usucapião, testamentos e disposições de última vontade, etc.). A partir deste período, o promotor vinculava-se basicamente à defesa dos valores centrais de uma ordem social e econômica burguesa predominantemente rural e agrária, iniciando-se o fenômeno do "parecerismo" que marcará toda uma tradição da praxe jurídica do Ministério Público até os dias de hoje.
Salienta-se que anteriormente ao Código de Processo Civil de 1939 eram vigentes os Códigos de Processo Civil estaduais, os quais não davam atenção especial ao Ministério Público.
O Código de Processo Penal de 1941 consolidou a posição do Ministério Público como titular da ação penal e deu-lhe poder de requisição de instauração de inquérito policial e outras diligências no procedimento inquisitorial.
A Constituição Federal de 1937 fazia alusão exclusivamente ao Procurador Geral da República como chefe do Ministério Público Federal e instituía o "Quinto" constitucional, mecanismo pelo qual um quinto dos membros dos Tribunais deveria ser composto por profissionais oriundos do Ministério Público e Advocacia, alternadamente.
A Constituição Federal de 1946 tratou do Ministério Público em título especial, sem vinculação a qualquer dos outros poderes da República e instituía os Ministérios Públicos Federal e Estadual, garantindo-lhes a estabilidade na função, o concurso de provas e títulos, a promoção e a remoção somente por representação motivada da Procuradoria Geral e lhe definia a estrutura e atribuições.
A Constituição Federal de 1967 trouxe importantes inovações ao subordinar o Ministério Público ao Poder Judiciário, criando a regulamentação do concurso de provas e títulos, abolidos os concursos internos que davam margem a influências políticas. Ao vir a integrar o Poder Judiciário, o Ministério Público deu importante passo na conquista de sua autonomia e independência, através da assemelhação com os magistrados, de modo que tais conquistas somente seriam consagradas na Constituição Federal de 1988.
O Código de Processo Civil de 1973 deu tratamento sistemático ao Ministério Público que, ao disciplinar a sua intervenção, basicamente conferiu-lhe um papel de órgão interveniente.
O papel do Ministério Público, que será abordado do próximo item, começa a se alterar com a Lei n.º 6.938/81 que previu a ação de indenização ou reparação de danos causados ao meio ambiente legitimando o Ministério Público a proposição de ação de responsabilidade civil e criminal.
Por sua vez, a Lei n.º 7.347/85, conhecida como Lei de Ação Civil Pública, conferiu legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ações civis públicas em defesa dos interesses difusos e coletivos, como aqueles relacionados à defesa do meio ambiente, patrimônio histórico e paisagístico, consumidor, deficiente, direitos constitucionais do cidadão, etc. Esse diploma legal, como bem salienta Macedo Júnior (1995, p. 46), “inaugurou uma nova fase do Direito Brasileiro e deu novo horizonte para a atuação do Ministério Público na área cível”. A partir de tal lei foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questões do direito de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de caráter notadamente urbanos, conferindo ao Ministério Público o poder de instaurar e presidir inquéritos civis sempre que houvesse a informação sobre a ocorrência de dano a interesse ambiental, paisagístico, do consumidor, etc. Nessa nova fase, o promotor de Justiça passa a atuar como verdadeiro advogado (como órgão agente que propõe a ação, requer diligências, produz prova, etc.) dos interesses sociais coletivos ou difusos.
1.3 O papel do Ministério Público no atual ordenamento jurídico brasileiro
Observa-se as palavras do mestre Mazzilli (1993, p. 39) para dar início ao esboço do papel do Ministério Público no atual ordenamento jurídico pátrio:
O Ministério Público não mais é um órgão do Estado destinado a intransigentemente defender a Coroa, ou a correspondente Fazenda Pública de hoje; nem, com maior razão, é hoje destinado à defesa dos interesses dos governantes. Agora, a Constituição deu liberdade e autonomia ao Ministério Público; a seus agentes, deu independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade, para que defendam intransigentemente os interesses da coletividade como um todo; para que defendam os interesses maiores da comunidade; para que zelem pelas liberdades públicas; para que defendam os direitos do cidadão até mesmo em face do Estado e dos governantes. A questão é desempenhar-se bem dessas tarefas.
O Ministério Público tem como uma das suas principais funções promover a pacificação social. Dentre os valores fundamentais da sociedade, o acesso à Justiça é dos mais relevantes. Por sua vez, trata-se de um dos valores fundamentais da própria democracia a preocupação com que a Justiça seja efetivamente acessível a todos, pobres e ricos, fracos e poderosos. Entretanto, a possibilidade de acesso à Justiça não é efetivamente igual para todos: são gritantes as desigualdades econômicas, sociais, culturais, regionais, etárias, mentais, etc.
Nessa senda, para preservar os valores democráticos, bem como para assegurar um adequado equilíbrio tanto na fase pré-processual, como dentro da própria relação processual, é que surge o papel do Ministério Público, uma instituição estatal dotada de autonomia e independência funcional, sendo destinado constitucionalmente à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ao Ministério Público se confere tanto a iniciativa de algumas ações, como a intervenção noutras tantas delas. Assim, leciona Mazzilli (1993, p. 17):
Longe, porém, de um papel apenas destinado a colaborar com a prestação jurisdicional do Estado, seja como órgão agente, seja como órgão interveniente, o ofício do Ministério Público desenvolve-se também na esfera extrajudicial, até mesmo numa atividade cautelar, ora com o fim de preparar a propositura de ações de sua iniciativa, ora para compor interesses inter volentes e até obviar o acesso à jurisdição.
Na esfera judicial o Ministério Público atua, ora quando toma a iniciativa de provocar a prestação jurisdicional, ora quando participa da relação processual já instaurada.
Verifica-se que, na área criminal, o Ministério Público pode investigar diretamente infrações penais, cabendo-lhe, ainda, o relevante papel de exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar de cada Estado. No campo extrapenal, pode exercitar a chamada administração pública de interesses privados, como na aprovação de acordos extrajudiciais ou nos compromissos de ajustamento (objeto principal deste trabalho), bem como tem o dever de atender o público, um dos canais mais adequados para o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição.
Releva considerar que, nas esferas penal e cível, de certa forma, o Ministério Público busca zelar pela proteção individual, de modo que Mazzilli (1993, p. 19) assevera:
Por paradoxal que possa parecer, mesmo na esfera penal a tarefa acusatória do Ministério Público já constitui o primeiro fator de proteção das liberdades individuais, por assegurar o contraditório na acusação e possibilitar a presença de um juiz imparcial porque desvinculado do ônus de acusar. E, na esfera cível, também a iniciativa ou a intervenção do Ministério Público também visam a preservar o princípio dispositivo, viabilizando a presença do juiz eqüidistante, livre do ônus da iniciativa.
Mas é justamente nas questões que digam respeito a interesses sociais ou individuais indisponíveis[1], a interesses difusos[2], coletivos[3] ou individuais homogêneos[4] de larga expressão social, que o Ministério Público comparece na defesa de relevantes valores democráticos, seja para possibilitar o acesso ao Judiciário, seja para operar como fator de equilíbrio entre as partes no processo.
Observa-se as palavras do Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, em recente pronunciamento[5], para melhor compreensão do papel do Ministério Público no atual ordenamento jurídico brasileiro:
É motivo de orgulho para todos nós o que nos revela a história recente do Ministério Público no Brasil: queiram ou não os mais críticos, integramos uma instituição merecedora do respeito externado pela sociedade.
O seu empenho em atividades investigatórias próprias [...] é seguramente mais um fator de reforço à efetividade penal, de sorte que se impõe a defesa persistente e consistente de tais atribuições. Não reivindicamos exclusividade, mas não podemos concordar com interpretações, de inequívoco ranço corporativo, que pretendam restringir à Polícia a legitimidade para o exercício da função investigatória.
A sociedade brasileira, que acompanha com atenção, e também com apreensão, a crise política atual, certamente tem a consciência de que o combate eficaz à corrupção exige um sistema estatal de investigação capaz de desvendar os sofisticados mecanismos de desvio de recursos públicos e de utilização de valores resultantes de atividades ilícitas. E esse sistema estatal de investigação somente será eficiente na medida em que seja integrado por instituições e órgãos desprovidos de pretensões exclusivistas.
No que se refere às apurações sobre os fatos que devem ser submetidos ao Supremo Tribunal Federal, posso assegurar que as atividades investigatórias estão sendo realizadas, de forma harmoniosa e compartilhada, pelo Ministério Público, pelas Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito, pela Polícia Federal, pela Receita Federal e pelo COAF. Tenho incentivado tal conduta e estou convencido de que tal proceder desarticula o discurso contrário. Espero que tal comportamento produza frutos nos demais níveis de atuação do Ministério Público.
Ademais, tenho uma fundada expectativa de que o Supremo Tribunal Federal irá proclamar a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, conclusão essa que considero indispensável para o combate sério e eficaz da corrupção.
É interessante notar que o movimento no sentido da expansão do rol das atribuições do Ministério Público na área não-penal, que se inicia a partir dos idos de 1970, concentrava-se na admissão de sua intervenção processual como autor ou custos legis, a pretexto da existência de interesse público, em relações processuais de cunho individualista. Vale dizer: a eficácia subjetiva direta de sua atuação era, na verdade, insignificante, visto que se limitava aos litigantes do caso. Portanto, o aumento quantitativo das suas atribuições cíveis, não correspondia no acréscimo, em igual medida, ao alcance subjetivo da sua atuação. Verificando-se a intervenção no processo civil predominantemente individualista, o resultado não poderia ser outro.
É certo que, a partir de 1980, também já se constata uma dupla preocupação: de um lado, a possibilidade de sua atuação no processo civil com dimensão coletiva, sobre o qual a doutrina já aumentava as suas luzes; e, de outro lado, o seu desempenho extrajudicial, por isso mesmo primordialmente preventivo, na tutela de direitos da cidadania e os genericamente denominados supra-individuais.
Com a lei n.º 7.347, de 1985 (Lei da Ação Civil Pública), ficou explicitada, no plano normativo infraconstitucional, a legitimidade do Ministério Público para exercer, na esfera judicial e extrajudicial, a defesa dos interesses coletivos e difusos. Ao contrário daquelas que propiciavam a atuação dos membros da Instituição em lides interindividuais, tal atribuição conferiu ao Ministério Público, no âmbito cível, um campo de atuação com abrangência subjetiva realmente relevante.
Verifica-se que, com o advento da Constituição de 1988, consolidou-se o novo perfil do Ministério Público, fruto da luta empreendida com o propósito de ampliar a sua atuação na área não-penal e, principalmente, de superar os limites restritos do plano individual, colocado-o na condição de defensor da sociedade, bem como sinalizou-se no sentido de que se deve incrementar o emprego da técnica do tratamento coletivo, principalmente pelo aspecto “de massa” que a respectiva lesão é capaz de provocar. É nesse contexto que o Ministério Público passou a desempenhar relevante papel como garante dos valores constitucionais, especialmente os da cidadania e dos direitos sociais.
Nos dias atuais, as atribuições do Ministério Público são muito diversificadas, sendo que, na esfera criminal, dispõe do dever de promover em Juízo a apuração dos delitos e a responsabilização dos seus autores. Na esfera cível, o papel do Ministério Público é tão relevante quanto na esfera criminal, e ultimamente suas funções vêm crescendo significativamente nesta área, incumbindo-lhe a iniciativa de provocar o Poder Judiciário em inúmeras ações.
Importante salientar que toda atuação do Ministério Público é finalística, ou seja, sempre age em defesa de pessoas, ou de grupos de pessoas, ou de toda a sociedade. Didaticamente, Mazzilli (1993, p. 22) sitematiza as causas interventivas da Instituição ministerial em juízo da seguinte forma:
a) defesa de hipossuficientes, quando visa a compensar o desequilíbrio das partes (acidentados do trabalho, favelados); b) defesa de interesses indisponíveis (ligados, de forma absoluta ou relativa, a uma pessoa ou a uma relação jurídica, como a defesa de incapazes ou a atuação nos feitos atinentes à nulidade de casamento); c) defesa de interesses globais da coletividade (a defesa do interesse público ou de interesses difusos ou coletivos, como na ação penal, nas ações ambientais ou na defesa de grande parcela de consumidores).
É função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos[6]. O inquérito civil (será abordado no segundo capítulo deste trabalho), agora referido na Constituição de 1988, tinha sido inicialmente criado pela Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), destinando-se à coleta, por parte do órgão do Ministério Público, dos elementos necessários para a propositura de qualquer ação civil a ele cometida, de modo que a possibilitar a regular apuração de denúncias, assim como o ajuizamento de ações mais bem aparelhadas e instruídas. Outra utilidade do inquérito civil, evidentemente, consiste em que, no seu curso, também se podem apurar, ao contrário, circunstâncias que demonstrem a desnecessidade da própria provocação jurisdicional. Nesse caso, o arquivamento do inquérito será solução adequada, que em muito ajudará a desafogar os serviços judiciários.
A Constituição Federal de 1988, derradeiramente, acolhendo o pensamento dominante entre os promotores de Justiça, delineou um novo perfil institucional ao Ministério Público, definindo-o como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[7]. Definiu a sua unidade, indivisibilidade e independência funcional, assegurando-lhe a autonomia funcional e administrativa e garantindo-lhe as mesmas prerrogativas dos membros do Poder Judiciário como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.
Ao ampliar os limites e extensão do inquérito civil, de sua atuação de fiscalização e promoção dos interesses sociais, o promotor de Justiça passou a ter importante papel como instituição mediadora dos conflitos e interesses sociais. A sua tarefa institucional ampliou-se no plano da realização de acordos, promoção da efetiva implementação da justiça social através do seu envolvimento direto (e não apenas através dos autos do processo) com os problemas sociais.
Na atual Constituição, o Ministério Público conquistou posição em Capítulo próprio - Das funções essenciais à Justiça -, velando pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Pode-se, assim, concluir que o papel do Ministério Público não é tão-somente o de guardião das leis, devendo, não obstante o aspecto da legalidade, abarcar a guarda da promoção da cidadania, da democracia e da justiça, da moralidade, além dos interesses da que demandam a sociedade de um modo geral.
Acumulando as características de fiscal, ouvidor e advogado do povo, a Constituição de 1988 destinou ao Ministério Público a posição de defensor da sociedade contra eventuais abusos e arbitrariedades do Estado, ao mesmo tempo em que defende o Estado Democrático de Direito contra possíveis ataques de particulares que não estejam agindo de boa-fé.
O Ministério Público, ao contrário do Poder Judiciário, que atua, via de regra, mediante provocação, pode agir por iniciativa própria, ante a ameaça aos interesses sociais, podendo também ser impulsionado por qualquer cidadão que tenha um direito seu ameaçado ou violado.
Dito isso, passaremos a abordar, no segundo capítulo desse trabalho, o principal instrumento de investigação do Ministério Público, qual seja, o inquérito civil.
2 O INQUÉRITO CIVIL: Instrumentalização da Investigação extrajudicial pelo Ministério Público
O inquérito civil é um instrumento ainda relativamente novo para o Ministério Público, de forma que, de um lado, ainda não está sendo usado na plenitude a que se destina, e, de outro, também às vezes é usado de forma excessiva, como se fosse resolver milagrosamente todas as questões postas. Algumas vezes deixa de ser usado para investigar danos que deveriam ser apurados pelo Ministério Público, enquanto, outras vezes, é indevidamente instaurado para investigar critérios que a lei colocou na exclusiva esfera discricionária do administrador.
Tratando-se do primeiro procedimento efetivo cuja presidência a lei cometeu diretamente ao Ministério Público para instrumentalizá-lo nas investigações pré-processuais, provocou o inquérito civil uma verdadeira revolução na atuação dessa instituição. Questões que até há alguns anos ficavam praticamente fora da apuração direta por parte do Ministério Público, são, agora, objeto de uma quantidade expressiva de inquéritos civis, tratando de matérias ligadas ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio cultural, à improbidade administrativa, etc.
2.1 Antecedentes e Histórico
O inquérito civil foi criado pela Lei Federal n.° 7.347, de 24 de julho de 1985[8]. “Antes dessa data, não existia em nosso ordenamento jurídico instrumento legal - colocado à disposição do Ministério Público - para investigar fatos ensejadores da propositura de ação civil pública (SILVA, 2000, p. 22).” Hoje, tal instrumento já se encontra consagrado na Constituição Federal[9]. Mazzilli afirma “que sua criação inspirou-se reconhecidamente no inquérito policial (2000, p. 46).”
Os arts. 8.° e 9.° da Lei da Ação Civil Pública instituíram, pois, o inquérito civil como procedimento de investigação de caráter administrativo, presidido pelo Ministério Público, que se destina basicamente a servir-lhe para a coleta de elementos de convicção que lhe permitam identificar ou não a hipótese de propor a ação civil pública, aduzindo Mazzilli (2000, p. 47) que:
[...] o inquérito civil, em última análise, funda-se no princípio da autotutela do Estado, que instrumentaliza um de seus órgãos (o Ministério Público), aparelhando-o para que possa pedir a outro de seus órgãos (o Poder Judiciário), por meio da ação civil pública, uma prestação jurisdicional positiva ou também negativa sobre uma lesão ou ameaça de lesão a interesses que digam respeito à ordem pública ou tenham larga abrangência social ou coletiva.
O Ministério Público era carecedor de um instrumento que servisse de base para a propositura de suas ações na área cível, conforme salienta Mazzilli (2000, p. 49),
[...] enquanto na área criminal o Ministério Público já dispunha do inquérito policial como procedimento administrativo que, de regra, lhe servia para preparar-se para a propositura da ação penal, já na área cível, até antes do advento da Lei da Ação Civil Pública, inexistia um instrumento investigativo prévio e formalmente disciplinado pela lei, que lhe permitisse colher metodicamente os elementos necessários para o ajuizamento da ação civil. [...] ainda que guardasse o inquérito civil grande analogia com o inquérito policial, que foi a fonte última de sua inspiração, previram seus últimos idealizadores que o inquérito civil se destinaria, sim, a colher elementos para propositura de eventual ação civil pública, mas seria conduzido diretamente pelo Ministério Público e estaria sujeito ao controle de arquivamento pela própria instituição ministerial, de forma colegiada.
“Podemos dizer, portanto, que não existe na legislação comparada instrumento que se assemelhe ao inquérito civil; ele é genuinamente brasileiro (SILVA, 2000, p. 22).”
Verifica-se, portanto, que o inquérito civil é um instrumento relativamente novo, com pouco mais de vinte anos de existência, servindo, precipuamente, como base para o ajuizamento da ação civil pública.
2.2 Conceito de inquérito civil
Trata-se “de procedimento administrativo investigatório a cargo do Ministério Público (MAZZILI, 2000, p. 55).”
Presidido por órgão de execução do Ministério Público, o inquérito civil é um procedimento administrativo de natureza inquisitiva tendente a recolher elementos de prova que ensejem o ajuizamento de ação civil pública, ao passo que Antônio Lopes Neto e José Maria Zucheratto, insignes membros do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, dizem que o inquérito é todo procedimento legal destinado à reunião de elementos acerca de um ilícito, de uma infração. É a instrução extrajudicial (FERRAZ apud SILVA, 2000, p. 23).
Inicialmente, nos termos da Lei n.º 7.347/85, seu objeto circunscrevia-se à coleta de elementos de convicção que servissem de base à propositura de uma ação civil pública pelo Ministério Público em defesa dos interesses transindividuais[10] nela taxativamente discriminados (meio ambiente, consumidor e patrimônio cultural); entretanto, com o alargamento do objeto da ação civil pública, trazido por força da própria Constituição e de leis subseqüentes, hoje o inquérito civil presta-se à investigação de lesão a quaisquer interesses que justifiquem a propositura de qualquer ação civil pública pelo Ministério Público.
Sintetizando o conceito, “o inquérito civil destina-se à coleta de elementos de convicção para que, à sua vista, o Ministério Público possa identificar ou não a hipótese em que a lei exige sua iniciativa na propositura de qualquer ação civil pública a seu cargo (MAZZILI, 2000, p. 55).”
Nas palavras de Souza (2001, p. 84), “inquérito civil é um procedimento administrativo de natureza inquisitiva, presidido pelo Ministério Público e que tem por finalidade a coleta de subsídios para a eventual propositura de ação civil pública pela Instituição.”
“O inquérito civil está para a ação civil pública assim como o policial para a ação penal pública (SOUZA, 2001, p. 84).”
Somente o Ministério Público está autorizado a instaurar e presidir o inquérito civil; não as associações civis nem os demais co-legitimados à ação civil pública. A União, o Estado, o Município, as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as fundações ou as associações civis sem dúvida podem propor a ação civil pública da Lei n.º 7.347/85, ou a ação coletiva do Código de Defesa do Consumidor; antes de proporem sua ação, é natural que recolham elementos de convicção necessários, e farão isso em procedimentos quaisquer, mas, sob a denominação, os mecanismos de controle de arquivamento e sob os efeitos do inquérito civil, só o Ministério Público pode instaurá-lo. Na forma como foi concebido na Lei n.º 7.347/85 e legislação subseqüente, o inquérito civil é um instrumento de investigação exclusivo do Ministério Público.
2.3 Características
Pode-se caracterizar o inquérito civil, segundo a doutrina dominante, como informal, facultativo, escrito, público e inquisitivo.
O inquérito é informal dada a sua natureza de instrumento administrativo de investigação. “Destinando-se à coleta de subsídios, a seqüência dos atos praticados no instrumento investigatório é ditada por seu presidente, o qual melhor do que ninguém saberá avaliar o momento adequado para a obtenção de cada elemento de prova, de sorte a propiciar seguimento lógico e objetivo ao inquérito (SOUZA, 2001, p. 85).”
É facultativo por disposição legal[11], de forma que o promotor de Justiça não está obrigado a instaurar inquérito civil. “O inquérito civil não é condição de procedibilidade da ação civil pública, mas sim fonte de colheita de elementos que justifiquem a ação ou que venham a demonstrar a inutilidade ou injustiça da notícia que possa chegar ao Ministério Público, visando criar a atuação do órgão (SALVADOR apud SILVA, 2000, p. 56).”
O inquérito civil, via de regra, é escrito, ou seja, os atos e diligências (perícias, oitiva de testemunhas, declarações do investigado, etc.) realizados no seu curso serão sempre documentados, sendo que não há norma no âmbito do inquérito civil que fale sobre a obrigatoriedade de o mesmo ser escrito. No entanto, como nos ensina SILVA (2000, p. 56),
[...] extrai-se do próprio sistema legal que a documentação dos atos é obrigatória. O art. 9.° do Código de Processo Penal, ao tratar do inquérito penal, diz que todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.
Embora, ainda, não seja usual,
[...] nada impede [...] que o Parquet[12] se valha, por analogia, do disposto no art. 13, § 3.°, da Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995 (diploma legal que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais), e proceda à gravação em fita magnética ou equivalente dos depoimentos colhidos no curso da investigação (SILVA, 2000, p. 56).
O inquérito civil é público, o que significa dizer que qualquer interessado poderá consultá-lo.
Impende destacarmos que a publicidade que vige como regra no inquérito civil não se aplica a seu procedimento preparatório [...], assim como sofre exceções decorrentes da natureza sigilosa do objeto investigado (por exemplo, apuração de enriquecimento ilícito de agente público) ou de alguma das provas colhidas no inquisitivo (por exemplo, informações bancárias ou fiscais). O sigilo do inquérito poderá, ainda, ser determinado por seu presidente, quando se mostrar de conveniência para o desenvolvimento das investigações [...] (SOUZA, 2001, p. 86).
Por fim, diz-se que o inquérito civil é inquisitivo, pois não se sujeita ao princípio do contraditório[13]. Possuindo natureza meramente investigatória, o inquérito civil não contém qualquer acusação, não comportando em seu bojo uma imputação, “como muitas vezes a imprensa erroneamente faz supor (SOUZA, 2001, p. 86).” Inexistindo acusação, não há que se falar em defesa. Portanto, a regra, no inquérito, é a ausência do contraditório.
Sabiamente, Silva (2000, p. 58) aduz que:
[...] não sendo um processo, mas um simples procedimento administrativo, o inquérito civil não está sujeito ao princípio do contraditório. Daí seguir-se a seguinte conclusão: não haverá lugar, no inquérito civil, para a apresentação de ‘defesa’ ou ‘contestação’ por parte do investigado. Isso só seria possível se o inquérito civil fosse considerado um processo.
A inquisitoriedade do inquérito civil está no fato de o promotor de Justiça poder determinar diligências sem seguir um padrão previamente estabelecido pela lei, tendo em vista que a legislação não estabelece um procedimento padrão a ser seguido pelo promotor de Justiça durante o curso das investigações.
A marca da inquisitoriedade reside no fato de o membro do Ministério Público decidir, sem interferência alheia, sobre as diligências que serão efetivamente postas em prática no curso das investigações, de modo que o investigado não terá o direito de se manifestar imediatamente após a realização de cada diligência, o que também constitui uma marca visível da inquisitoriedade do inquérito civil.
2.4 Finalidade
A finalidade do inquérito civil é apurar fatos ensejadores da propositura de ação civil pública. Nessa senda, Silva (2000, p. 25) diz que:
[...] o inquérito civil, de instauração facultativa, desempenha relevante função instrumental. Constitui meio destinado a coligir provas e quaisquer outros elementos de convicção, que possam fundamentar a autuação processual do Ministério Público. [...]. Com ele, frustra-se a possibilidade, sempre eventual, de instauração de lides temerárias. A instauração do inquérito civil não obriga o Ministério Público ao ajuizamento da ação civil pública, desde que lhe pareçam insuficientes os elementos de convicção coligidos. Os titulares da ação civil pública, as associações, inclusive, possuem legitimidade autônoma para o ajuizamento da ação civil pública. Podem ajuizá-la antes do Ministério Público, ou durante a tramitação do inquérito civil ou, ainda, após eventual arquivamento do inquérito civil (José Celso de Mello Filho apud Silva).
Ao ver de Édis Milaré (1994, p. 35), o inquérito civil desempenha tríplice papel:
[...] preventivo (compromisso de ajustamento, com o qual será possível obstaculizar um dano iminente), reparatório (colheita e análise dos elementos necessários à propositura de ação civil pública, v.g., por dano causado ao meio ambiente) e repressivo (quando se presta ao ajuizamento da ação penal pública).
Releva notar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 29, inciso III, não prevê o inquérito civil apenas para a propositura da ação civil pública, tanto que não fala em ‘promover o inquérito civil para a ação civil pública’, consequentemente nada impedindo que o mesmo seja instrumento para a colheita dos elementos de convicção, referidos no art. 27 do Código de Processo Penal, para a propositura de ação penal. Isso não significa dizer que, com o nascimento do inquérito civil, o Ministério Público transformou-se em órgão eminentemente policial. Frise-se que a finalidade do inquérito civil é averiguar a ocorrência de ilícitos capazes de ensejar a propositura de ação civil pública e que, logicamente, em algumas hipóteses, a consecução de atos instrutórios poderá levar ao descobrimento de infrações penais. Portanto, infere-se que o descobrimento de ilícitos penais, em sede de inquérito civil, será feito circunstancialmente, ou seja, incidentalmente.
Observa-se que o inquérito civil, além de servir de embasamento a uma eventual ação civil pública, tem outras finalidades subsidiárias, tais como, viabilizar a tomada de compromisso de ajustamento, preparar a realização de audiências públicas e a expedição das respectivas recomendações, permitir o acompanhamento da execução dos compromissos de ajustamento ou da solução dos problemas apurados ou apontados em audiências públicas, bem como embasar qualquer outra atuação que a Constituição e as leis tenham cometido ao Ministério Público.
Observadas as finalidades do inquérito civil, veremos, no próximo tópico, que o referido instrumento investigatório foi conferido, com exclusividade, pelo legislador ao Ministério Público.
2.5 Monopólio do Ministério Público
O inquérito civil constitui monopólio do Ministério Público, de forma que os demais legitimados ativos, arrolados no art. 5.° da Lei n.° 7.347/85[14] têm autorização legal para instaurar inquérito civil. A lei reserva-lhes o direito de promover ação civil pública, mas não lhes outorga o poder de instaurar inquérito civil. Assim, somente o Ministério Público da União e os Ministérios Públicos dos Estados estão autorizados a instaurar, dentro de suas respectivas áreas de atribuições, inquérito civil para investigar fatos que ensejem a propositura de ação civil pública.
Somente membros de carreira da instituição (devidamente aprovados em concurso público) estão autorizados a exercer suas atribuições funcionais, salientando Silva (2000, p. 46) que:
[...] de acordo com as disposições constitucionais vigentes, não se mostra possível a nomeação de promotor ‘ad hoc’ para o exercício das funções do Ministério Público. Assim, ainda que o quadro funcional do Ministério Público de determinado Estado tenha um número insuficiente de promotores, não haverá lugar para a nomeação de promotor ‘ad hoc’. Se essa prática era relativamente comum no período anterior à Constituição de 1988, hoje em dia, mercê do disposto no art. 129, § 2°, do Texto Maior, somente membros de carreira da Instituição estão autorizados a exercer suas atribuições funcionais. E esta é a dicção do art. 129, § 2°, da CF.
Não obstante o fato de o inquérito civil constituir monopólio do Ministério Público, salienta-se que, nem sempre, o mesmo terá legitimidade para instaurar inquérito civil ou promover ação civil pública, ou seja, não é qualquer interesse que legitima a sua intervenção, devendo o bem jurídico a ser tutelado revestir-se de relevância social, justificando, assim, a intervenção do Ministério Público.
No próximo tópico, demonstraremos, conforme quadro comparativo, as principais diferenças entre o inquérito civil e outros inquéritos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.
2.6 Principais diferenças entre o inquérito civil e outros inquéritos
Quanto aos diversos tipos de inquérito assinalados no quadro acima, pode-se afirmar que serão sempre reduzidos a escrito, isto é, datilografados ou digitados, bem como grande parte deles são inquisitivos e tem prazo assinalado para terminar.2.7 Inquérito civil e inquérito policial
Distinguindo o inquérito policial do inquérito civil, Mazzili (2000, p. 47) observa que:
[...] enquanto o inquérito policial ainda hoje se destina a investigar as infrações penais na sua materialidade e autoria, para servir de base à propositura da ação penal, [...] o inquérito civil se destina a investigar fatos que tenham relevo para a iniciativa do Ministério Público na área civil, servindo-lhe de base à propositura da ação civil pública.
Embora semelhantes, o inquérito policial e o inquérito civil apresentam diferenças entre si, assinalados por Mazzili (2000, p. 59):
O objeto do inquérito policial consiste na comprovação da materialidade do crime e na determinação de sua autoria para servir de base à acusação criminal; o do inquérito civil é apurar lesões a interesses transindividuais, na sua materialidade e autoria, para servir de base à ação civil pública.
A presidência do inquérito policial cabe à autoridade policial; a do inquérito civil cabe ao membro do Ministério Público. Seja quanto à instauração, seja quanto às diligências que surjam no curso do inquérito policial, a autoridade policial está jungida a cumprir as requisições judiciais ou ministeriais; já no tocante ao inquérito civil, o membro do Ministério Público que o preside age com total liberdade, em vista de sua plena independência funcional.
O controle de arquivamento, no inquérito policial, ocorre da seguinte maneira: o promotor de Justiça requer o arquivamento, que é deferido ou não pelo juiz, com a possibilidade de reexame unipessoal da promoção de arquivamento pelo Procurador-Geral de Justiça. No inquérito civil, o promotor de Justiça não requer e sim determina o arquivamento em sua própria Promotoria de Justiça, embora sempre haja o obrigatório reexame por um órgão colegiado, qual seja o Conselho Superior do Ministério Público, independentemente de provocação ou requerimento de quem quer que seja.
Verifica-se, portanto, que embora tanto o inquérito policial como o inquérito civil assemelham-se no que tange à busca de elementos de convicção para ajuizamento de eventual ação, o primeiro serve de base à acusação criminal, enquanto o segundo, à ação civil pública.
2.8 Dispensabilidade do inquérito civil
Embora normalmente seja o inquérito civil muito útil para colher elementos aptos à propositura de ação civil pública, ele não é indispensável. Mesmo sem o inquérito civil, se houver elementos necessários, a ação principal ou cautelar poderão ser ajuizadas tanto pelo Ministério Público como por qualquer dos demais co-legitimados, ilustrando Mazzilli (2000, p. 60) que:
[...] o inquérito civil pode e até mesmo deve ser dispensando como quando o promotor de Justiça já tenha em mãos todos os elementos necessários para propor a ação principal ou cautelar (como, p. ex., se já contar previamente com peças de informação suficientes para a propositura da ação civil pública, como documentos extraídos de outros feitos cíveis ou criminais, de processo disciplinar ou administrativo, de autos do Tribunal de Contas, etc.).
Assim, pode-se concluir que se o Ministério Público não está de posse de todos os dados que lhe permitam o correto ajuizamento da ação civil pública, deverá instaurar o inquérito civil, que é o meio de investigação pré-processual adequado para preparar-se para essa propositura; entretanto, se já detém todos os elementos de fato que lhe permitam o imediato ajuizamento da ação, aí, sim, será descabido instaurá-lo, o que teria, nesse caso, caráter meramente procrastinatório.
2.9 Valor da prova indiciária
Da mesma forma que no processo penal, em relação ao inquérito policial, as informações constantes do inquérito civil podem servir em juízo, de forma subsidiária, como elementos de convicção. Segundo Mazzilli (2000, p. 61),
[...] não se pode falar em nulidades ou vícios do inquérito civil que tenham qualquer reflexo na ação judicial. Tais defeitos, posto possam empanar[19] o valor intrínseco das peças de informação colhidas no inquérito, não passarão de meras irregularidades que não contaminam a ação proposta.
O valor do inquérito civil como prova em juízo decorre de ser uma investigação pública e de caráter oficial. As informações nele contidas podem concorrer para formar ou reforçar a convicção do juiz, desde que não colidam com provas de maior hierarquia, como aquelas colhidas sob as garantias do contraditório.
Como se trata de investigação de caráter inquisitivo, é apenas relativo o valor dos elementos de convicção colhidos através do inquérito civil, aliás como já ocorre em relação ao inquérito policial.
? 2.10 Instauração do Inquérito Civil
Nas palavras de Silva (2000, p. 60),
[...] é por meio da instauração que o inquérito civil nasce no mundo jurídico. Não basta, por isso mesmo, o simples conhecimento acerca de um fato contrário, em tese, ao ordenamento jurídico e violador de algum direito metaindividual [20], se não houver a correspondente instauração do inquérito.
Caberá ao promotor de Justiça analisar as circunstâncias e verificar se é o caso da abertura de inquérito, sendo que ele não é obrigado a abrir cegamente o referido expediente investigatório ao sabor de uma denúncia feita por alguém.
Em relação ao prazo prescricional de eventual crime cometido que atente contra interesse coletivos ou difusos, Silva (2000, p. 60) nos ensina que:
[...] um efeito resultante da instauração do inquérito civil é a suspensão do prazo decadencial. Com efeito, além de sua formidável finalidade de investigar fatos que possam levar à propositura de ação civil pública, o inquérito civil, uma vez instaurado, impede o curso da decadência em matéria de relações de consumo[21].
A portaria é, ao lado da decisão que admite a representação ou da determinação emanada do Procurador-Geral de Justiça ou do Conselho Superior do Ministério Público, o ato que dá início ao inquérito civil. Ao instaurar o inquérito, caberá ao membro do Ministério Público, no próprio corpo da portaria, designar servidor para secretariar os trabalhos.
Conforme ensina Mazzilli (2000, p. 70), “a instauração do inquérito civil dá-se quando o órgão do Ministério Público necessite instruir-se sobre a existência de lesão ou possibilidade de lesão a um dos interesses cuja defesa na área civil lhe seja cometida pela lei.”
Nas palavras de Silva (2000, p. 53),
[...] a decisão sobre a instauração de inquérito civil compete, com exclusividade, ao Ministério Público. Pouco importa, ademais, se o pedido de abertura de inquérito civil está partindo de um simples munícipe ou de uma pessoa de maior expressão - um senador da República, por exemplo. A decisão é, sempre, do Ministério Público. Os membros do Ministério Público, como agentes políticos, atuam, na escorreita lição de Hely Lopes Meirelles, ‘com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Não são funcionários públicos em sentido estrito, não se sujeitando ao regime estatutário comum’. E mais adiante arremata: ‘Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos e, para tanto, ficam a salvo de responsabilização civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido com culpa grosseira ou abuso de poder’.[22] Nem mesmo a solicitação do Poder Judiciário levará à instauração de inquérito civil. Vale dizer: ainda que a autoridade judiciária encaminhe ofício (acompanhado de peças) ao promotor de Justiça dando conta da existência de algum fato que, a seu juízo, autorize a instauração de inquérito, caberá ao Parquet decidir a esse respeito, sem sofrer influência de quem quer que seja.
O inquérito civil é o meio próprio para a colheita de elementos de convicção de que o Ministério Público necessita para eventual propositura da ação civil pública ensinando Mazzilli (2000, p. 71) que:
[...] é possível distinguir a fase da instauração (de regra, por portaria ou despacho ministerial a acolher requerimento ou representação), a fase da instrução (coleta de provas: oitiva de testemunhas, juntada de documentos, realização de vistorias, exames e perícias) e a fase de conclusão (relatório final, com promoção que propenda pelo arquivamento, ou, em caso contrário, a própria propositura da ação, embasada no inquérito).
Silva (2000, p. 23) acrescenta que:
[...] com base nesse inquérito é que o promotor de Justiça, após colher todas as provas que reputar necessárias, tanto as de natureza testemunhal quanto as de natureza pericial, promoverá a ação civil pública. Ouvindo testemunhas, recolhendo informações e documentos de pessoas físicas ou jurídicas, determinando a realização de provas periciais, inspecionando locais como creches e entidades de atendimento, enfim, reunindo em torno de si um formidável manancial probatório, terá indubitavelmente elementos suficientes para atestar eventual descumprimento de preceitos legais da esfera infanto-juvenil.
O inquérito civil poderá ser instaurado de ofício, por provocação de qualquer interessado; ou por determinação do procurador-geral de Justiça ou do Conselho Superior do Ministério Público.
A instauração de ofício ocorre quando o membro do Ministério Público toma conhecimento de algum fato capaz de levar à instauração de inquérito civil. Nessa hipótese, a abertura de inquérito independe da provocação de quem quer que seja, de maneira que o próprio promotor de Justiça, ao tomar conhecimento do fato, determina a abertura de inquérito civil para apurar se estão presentes irregularidades capazes de determinar, oportunamente, o ajuizamento de ação civil pública. Exemplificando, Silva (2000, p. 37) diz que “se o promotor de Justiça da Infância e da Juventude souber, pelos jornais, que o Poder Público municipal está oferecendo ensino fundamental de péssima qualidade à população infantil, deverá instaurar, de ofício, inquérito civil para apurar a veracidade da notícia.”
O promotor de Justiça poderá tomar ciência de um fato capaz de ensejar a abertura de inquérito civil pela televisão, rádio, jornais, e-mail, denúncia anônima, bem como pelo atendimento ao público em seu gabinete, afirmando Silva (2000, p. 37) que:
[...] é muito comum, principalmente nas comarcas do interior, o promotor de Justiça atender à população carente e adotar, quando cabível, providências judiciais ou extrajudiciais. Ora, se no exercício dessas funções o promotor se deparar com um fato grave, ensejador de inquérito civil, deverá instaurá-lo de ofício.
Nem sempre, porém, a instauração de inquérito civil será feita de ofício. É o que acontece quando alguém, visando a investigação de um fato, provoca a iniciativa do Ministério Público. Silva (2000, p. 39) nos dá o seguinte exemplo:
[...] dirigente de entidade de atendimento dirige-se - pessoalmente ou por escrito - ao Parquet para denunciar certa irregularidade cometida pelo Poder Público municipal. Havendo verossimilhança, o membro do Ministério Público instaurará inquérito civil. E a instauração, nesta hipótese, não será feita de ofício, senão por provocação do dirigente da entidade.
Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção[23]. A omissão por parte do servidor poderá configurar crime de prevaricação[24].
Outra hipótese ensejadora da abertura de inquérito civil vem contemplada no art. 7.° da Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), dispondo que: "Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura de ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis". Portanto, se um juiz, na sua função judicante, tomar conhecimento de alguma irregularidade, deverá oficiar ao representante do Ministério Público e encaminhar peças para as devidas providências.
O inquérito civil poderá, ainda, ser instaurado por determinação do procurador-geral de Justiça ou do Conselho Superior do Ministério Público. Havendo determinação desses órgãos, o promotor de Justiça não poderá examinar razões de conveniência ou oportunidade e muito menos eximir-se do dever de instaurar inquérito.
Qualquer pessoa física ou jurídica pode encaminhar requerimento ou representação ao órgão do Ministério Público, denunciando fatos que ensejem a propositura de uma ação civil pública, ou, pelo menos, a instauração de um inquérito civil. Se o órgão do Ministério Público entender por indeferir de plano o próprio requerimento de abertura de investigações, deverá fazê-lo de maneira fundamentada[25].
Caso o promotor de Justiça não vislumbre fundamentos para a instauração do inquérito, não violará dever jurídico algum ao indeferir o pedido do interessado. Entretanto, salienta Mazzilli (2000, p. 71) que:
[...] se o requerimento indicar a existência de uma lesão ou ameaça de lesão a interesses cujo zelo a lei incumba ao Ministério Público, e se o requerimento indicar provas viáveis que possam e devam ser colhidas, o arquivamento, sem sequer se certificar o promotor da procedência ou não da denúncia, com certeza violará o dever de agir da instituição.
O inquérito civil possui ainda outras finalidades: viabiliza a tomada de compromisso de ajustamento[26]; prepara a realização de audiências públicas e a expedição das respectivas recomendações[27]; permite o acompanhamento da execução dos compromissos de ajustamento ou da solução dos problemas apurados ou apontados em audiências públicas, bem como embasa qualquer outra atuação que a Constituição e as leis tenham cometido ao Ministério Público.
A instauração do inquérito civil compete ao mesmo órgão do Ministério Público que, em tese, teria atribuições para propor a correspondente ação civil pública, nele baseada. A regra é a competência do local do dano que ocorreu ou deva ocorrer (LACP, art. 2.°). A respeito de qual membro do Ministério Público terá atribuições para instaurar o inquérito civil, Mazzilli (2000, p.91) diz que:
[...] a primeira regra é a de que, quanto aos inquéritos civis, conseqüentemente devem ser instaurados pelo Ministério Público Federal ou Estadual, conforme seja a respectiva distribuição de atribuições para propor a correspondente ação civil pública. Isso não impedirá que o Ministério Público federal e estadual ajam em harmonia, em litisconsórcio. [...] Em regra, instaurar e presidir o inquérito civil competirá ao promotor de Justiça que tenha atribuições para propor a correspondente ação civil pública no local onde o dano tenha ocorrido ou possa a vir ocorrer. Nas comarcas onde haja mais de um promotor de Justiça com iguais atribuições, será mister distribuir o inquérito civil, em conformidade com as leis de organização local do Ministério Público.
Assim, entende-se que para se determinar o foro competente para instaurar o inquérito civil, é necessário considerar: se a competência é da Justiça Federal ou Estadual[28]; se a competência é em razão do local do dano (efetivo ou potencial) ou em razão do local da ação ou omissão[29]; se a competência é determinada pela prevenção; se a competência é determinada em razão do foro do domicílio do autor[30].
É no local do dano que a prova será colhida com mais facilidade, eficiência e rapidez. Caso a ação fosse proposta em outro local que não o do dano, a colheita da prova poderia mostrar-se deficiente, sobretudo se dependesse da realização de exames e perícias. Ademais, sendo o local do dano o competente para a propositura da ação, o juiz da causa terá mais facilidade para deslocar-se até o sítio do dano e realizar, por exemplo, uma inspeção judicial. Foi pensando nisso que o legislador elegeu o local do dano como o competente para o ajuizamento de ações civis públicas e coletivas (Silva, 2000, p. 49).
Se o local do dano, como vimos, é o competente para a propositura de ações civis, também o será para a instauração de inquérito civil. É no local do dano que o presidente do inquérito poderá determinar, com mais facilidade e em benefício da instrução probatória, a oitiva de testemunhas, a realização de exames e perícias, além de deslocar-se até o lugar do dano para apurar a sua extensão.
A presidência do inquérito civil é da exclusiva atribuição do membro[31] do Ministério Público. Ao Parquet é vedado delegar suas atribuições a outras pessoas, ainda que estas também pertençam à carreira do Ministério Público. A única exceção diz respeito às atribuições reservadas ao Procurador-Geral de Justiça, que, em se tratando de inquérito civil aberto para apurar conduta perpetrada por governador de Estado - da alçada exclusiva do procurador-geral de Justiça (Lei n.° 8.625/93, art. 29, inciso VIII), poderá delegar a outro membro do Ministério Público suas funções de órgão de execução. Contudo, o promotor de Justiça que for designado estará agindo por delegação, de maneira que a presidência do inquérito será sua, mas por delegação do procurador-geral de Justiça. O presidente do inquérito, como já dito, deverá designar servidor do Ministério Público para secretariar os atos da investigação, mas a presidência será sempre sua, por força de lei.
Outra questão interessante é a possibilidade de intervenção no mesmo inquérito civil de dois ou mais promotores de Justiça, sendo que tal possibilidade já está consubstanciada na Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo[32], aduzindo Silva (2000, p. 45):
[...] que a atuação poderá ocorrer não só entre membros do Ministério Público de um único Estado como também entre membros de Estados diferentes. Nada impede, assim, que o promotor de Justiça da Infância e da Juventude de São Paulo instaure, em conjunto com o promotor de Justiça da Infância e da Juventude de Curitiba, inquérito civil para apurar, por exemplo, migração desordenada de crianças de uma capital para outra. Havendo atuação conjunta de membros do Ministério Público - de um mesmo Estado ou de Estados diferentes - surgirá inevitavelmente a seguinte pergunta: A quem caberá a presidência do inquérito civil? A Lei n.° 7.347/85 não responde a essa indagação. A nosso ver, em face de tal omissão, tudo dependerá do que ficar acertado entre os promotores de Justiça interessados, de sorte que, ao instaurarem o inquérito, já saibam quem será o seu presidente.
Cabe ainda mencionar acerca da publicidade do inquérito civil. Ela é inerente ao princípio da publicidade de todos os atos da administração pública[33], salientando Silva (2000, p. 45):
[...] que os atos e diligências determinados pelo presidente do inquérito civil deverão ser, em regra, públicos, em respeito aos ditames da Constituição Federal. Entretanto, não obstante o princípio da publicidade previsto no art. 37 do texto Constitucional, se dela puder resultar prejuízo às investigações, o Ministério Público deverá aplicar, por analogia, o disposto no art. 20 do Código de Processo Penal, segundo o qual “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”, e determinar a imposição de sigilo para o bom andamento dos trabalhos. Também deverá determinar o necessário sigilo se estiver diante de informações ou dados sigilosos, a respeito dos quais tenha, por imposição legal, de resguardar o sigilo.
No que tange a duplicidade de expediente investigatórios, é possível, em alguns casos, que dois ou mais inquéritos civis sejam instaurados simultaneamente. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando um promotor de Justiça de determinada comarca instaura inquérito civil para apurar as causas determinantes da poluição de um rio cujas águas se estendam até a comarca contígua. O promotor de Justiça dessa comarca, por sua vez, também instaura inquérito civil buscando a mesma finalidade sem saber da existência do primeiro inquérito instaurado. Nessa seara, cita-se o exemplo dado por Silva (2000, p. 51):
[...] o promotor de Justiça da comarca X (local do dano) ao tomar conhecimento da existência de outro inquérito civil, instaurado por seu colega da comarca Y, deverá solicitar-lhe a remessa dos autos para um só processamento. No entanto, caso o promotor de Justiça da comarca Y entenda ter atribuições para investigar os fatos, caberá a ele suscitar o competente conflito positivo de atribuições. A decisão ficará a cargo do procurador-geral de Justiça caso os dois promotores (suscitante e suscitado) pertençam ao Ministério Público de um mesmo Estado da Federação.
Conclui-se que é por meio da instauração que o inquérito civil nasce no mundo jurídico, sendo que a decisão de iniciá-lo caberá ao órgão do Ministério Público, quando o mesmo vislumbrar a necessidade de instruir-se sobre a existência de lesão ou possibilidade de lesão a um dos interesses cuja defesa na área civil lhe seja cometida pela lei.
? 2.11 Instrução do Inquérito Civil
Após instaurado, inicia-se a segunda fase do inquérito civil: a instrução do procedimento propriamente dito.
A instrução representa a colheita de provas, ordenada pelo presidente do inquérito, destinada a apurar a existência ou não de fatos ensejadores da propositura de ação civil pública.
Neide Câmara Martins, Procuradora de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, citada por Silva (2000, p. 62), com propriedade, diz que:
[...] o membro do Ministério Público presidente do inquérito civil deverá revestir-se do espírito de detetive para ter sucesso nas investigações. Se o Parquet não investigar com acurado senso de profissionalismo, e com espírito de investigador incansável, os fatos trazidos ao seu conhecimento, por certo, o inquérito não chegará a bom termo.
A Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) é omissa a respeito do processamento do inquérito civil, devendo o Ministério Público valer-se da analogia para bem desempenhar suas funções, impondo a aplicação, no que for cabível, dos dispositivos do Código de Processo Penal.
Para ajudá-lo no desempenho de suas funções, o membro do Ministério Público encontra na lei mecanismos para instruir convenientemente os autos do inquérito civil. Nos termos do art. 26, inciso I, alínea a, da Lei n.° 8.625/93[34], o Ministério Público poderá expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei. Assim, desejando ouvir testemunhas acerca dos fatos tratados no inquérito civil, o promotor de Justiça deverá designar dia e hora para a oitiva dessas pessoas, notificando-as. A ausência injustificada das testemunhas notificadas ensejará não só a condução coercitiva como também a instauração de inquérito policial por crime de desobediência[35].
Caso, por exemplo, a testemunha resida em outra comarca, o promotor de Justiça deverá determinar a expedição de carta precatória, instruindo-a com cópias das principais peças do inquérito civil, que será encaminhada ao promotor de Justiça da comarca deprecada para o cumprimento da diligência.
No que diz respeito à necessidade do investigado ser ouvido no curso do inquérito, não há texto expresso de lei determinando a sua oitiva durante a marcha das investigações.
Além da expedição de notificações, o promotor de Justiça tem o poder de requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias.
Observa-se os esclarecimentos de Silva (2000, p. 65) quanto à instrução do inquérito civil:
[...] vê-se, pois, que o Ministério Público, na condição de presidente do inquérito, recebe da lei autorização para determinar diligências tendentes a apurar fatos ensejadores da propositura de ação civil pública. Poderá, até mesmo, determinar a realização de buscas e apreensões de livros contábeis, documentos, etc. em organismos públicos ou particulares, quando necessárias à boa marcha das investigações. Nesses casos, deverá expedir mandado de busca e apreensão, a ser cumprido por agentes policiais ou por servidores do próprio Ministério Público. Todavia, caso o promotor de Justiça realize pessoalmente a busca, a apresentação de mandado será, a nosso juízo, dispensável. É que, estando presente a própria autoridade que ordenou a diligência, não há porque exigir-se, em desarrazoado formalismo, a exibição de mandado de busca e apreensão.
No entanto, [...] com a promulgação da Constituição Federal de 1988, somente a autoridade judiciária recebeu autorização da lei para determinar a realização de buscas domiciliares. [...] Outra vedação referente a diligências instrutórias diz respeito à interceptação de comunicações telefônicas. [...] Duas são as razões pelas quais o membro do Ministério Público encontra-se proibido de determinar a quebra do sigilo telefônico: 1) a Constituição Federal é de uma clareza solar ao só permitir a interceptação telefônica mediante a apresentação de ordem escrita da autoridade judiciária, nos casos previstos em lei. [...]; 2) como a própria Constituição prevê, a interceptação telefônica só será efetivada se houver necessidade de investigação criminal ou de instrução processual penal [...].
Não há por que desconsiderar a prova produzida no curso do inquérito civil. [...] A investigação [...] tem caráter oficial e é realizada, sempre, sob o império da lei. Aliás, no tocante à prova pericial, o seu valor é quase absoluto, só destrutível em face de comprovada alegação de inobservância dos postulados legais. [...] Em razão do caráter extraprocessual do inquérito civil, as investigações poderão ser realizadas nos períodos tidos como de férias forenses. Não há razão plausível que justifique a suspensão dos trâmites do inquérito durante as férias forenses. E mais: as investigações poderão ter curso aos sábados, domingos e feriados.
Em suma, a instrução representa a colheita de vários elementos de provas, determinada pelo Parquet, que é o presidente do inquérito, destinando-se a apurar a existência ou não de fatos ensejadores da propositura de ação civil pública. Não existe, como se viu alhures, um regramento acerca da instrução do inquérito civil, cabendo ao Parquet dirigir as investigações imbuído de astúcia para que o inquérito civil atinja o seu objetivo.
2.12 Conclusão do Inquérito Civil
É a fase em que o inquérito civil será arquivado ou, em caso contrário, instruirá a petição inicial da ação civil pública.
Diferentemente do Código de Processo Penal que, ao tratar do inquérito policial, impõe a feitura de relatório, dizendo no art. 10, § 1°, que "A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz competente", relatório, em se tratando de inquérito civil, não é obrigatório. No inquérito penal, ao contrário do que se passa no inquérito civil, a autoridade policial, uma vez concluída a investigação - no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado estiver preso ou no de 30 (trinta) dias, se solto -, elaborará relatório e encaminhará os autos ao fórum para as providências legais. O destinatário do inquérito penal é o promotor de Justiça e é por isso que o Código de Processo Penal impõe ao delegado de Polícia a obrigação de elaborar um relatório acerca de toda a investigação efetuada, visto que o Ministério Público não participou das investigações conduzidas pela autoridade policial. No caso do inquérito civil, o próprio Ministério Público conduziu as investigações efetivadas durante a instrução probatória, daí não haver motivo para ele elaborar um relatório para si próprio. No entanto, apesar dessa desnecessidade, o promotor de Justiça poderá, querendo, fazer um relatório acerca das investigações que comandou, principalmente se for promover o seu arquivamento, para facilitar a atividade revisora do Conselho Superior do Ministério Público.
Quanto ao prazo para conclusão do inquérito civil, a Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) silenciou a respeito do assunto. A título de ilustração, prevê o art. 14 do Provimento n.° 55/2005 do Ministério Público do Rio Grande do Sul que “o inquérito civil deverá ser concluído no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, prorrogável quando necessário [...].” No entanto, é possível que, diante do excesso de serviço ou da complexidade das investigações, o promotor de Justiça encontre dificuldades para concluir as investigações dentro do prazo regulamentar. Nesses casos, caberá a ele prorrogar, motivadamente, o prazo destinado à conclusão do inquérito.
2.13 Incompatibilidades do membro do Ministério Público
Como é consabido, as leis apontam causas de impedimento ou de suspeição dos membros do Ministério Público[36], a começar pelo Código de Processo Civil e pelo Código de Processo Penal, que disciplinam os casos de impedimentos e de suspeição dos juízes e os estendem aos membros do Ministério Público.
Não existe impedimento para que o membro do Ministério Público que presidiu o inquérito civil possa propor a conseqüente ação civil pública, sendo que a esse respeito nos ensina Mazzili (2000, p. 103) que o entendimento correto é o de que inexiste o impedimento acima citado, pois:
[...] assim como não o existe quanto ao promotor de Justiça que participa de investigações pré-processuais, no inquérito policial, e promove a correspondente ação penal pública. Sua atuação na fase inquisitiva, preparando-se para a propositura da ação civil pública, equivale às diligências preliminares que as partes e seus advogados tomam para propor uma ação civil de qualquer natureza.
Do exposto, pode-se inferir que inexiste o impedimento para que o Parquet que presidiu o inquérito civil possa propor a conseqüente ação civil pública, salientado que eventuais vícios na fase inquisitiva não têm, via de regra, o condão, por si só, de contaminar a ação judicial.
2.14 Interesse pessoal do membro do Ministério Público
As ações civis públicas de que cuida a Lei da Ação Civil Pública (Lei n.° 7.347/85) versam acerca de interesses transindividuais, sendo que a mesma exige que, em regra, os respectivos danos sejam investigados e as correspondentes ações civis públicas sejam propostas no foro do local do dano, para que o juiz, o promotor de Justiça, as partes, as testemunhas e os peritos tenham maior facilidade de conhecer a extensão do dano.
Facilmente poderá acontecer do promotor de Justiça que instaure o inquérito civil ou venha a promover a ação civil pública seja um dos moradores da cidade que está sendo, por exemplo, contaminada pela poluição que ele próprio visa a combater. Nesse caso, surge a seguinte dúvida: estando o promotor de Justiça ligado pessoalmente na solução do caso, poderia ele atuar, seja como autor da ação civil pública, seja como presidente do inquérito civil?
Com muita propriedade Mazzilli (2000, p. 103) nos ensina que:
[...] devemos distinguir as seguintes hipóteses:
a) No caso de lesão a interesses difusos[37], graças a sua total dispersão, não há impedimento a que o promotor de Justiça da comarca do dano investigue os fatos e promova a ação civil pública correspondente. Caso houvesse impedimento, exemplificativamente, as questões ambientais que dissessem respeito ao interesse de toda a coletividade sequer poderiam ser julgadas, porque o juiz também estaria sujeito ao mesmo impedimento [...].
b) No caso de lesão a interesses coletivos[38] ou individuais homogêneos[39], com titulares determinados ou determináveis, não poderão o promotor ou o juiz estar entre os que foram pessoalmente lesados ou estejam a sofrer o risco iminente e concreto de lesão. Os interesses individuais homogêneos ou coletivos não são comungados por toda a coletividade, abstratamente considerada, e sim são compartilhados apenas por um grupo determinado ou determinável de pessoas. Ora, se o promotor ou o juiz fizerem parte do grupo limitado e determinado de pessoas que comunguem pessoalmente dos interesses individuais homogêneos ou coletivos (aqui considerados em sentido estrito), estarão incompatibilizados de oficiar no caso. Assim, por exemplo, se o promotor integra o grupo de consorciados que sofreram um aumento ilegal nas prestações pretendidas pelo consórcio, não poderá investigar esse dano a interesses coletivos nem oficiar na respectiva ação civil pública ou coletiva que vise a cancelar esse aumento ou a obter a restituição do que foi pago indevidamente; nem poderá julgar a ação correspondente o juiz que esteja incluído nesse grupo lesado.
Concluindo, pode-se afirmar que estará suspeito o membro do Ministério Público se tiver interesse pessoal na solução da lide, não podendo presidir inquérito civil nem propor ação civil pública. Entretanto, em matéria de interesses difusos, desde que a questão diga respeito indistintamente aos integrantes da comunidade, não se há de reconhecer suspeição ou impedimento do promotor ou do juiz, mesmo que também atingidos pelo dano.
2.15 Argüição de suspeição
Nos casos de suspeição ou impedimento, deverá o membro do Ministério Público declinar espontaneamente de oficiar no inquérito civil. Não o fazendo, poderá ser recusado pela parte interessada[40].
No inquérito policial não se pode opor suspeição às autoridades policiais nos próprios autos, devendo elas declararem-se suspeitas, quando ocorra motivo legal[41]. Ao contrário, no inquérito civil, torna-se possível a suspeição, de forma que “os interessados podem argüir a suspeição do seu presidente nos próprios autos. Mas, se o fizerem, a argüição será desentranhada, para ser processada em separado (MAZZILLI, 2000, p. 116)”. Nesse caso, o incidente será autuado e processado na Promotoria de Justiça e a decisão caberá ao procurador de Justiça, que entendendo por improcedente o incidente, o arquivará, permanecendo o promotor de Justiça na presidência do inquérito civil.
Pode o promotor de Justiça, quando um dos investigados propor o incidente de suspeição, abdicar da presidência do inquérito civil, se assim entender, esclarecendo Mazzilli (2000, p. 115) que:
[...] quando apresentada a argüição de suspeição contra o presidente do inquérito civil, caberá ao promotor de Justiça argüido um juízo prévio sobre a matéria. Se ele aceitar a argüição, deverá passar espontaneamente os autos do inquérito civil ao seu substituto automático. Se ele a recusar de plano, sua mera apresentação não terá efeito suspensivo para não prejudicar o andamento das investigações; será então autuada (a argüição), o argüido expenderá as considerações que entenda necessárias, e encaminhará o expediente ao procurador-geral para a decisão cabível.
Do exposto, entende-se ser de bom alvitre a recusa do Parquet em continuar na presidência do inquérito civil quando convicto que a sua insistência possa macular de alguma forma as investigações.
2.16 Instauração por portaria ou despacho
A instauração poderá ser determinada de ofício pelo membro do Ministério Público ou em atendimento a requerimento de qualquer pessoa, física ou jurídica. O inquérito civil pode ser instaurado por meio de portaria ou despacho do órgão do Ministério Público, proferido em requerimento, ofício ou representação que lhe sejam encaminhados, ensinando Mazzilli (2000, p. 117) que:
[...] a portaria ou o despacho que determinam a instauração do inquérito civil constituem ato administrativo interno, do próprio Ministério Público, e devem ser necessariamente expedidos por um de seus órgãos de execução, que tenha atribuições para proceder à investigação neles objetivada.
Decidindo pela instauração do inquérito civil, por meio de portaria inaugural, o membro do Ministério Público deverá: a) consignar ter tido ciência de lesão a um dos interesses que, em tese, justificariam a ação institucional na área cível, bem como indicar por que meio teve tal notícia; b) declinar, se possível, os elementos de fato que identifiquem a lesão e sua autoria (dia, lugar, hora; dados de identificação do autor dos fatos; menção aos lesados); c) determinar a instauração do inquérito civil e já indicar as primeiras providências que entenda necessário tomar; d) determinar a autuação da portaria, o que compreende também seja registrada e colocada dentro de capa apropriada; e) ao final, apor data, assinatura e identificação de seu nome e cargo.
Não é necessário que a portaria contenha todos os requisitos que seriam necessários para a propositura da própria ação civil pública, pois há pormenores que somente serão apurados após a investigação que será objeto do próprio inquérito civil, devendo, entretanto, delimitar adequadamente o objeto das investigações, indicando, o mais precisamente possível, todos os elementos de individuação do objeto do inquérito civil.
2.17 A provocação para instaurar o inquérito civil
Qualquer pessoa (física ou jurídica de direito público ou privado) pode representar ao Ministério Público para a instauração de inquérito civil. A representação é ato formal, devendo conter nome, qualificação e endereço do representante, a descrição dos fatos objeto das investigações, a qualificação possível do autor do fato e a indicação de meios de prova. “Inexiste [...] a figura da representação anônima. Ausente qualquer dos requisitos, é aconselhável que o órgão do Ministério Público notifique pessoalmente o representante para que venha a suprir a falta, no prazo de dez dias (SOUZA, 2001, p. 88).”
“Pode o Ministério Público instaurar o inquérito civil de ofício; a requerimento de algum interessado; ou cumprindo requisição de órgão de administração superior do Ministério Público, nos casos em que esteja sujeito a isso (MAZZILLI, 2000, p. 120).”
Como já dito, a instauração de ofício dar-se-á quando o promotor de Justiça, de forma espontânea, verificar o cabimento de investigação que, em tese, possa ensejar a propositura de uma ação civil pública. Mazzili (2000, p. 120), exemplificando, diz que o promotor de Justiça
[...] fará isso, normalmente, à vista da leitura de peças ou informações de outros autos, ou diante do estudo de ofícios ou documentos que lhe cheguem às mãos, ou após ter-se cientificado de um problema pelos meios gerais de comunicação. Assim, a leitura de jornais pode noticiar a falta de vagas para crianças nas escolas, a venda de medicamentos adulterados ou a existência de um loteamento irregular; o exame de outros autos, de caráter civil ou criminal, pode evidenciar a existência de lesões a interesses transindividuais cuja investigação deva ser feita em separado; o recebimento de um ofício ou relatório administrativo poderá denotar a necessidade da investigação de danos ambientais ou a consumidor, e daí por diante.
O direito de representação pode ser entendido como o meio pelo qual alguém se dirige a uma autoridade para pedir-lhe providências contra alguém. Entretanto, o autor da representação não precisa necessariamente requerer alguma coisa; basta a mera comunicação a uma autoridade, por meio da qual ele leva ao conhecimento desta um fato ou uma informação que supõe exija uma providência de sua atribuição.
Salienta-se a desnecessidade de exigências de grandes formas e rigores para que qualquer pessoa do povo possa oferecer petição ou representação ao Ministério Público, com o fito de solicitar sua atuação em área na qual a lei imponha sua atenção. “O requerimento de instauração de inquérito civil não exige, pois, formalismos excessivos: basta que alguém nele se identifique, qualificando-se, e leve ao conhecimento do Ministério Público notícia de fato que deva ensejar sua atuação (MAZZILLI, 2000, p. 122).”
Como já mencionado, outra forma de provocar a instauração do inquérito civil é a requisição de órgão da administração superior do Ministério Público. Estando o promotor de Justiça agindo por delegação, e não por suas próprias atribuições, deverá cumprir a requisição determinada, sendo que nesse caso, “a avaliação do cabimento ou não da instauração do inquérito civil já foi procedida pela autoridade requisitante; não é afeta à autoridade requisitada (MAZZILLI, 2000, p. 124).”
Observa-se que é plausível a instauração de inquérito civil à vista de denúncias anônimas e notícias de jornal. Como bem ilustra Mazzilli (2000, p. 124), “há denúncias, ainda que anônimas, representações ou reportagens de jornais ou revistas tão coerentes e bem fundamentadas, que seria um despropósito cruzar os braços e nada fazer.”
Ainda que a nossa Carta Magna proíba o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede que o promotor de Justiça promova diligências investigatórias, o que, aliás é o seu mister.
2.18 O objeto do inquérito civil
No inquérito civil, investigam-se fatos cuja ocorrência possa ensejar a propositura de ação civil pública por parte do Ministério Público. Podemos apontar alguns objetos de inquérito civil: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas portadoras de deficiência, presidiários, toxicômanos, internos em asilos, investidores no mercado de valores mobiliários, contribuintes, favelados, acidentados do trabalho, trabalhadores, beneficiários da previdência social, destinatários de propaganda enganosa, destinatários de propaganda eleitoral, usuários de medicamentos, correntistas, poupadores, ordem econômica, patrimônio público e social; ou seja, quaisquer categorias de pessoas que possam compartilhar interesses transindividuais, como titulares de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (MAZZILLI, 2000, p. 125).
O inquérito civil é meio próprio para investigação de lesões a interesses individuais indisponíveis, bem como de outras questões que possam ensejar a atuação ministerial com propositura de ação civil pública, ainda que com objeto diverso da defesa dos clássicos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (p. ex.: denúncias de irregularidades numa fundação, ações diretas de inconstitucionalidade, ações cíveis baseadas nas hipóteses previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente). Presta-se, ainda, a colher elementos preparatórios para audiências públicas e expedição de recomendações, nas áreas de atribuições funcionais do membro do Ministério Público que o presida.
A Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), a Constituição Federal e leis esparsas, progressivamente, alargaram o objeto do inquérito civil e da ação civil pública, como por exemplo na defesa do investidor no mercado de valores mobiliários, em relação às pessoas portadoras de deficiência, em prol das crianças e adolescentes, no interesse dos consumidores, etc.
Permite-se agora, às expressas, que o Ministério Público promova a defesa judicial de quaisquer interesses transindividuais. Por via de conseqüência, e combinando-se a ampliação de objeto trazida especialmente pela Constituição e pelo Código do Consumidor, tornou-se hoje admissível o inquérito civil para investigar qualquer lesão a interesse público, ao patrimônio público e social, a interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade, e a quaisquer interesses difusos e coletivos, tomados estes em sentido lato (Mazzilli, 2000, p. 130).
Sintetizando, Mazzilli (2000, p. 130) nos explica que:
[...] o inquérito civil [...] pode hoje ser utilizado para coligir elementos para a propositura de qualquer ação civil pública de iniciativa do Ministério Público. Também se presta [...] para investigar e dar solução adequada a denúncias, petições, reclamações e representações que cheguem ao Ministério Público; ou ainda para fazer investigações e acompanhamentos, ou até por meio dele tomar compromissos de ajustamento, promover audiências públicas ou expedir recomendações afetas aos seus encargos (como no zelo para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública respeitem os direitos assegurados na Constituição; como na fiscalização de estabelecimentos que abriguem crianças e adolescentes, idosos, presidiários, inválidos e incapazes, pessoas portadoras de deficiência, etc.).
Pode-se, então, inferir que o objeto de investigação do inquérito civil, atualmente, é extremamente amplo, permitindo-se que se investigue qualquer lesão a interesse público, ao patrimônio público e social, a interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade, bem como a quaisquer interesses difusos e coletivos.
2.19 Fins penais do inquérito civil
Na área civil, o Ministério Público dispõe da ação civil pública em defesa de interesses sociais. A preparação da referida ação se dá por meios próprios, ou seja, tem por base o inquérito civil, de forma que o Ministério Público não depende de investigações alheias para preparar-se para a ação, podendo investigar e usar o resultados dessas investigações como base para uma ação judicial.
Da mesma forma ocorre na área penal, eis que o Ministério Público tem a privatividade da ação penal pública, de modo que é indispensável que tenha meios pré-processuais para preparar-se para essa atividade, para a qual é o único legitimado. Esse meio, usualmente, é o inquérito policial, não sendo, porém, o único. Sabe-se que o inquérito policial não é condição para instauração da ação penal e, além do mais, “a denúncia pode ser instruída com base em processo disciplinar, sindicância administrativa, cópia de processos judiciais, cópia de autos do Tribunal de Contas, bem como procedimentos outros a cargo do próprio Ministério Público (MAZZILLI, 2000, p. 130).” Assim, se ao fim de inquérito civil ou de outros procedimentos a seu cargo, o órgão do Ministério Público entender que há crime a denunciar, deverá fazê-lo à vista dos elementos disponíveis.
Salienta-se que o Ministério Público tem a privatividade da ação penal pública assegurada não por uma lei qualquer, mas pela própria Constituição. Portanto, não há como negar-lhe meios diretos de investigar e preparar-se para propor a ação para a qual é legitimado.
Embora não seja rotina que o Ministério Público investigue diretamente infrações penais na fase pré-processual, pois para isso existe a atividade policial, é consectário do sistema vigente que ao Ministério Público se devam reconhecer poderes para instaurar outros procedimentos administrativos de sua competência, por meio dos quais, quando necessário, tenha como investigar quaisquer fatos que possam ensejar sua iniciativa em juízo, ainda que se trate de fatos com conotação penal.
Assim, se em inquérito civil o órgão do Ministério Público vislumbrar a ocorrência de crime - o que, aliás, é muito comum, até porque muitos ilícitos civis também são ilícitos penais -, poderá servir-se do inquérito civil ou das peças de informação nele contidas para embasar eventual denúncia criminal (MAZZILLI, 2000, p. 131).
É sabido que o STF - Supremo Tribunal Federal - já foi provocado e, ainda, não se decidiu acerca da possibilidade do Ministério Público investigar crimes, sendo a matéria bastante controversa.
O Conselho Nacional do Ministério Público reafirmou e consolidou, neste ano de 2006, através de resolução a ser aprovada, o poder dos membros da instituição de conduzirem investigação criminal[42].
A grande discussão (sobre o poder do Ministério Público de conduzir investigações criminais) ainda está pendente de julgamento no STF, que analisa o caso de um deputado do estado do Maranhão, acusado de envolvimento em fraudes contra o Sistema Único de Saúde. O parlamentar questiona a investigação feita pelo Ministério Público Federal, alegando que ao Ministério Público caberia apenas requisitar diligências e a instauração de inquérito policial. O julgamento no STF foi suspenso com o pedido de vista de um de seus ministros, em setembro de 2004. Registra-se, ainda, que caso o Supremo venha a não reconhecer o poder investigatório do Ministério Público, a decisão valerá apenas para o caso em julgamento, sendo que apenas uma Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente no Supremo contra o poder investigatório poderá derrubar a resolução supracitada.
Alguns criminalistas sustentam que tal atribuição não deveria ser regulamentada por meio de uma resolução e sim através de uma mudança no Código de Processo Penal ou na Constituição. De outra banda, outros criminalistas entendem que a resolução referida é um avanço, necessitando, no entanto, estabelecer regras mínimas para o procedimento, assegurando direitos básicos dos cidadãos.
Nessa seara, ressalta-se que a Lei Complementar Federal n.° 75/93 do Ministério Público da União, em seu art. 8.°, assegurou expressamente o poder de realizar diretamente diligências investigatórias. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias, bem como de requisitar a instauração do inquérito policial, não fazendo, no entanto, referência a que o Ministério Público realize e presida o inquérito policial, não cabendo, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime, mas sim requisitar diligências nesse sentido à autoridade competente.
Releva notar, que, no entanto, ainda está longe dessa questão ser pacificada e muita polêmica ainda está por vir, salientando Capez[43] (2005) que:
Desse modo, toda e qualquer interpretação relacionada ao exercício da atividade ministerial deve ter como premissa a necessidade de que tal instituição possa cumprir seu papel da maneira mais abrangente possível. A partir daí, pontualmente, podem ser lembrados alguns dispositivos constitucionais e legais. O art. 129, I, da CF, confere-lhe a tarefa de promover privativamente a ação penal pública, à qual se destina a prova produzida no curso da investigação. Ora, quem pode o mais, que é oferecer a própria acusação formal em juízo, decerto que pode o menos que é obter os dados indiciários que subsidiem tal propositura. Ademais, esse mesmo art. 129, em seu inciso VI, lhe atribui o poder constitucional de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, bem como o de requisitar (determinar) informações e documentos para instrui-los, na forma da lei. Tal procedimento administrativo, pela natureza das requisições e notificações, tem cunho indiscutivelmente investigatório e é presidido pelo Ministério Público.
[...] O inciso VII autoriza o controle externo da atividade policial e, finalmente, o IX deixa claro que as atribuições elencadas no art. 129 da Carta Magna são meramente exemplificativas, não esgotando o extenso rol de atribuições da instituição ministerial. [...] se a ação penal pode estar lastreada em outras provas, por que não naquelas colhidas pelo próprio Ministério Público, com base em seu poder constitucional de requisição e notificação para a tomada de depoimentos? O art. 47 do CPP é ainda mais enfático, ao permitir a requisição direta de documentos complementares ao inquérito policial ou peças de informação, bem como quaisquer outros elementos de convicção.
O Estatuto do Idoso, Lei n.° 10.741/003, em seu art. 74, IV, "b", confere ao MP o poder de requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias. Encontra-se aí, mais um explícito argumento nesse sentido. Além disso, a atividade investigatória jamais foi exclusiva da polícia, tanto que, em nosso ordenamento, temos também exercendo tal função: [...] a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência); [...] a CVM (Comissão de Valores Mobiliários); [...] o Ministério da Justiça, por meio do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras); [...] as Corregedorias da Câmara e do Senado Federal; [...] Por que razão, excluir justamente o Ministério Público desse rol? [...] Assim, nada autoriza, em nosso entender, o posicionamento restritivo da atuação do MP em defesa "da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (CF, art. 127).
Ressalta-se, não obstante às divergências acima apontadas, que o empenho do Ministério Público em atividades investigatórias próprias é seguramente mais um fator de reforço à efetividade penal, de forma que, em princípio, a defesa de tais atribuições deve ser defendida. Atualmente, o Ministério Público tem assumido posição de não reivindicar exclusividade, mas não tem concordado com algumas interpretações que pretendam restringir à Polícia a legitimidade para o exercício da função investigatória.
2.20 Controle administrativo de cláusulas contratuais
O Código de Defesa do Consumidor[44] diz que é facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que o contrarie (o Código) ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. A lei, por sua vez, impõe diversas normas de ordem pública que restringem, em favor do consumidor, a liberdade de contratar.
Salienta Mazzilli (2000, p. 133) que “para que o Ministério Público se prepare adequadamente para o eventual ajuizamento de ação civil pública cujo objeto seja a declaração de nulidade de cláusula contratual, será cabível que instaure inquérito civil, no bojo do qual poderá colher os elementos de fato necessários para dar suporte à sua ação.”
O controle ministerial será inegavelmente preventivo, seja porque evitará sejam firmados novos contratos em desacordo com o compromisso de ajustamento, seja porque evitará a propositura de inúmeras ações individuais e até coletivas para discutir a nulidade de cláusulas que já terão sido suprimidas. Entretanto, não é demais lembrar, não é papel do Ministério Público a defesa do consumidor senão quando isso convenha à sociedade como um todo, seja pela natureza, abrangência ou extensão dos possíveis danos, seja pela dispersão dos lesados (MAZZILLI, 2000, p. 135).
Tendo conhecimento da existência de cláusulas contratuais abusivas em matérias que digam respeito à sua atuação funcional na área do consumidor, o órgão do Ministério Público deverá investigar a questão e poderá, inclusive, propor aos fornecedores de produtos ou serviços compromisso de ajustamento, para o fim de adequarem as cláusulas contratuais às exigências da lei, evitando também a propositura de ação civil pública.
2.21 A investigação de direitos
No inquérito civil investigam-se fatos, não o direito em tese, os quais decorrem dos fatos. A rigor, portanto, não teria sentido instaurar inquérito civil para, a partir de fatos incontestáveis e já previamente demonstrados, buscar o membro do Ministério Público informar-se sobre se existe ou não direito oriundo daqueles fatos.
Entretanto, Mazzilli (2000, p. 137) destaca a importância do inquérito civil mesmo tratando-se de fatos incontestáveis, em tese:
[...] muitas vezes recebe o membro do Ministério Público uma representação ou uma petição que noticiam casos de dispensa questionável de licitação pela administração, lançamentos tributários complexos e de constitucionalidade duvidosa, contratos de adesão com cláusulas possivelmente abusivas (como em matéria de planos de saúde ou aumentos ilegais de prestações de consórcios ou mensalidades escolares). Nesses casos, se os fatos forem incontroversos e só ‘a quastio juris’ estiver em discussão, a rigor não seria caso de instaurar o inquérito civil. [...] mesmo nesses casos, poderá ser conveniente instaurar o inquérito civil. Não só para propriamente apurar fatos, no sentido tradicional que se dá ao inquérito civil (com oitiva de testemunhas, realização de perícias, quando couber), mas também como meio físico para instrumentalizar a eventual propositura da ação. Autuada como inquérito civil a petição ou a representação, no expediente ali formado o promotor de Justiça juntará cópia da legislação específica (leis, portarias, instruções normativas, resoluções, contratos), poderá colher resposta escrita do indigitado autor da lesão, juntará estudos jurídicos preliminares sobre a questão, e ao cabo melhor se aparelhará para propor, ou até não propor, a ação judicial correspondente. Assim, nesses casos não desaconselhamos a instauração do inquérito civil; ao contrário, em alguns casos sua regular instauração poderá conferir até mesmo maior comodidade no contraste da eventual decisão de não agir, caso venha a ser tomada [...].
Considera-se, pelo exposto, que o Parquet, diante da dúvida de instaurar ou não o inquérito civil, por mais banal que ela possa parecer, deverá instaurar o expediente investigatório, ante a notícia, representação ou fato que tenha chegado ao seu conhecimento. Isso porque, não se decidindo pela propositura de uma eventual ação civil pública, deverá o membro do Ministério Público submeter o inquérito civil ao crivo do Conselho Superior da Instituição, que homologará, ou não, o arquivamento do expediente investigatório.
2.22 Lesões a interesses transindividuais
O inquérito civil presta-se à investigação de lesões a interesses transindividuais (interesses difusos e coletivos, em sentido lato). Sobre isso há consenso à luz da análise da Lei n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
Por força da interpretação extensiva da Lei da Ação Civil Pública, bem como em decorrência do alargamento do objeto do inquérito civil trazidos pela própria Constituição[45], pelo Código de Defesa do Consumidor[46] e pelas Leis Orgânicas do Ministério Público[47], permitiu-se que o Ministério Público investigasse outros interesses, além dos transindividuais.
Como bem salienta Mazzilli (2000, p. 138),
[...] além da investigação de danos ou ameaça de danos a interesses diretamente objetivados na Lei n.º 7.347/85 (meio ambiente, patrimônio cultural, consumidor, ordem econômica, economia popular e outros interesses difusos e coletivos), hoje o Ministério Público está autorizado a instaurar inquérito civil para apurar lesões ao patrimônio público e social, cuidar da prevenção de acidentes do trabalho, defender interesses de populações indígenas, crianças e adolescentes, pessoas idosas ou portadoras de deficiência, investigar abusos do poder econômico, defender contribuintes, apurar omissões a que se refere o art. 129, II, da Constituição, etc.
O inquérito civil além de ser o procedimento mais metódico e organizado de investigação, permite que, nas substituições, afastamentos ou até sucessão do promotor de Justiça, tenha continuidade a investigação já iniciada.
2.23 Lesões a interesses individuais homogêneos
Há muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da possibilidade do Ministério Público poder instaurar inquérito civil para apurar lesão ou ameaça de lesão a interesses individuais homogêneos, que são aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis, e que, embora individuais, têm a mesma origem de fato, assim como são divisíveis, porque cada um parte do círculo particular de atuação, como por exemplo, a produção em série de um produto com defeito (art. 81, parágrafo único, III, do CDC). A grande novidade introduzida pelo CDC é a possibilidade de defesa do interesse individual homogêneo por meio da ação coletiva.
Em se tratando de interesses difusos, em vista de sua abrangência ou extensão, não há qualquer dúvida, ou seja, o Ministério Público está sempre legitimado à sua defesa; mas, no caso de interesses individuais homogêneos e até coletivos, Mazzilli (2000, p. 141) nos ensina que:
[...] a iniciativa do Ministério Público só pode ocorrer quando haja conveniência social em sua atuação. Essa conveniência é aferida a partir de critérios como estes: a) à vista da natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas); b) à vista da dispersão dos lesados (a abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); c) à vista do interesse social no funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico (previdência social, captação de poupança popular, etc.).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul firmou entendimento de que o Ministério Público não tem legitimidade para defender interesses individuais homogêneos, sendo que tal tendência está sendo seguida pela maioria dos nossos Tribunais. O assunto é polêmico, tendo em vista que o direito individual, mesmo que homogêneo, se caracteriza pela fruição exclusiva da pessoa natural ou jurídica que o detenha, sendo que sua esfera de abrangência é limitada ao indivíduo. Por isso seu exercício e guarda é atribuição pessoal do titular, ressalvadas algumas situações excepcionais. A regra aplicada ao direito individual é a disponibilidade direta e imediata do bem objeto do mesmo. A título ilustrativo, cita-se o caso de um cidadão que necessita, sob risco de morte, de um determinado medicamento que o Estado não fornece. Por mais cruel que seja, esse é um direito individual que alguns entendem ser disponível, ou seja, esse cidadão poderá compelir judicialmente o Estado a fornecer o medicamento (ou quantia equivalente em dinheiro para sua obtenção), ou simplesmente esperar pela morte. De outra banda, há que se ressaltar que, em sua maioria, os interesses individuais, homogêneos ou não, são de natureza patrimonial, podendo o indivíduo decidir ou não pela demanda. Releva notar que se o indivíduo for pobre e não puder constituir advogado, poderá se valer das Defensorias Públicas ou outros órgãos análogos.
2.24 A defesa do patrimônio público e social
Embora o campo de investigação do inquérito civil tivesse sido originariamente destinado apenas à investigação de danos ou ameaça de danos a interesses ligados ao meio ambiente, ao consumidor e ao chamado patrimônio cultural, seu objeto, como já afirmado, foi progressivamente alargado pela Constituição Federal, que legitimou o Ministério Público a agir em defesa do patrimônio público, por meio da ação civil pública[48].
Não é qualquer interesse que legitima a intervenção do Ministério Público. A doutrina reconhece, com o pleno aval da jurisprudência, que somente a relevância social do bem jurídico a ser tutelado justifica a intervenção do Ministério Público. De fato, somente interesses sociais e individuais indisponíveis admitem a intervenção do Ministério Público. A educação infantil, por exemplo, é um interesse social de suma relevância, a ponto de a Constituição Federal estabelecer no art. 208, § 1°, que o acesso ao ensino obrigatório constitui direito público subjetivo. Ora, pelo fato de a educação representar um direito público subjetivo, a jurisprudência tem admitido [...] a propositura de ação civil pública tendo por objeto a fixação e a cobrança de mensalidades escolares (SILVA, 2000, p. 36).
Se, de um lado, há a relevância social do bem jurídico a ser tutelado, há, de outro, a relevância social da própria tutela coletiva, a ensejar, portanto, a intervenção do Ministério Público. Veja-se o exemplo dado por Silva (2000, p. 47):
Imagine-se o caso de um fabricante de óleo comestível que esteja lesando os consumidores em quantidade bem pequena, insuficiente para motivar um ou mais consumidores isoladamente a procurar a Justiça para reclamar a reparação do seu prejuízo. Se é ínfima a lesão individual, não o será, certamente, a lesão na perspectiva coletiva, que poderá estar afetando milhões de consumidores. Em casos assim, de dispersão muito grande de consumidores lesados e de insignificância da lesão na perspectiva individual, haverá certamente relevância social na tutela coletiva, para que o fornecedor seja obstado no prosseguimento da prática ilícita.
Pode-se definir patrimônio público como sendo o conjunto dos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, ou de caráter ambiental, que podem ser defendidos em juízo pelo próprio Estado por meio de ação popular e por meio de ação civil pública.
Patrimônio social, de difícil definição, pode ser entendido como interesses gerais da coletividade ou interesse social, que significa não apenas e tão-somente os interesses, bens e valores ligados à erradicação da pobreza e da marginalização sociais, ou à redução de desigualdades sociais e regionais[49], como também aqueles que dizem respeito a todos os objetivos gerais da República, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a promoção do bem geral, sem preconceitos e discriminação[50].
Mazzilli (2000, p. 149) nos dá a clareza para entendermos a ação do Ministério Público quanto à defesa do patrimônio público e social:
“[...] o Ministério Público não agirá, porém, como advogado da Fazenda. A iniciativa ministerial em defesa do patrimônio público só se justifica quando especial razão exista para tanto, como quando o Estado não tome a iniciativa de responsabilizar o administrador por danos por este causados ao patrimônio público, ou quando motivos de moralidade administrativa exijam seja nulificado algum ato ou contrato da administração que esta insista em preservar, ainda que em detrimento da coletividade.
Resumindo, infere-se que o Ministério Público deverá agir quando a relevância social do bem jurídico a ser tutelado justificar a sua intervenção. Exemplificando, imagine-se um Prefeito negligente que não realiza as manutenções necessárias no ginásio de esportes municipal e que tal fato leve ao seu fechamento, por total falta de condições de uso. Esta-se diante de uma agressão à defesa do patrimônio público e social, levando vários jovens a privar-se de atividades importantes para o desenvolvimento físico, social, etc., sedo que, nesse caso, deve o Ministério Público agir, investigando os fatos através de inquérito civil e impelindo o Prefeito a que regularize a situação, seja através de Compromisso de Ajustamento de Conduta, seja através do ajuizamento de ação civil pública.
2.25 O enriquecimento ilícito de administradores públicos
Novamente, leis posteriores[51] à Lei n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), inclusive a atual Constituição, ampliaram os campos de atuação para a instauração de inquéritos civis ou propositura de ações civis públicas.
Ao Ministério Público é reconhecida legitimação ativa para, por via de ação civil pública, proteger os danos cometidos contra o patrimônio público por meio de ações ilícitas dos agentes públicos.
Deve-se investigar o eventual fato do enriquecimento do agente em valor superior aos ganhos legalmente admitidos no período. A investigação deve alcançar não só documentos e informações referentes à gestão pública do agente, como ainda e principalmente seu patrimônio e suas contas pessoais, seja para fins cíveis (defesa do patrimônio público), seja para fins criminais (responsabilização por peculato, corrupção ativa ou passiva etc.). Não é porque as contas públicas tenham sido eventualmente aprovadas pelo Tribunal de Contas ou pelo próprio Poder Legislativo que estaria aí formado um óbice à investigação do Ministério Público. Em primeiro lugar, inexiste presunção absoluta de correção nas contas, ainda que aprovadas pelas cortes de contas ou pelo Legislativo; o Poder Judiciário poderia aceitá-las, posto recusadas pelos primeiros, ou recusá-las ainda que aprovadas pelo controle externo exercido pelas câmaras legislativas. Em segundo, se o ganho ilícito tivesse advindo de concussão[52], excesso de exação[53] ou corrupção passiva[54] ou ativa[55], em todos esse casos as contas públicas poderiam estar rigorosamente em ordem (o agente não iria dar recibos nem lançar nas escritas públicas os ganhos ilícitos que estava exigindo ou recebendo), mas sempre haveria crimes de ação pública da competência da Justiça comum e de iniciativa do Ministério Público, afora os inegáveis aspectos patrimoniais a cuidar (MAZZILLI, 2000, p. 154).
Observa-se que no âmbito criminal, o agente público responderá por um dos crimes acima citados e, se constatado o dolo, será penalizado, podendo e devendo, evidentemente, ser privado de sua liberdade. De outra banda, no âmbito patrimonial, deve o agente público também ser penalizado, através da aplicação da Lei n.° 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa), que descreve em seu art. 9.°, caput e incisos os atos que importam enriquecimento ilícito, sendo que todas as modalidades previstas são dolosas. A penalidade, nesse caso, impões ao agente a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial, bem como a proibição de contratar com o Poder Público pelo prazo de dez anos. De sorte que, cabe ao Ministério Público, tendo conhecimento de algum fato que tenha levado ao enriquecimento ilícito de administrador público instaurar o competente inquérito civil para apurar a responsabilidade do agente e, em caso positivo, ajuizar ação civil pública.
2.26 As lesões a contribuintes
É inquestionável que a Constituição e as leis cometem ao Ministério Público a observância dos princípios constitucionais relativos às limitações ao poder de tributar, em especial aqueles que digam respeito aos direitos dos contribuintes. Os instrumentos que devem ser utilizados são o inquérito civil e a ação civil pública, justamente porque “a finalidade das ações de caráter coletivo é evitar a pulverização de milhares ou milhões de ações individuais, que sempre levam a decisões contraditórias, com grande custo social e total descrédito e ônus não só para a Administração como para a Justiça (MAZZILLI, 2000, p. 155).”
Salienta-se que o Ministério Público deve instaurar inquérito civil ou propor ação civil pública sempre que a lesão, ou a ameaça de lesão, tenham suficiente expressão social, seja pela abrangência dos lesados, seja pela natureza dos danos, a justificar sua defesa coletiva e com isso evitar a dispersão de milhares de ações individuais, com decisões contraditórias e grande custo para a credibilidade e o funcionamento da Justiça.
Portanto, desde que presentes os pressupostos e as finalidades que identifiquem a necessidade de defesa coletiva de interesses transindividuais, bem como desde que presentes as finalidades constitucionais da atuação do Ministério Público, não se pode afastar a possibilidade de investigar danos a contribuintes por meio de inquérito civil ou a possibilidade de ajuizar ações civis públicas.
Nessa conformidade, ao explanarmos sobre o inquérito civil e suas principais peculiaridades, no próximo e último capítulo, iremos laborar com o Compromisso de Ajustamento de Conduta, procurando demonstrar sua aplicabilidade, bem como indagar acerca de sua eficácia e efetividade, quando aplicado ao término do inquérito civil.
3. O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA E A POSSIBILIDADE DE TRANSIGIR
3.1 Aspectos Introdutórios
O direito material tutelado em ação civil pública não pertence a qualquer dos legitimados ativos (Ministério Público, União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações), pois trata-se de interesses difusos e coletivos que, de regra, são direitos indisponíveis. Assim, parece inconcebível referir-se a uma transação quando o assunto é a tutela de interesses metaindividuais.
“Pese a aparente incompatibilidade, no entanto, nada obsta que em sede de direitos difusos e coletivos surja acordo entre legitimado ativo e autor do dano ou de sua ameaça, de sorte a solucionar o litígio (SOUZA, 2001, p. 60).”
A proteção dos direitos difusos e coletivos tem sido aperfeiçoada a cada novo diploma legal, sempre com enfoque especial para o campo da prevenção, sob pena de tornar inócua tal proteção. Assim, exemplificando, o envenenamento das águas de um rio por substâncias químicas lançadas durante largo período de tempo; a poluição por fumaça tóxica causadas por fábricas e indústrias; a reiterada propaganda de determinado produto considerado nocivo à saúde; etc., dificilmente encontrarão mensuração financeira, e, o que é pior, podem ocasionar a total impossibilidade de sua recomposição original, restauração e correção. Por essas razões, estes direitos devem ter, sempre que possível for, proteção preventiva, de modo a evitar a possibilidade de lesão ou impedir que ela prossiga.
O acordo em tais hipóteses não se perfaz dentro dos limites trazidos pelo Código Civil, pois possui diversas peculiaridades. O art. 5.º, § 6.°, da Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), não menciona o termo “transação”, mas sim “compromisso de ajustamento de conduta”. Reza o mencionado dispositivo legal que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.”
Teremos, assim, um procedimento muito mais célere em caso de descumprimento do compromisso assumido pelo causador do dano, uma vez que o Termo de Compromisso de Ajustamento (TAC) é um título executivo extrajudicial, e como tal, passível de execução, “tornando desnecessário, destarte, o processo de conhecimento (SOUZA, 2001, P. 60).”
O compromisso de ajustamento trata-se de inovação de particular importância inserida no âmbito da Lei de Ação Civil Pública.
Essa inovação representou um avanço para toda a sociedade. Muitas ações civis públicas deixaram de ser propostas em virtude da concretização de compromissos de ajustamento, também chamados de transações extrajudiciais. [...] No curso do inquérito civil, o causador da lesão poderá reconhecer o seu erro e resolver cessar a conduta que se revela nociva aos bens e interesses protegidos, restaurando a situação de equilíbrio, sem necessidade de chegar à via judicial (SILVA, 2000, p.82).
Anote-se que, antes da eventual propositura da ação civil pública, ou seja, em pleno curso do inquérito civil, através de Termo de Ajustamento de Conduta, o causador da lesão a um dos interesses difusos poderá reparar o dano, ou evitar que o mesmo ocorra ou persista. Como bem salienta Rodrigues (2006, p. 105),
[...] a atuação administrativa do Ministério Público, especificamente no inquérito civil público previsto na Lei n.° 7.347/85, demonstrou a possibilidade de se solucionar o conflito sem a necessidade de provocar a máquina jurisdicional. Muitas vezes, a mera instauração do inquérito civil público resulta na solução do conflito, ou porque a conduta lesiva ao direito transindividual nem sequer se inicia, ou porque seus efeitos maléficos são plenamente reparados, tornando ausente o interesse jurídico de se propor a ação judicial. Assim, o exercício do inquérito civil público contribuiu para a conformação normativa do instituto ao demonstrar a potencialidade da solução extrajudicial para a composição desses conflitos.
Conforme se infere do acima mencionado, estando devidamente esclarecidos os fatos investigados no inquérito civil, poderá ser firmado compromisso de ajustamento com o responsável pelo causador da lesão, visando a reparação integral do dano ou à adequação da conduta às exigências legais.
O compromisso de ajustamento de conduta é um instrumento utilizado no inquérito civil, como forma de solucionar, de maneira célere e eficiente, os problemas resultantes da prática de degradação ambiental, evitando que o Poder Judiciário tenha de intervir sempre que ocorrerem danos ao meio ambiente (ou outros tipos de lesão) (PINZETTA, 2003, p. 29). [grifo nosso]
O compromisso de ajustamento de conduta surgiu no contexto de se procurar meios alternativos de proteção de direitos transindividuais, de forma a contribuir para uma tutela mais adequada desses direitos. O ajuste de conduta não objetiva substituir a atividade jurisdicional, que inclusive já conta com mecanismos mais eficientes para a garantia desses direitos, mas complementá-la nos casos em que a solução negociada se revele mais apropriada.
O compromisso enseja a conciliação pré-processual de direitos que são em essência indisponíveis. Para conceber um novo mecanismo de composição de conflitos envolvendo direitos transindividuais o legislador, no evidente intuito de propiciar novas formas de tutela desses direitos, superou uma tradição de limitar os benefícios da solução negociada apenas aos direitos marcadamente disponíveis, de forma que o compromisso conferiu a legitimidade da negociação a quem não é o verdadeiro titular do direito, a quem não pode dispor do mesmo.
O compromisso só estará atendendo plenamente ao seu valor se for um meio econômico, breve e justo de solução de direito transindividual, pois caso contrário a promessa, nele inserida, de aumentar o acesso à justiça será frustrada. De conseguinte, não devemos criar um excessivo formalismo para a celebração do ajuste que o tornaria mais dispendioso e demorado, nem criar óbices que limitem a sua operosidade imediata, significando dizer as pessoas, quaisquer que sejam elas, que participam direta ou indiretamente da atividade judicial ou extrajudicial, devem atuar da forma mais produtiva e laboriosa possível para assegurar o efetivo acesso à Justiça (RODRIGUES, 2006, p. 123).
Diante das explanações acima, vê-se que o Compromisso de Ajustamento de Conduta consubstancia-se num acordo, com eficácia de título executivo extrajudicial, cujo procedimento, em caso de descumprimento de suas cláusulas pelo causador do dano, será muito mais célere, uma vez que torna desnecessário o processo de conhecimento, que como sabe-se, é extremamente lento. Abordados os aspectos introdutórios, procurar-se-á esmiuçar, na medida do objetivo desse trabalho, o instituto do Compromisso de Ajustamento de Conduta.
3.2 Origem do instituto
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) – Lei n.° 8.069/90 - , por primeiro, admitiu que, em matéria de defesa de interesses transindividuais de crianças e adolescentes, os órgãos públicos legitimados pudessem tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual passaria a ter eficácia de título executivo extrajudicial. A seguir, o CDC (Código de Defesa do Consumidor) – Lei n.° 8.078/90 - alterou a Lei da Ação Civil Pública, passando a admitir-se que, em defesa de quaisquer interesses transindividuais - e não apenas dos consumidores -, os órgãos públicos legitimados à ação civil pública pudessem tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante comunicações, tendo esse compromisso a eficácia de título executivo extrajudicial. “Mais tarde, entendeu o legislador de vedar expressamente a transação somente nas ações de responsabilização civil dos agentes públicos em caso de enriquecimento ilícito (MAZZILLI, 2000, p. 361)”, tema que será abordado no item 3.6.
Ainda mais recentemente, em caso de dano ao meio ambiente, a legislação penal especial também passou a estimular a solução transacional do próprio ilícito civil, pois é condição para a proposta de transação penal a prévia composição do dano, salvo em caso de comprovada impossibilidade. Segundo se dispôs, a composição cível do dano ambiental há de ser celebrada entre o causador da lesão e um dos órgãos públicos de que cuida o § 6.° do art. 5.° da Lei n.º 7.347/85[56]. Sendo o Ministério Público um dos legitimados que pode tomar compromisso, é natural que a composição do dano, por ele acordada com o causador da lesão, poderá levar ao arquivamento do inquérito civil ou das peças de investigação, e, nesse caso, a revisão do arquivamento pelo Conselho Superior do Ministério Público será sempre obrigatória.
Desta forma, sob o aspecto cível, o Ministério Público e alguns dos outros co-legitimados (órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva) poderão previamente ajustar a composição do dano com o causador da lesão ambiental. Só o deverão fazer, porém, nos casos em que disponham de critérios técnicos e objetivos para tanto (MAZZILLI, 2000, p. 361).
Como se infere do acima exposto, criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e depois generalizada pelo Código de Defesa do Consumidor, a transação extrajudicial na área de interesses transindividuais ficou denominada como compromisso de ajustamento.
3.3 Legitimidade para Celebração do Termo: Ativa e Passiva
A legitimidade ativa para a negociação dos direitos transindividuais é concedida excepcionalmente pela lei aos órgãos públicos e ao Ministério Público, de modo que as autarquias e as fundações públicas também estão legitimadas à tutela extrajudicial desses direitos, assim como as agências executivas e reguladoras[57], novos modelos de organização administrativa do Estado, que também são pessoas jurídicas de direito público.
Têm legitimidade para figurar como obrigado no ajustamento de conduta as pessoas naturais, as pessoas jurídicas de direito privado e as de direito público, bem como os órgãos públicos sem personalidade jurídica, e as pessoas morais, como o condomínio e a massa falida que podem ter sua conduta ajustada às prescrições legais. Podem ser compromissários, porque podem praticar condutas que ameacem ou prejudiquem os direitos transindividuais, a Administração do Poder Judiciário e a própria Administração do Ministério Público, podendo ser partes passivas nos ajustes. O compromissário será o responsável pela prevenção do ilícito ou pela reparação do dano. A regra de direito material é que define os responsáveis pela adequação da conduta, bem como os requisitos de sua incidência, como, por exemplo, a necessidade de culpa.
Verifica-se, portanto, que o legitimado ativo para o Compromisso de Ajustamento de Conduta é o Ministério Público, bem como órgãos públicos, autarquias e fundações públicas, caracterizando-se como legitimado passivo o causador do dano, seja ele pessoa natural ou jurídica.
3.4 Forma da Celebração do Ajuste
Para a maioria dos compromissos não há regras legais expressas sobre a sua forma, é o que diz Geisa de Assis Rodrigues (2006, p. 192):
[...] a celebração do ajuste de conduta é bastante informal, como ocorre, de ordinário, em todos os atos administrativos. É suficiente que não haja nenhum tipo de concessão à certeza da existência do ajuste, do acerto realizado entre as partes, bem como à sua clareza quanto à determinação e liquidez das obrigações assumidas, de modo que se constitua efetivamente como título executivo extrajudicial.
O ajustamento de conduta deve necessariamente ser escrito em vernáculo, mas pode sê-lo sob a forma de instrumento ou até como ata de reunião, desde que estejam evidentes a natureza do ajuste e o teor de suas cláusulas. A escrita assegura a certeza e a longevidade das manifestações de vontade que integram a constituição do ajuste, sendo indiscutível a necessidade da forma escrita para a formação do título executivo, independente de considerá-lo como um documento ou como um ato.
A nomenclatura pode variar: instrumento de compromisso, termo de compromisso, termo de ajustamento de conduta ou simplesmente compromisso de ajustamento de conduta. Pode até nem ter um nome específico no ajuste, desde que reste clara a sua natureza. O termo dispensa a presença de testemunhas instrumentárias, bastando a assinatura do compromitente - o representante do órgão público -, e a do compromissário - o obrigado -, mas, evidentemente, nada obsta a que pessoas que estejam presentes na celebração do ajuste figurem como testemunhas.
Quanto ao teor do termo de compromisso, Rodrigues (2006, p. 196) nos explica que:
[...] devemos nos indagar se existem cláusulas de cunho obrigatório no ajuste, cláusulas que se não previstas descaracterizam o instrumento como compromisso de ajustamento de conduta. Há, evidentemente, a necessidade de se ter clara a manifestação do obrigado no sentido de promover as medidas estabelecidas pelo órgão público. É obrigatório, portanto, que restem claras quais são as obrigações a serem cumpridas pelo compromissário bem como a sua responsabilidade por cumpri-la.
Mas não reputamos imperioso que o obrigado assuma expressamente a culpa pelos atos praticados, pois muitas vezes esse reconhecimento explícito se afigura como um óbice para a celebração do ajuste, bem como há casos de responsabilidade sem culpa. O simbolismo existente na confissão aberta de culpa muitas vezes compromete o ambiente propício à negociação do ajuste. Do mesmo modo não julgamos imprescindível que conste no ajuste alguma cláusula qualificando o compromisso como um título executivo extrajudicial e explicitando as sanções a que o obrigado está sujeito pelo descumprimento. Na motivação da celebração do ajuste deve ser invocada a legislação que o disciplina, e que conseqüentemente lhe dá a sua eficácia. No momento da negociação pode ser advertido ao obrigado sobre todas as conseqüências jurídicas da celebração do ajuste, mas não consideramos que tal tipo de cláusula deva ser obrigatória.
O compromisso de ajuste é um ato de Poder Público sobre um direito que pertence a toda uma massa de pessoas, devendo indispensavelmente conter uma justificação, ainda que concisa, sobre os motivos que recomendam a celebração do ajuste. Somente devem estar necessariamente previstas no termo de ajuste a identificação das partes signatárias, o compromisso expresso do atendimento das cláusulas do ajuste, as cláusulas que definem a obrigação redigidas de forma clara, de modo que restem cristalinas a sua certeza e liquidez, e o prazo de cumprimento das obrigações expresso ou vinculado à vigência do ajuste.
É recomendável que contenham a previsão de medidas coercitivas para se obter o cumprimento das obrigações e o reajuste de valores no caso de existência de cláusula indenizatória. Pode o termo, outrossim, conter a previsão de foro, desde que seja coincidente com a sistemática vigente para se definir o foro competente da ação civil pública.
Questão importante na fase de elaboração do termo de compromisso é indagarmos se o ajuste de conduta celebrado pelo Ministério Público deve necessariamente estar inserto em um inquérito civil ou em um procedimento de investigação, sob pena de algum comprometimento de sua higidez formal.
Como já posto no segundo capítulo deste trabalho, a celebração de ajuste de conduta não é uma atribuição exclusiva do Ministério Público, ao contrário do inquérito civil público e dos poderes de investigação da ofensa dos direitos transindividuais típicos do Parquet.
Menciona-se, a respeito, algumas considerações tecidas por Rodrigues (2006, p. 196-200):
Em vista do princípio democrático deve o ajustamento de conduta ser procedido de uma investigação mínima, que será formulada no procedimento administrativo, inclusive, para ensejar o seu controle social. Do mesmo modo, consideramos que o ajuste celebrado pelo Ministério Público deve ser necessariamente uma das etapas do inquérito civil ou do procedimento administrativo investigatório.
Em geral o ajuste de conduta é celebrado na fase de conclusão do inquérito, ou seja, após a delimitação do dano e da possibilidade de o obrigado se submeter à solução negociada. [...] Após o cumprimento das obrigações assumidas no ajuste, e desde que a celebração do mesmo tenha abrangido a totalidade dos fatos e das pessoas investigadas no inquérito civil, impõe-se o encerramento da investigação ensejando o arquivamento da mesma, porque com o cumprimento do compromisso não mais se justifica a eventual propositura de ação civil pública, ou de ação de execução.
O ajuste deve levar em conta o conjunto probatório do inquérito civil, principalmente para se definir o teor das obrigações a serem assumidas e a flexibilização dos prazos e condições para cumprimento das mesmas. Em se tratando de uma peça meramente investigatória [...], as eventuais nulidades do inquérito civil não contaminam a ação civil pública ajuizada, nem tampouco, ao nosso juízo, o ajuste de conduta celebrado pelas partes. Assim, se por exemplo houve ilicitude na obtenção de alguma prova que ingressou no inquérito civil e que serviu de base para a conformação do ajuste, sendo este firmado sem nenhum tipo de vício próprio da celebração, o título resultante é plenamente válido, e o eventual abuso na apuração do fato deve ser sancionado autonomamente, sem que haja repercussão alguma para o termo de ajustamento.
Questão fundamental que se deve ter em conta na celebração do ajustamento de conduta é a publicidade. A publicidade não deve ser apenas feita através do diário oficial, mas, sempre que possível, através dos meios de comunicação de massa. A audiência pública, também, é um importante instrumento para divulgação da realização do ajuste de consulta sobre a opinião dos interessados. Nos locais menores, a afixação de cópia em lugar público a todos acessível também pode ser recomendável.
O ajustamento de conduta é, verdadeiramente, uma prática democrática em construção, sendo que os aspectos que merecem maior reparo na atuação do Ministério Público Federal, e seguramente de todos os demais co-legitimados, são os relacionados à informação e à participação na sua formulação.
O ajustamento de conduta, além de título executivo extrajudicial, é uma solução extrajudicial de conflitos cuja titularidade não é do órgão público que o está celebrando. Qualquer um que leia o título deve poder compreender não só quem são os compromissários e os compromitentes, quais são as obrigações assumidas, quando e em que condições essas obrigações devem ser cumpridas, mas também o fim da celebração do ajuste e o porquê da certeza de que essas cláusulas atendem às exigências legais.
De nada adianta, contudo, haver ajustes devidamente motivados se estes não forem submetidos ao princípio da publicidade. Em alguns casos pode-se prever que o próprio compromissário promoverá a publicidade plena do ajuste, arcando com os custos da mesma.
3.5 Eficácia de Título Executivo Extrajudicial
Como já apontado anteriormente, o ajustamento de conduta tem eficácia de título executivo extrajudicial. O nosso ordenamento jurídico mais recente aumentou as hipóteses de títulos executivos, não só com a ampliação do rol previsto no Código de Processo Civil, bem como em legislações esparsas. Essa tendência visa a dotar um número cada vez maior de negócios jurídicos de eficácia executiva e ao mesmo tempo valorizar a autonomia da vontade das partes, bem como reconhecer a crise do processo de conhecimento. Cita-se as palavras de Rodrigues (2006, p. 208) ao discorrer acerca da eficácia do título executivo extrajudicial:
Principalmente quando é indubitável a manifestação do reconhecimento da responsabilidade em cumprir a obrigação manifestada pelo devedor o ordenamento suprime a necessidade de cognição pelo juiz. Não só para combater a demora intrínseca desta atividade judicial, como também para prestar uma tutela adequada através da ação de execução. De qualquer sorte, a concessão de eficácia executiva ao invés de diminuir a importância da atividade jurisdicional a revaloriza, porque a satisfação da executividade contida no título só se dá através da jurisdição executiva, reservando, outrossim, os esforços do sistema para a atividade de conhecimento nas situações em que realmente há um litígio mais complexo, não tendo havido o reconhecimento do direito do credor pelo devedor, em que se demande um processo mais amplo e nas quais o valor justiça possa se compadecer com a delonga natural desse tipo de atividade.
No caso do ajustamento de conduta tem-se um verdadeiro ato documentado que manifesta sua força tanto do negócio jurídico que o motivou como também de sua própria cartularidade. Não há título executivo se o documento não se refere a um ajuste expresso de cumprir obrigações certas e líquidas, da mesma forma que não há título executivo se não haja um documento que a consubstancie.
A eficácia executiva do título significa justamente permitir que o credor possa promover a ação de execução sem ter de passar necessariamente pela ação de conhecimento. O título, segundo o disposto no artigo 586 do Código de Processo Civil, deve ser sempre certo, líquido e exigível. Destarte, como preceitua Rodrigues (2006, p. 211),
é recomendável, portanto, que quando se tratar de obrigações mais complexas a sua definição seja precedida de estudo técnico para que haja a maior precisão possível das mesmas. Não se poderá exigir, contudo, que a inteligência de um facere ou non facere siga a mesma lógica das obrigações de entrega de coisa ou de quantia certa. É preciso que os cultores do direito tenham uma mentalidade aberta para compreender a natureza diferenciada desse tipo de obrigação, mormente quando se está em jogo a proteção dos direitos transindividuais.
A título de ilustração, colaciona-se o seguinte caso apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sede de apelação[58]: Juíza de Direito de 1.º grau julgou improcedentes os embargos à execução opostos pela empresa ‘X’ contra o Ministério Público, rechaçando as alegações da embargante (empresa ‘X’) de que o termo de ajustamento de conduta não é título executivo e de que já cumprira as obrigações assumidas no termo firmado entre as partes. Inconformada, apelou a embargante, arrazoando que o termo de ajustamento de conduta não constitui título executivo, afirmando que houve a demonstração de que adequou suas instalações e providenciou a licença de operação, bem como o Plano de Controle Ambiental. Referiu que o processo de regularização ambiental, por depender de vários trâmites, é moroso, mas que, mesmo antes de firmar o termo de ajustamento, já vinha providenciando a regularização da situação junto aos órgãos ambientais. Aduziu que não poderia arcar com pesada multa pelo atraso na obtenção da licença de operação, pois não teve culpa na demora da expedição. Posto o caso colaciona-se o pronunciamento do Tribunal, através do seu Relator:
Em primeiro lugar, o compromisso de ajustamento de fls. é título executivo, consoante o art. 5.°, § 6.°, da Lei 7.347/85, c/c o inc. VII do art. 585 do Cód. de Proc. Civil [...]. Tal orientação se harmoniza, de resto, com a jurisprudência do STJ [...]:
PROCESSO CIVIL - EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL - TERMO DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO - Art. 5º, § 6º, da Lei n.º 7.347/1985 - TÍTULO EXECUTIVO – PRECEDENTES. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o termo de compromisso e ajustamento, de acordo com o art. 5º, § 6º, da Lei n. º 7.347/85, é título executivo.
De acordo com o compromisso de ajustamento obrigou-se a apelante, empresa do ramo oleiro, a apresentar, no prazo de 180 dias, licença de operação da FEPAM. Entretanto, só o fez mais de cinco anos depois [...]. O compromisso obrigava também a apelante, no mesmo prazo, a executar plano de controle ambiental [...]. Conforme o relatório de vistoria [...] houve o cumprimento parcial desta obrigação, tendo sido destacado que a apelante deveria apresentar profissional habilitado para acompanhar e monitorar a execução das medidas previstas no plano [...]. Parece inequívoco, pois, que o cumprimento das obrigações se deu [...] de forma extemporânea, vez que o compromisso de ajustamento [...] estipulava o prazo de 180 dias para a apresentação da licença de Operação da FEPAM, como para a implementação do projeto de controle ambiental. Assim, tendo a obrigação principal sido dotada de termo, expresso no título, ao descumpri-la, incorreu o obrigado em mora, automaticamente, a teor do art. 397, caput, do Código Civil de 2002. Dessa forma, vencido o termo previsto no contrato, quanto à obrigação principal, a partir daí passou a fluir a multa, nos termos do negócio jurídico das partes, formando o crédito exeqüendo. Pelo fio do exposto, nego provimento à apelação.
Dessa decisão extraiu-se a seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL. TÍTULO EXECUTIVO. COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO. ATRASO NO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO. MULTA PECUNIÁRIA. EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE. O compromisso de ajustamento é título executivo extrajudicial (art. 5.°, § 6.° da Lei 7.347/85). É possível a execução de multa pecuniária prevista em termo de compromisso ante o adimplemento extemporâneo das obrigações assumidas.
De outra banda, salienta-se que, embora a eficácia executiva do Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta permita que o credor não passe necessariamente pela ação de conhecimento, o grau de eficácia desse tipo de título diminui consideravelmente na medida em que se amplia a matéria de defesa permitida ao devedor através de embargos.
3.6 O ajustamento de conduta em ato de improbidade
Com relação a eventual ajustamento com autoridade pública que esteja praticando ato de improbidade, podería-se, a princípio, afirmar ser isto impossível, eis que se estaria também compactuando com a ilegalidade praticada. No entanto, a doutrina majoritária, acautelando-se, procura analisar cada conduta do agente público de forma individualizada.
Oliveira (2000, p. 70), expõe a seguinte situação:
Vejamos o exemplo daquele administrador que tenha contratado funcionários necessários à prestação do serviço público sem o respectivo concurso público determinado pela lei. Poderá o Ministério Público firmar compromisso de ajustamento estipulando um prazo para que se promova o concurso público adequado com a nomeação de forma legal dos candidatos que forem aprovados? Entendemos que sim, por várias razões: a) eventual medida judicial para tanto será demorada e demandará enorme esforço processual para se buscar o mesmo objetivo. Portanto, por uma questão de praticidade é preferível o ajuste nesta hipótese; b) assim fazendo, o Ministério Público, além de alcançar seu objetivo de cessar a ilegalidade, também o fará rapidamente, portanto, a celeridade da medida também deve ser analisada; c) uma vez não cumprido o ajuste, a prova da improbidade já estará reconhecida facilitando a adoção de medidas judiciais necessárias pela confissão do ato de improbidade; d) feito o ajuste, nada impede que o Ministério Público promova a ação de improbidade administrativa no sentido de punir o agente público pelos atos praticados até então, se entender cabível a aplicação de alguma das sanções que a lei prevê, servindo o ajustamento, para a autoridade pública, como meio de defesa para diminuir eventual pena aplicável a seu ato; se, entretanto, assim não entender, poderá promover o arquivamento do inquérito civil com base no termo de ajustamento celebrado, argumentando que os prejuízos existentes já foram sanados - nem todo ato ilícito causa prejuízo ao erário - somados ao fato de que as sanções perderam seu objetivo [...].
Quanto às considerações acima, oportuno analisarmos o caso concreto apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[59], em que caberia perfeitamente o Compromisso de Ajustamento de Conduta ao invés do ajuizamento, diga-se frustrado, de ação civil pública. Veja-se: o Ministério Público/RS ajuizou ação civil pública visando à declaração da prática de improbidade administrativa contra Secretário Municipal de Desportos de Cachoeira do Sul/RS, em razão desse haver exercido a advocacia conjuntamente com a função pública. A sentença julgou improcedente a ação civil pública, fundamentada no fato do agente público não ter praticado conduta ímproba, porquanto esteve no aguardo da decisão do órgão máximo da OAB, para que se definisse sobre a existência ou não de incompatibilidade entre o exercício concomitante das duas atividades. Restou comprovado que o réu agiu de forma transparente e honesta na medida em que noticiou ao juízo e ao Ministério Público que estava buscando solução para a questão da incompatibilidade de funções. Contra a sentença rebelou-se o Ministério Público sustentando a tese de que o recorrido agiu com improbidade ao exercer a advocacia após ter assumido como Secretário de Desportos do Município de Cachoeira do Sul. Do conteúdo probatório trazido aos autos, inclusive após instauração de investigação administrativa pelo Ministério Público, não se pôde concluir pela tipicidade da prática de improbidade administrativa pelo réu. O Tribunal de Justiça manteve a decisão do juiz de 1.º grau, sustentando o Relator em suas razões:
Em primeiro lugar, o apelado exerceu a advocacia conjuntamente com a função de Secretário de Desportos, por entender não estar abrangido na vedação legal que traz o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOB) - Lei n.º 8.906/94, art. 28, III, mas sim na exceção disposta no § 2º do mesmo artigo, que assim dispõe:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:
(...)
III - ocupantes de cargos ou funções de direção em órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;
(...)
§2º - Não se incluem nas hipóteses do inciso III os que não detenham poder de decisão relevante sobre interesses de terceiro, a juízo do Conselho competente da OAB, bem como a administração acadêmica diretamente relacionada ao magistério jurídico (sublinhei).
Em segundo lugar, agiu prudentemente ao formular consulta perante a OAB/RS visando ao esclarecimento sobre a vedação legal existente. Em terceiro lugar, tão-logo obteve o resultado do órgão máximo da OAB, definindo sobre a incompatibilidade existente entre as duas atividades, obrou em providenciar o seu licenciamento da advocacia, acatando desta forma a decisão. Assim, não paira dúvida acerca da boa-fé do apelado, que tão-somente se valeu das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, aguardando decisão administrativa que definisse a sua situação diante das duas atividades que pretendia exercer. Ademais, tenho que dos documentos trazidos aos autos, nada constou de que o apelado tivesse exercido a advocacia em desfavor da Fazenda Pública, de modo que não há prova de qualquer ato que atentasse contra os princípios da Administração Pública conforme aduz o Ministério Público.
Observa-se que, no caso em tela, o Ministério Público não logrou êxito na propositura da ação civil pública, sendo perfeitamente cabível compromisso de ajustamento em que o Secretário Municipal, por exemplo, comprometer-se-ia a não advogar até a decisão do órgão máximo da OAB, impondo-lhe, pelo eventual descumprimento, multa diária de valor significativo, o que seria muito mais eficaz. Além do que, o Parquet não prescindiria da ação civil pública, que poderia ser proposta num momento futuro, embasada em provas de maior robustez.
A proibição de se firmar um ajustamento com a autoridade pública que pratica um ato de improbidade é lógica, à medida que tais formas de composição pressupõem disponibilidade do interesse controvertido, do próprio direito material. Mesmo tendo a lei de improbidade[60] uma clareza solar ao vedar a transação com o agente público causador do prejuízo ao erário, acordo ou conciliação nas ações propostas pelo Ministério Público ou por pessoa jurídica interessada, Silva (2000, p. 87) posiciona-se favoravelmente à composição através de ajustamento de conduta, desde que o autor do dano recomponha os prejuízos que causou ao erário:
Não entendemos [...] a razão pela qual a Lei n.° 8.429/92 vetou a possibilidade de acordo nos inquéritos e ações relativos a improbidade administrativa, quando é sabido que, dada a avalanche de feitos que atulham o Poder Judiciário, a entrega da prestação jurisdicional é lenta e, às vezes, ineficaz. O só fato de a improbidade administrativa, como o próprio nome indica, tratar-se de conduta ímproba, absolutamente infamante e contrária ao ordenamento jurídico, não é motivo suficiente para impedir o acordo judicial ou extrajudicial. A responsabilidade civil é independente da criminal, proclama o art. 1.525 do Código Civil. Ora, apesar de ter havido conduta abjeta praticada pelo infrator, não há, a nosso ver, razão plausível que justifique a vedação de transação, como o faz a Lei n° 8.429/92. Para não tornar a vedação vazia de sentido, poder-se-ia dizer que ela estaria adstrita tão-somente à recomposição do erário.
Depreende-se do exposto que, embora haja proibição legal em se firmar acordo com o agente público que comete ato de improbidade administrativa, parte da doutrina e jurisprudência entendem que, dependendo do caso concreto, cabe o ajustamento de conduta, especialmente no que diz respeito à recomposição do dano ao erário, apurando-se a responsabilidade criminal na esfera competente.
3.7 O ajustamento de conduta nos crimes contra o meio ambiente
Nota-se, pelo exposto neste trabalho, que o compromisso de ajustamento corresponde à solução extrajudicial do conflito e, portanto, não pode desviar-se da finalidade de compor o dano ambiental na sua totalidade, por tratar-se de direitos indisponíveis.
Nesse sentido, Cappelli (2002, p. 230) aduz que “se o compromisso de ajustamento substitui a ação que seria aforada, deve ele contemplar a totalidade da recomposição, utilizando-se do sistema de obrigações de não-fazer, fazer e condenação em dinheiro, como prevê o art. 3.º da Lei n.º 7.347/85.” Embora se admita que a obrigação seja compensada por outro bem ambiental, caso não seja possível reparar o dano investigado, não se deve admitir, via de regra, desvios de finalidade, como doação a entidades que nada tem a ver com a tutela ambiental, como conselhos tutelares, creches, asilos, etc.
De outra banda, não é incomum a possibilidade de compor o dano mediante a doação de equipamentos a órgãos com atribuição para o exercício do poder de polícia administrativa em matéria de meio ambiente, como, por exemplo, doação de viaturas, computadores, impressoras, material de escritório, combustível, etc., em sede de inquérito civil, sendo que tal conduta equivaleria à hipótese de indenização do dano ambiental, acrescida à obrigação de fazer, na parcela em que o meio ambiente não pudesse ser recomposto. Cappelli (2002, p. 241), ao que se vê, não coaduna da doação direta, quando infere que “a questão reside em discutir-se a possibilidade da sub-rogação de bens diretos aos órgãos ambientais havendo fundos estadual ou municipal de meio ambiente, para onde deveriam ser destinados os valores da indenização.”
Outra questão que merece ser ventilada é a possibilidade de cumulação das obrigações de fazer, não-fazer e condenação em dinheiro. Salienta-se que nem sempre há o atendimento completo da recuperação ambiental através do cumprimento de obrigação de fazer. Em se tratando de meio ambiente, até os grandes experts no assunto encontram dificuldades para afirmar o que se deve recompor e quanto tempo levará para recompor determinado dano causado ao meio ambiente. Releva notar as inúmeras relações conexas derivadas do crime ambiental, como por exemplo, a perda da biodiversidade associada ao desmatamento, o lucro ilícito auferido pelo infrator com a venda ilegal de madeira, etc. Capelli (2002, p. 240) entende que é possível a cumulação das obrigações de fazer, não-fazer e condenação em dinheiro, afirmando que:
Evidentemente [...] que há possibilidade de cumulação entre obrigações de fazer e não fazer com a condenação em dinheiro, na parcela em que o bem ambiental não possa ser restaurado. Nesse caso, os fatos-fundamentos da obrigação são distintos e permitem o cúmulo. Não se vê óbice ao cúmulo das obrigações de fazer e não fazer com a indenização nos compromissos de ajustamento. Desde que não tenham o mesmo fundamento, ou ainda, com relação à parcela do dano causado que não possa ser recomposta na sua totalidade, pela obrigação de fazer, é viável, e mesmo recomendável, a soma das obrigações. Afinal, se o interesse é indisponível e o compromisso de ajustamento não pode dispensar parcela do ressarcimento, a cumulação, na espécie, atende à satisfação completa da obrigação. Mas, atente-se para o fato de que ela não é obrigatória. Somente será possível se o fato-fundamento que lhe dá azo for distinto, ou na hipótese de parcela do bem ambiental que não sirva mais para a recomposição in natura.
Por fim, alguns aspectos devem ser cuidadosamente observados em matéria de ajustamento de conduta relativo a danos causados ao meio ambiente, como por exemplo a qualificação das partes investigadas e sua correta representação. Com relação à pessoa física, o termo de compromisso deverá conter o número da identidade, enquanto que, para a pessoa jurídica, deverá haver menção ao CNPJ ou ao documento de micro empresa, além do domicílio, endereço profissional. Quem representa a pessoa jurídica, nos termos do art. 12, inciso VI, do CPC, é aquela designada por seus estatutos ou, na ausência, pelo Diretor. É importante, pois, antes da audiência de tentativa de celebração do compromisso, ter juntado aos autos do inquérito civil o contrato social da empresa e sua última alteração. Caso a pessoa que compareça à audiência em nome da empresa não a represente, nos termos de seu Estatuto Social, será necessária procuração com poderes específicos para firmar o compromisso.
Não menos importante é a descrição, no termo de ajustamento de conduta, da situação lesiva, devendo-se descrever o mais precisamente possível a situação danosa, o reconhecimento do dever de recompor e o conteúdo da obrigação. No mesmo sentido mister situar perfeitamente as condições de tempo, modo e lugar do cumprimento das obrigações, a fim de garantir a liquidez e certeza do título, para fim de eventual execução.
3.8 Outras considerações
O compromisso de ajustamento de conduta pode ser um importante veículo para se evitar a prática de atos ilícitos, ou a continuidade de sua ocorrência, haja ou não um dano configurado ao direito transindividual, estando voltado, principalmente, para o futuro. Estabelece como deve ser a conduta do obrigado daí por diante em relação à observância daquele direito. Cita-se dois exemplos da obra de Rodrigues (2006, p. 129): o caso de um ajustamento de conduta que regulamentou como deveria ser feita a exploração turística de um parque ecológico, bem como um outro para determinar como a ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) deveria entregar cartões de crédito e talonários de cheques para evitar assaltos a carteiros e desvios dos demais tipos de correspondência.
Assim, desde que se afigure possível a ocorrência do ilícito, com ou sem a probabilidade de um dano imediato, devem os legitimados a celebrar o ajuste tentar realizá-lo, pois assim não se perde a oportunidade de proporcionar essa tutela tão desafiante para o nosso sistema jurídico. Mesmo que o ilícito ou o dano já tenha ocorrido, a função de evitar novos danos ainda é preventiva e absolutamente importante. Destarte, quando já haja um dano a direito transindividual, além da previsão da reparação deste, se possível de forma integral, deve o ajuste cumprir fielmente sua função preventiva estipulando obrigações que, se cumpridas, mitiguem a possibilidade de novos ilícitos e suas conseqüências (RODRIGUES, 2006, p. 129).
Os órgãos públicos legitimados não poderão aceitar ou firmar compromissos de ajustamento de conduta que possa implicar em concessões, mas sim firmá-los, exigindo o estrito cumprimento das normas legais para a atividade ou conduta do terceiro (CARNEIRO, 1993, p. 234). Por isso, em sede de compromisso de ajustamento, o promotor de Justiça, o procurador da República ou o procurador de Justiça colocam-se em posição de “aceitação” ou não do compromisso que o infrator deseja assumir, nada concedendo no que tange ao direito material especificamente considerado. Todavia terão a possibilidade de conceder prazos ou dispor sobre formas mais adequadas para o cumprimento das obrigações a cargo dos investigados, além de, igualmente, poderem incluir no acordo aspectos originalmente controvertidos, mas que foram esclarecidos durante a investigação (MILARÉ, 2005, p. 292). Assim, pequenas concessões podem ser feitas, desde que pautadas no interesse público e na relevância social.
Outro ponto a ser considerado é a necessidade da presença do Ministério Público em compromisso de ajustamento firmado por outro órgão legitimado. Milaré (2005, p. 301) entende tal medida desnecessária por várias razões: primeiro, por falta de determinação legal; segundo, porque os demais órgãos também têm a mesma obrigação de se pautarem pela lei, como o Ministério Público; terceiro, pela celeridade, pois nem sempre o promotor de Justiça está disponível, o que atrasaria eventual formalização do compromisso. De outro lado, Carneiro (1993, p. 238) defende a intervenção do Ministério Público em compromisso firmado por outro órgão legitimado, sob pena de tê-lo como absolutamente ineficaz. Aduz que, em nosso país, a proteção dos direitos difusos e coletivos tem na atuação do Ministério Público o seu pilar, ainda que na qualidade de custos legis[61].
Ao explanar acerca do Compromisso de Ajustamento de Conduta e algumas das nuances que o cercam, sem obviamente esgotar o tema, passar-se-á às Considerações Finais, evidenciando-se que esse tipo de acordo, tratado ao longo deste trabalho, é recente em nosso ordenamento jurídico, encontrando-se ainda “em areias movediças”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É notório o aumento da litigiosidade nos últimos tempos, ressaltando que os litígios são cada vez mais complexos, envolvendo cada vez mais interesses de dimensão individual e metaindividual.
No que diz respeito ao interesses metaindividuais, a judicialização se dá através da ação civil pública. No entanto, existe a possibilidade de reduzir ao máximo o âmbito e o grau de litigiosidade, ajuizando-se ações somente nos conflitos insuperáveis. Um dos principais instrumentos é a utilização dos ajustes de conduta antes da propositura da ação civil pública, ou seja, ainda na fase das investigações que se dão através do inquérito civil.
Uma sinalização positiva é o incremento na celebração dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC’s), com a participação dos órgãos de controle, Ministério Público, empreendedores ou fornecedores, buscando-se estabelecer pautas mínimas de consenso, de modo a viabilizar a solução negociada, total ou parcial, dos complexos conflitos envolvendo interesses metaindividuais (MILARÉ, 2005, p. 112).
Concluídas as investigações e constatada a responsabilidade do investigado, antes de ser ajuizada Ação Civil Pública, a lei prevê a possibilidade de oportunizar ao autor do dano anuir, ou não, à proposta apresentada pelo Ministério Público, ou por outro órgão legitimado, de ajustar sua conduta às normas legais, sendo que Pinzetta (2003, p. 29), nesse sentido, explica as eventuais vantagens que o causador do dano pode auferir, caso prefira o ajustamento de conduta ao ajuizamento de ação, onde figuraria como réu:
É importante expor ao investigado as vantagens de firmar compromisso de ajustamento, destacando as despesas que teria de arcar litigando em Juízo, como honorários de advogado e de perito, além de custas, caso figurasse no pólo passivo de Ação Civil Pública que buscasse a mesma obrigação. Cabe apontar, também, ser muito mais simpático e aceitável aos olhos da sociedade saber que a empresa ou o agente público (p.ex.) reconheceu a ocorrência do dano e comprometeu-se a repará-lo ou compensá-lo, do que ver sua imagem associada à degradação do meio ambiente, litigando durante anos com o objetivo de eximir-se da obrigação.
A imposição de reparar o dano por meio do Termo de Ajustamento de Conduta, não deixa de ser, por si só, uma espécie de pena, ainda que de cunho alternativo. Portanto, ao forçar o infrator a reparar o dano cometido já se estará educando-o para respeitar e não mais agredir o meio ambiente, por exemplo.
Verifica-se que o Termo de Ajustamento de Conduta é uma forma de solução extrajudicial de conflitos, promovida por órgãos públicos, tendo como objeto a adequação do agir de um violador ou potencial violador de um direito transindividual (direito difuso, coletivo ou individual homogêneo) às exigências legais, valendo como título executivo extrajudicial, sendo um negócio jurídico bilateral (um acordo) que tem apenas o efeito de acertar a conduta do obrigado às determinações legais. Independentemente do seu rótulo não pode ter como resultado disposição, nem transação do direito transindividual[62].
Trata-se o ajustamento de conduta de importante instituto para que o Estado atinja os seus objetivos, permitindo a participação do cidadão na esfera de atuação administrativa, favorecendo, assim, o amplo acesso à justiça dos direitos transindividuais, servindo, também, de instrumento para que o Ministério Público promova a defesa dos direitos da sociedade.
Releva notar que o Termo de Ajustamento de Conduta só tem validade como tal, quando atende plenamente ao direito transindividual, sendo sua eficácia, em não havendo disposição em contrário, imediata. Ao Ministério Público devem ser submetidos os compromissos de ajustamento de conduta celebrados por outros órgãos públicos, tendo em vista a posição de protagonista da tutela dos direitos transindividuais conferida, pelo ordenamento jurídico, à instituição.
Pode-se concluir que a prática da celebração do ajustamento de conduta está em construção, ressaltando-se que o mesmo é realmente mais breve que a tutela judicial, além do que, permite-se alcançar resultados de difícil obtenção em processo judicial, sendo inegável, em regra, a ocorrência de cumprimento espontâneo pelo compromissário.
O princípio da aplicação negociada da norma jurídica qualifica o ajustamento de conduta como uma das novas fórmulas de aplicação da lei, através da participação ativa de seu destinatário e dos demais interessados, resultando na necessidade de criação de um momento dentro do inquérito civil para se tentar obter o ajuste; na desnecessidade de reconhecimento explícito de culpa ou de ilicitude do responsável, bem como na capacitação dos legitimados à sua celebração, tanto do Ministério Público, como dos demais órgãos públicos nas artes da conciliação.
O Termo de Ajustamento de Conduta deve ser celebrado nos autos de um inquérito civil público ou de um procedimento administrativo, pois é importante que todas as atividades extrajudiciais realizadas pelo Ministério Público sejam documentadas e inseridas dentro dos instrumentos legais de investigação, razão pela qual o compromisso de ajustamento de conduta só pode ser tomado dentro de uma investigação, quando se poderá avaliar se o mesmo representa a melhor solução para o caso concreto.
O Termo de Ajustamento de Conduta deve identificar com clareza o(s) compromitente(s) e o(s) compromissário(s), e quanto a esse(s) devem ser discriminados todos os dados relevantes para sua qualificação, sobretudo eventual demonstração de representação legal nos casos cabíveis, visto que é fundamental que o Ministério Público seja bastante cuidadoso com os aspectos formais de identificação do compromissário para que os objetivos do compromisso não se frustrem diante da necessidade de uma eventual execução.
Anote-se que as cláusulas do Termo de Ajustamento de Conduta devem ser redigidas de forma clara e objetiva, de modo que as obrigações decorrentes do compromisso sejam líquidas e certas, a fim de se garantir os requisitos de liquidez e certeza, ínsitos aos títulos executivos extrajudiciais, cuidando-se também em relação à previsão de todas as etapas necessárias ao cumprimento da obrigação, bem como as condições que devem ser observadas em seu adimplemento.
Releva notar que quando a definição das obrigações de fazer necessárias para a reparação integral do dano depender de estudos complementares, o ajuste deve se referir aos mesmos, estabelecendo quem será o responsável por sua elaboração, custeio e o prazo de entrega dos mesmos. Em casos complexos as obrigações ajustadas podem ser detalhadas em planos ou programas, que constituam anexo ao termo de ajustamento de conduta, desde que sejam expressamente a ele integrados, ressaltando-se que a elaboração do Termo de Ajustamento de Conduta deve ser, sempre que necessário, acompanhada por técnico da área pertinente para garantir a adequação das obrigações.
O Termo de Ajustamento de Conduta deve conter indicação dos motivos técnicos sobre a adequação das medidas previstas para a reparação do dano e sobre a razoabilidade dos prazos e das condições determinados para o cumprimento das obrigações. Como é cediço, a atuação do Ministério Público, principalmente em matéria ambiental, é necessariamente interdisciplinar, pressupondo o apoio de profissionais com conhecimento técnico dos mais diversos campos, como biólogos, geólogos, engenheiros florestais, sanitaristas, etc. A questão assume relevo, ainda maior, quando se trata da tomada do compromisso de ajustamento de conduta, pois em boa parte dos casos, o apoio técnico deve ser acionado para a definição das obrigações ajustadas, dos prazos em que as mesmas devem ocorrer e das condições que podem ser estabelecidas para o fim de adimplemento dos termos do compromisso.
O compromisso de ajustamento de conduta deve ter como prioridade a restauração natural do dano e, em se tratando de dano ambiental, deve ser feita, primeiramente, no próprio lugar da degradação. Segundo a dicção legal o compromisso de ajustamento de conduta deve obter o cumprimento das exigências legais por quem já degradou o meio ambiente ou está em vias de fazê-lo. Assim, sempre que possível, o Ministério Público deve priorizar a reparação do dano ecológico com medidas que importem em sua total restauração, no lugar em que a degradação ocorreu.
Deve haver justificativa quando houver a impossibilidade da reparação integral do dano, especialmente quanto à adequação da adoção de medidas compensatórias, pois no Estado Democrático de Direito vige o princípio da motivação das decisões administrativas, e como o compromisso de ajustamento de conduta é celebrado por órgãos públicos, impõe-se a motivação de seus termos, sobretudo quando não houver possibilidade de reparação integral do dano.
Observa-se que para cada obrigação fixada no ajuste deve haver uma previsão obrigatória e específica de multa pelo seu inadimplemento, sobretudo se o inadimplemento das obrigações tiver diversa repercussão quanto à efetividade do compromisso. O valor da multa deve ser suficiente a ensejar a coercibilidade necessária para que não ocorra o inadimplemento das cláusulas do ajuste, de forma que a fixação das multas deve levar em conta a dimensão do empreendimento ou da atividade do compromissário, a extensão do dano ambiental ocasionado e as condições econômicas do compromissário.
O Termo de Ajustamento de Conduta deve conter prazo específico para o cumprimento de cada uma das obrigações, quando não for o caso de cumprimento imediato da mesma. Isso porque o compromisso de ajustamento de conduta tem como esfera de negociação a fixação de prazos e de condições para o cumprimento das exigências legais, devendo-se ter bastante atenção para se estabelecer prazos relacionados a cada obrigação, salvo quando a mesma deva ser cumprida imediatamente, o que também deve estar expresso no compromisso.
De todo o exposto, em que pese posições contrárias, pôde-se verificar que o compromisso de ajustamento de conduta mostra-se, na maioria das vezes, eficaz e efetivo tanto na repressão ao dano a interesses metaindividuais, como na punição aos seus causadores.
Por fim, ressalta-se que, em alguns casos de dano aos interesses difusos e coletivos, o provimento judicial poderia ser mais eficaz em relação ao acordo obtido no compromisso de ajustamento de conduta, alcançando um ressarcimento (condenação) de valor superior. No entanto, é evidente que, sendo o caso de alta complexidade, a demora em se obter um pronunciamento judicial frustraria sobremaneira aqueles – entre eles o Ministério Público - a quem a lei confiou a tutela dos direitos de uma gama imensa de cidadãos, na sua maioria extremamente carentes.
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[1] são indisponíveis, dentre outros, o direito à vida, à liberdade, à saúde e ao trabalho.
[2] são aqueles pertencentes a um número indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo fático (SOUZA, 2001, p.3).
[3] são aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis, unidos pela mesma relação jurídica, seja entre si, seja com a parte contrária, e ao mesmo tempo indivisível (BECHARA, 2006, p.4).
[4] são aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis, e que, embora individuais, têm a mesma origem de fato, assim como são divisíveis, porque cada um parte do círculo particular de atuação (BECHARA, 2006, p.5).
[5] Trechos do discurso proferido pelo Procurador-Geral da República, no dia 28/10/2005, na solenidade de abertura do 22º Encontro Nacional dos Procuradores da República, realizado no Hotel Transamérica – Ilha de Comandatuba, em Una (BA).
[6] inc. III do art. 129 da CF/88.
[7] art. 127, caput, da CF/88.
[8] Lei da Ação Civil Pública.
[9] art. 129, III.
[10] interesse transindividuais são aqueles de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Podemos conceituá-los como aqueles pertencentes a um número indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo fático (SOUZA, 2001, p. 3).
[11] ________________________________________
[11] O art. 8.°, § 1.º, da Lei n.° 7.347/85 assim dispõe: "O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis". [grifo nosso]
[12] A origem do termo Parquet, bem como o seu significado foram definidos no Capítulo 1 desse trabalho. A partir de então, a referida expressão terá o significado de órgão do Ministério Público, ou seja, promotor de Justiça, procurador de Justiça, procurador da República, etc.
[13] Pelo princípio do contraditório, "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (CF/88, art. 5, inciso LV).
[14] União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações.
[15] Código de Processo Penal Militar.
[16] em conjunto ou separadamente; no âmbito estadual e municipal, o inquérito parlamentar será instaurado pelas Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, respectivamente.
[17] Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
[18] ou cometam outros atos descritos no art. 65 da Lei n.º 6.815/80.
[19] tirar o brilho a; embaciar, ofuscar (dicionário eletrônico Michaelis).
[20] São divididos em em direitos difusos e coletivos. Direitos ou interesses difusos são aqueles pertencentes a um número indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo fático. Os direitos ou interesses coletivos são aqueles pertencentes a um número determinado de pessoas (consiste essa característica na efetiva possibilidade de aferir-se com exatidão o número de pessoas que titulariza determinado direito, pouco importando que o número preciso demande a realização de estudos ou investigações para ser apurado), integrantes de um grupo, categoria ou classe, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si ou com a parte contrária por um vínculo jurídico (deve preexistir à lesão ou a sua ameaça) (SOUZA, 2001, p. 3).
[21] O art. 26 do Código de Defesa do Consumidor estabelece no § 2°, inciso III, que a instauração de inquérito civil até seu encerramento obsta a decadência.
[22] Direito Administrativo Brasileiro, Revista dos Tribunais, 1990, p. 57.
[23] art. 6.° da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
[24] Código Penal - art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
_______________________________________
[25] CF/88, art. 129, VIII; Lei n.° 8.625/93, art. 43, III.
[26] Sobre Compromisso de Ajustamento, ver Cap. 3 desse trabalho.
[27] Em vista de sua função constitucional de zelar para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública respeitem os direitos constitucionais, tem o Ministério Público a possibilidade de expedir recomendações, dirigidas aos órgãos e entidades correspondentes, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, bem como resposta por escrito (Lei n.º 8.625/93, art. 27, parágrafo único, IV). Cabe, ainda, ao Ministério Público expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito aos demais interesses, direitos e bens cuja defesa lhe caiba promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis (LC n.º 75/93, art. 6.°, XX, de aplicação subsidiária aos Ministérios Públicos dos Estados - art. 80 da Lei n.º 8.625/93).
[28] arts. 109, I, da CF/88, e 93 da Lei n.° 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor).
[29] Lei n.° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), art. 2.°; CDC, art. 93, I; Lei n.° 8.069/90 (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente), art. 209.
[30] CDC, art. 101.
[31] ________________________________________
[31] promotor ou procurador de Justiça, procurador da República, etc.
[32] Lei Complementar n.° 734/93, art. 114, § 1°, que reza o seguinte: "Para fins de atuação conjunta e integrada, como propositura de ações ou interposição de recursos, será admitida a atuação simultânea de membros do Ministério Público".
[33] Constituição Federal - art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de [...] publicidade [...]”.
[34] Lei orgânica do Ministério Público.
[35] Código Penal, art. 330.
[36] CPC, art. 138, I; CPP, art. 258; Lei n.° 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), art. 43, VII; Lei Complementar n.° 734/03 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), arts. 171-2, 166 e 169, VI.
[37] _______________________________________
[37] são aqueles pertencentes a um número indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo fático (SOUZA, 2001, p.3).
[38] são aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis, unidos pela mesma relação jurídica, seja entre si, seja com a parte contrária, e ao mesmo tempo indivisível (BECHARA, 2006, p.4).
[39] são aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis, e que, embora individuais, têm a mesma origem de fato, assim como são divisíveis, porque cada um parte do círculo particular de atuação (BECHARA, 2006, p.5).
[40] em analogia ao art. 138, I, do CPC.
[41] CPP, art. 107.
[42] ERDELYI, Maria Fernanda. Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2006. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2006.
[43] ________________________________________
[43] CAPEZ, Fernando. Investigações criminais presididas diretamente pelo representante do Ministério Público. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 892, 12 dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2006.
[44] § 4° do art. 51.
[45] _______________________________________
[45] art. 129, III.
[46] art. 90.
[47] Lei n.º 8.625/93, art. 26, I; LC n.° 75/93, arts. 6°, VII, c, e 38, I.
[48] CF/88, art. 129, III.
[49] CF/88, art. 2.°, III.
[50] CF/88, art. 2.°, I-IV.
[51] Leis n.os 8.429/92, 8.625/93 e a Lei Complementar n.º 73/93.
[52] Código Penal, art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.
[53] Código Penal, art. 316, § 1º - Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza.
[54] Código Penal, art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
[55] Código Penal, art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.
[56] ________________________________________
[56] Lei da Ação Civil Pública
[57] Conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro, "Agência executiva é a qualificação dada à autarquia ou fundação que celebre contrato de gestão com o órgão da Administração direta a que se acha vinculada, para a melhoria da eficiência e redução de custos. [...] Agência reguladora, em sentido amplo, seria, no direito brasileiro, qualquer órgão da Administração direta ou entidade da administração indireta com função de regular as matérias que lhe são afetas. Nesse sentido, a única coisa que constitui inovação é o próprio vocábulo, anteriormente não utilizado para designar entes da Administração Pública. [...] Não existe lei específica disciplinando essas agências reguladoras; elas estão sendo criadas por leis esparsas [...], como as que instituíram, a Agência Nacional de energia elétrica - ANEEL, a Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, a Agência Nacional de Petróleo -ANP" (Direito administrativo. SP: Atlas, 2000, pp. 387-389).
[58] Apelação Cível N.º 70016229791, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 13/09/2006.
[59] Apelação Cível N.º 70013257761, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 14/09/2006.
[60] ________________________________________
[60] art. 17, § 10, da Lei n° 8.429/92
[61] fiscal da lei
[62] _______________________________________
[62] Conclusões da Comissão da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente sobre compromisso de ajustamento de conduta.
Bacharel em Direito e Administração de Empresas. Pós-graduado em Administração Industrial. Servidor do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RADOVAN, Davi. A eficácia e a efetividade do compromisso de ajustamento de conduta em sede de inquérito civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2009, 14:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Monografias-TCC-Teses-E-Book/18121/a-eficacia-e-a-efetividade-do-compromisso-de-ajustamento-de-conduta-em-sede-de-inquerito-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Antonio Augusto Vilela
Por: Rafael Victor Pinto e Silva
Por: William Paul
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