INTRODUÇÃO
O presente estudo pretende constatar, observar e descrever as diferentes modalidades de usucapião de bens imóveis existentes em nosso ordenamento jurídico e seus requisitos processuais, observando principalmente, a usucapião especial coletiva urbana e seus aspectos essenciais e especiais.
Objetiva-se, relatar as formas de moradias irregulares existentes no solo urbano, tais como as favelas e loteamentos irregulares, o procedimento processual e a possibilidade de a comunidade carente usucapir conjuntamente as glebas onde possuem suas moradias, tornando estas em verdadeiros domínios.
Para tanto, será feito um estudo minucioso dos requisitos inerentes a todas as espécies de usucapião de bens imóveis urbanos existentes no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade, esclarecendo, por fim, os requisitos para a sentença de concessão da usucapião coletiva e as críticas doutrinárias em relação à mesma, tendo em vista a polêmica que cerca este assunto: população de baixa renda, favelados, irregularidades e condomínio de proprietários.
O primeiro capítulo objetiva demonstrar uma noção generalizada da usucapião de bens imóveis; a sua existência em nosso ordenamento jurídico; as modalidades e aspectos processuais das modalidades de usucapião existentes no Código Civil de 1916 e que ainda estão vigentes no direito pátrio, em virtude do disposto no artigo 2.028 do Código Civil de 2002 e as modalidades de usucapião disciplinadas no Código Civil de 2002.
Já o segundo capítulo dispõe sobre o Estatuto da Cidade, o planejamento urbano dos grandes centros, a usucapião especial de imóvel urbano segundo o Estatuto da Cidade, a sua vigência, aplicabilidade, requisitos e possibilidades.
O terceiro capítulo faz uma análise geral dos aspectos e requisitos processuais de todas as modalidades de usucapião, condições da ação, bem como os documentos necessários e indispensáveis que devem acompanhar as petições iniciais das ações de usucapião.
O Quarto capítulo é o ponto-chave do presente estudo, que visa esclarecer a nova modalidade de usucapião que foi implementada com o advento do Estatuto da Cidade, sendo esta única no ordenamento jurídico pátrio, pois possibilita a usucapião de favelas e loteamentos irregulares pela população carente que vive nos mesmos; seus requisitos fundamentais que a difere das outras modalidades de usucapião; as partes que podem pleiteá-la, a soma de posses, o condomínio especial, o procedimento processual, a sentença de usucapião e as críticas doutrinárias.
1 A USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS
A usucapião é forma de aquisição da propriedade, e para o seu reconhecimento são necessários dois elementos básicos, quais sejam, a posse e o tempo. Entende-se que este instituto é uma modalidade de aquisição originária da propriedade ou de outro direito real sobre coisa alheia, consistente na posse ininterrupta, com intenção de dono, sem oposição e no decurso do prazo previsto no Código Civil. Pode ser considerada como uma forma de alienação prescrita na Lei, na qual o legislador permite que uma determinada situação de fato que se alongou por certo intervalo de tempo determinado na lei, transforme-se em situação de direito.
São seus efeitos a transferência da propriedade, retroatividade e a indivisibilidade da coisa julgada. Segundo Caio Mário da Silva Pereira[1]:
usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Mais simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no decurso do tempo e associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir, embora com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão a qualificada: Usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada.
A posse é elemento básico da usucapião, mas não é qualquer posse que gera aptidão à obtenção da usucapião. A posse ad usucapionen deve ser contínua, pacífica, incontestada com intenção de dono, no prazo estipulado. Portanto, a posse não pode ter intervalos, vícios, defeitos, tampouco contestação.
Outro elemento básico da usucapião é o tempo, pois para que se converta em propriedade, a posse deve durar pelo prazo estipulado nas leis que a disciplinam. Neste sentido, tem-se que para qualquer modalidade de usucapião, é necessário o continuatio possessionis ininterruptamente por todo o tempo exigido.
Quanto à natureza jurídica da usucapião, existem duas correntes: objetiva, que é aquela fundamentada na presunção de renúncia do direito de propriedade de um indivíduo diante de sua inércia e passividade, e a subjetiva, que se baseia na utilidade social que é dar estabilidade e segurança à propriedade, facilitando a prova do domínio, consequentemente, consolidando as aquisições.
O processamento da ação de usucapião tem como principal efeito constituir título para o usucapiente, oponível erga omnes, operando a transferência do bem ao usucapiente.
Neste sentido, Sílvio de Salvo Venosa[2] define que:
a possibilidade de a posse continuada gerar a propriedade justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. Premia-se aquele que se utiliza utilmente do bem, em detrimento daquele que deixa escoar pelo tempo, sem dele utilizar-se ou não se insurgindo que outro o faça, como se dono fosse.
Corroborando a este entendimento, pode-se analisar a posição de Darcy Bessone[3], na qual alega que aparentemente a prescrição apresenta-se como injustiça, no entanto, esta se justifica nas razões de ordem social que regem a usucapião.
No tocante às razões de ordem social, a estabilidade das relações exige que, quando um estado perdure, permanecendo por muitos anos, sem reação da pessoa interessada, seja ele considerado definitivo e irremovível. De outro modo, se não se operasse a prescrição, a instabilidade preponderaria, pois que poderiam surgir impugnações muito tempo mais tarde, afetando as novas relações que, por confiança naquela duradoura aparência, se constituíssem. Há, assim, manifesto interesse social em que os estados de fato se transformem, após certo tempo, em estados de direito.
1.1 A evolução da usucapião no ordenamento jurídico brasileiro
O legislador brasileiro buscou os princípios do instituto da usucapião nos conceitos de Justiniano, que são ao mesmo tempo, modo de extinção e de aquisição da coisa. Pela extinção denota-se na perda da propriedade pelo indivíduo que dela se desobrigou pelo tempo, assim sendo, esta prescrição extintiva extermina a ação que tem o titular, eliminando o direito pelo desaparecimento da tutela legal. Já a aquisição se dá pela apropriação de um indivíduo sobre a coisa resultante de uma posse prolongada. Esta prescrição aquisitiva, cria direito em favor de um novo titular e, consequentemente, extingue a ação, que para a defesa do direito tinha o titular antigo.
Segundo o renomado professor Benedito Silvério Ribeiro[4]:
Se diz que a usucapião é a prescrição aquisitiva. Nesses dois elementos, portanto – a posse da coisa por quem não é proprietário e a sua duração, reside o fundamento da usucapião, pois, aliados esses dois elementos, surge legalmente a aquisição, transformando-se de mero estado de fato num estado de direito: a propriedade
Leciona Washington de Barros Monteiro[5] que a natureza jurídica deste instituto é muito questionada, no entanto, o legislador pátrio pendeu, tanto no Código Civil de 1916 como no de 2002, para o sistema alemão, que é fundamentado na tradição romana, segundo o qual “este instituto tem vida própria, apresenta contornos que lhe são peculiares e é autônomo, malgrado inegáveis afinidades com a prescrição”.
Deve-se ser considerar a usucapião como um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial realizado com o proprietário. Para Maria Helena Diniz[6], tanto é verdade esta autonomia da usucapião, que “o transmitente da coisa não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião.”
Segundo preceitua Caio Mário[7], desenvolve-se o instituto da prescrição ao se trata do tempo influenciando as relações jurídicas, assim, assevera que esta “determina a extinção das relações jurídicas, mas autoriza a aquisição dos direitos”
Anteriormente ao Código Civil de 1916, existiam no ordenamento jurídico brasileiro quatro hipóteses de prescrição aptas a gerar a usucapião: imemorial, quarentenária, ordinária e extraordinária.
A prescrição imemorial dispensava o justo título e a boa-fé e era admitida nos casos em que circunstâncias particulares tornavam impossível invocar-se a prescrição ordinária ou extraordinária.
Com relação à prescrição quarentenária, esta se dava em 40 (quarenta) anos, e era prevista para os bens do estado, cidades e vilas, imóveis da igreja, do imperador e lugares veneráveis.
Para obter a prescrição ordinária, era indispensável o justo título e a boa-fé. Incidia quanto a semoventes, após o decurso de 03 (três) anos e. Para imóveis em que o proprietário e prescribente residissem na mesma comarca, o prazo era de 10 (dez) anos, porém, se residissem em comarcas divergentes o prazo era de 20 (vinte) anos
Já para a prescrição extraordinária, era exigida a boa-fé e o título era presumido. Consumava-se com o decurso do prazo de 30 (trinta) anos, tanto para bens imóveis quanto móveis. Destarte, quanto a bens públicos patrimoniais, o lapso era de 40 (quarenta) anos.
1.2 As usucapiões ordinária e extraordinária no Código Civil de 1916
Com o advento do Código Civil de 1916, restaram vigentes as formas de prescrição para obtenção da usucapião, ordinária e extraordinária, dispostas em seus artigos 550 e 551. Portanto, as prescrições imemorial e quarentenária, não remanesceram naquele codex.
Deve-se ressaltar que o este Código fez menção ao instituto da usucapião e não mais prescrição, pois, esta é um instituto autônomo, peculiar do direito das coisas e cuida de forma de aquisição do domínio.
Outro aspecto importante resultante do advento do Código Civil de 1916 e que permaneceu no novo Código Civil de 2002 é a impossibilidade de se usucapir bens públicos.
A usucapião ordinária foi inserida no Código Civil de 1916 em seu artigo 551:
Artigo 551: adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze entre os ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé
Seu parágrafo único rezava que presentes eram os moradores do mesmo município e ausentes aqueles que residiam em município diverso. Conforme Benedito Silvério[8] disciplina, “a ausência ou presença relacionam-se ao local do imóvel, dizendo respeito à pessoa do proprietário e não o domicílio ou residência do prescribente”. Assim, será presente o proprietário se residir no município em que se localiza o imóvel e ausente se o seu domicílio for em localidade diversa.
Eram características fundamentais o justo título e a boa-fé do possuidor, além de a posse exercida ter de ser mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini.
Já a usucapião extraordinária, foi disciplinada no artigo 550 do Código Civil de 1916:
Artigo 550: Aquele que, por vinte anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para a transcrição no Registro de Imóveis.
A característica principal desta modalidade de usucapião, era a dispensa de justo título e boa-fé, bem como maior decurso do prazo prescricional.
Como requisitos inerentes às duas modalidades de usucapião acima dispostas, tem-se que a posse exercida deveria ser mansa, pacífica, incontestada, contínua e com animus domini.
Apesar de o Código Civil de 1916 ter sido revogado pelo atual de 2006, estas duas modalidades ainda restam vigentes no ordenamento jurídico, para os casos disciplinados no artigo 2.028 do Código de Civil de 2002.
Este é o entendimento majoritário do Egrégio Tribunal de Minas Gerais, vejamos:
Número do processo: 1.0024.06.122835-9/001(1)Relator: LUCAS PEREIRA Data do Julgamento: 04/12/2008 Data da Publicação: 14/01/2009 Ementa: USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - REQUISITOS - AUSÊNCIA DE PROVA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. - Havendo a autora alegado na exordial que possui o imóvel desde dezembro/1988, tem-se que decorreu, na data da entrada em vigor do CC/2002, mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada para a usucapião extraordinária (vinte anos), devendo ser aplicado este prazo previsto no artigo 550 do CC/1916, visto que reduzido pelo artigo 1.238, do CC/2002, conforme o disposto no artigo 2.028 do CC/2002. - Não restando demonstrado o preenchimento dos requisitos do exercício da posse mansa e pacífica, por um período de 20 (vinte) anos, necessários ao reconhecimento do domínio do imóvel em questão, há que ser julgado improcedente o pedido formulado na ação de usucapião. Súmula: negaram provimento ao recurso, vencido o relator quanto a fundamentação.
Número do processo: 1.0089.06.000582-7/001(1)Relator: ALVIMAR DE ÁVILA Data do Julgamento: 28/05/2008 Data da Publicação: 07/06/2008 Ementa: APELAÇÃO - USUCAPIÃO ORDINÁRIA - PRAZO APLICÁVEL- INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 2.028 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - APLICABILIDADE DO ARTIGO 551 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 - REQUISITOS COMPROVADOS - PRETENSÃO DE USUCAPIR VIABILIZADA. É aplicável as regras do artigo 1.242 do novo Código Civil, porém, somente quanto ao prazo, aplica-se o previsto no artigo 551 do Código Civil de 1916, qual seja, 10 (dez) anos entre presentes e 15 (quinze) anos entre ausentes, quando da entrada em vigor do Novo Código, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada. Uma vez preenchidas as condições necessárias para a configuração da prescrição aquisitiva, nos termos previstos no artigo 551, do Código Civil de 1916, é de se reconhecer a aquisição da propriedade pela usucapião ordinária. Súmula: deram provimento.
1.3 O Código Civil de 2002 e as formas de usucapião ordinária, extraordinária, especial urbana e rural
Pode-se afirmar que a propriedade, segundo o Código Civil de 2002, é voltada para o seu sentido social, assim como o fez a Constituição Federal de 1988, vez que a usucapião constitui meio eficaz hábil para proporcionar a maior dinâmica do uso da terra, concedendo moradia aos usucapientes. Também há de se ressaltar que o lapso temporal foi diminuído em relação ao exigido no anterior Código Civil de 1916.
Ressalte-se que o Código Civil de 2002 manteve a impossibilidade de se usucapir bens públicos, já delimitada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 183 § 3º e 191, § único. Destarte, para alguns doutrinadores, como ilustra Nelson Rosenvald[9], decisórios recentes permitem a usucapião de terras que ainda não foram registradas (res nullius), cabendo ao Poder Público elidir a presunção relativa.
Assim, bens públicos, em lato sensu, são aqueles que pertencem à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Observando-se de maneira específica, mais precisamente o disposto no artigo 98 do Código Civil de 2002, consideram-se públicos os bens de domínio nacional que pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno, incluindo-se nestes os bens de uso comum do povo, de uso especial, os dominicais e as terras devolutas.
O Código Civil de 2002 estabelece a usucapião ordinária e seus requisitos no artigo 1.242
Artigo 1242. Adquire também propriedade de um imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Para que o usucapiente possa adquirir através da ação de usucapião a propriedade do imóvel, é necessário que estejam presentes todos os requisitos indispensáveis à sua caracterização, que são a posse animus domini, lapso temporal, justo título, boa-fé e objeto hábil, além das condições da ação: legitimidade de partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. A falta de qualquer um deles obsta sua pretensão de aquisição do domínio do bem usucapiendo.
Esta modalidade de usucapião possui dois requisitos essenciais inerentes somente a ela dentre todas as outras presentes em nosso ordenamento jurídico: o justo título e a boa-fé. Pode-se afirmar ser aquele o fundamento do direito do prescribente. Exige a lei que o mesmo seja justo, isto é, formalizado e devidamente registrado, para que seja hábil à aquisição do domínio, como, por exemplo, a escritura.
No entanto, o parágrafo único do artigo 1.242 do codex, possibilita a redução do prazo prescricional para cinco anos, caso exista título que tenha sido válido durante o decurso do prazo legal, mas que fora cancelado posteriormente.
Já a boa-fé, recai na crença do usucapiente de que lhe realmente pertence a coisa possuída, pois ele possui a certeza de seu direito, ou seja, tem a convicção de não ofender um direito alheio. Deve estar presente desde o início da posse e subsistir por todo o período aquisitivo.
Deste entendimento emana a existência de uma das condições da ação do usucapião que é a legitimidade ativa, vez que somente pode ingressar no polo ativo aquele que de fato exerceu a posse. Além disso, o pedido é considerado juridicamente possível, pois foram atendidos todos os requisitos explicitados na lei e o interesse de agir resta configurado ante a necessidade de que da posse se constitua o domínio daquele que esbulhou e adquiriu o imóvel pela prescrição aquisitiva
A usucapião extraordinária está definida no artigo 1.238 do Código Civil:
Artigo 1.238, CC: Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Esta forma de usucapião é conhecida como prescrição de longo prazo, ou quinzenária. É necessário que estejam presentes seus requisitos essenciais, quais sejam, posse com animus domini, lapso temporal e objeto hábil, para que se possa obter a propriedade do imóvel usucapiendo.
Desta maneira, podemos observar que há a dispensa de justo título e da boa-fé. Segundo Silvério[10]:
A longa duração da posse supre a falta de justo título, podendo-se adquirir a coisa, possuída em sua totalidade – tantum praescriptum quantum possessum, ao contrário da usucapião ordinária, na qual a prescrição somente pode ocorrer dentro dos contornos contidos no próprio título.
A posse deverá ser ininterrupta, ou seja, contínua e sem oposição, que é aquela incontestada, tranqüila, mansa e pacífica, sendo de conhecimento público e notório.
Todavia, José Carlos de Moraes Salles[11] aduz que a interrupção da posse só ocorre caso a ação de esbulho seja julgada contra o possuidor, pois caso contrário, não tendo havido a interrupção aludida, se consubstanciou a prescrição aquisitiva.
Portanto, para este jurista, só haverá interrupção capaz de prejudicar a usucapião, se o possuidor for despojado de sua posse de maneira inequívoca, antes de completar o lapso de quinze anos, previsto no artigo 1238 do codex, sem a possibilidade de recuperar a posse perdida.
Disciplina Monteiro de Barros[12] (2003, p. 124), que esta modalidade de usucapião:
repousa em duas situações bem definidas: a atividade singular do possuidor e a passividade geral de terceiros, diante daquela atuação individual. Se essas duas atitudes perduram contínua e pacificamente por quinze anos, ou dez anos, ininterruptos, consuma-se o usucapião. Qualquer oposição subseqüente mostrar-se-á inoperante, porque esbarrará ante o fato consumado.
Com relação a esta modalidade de usucapião, semelhantemente à ordinária, deve-se levantar a importante questão referente à acessão e sucessão de posses.
O artigo 1.243 do Código Civil de 2002 estabelece que “o possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (artigo 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do artigo 1.242, com justo título e boa-fé”. Nos dizeres de Arnaldo Rizzardo[13], “significa a acessão de tempo a junção do lapso temporal, durante o qual alguém exerceu a posse, ao período de posse exercido pelo seu antecessor, o que se dá a título universal ou singular”.
Como sucessor universal tem-se o posseiro (herdeiro) que substitui o antecessor na totalidade dos bens pertencentes ao patrimônio do de cujus. De acordo com o disposto no artigo 1.784 do Código Civil de 2002, “aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários”, assim, tem-se que esta posse será transmitida com todos os vícios lhe inerentes.
Fazendo-se uma leitura pormenorizada do artigo 1.206 do Código Civil de 2002, tem-se que se o finado exercia a posse com má-fé ou sem o animus domini, irrelevante será a posse do herdeiro mesmo que de boa-fé ou com o ânimo de dono.
Já o artigo 1.207 do Código Civil de 2002, disciplina que “o sucessor universal continua de direito a posse de seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para efeitos legais”. Portanto, pode-se concluir que na acessão a título singular os vícios da posse anterior não são transmitidos, pois ao adquirir a posse, é iniciado um novo estado da mesma, livre de quaisquer vícios anteriores.
Outrossim, caso a posse seja eivada de vícios, o sucessor singular tem a faculdade de não somar as duas, devido ao estado novo que esta apresenta quando a adquiriu.
Preceitua o artigo 1.240 do Código Civil de 2002:
Artigo 1240: Aquele que possuir, como sua, área urbana de ate duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Esta forma de usucapião é considerada uma nova modalidade no ordenamento jurídico pátrio, distinguindo-se das demais modalidades presentes no direito brasileiro. Cumpre-se destacar, que esta usucapião tem caráter eminentemente social.
A usucapião especial urbana não exige como elemento essencial o justo título e a boa-fé, portanto, alguns doutrinadores como Moraes Salles[14] afirmam que aparentemente ela se assemelha à usucapião extraordinária.
No entanto, a norma constitucional, seguida pelo Código Civil de 2002, criou outros elementos essenciais para esta modalidade de usucapião, fato que a distingue, sobremaneira, da usucapião extraordinária. São estes elementos: sua incidência se dá apenas em área urbana; a área usucapienda se restringe a no máximo duzentos e cinqüenta metros quadrados; é exigido que o usucapiente utilize a área urbana para sua moradia ou de seus familiares; e não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Seus demais requisitos essenciais são o animus domini, a posse contínua e sem oposição. Nesta modalidade de usucapião, não é admissível a acessão ou junção de posses em favor do sucessor singular, vez que há exigência de que a posse seja pessoal e com o intuito de moradia, desde o início do lapso temporal.
A prescrição aquisitiva válida será também única, ou seja, aquele que tornar-se proprietário de bem imóvel após sentença decretada mediante esta modalidade de usucapião, não poderá se valer deste instituto por mais de uma vez, mesmo que a localidade seja diversa.
O artigo 1.239 do Código Civil de 2002 disciplina que:
Artigo 1239: Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Também conhecida como pro labore e agrária, esta modalidade de usucapião não pode ser adquirida caso o prescribente possua outro imóvel urbano ou rural. São requisitos essenciais da mesma, animus domini, lapso temporal, posse ininterrupta com obrigatoriedade de moradia na área rural usucapienda e o dever de torná-la produtiva por seu trabalho ou de sua família, sem oposição.
Pode-se dizer que a intenção do legislador com esta modalidade de usucapião foi beneficiar aquele que tornou a área rural sob a sua posse produtiva em decorrência de seu trabalho e de sua família, com o intuito de fixar o trabalhador rural no campo. Neste paradigma está inserido uma das condições da ação que é o interesse de agir, pois, não estando presente esse requisito, a ação deverá ser extinta sem resolução do mérito.
Deve-se, pois, ressaltar, que o requisito essencial, segundo o qual o usucapiente não pode possuir outro imóvel urbano ou rural se exige quando do lapso temporal para a aquisição do imóvel e não posteriormente à sua obtenção.
Maria Helena Diniz, citando Silvio Rodrigues e Juarez de Freitas[15] constata que segundo a alínea f do artigo 1239 do Código Civil de 2002, é proibida a usucapião de terras públicas, mesmo que abandonadas e improdutivas, todavia, no nosso ordenamento jurídico há a possibilidade de se usucapir terras devolutas, conforme o disposto no artigo 188 da Constituição Federal de 1988, para se dar continuidade na exploração econômica da terra.
2 A USUCAPIÃO NO ESTATUTO DAS CIDADES
Os grandes centros urbanos são os espaços onde se verificou o maior crescimento populacional nas últimas décadas. A sociedade evoluiu e se transformou e com isso, diversos novos problemas surgiram, tais como, a degradação do meio ambiente, a utilização incorreta dos recursos financeiros, o grande número de desempregados, o uso impróprio do solo e das reservas naturais, violência urbana desenfreada, ausência de saneamento básico e de moradias, surgimento de favelas e ocupações clandestinas.
A par de todos estes problemas, a concepção de propriedade diante da história, bem como da legislação, principalmente por influência da Constituição Federal de 1988, sofreu grandes transformações, admitindo um conceito social, havendo necessidade de sua regulamentação diante dos padrões do Direito Urbanístico.
Desta necessidade, fez-se surgir a Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001, publicamente conhecida como Estatuto da Cidade. Esta lei funciona como instrumento de política urbana, sendo objeto apto a ensejar o cumprimento da tão observada função social da propriedade, ressaltada no texto constituinte.
Acerca do que foi implementado após a vigência do Estatuto das Cidades, assevera Dallari[16]:
O Estatuto afirmou com ênfase que apolítica urbana não pode ser um amontoado de intervenções sem rumo. Ela tem uma direção global nítida: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (artigo 2º, caput), de modo a garantir “o direito a cidades sustentáveis” (incisos I,V,VIII e X).
2.1 A usucapião especial de imóvel urbano segundo o Estatuto das Cidades
O Estatuto da Cidade disciplina em seus artigos 9° e seguintes, matéria de interesse social inquestionável, que é a usucapião especial urbana.
Pode-se dizer que esta modalidade de usucapião que tem como primordial finalidade a moradia, já havia sido prevista na Constituição da República de 1988, no Capítulo da Política Urbana, em seu artigo 183.
Segundo leciona Liana Portilho Mattos[17], a usucapião urbana foi inserida “no contexto e na esteira do comando constitucional da função social da propriedade, relacionando-se com o artigo 182 que estabelece sanções aos proprietários que não atendem a este princípio da política urbana”.
Disciplina o artigo 9° do estatuto da cidade:
Artigo 9º: Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão
Pode-se afirmar que o entendimento pacífico da doutrina pátria é que este artigo, que repete a redação do artigo 183 da Constituição Federal de 1988, pune o proprietário que abandona a gleba urbana, deixando-a vazia, uma vez que a sua inércia ocasionou ocupação da área, concedendo aos posseiros as condições para que possam requerer em juízo a usucapião para a finalidade de moradia.
Neste sentido, pode-se dizer que o supracitado artigo não reconhece apenas um fato, mas sim um direito que emergiu deste fato, tendo em vista a permanência do possuidor no local ocupado, o qual poderá adquirir a propriedade pela via jurisdicional.
O Estatuto da Cidade possibilitou que a usucapião possa se realizar em cinco anos, em lotes cuja área não ultrapasse 250 (duzentos e cinquenta) metros, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e que a posse seja destinada à sua moradia e ou de sua família. Este fato representou uma evolução da regularização fundiária nos municípios brasileiros, vez que a redução do prazo prescricional atendeu ao princípio da função social da propriedade.
2. 1. 1. Aspectos processuais da usucapião especial de imóvel urbano
Ressalta Moraes Sales[18], que processualmente a declaração da usucapião especial urbana pode ser pleiteada tanto pelo brasileiro nato quanto pelo naturalizado, bem como o estrangeiro residente no Brasil, uma vez que não se fez expressa menção quanto à delimitação de somente ser possível a brasileiros.
Em relação à posse nesta modalidade de usucapião, destaca-se o lapso temporal reduzido, que é de 05 anos, devendo este transcorrer contínua, mansa e pacificamente, tendo o possuidor animus domini.
Também conhecida por usucapião pro casa, pro habitatio ou pro morare, esta deverá ter a posse exercida exclusivamente para moradia do possuidor ou de sua família, sendo esta posse de caráter pessoal.
Em relação à coisa hábil, para esta modalidade de usucapião, o seu limite se dá em 250 (duzentos e cinqüenta) metros quadrados, tanto para a área total do terreno, quanto para a edificação. Outra característica específica desta modalidade, inserida no §3° do artigo 9°, é que a família ou o possuidor individual somente poderá usucapir por esta modalidade de usucapião, uma única vez, não sendo reconhecido os seu direito se pleitear novamente em juízo a aquisição da propriedade através desta modalidade, ou se já for proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Assim, tendo-se em vista que o conceito de família foi ampliado pela Constituição Federal de 1988, permitindo-se até mesmo a usucapião nos casos de união estável, esta Lei reconheceu o direito de propriedade para ambas as partes, bem como para qualquer dos pais e seus descendentes.
Quanto à comprovação de que o possuidor é ou não proprietário de outro imóvel urbano, resta extrema dificuldade, vez que poderia se afirmar que cabe ao adquirente o ônus da prova, nos termos do artigo 333 do Código de Processo Civil. No entanto, exigir-se do possuidor carente tal prova restaria impossível esta modalidade de usucapião, vez que em um país tão extenso quanto o Brasil, não há como este apresentar certidões negativas de todos os cartórios de registro de imóveis.
A fim de elucidar tal questão, Odete Medauar[19] assim disciplina:
Com base no artigo 333 do Código de Processo Civil, a doutrina e a jurisprudência tem equalizado o problema que seria para o usucapiente, que se presume carente, produzir tais provas em juízo, uma vez que elas são elementos necessários para a caracterização do fato constitutivo de seus direito.
Baseando-se no ora explicitado, será suficiente ao autor da ação de usucapião alegar a sua condição de não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Havendo réu, caberá a este provar a inverdade desta alegação, vez que lhe cabe o ônus de provar existência de fato impeditivo do direito do autor.
Tendo-se em vista a forte influência constitucional que disciplinou esta Lei, o §1° do artigo 9°, trouxe o comando de que as sentenças de usucapião devem conferir o título de domínio tanta para o homem quanto à mulher, ou ambos, não sendo requisito o estado civil do possuidor.
Destarte, é oportuno ressaltar-se a controversa matéria acerca da possibilidade da usucapião de terras devolutas, pois alguns doutrinadores entendem que as mesmas não devem ser consideradas públicas.
Porém contra este entendimento equivocado, existe a Súmula 340 do STF que dirime qualquer dúvida acerca deste tema, pois ressalta que “desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”, e, sendo as terras devolutas bens públicos, não são aptas à usucapião especial urbana.
2.2 A usucapião especial coletiva urbana
Esta é a modalidade de usucapião mais inovadora existente no ordenamento jurídico pátrio, e encontra-se disciplinada no artigo 10 da Lei 10.247/2001:
Artigo 10: As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.
Fato inegável nos dias atuais é o grande avanço das favelas e loteamentos irregulares nas cidades brasileiras que, consequentemente, derivam-se de invasões e compras irregulares de terrenos.
Disserta Ricardo Pereira Lira[20] que:
as populações carentes, predominantemente vindas do campo e até mesmo de áreas urbanas menos atendidas, em virtude da valorização do centro urbano, inclusive peça prática das renovações urbanísticas, se assentam nas periferias.
Atualmente, se pode ver nas cidades uma grande parcela da população vivendo irregularmente e de maneira clandestina, sob a ótica do registro de imóveis, diante da enormidade de conjuntos habitacionais e conglomerados humanos, tais como as favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, que se enraízam e se tornam irremovíveis na paisagem das grandes cidades, integrando, consequentemente, a zona urbana de maneira definitiva.
O legislador viabilizou o acesso das comunidades carentes na obtenção de suas moradias, tendo-se em vista a dificuldade encontrada pela população de baixa renda em adquirir a propriedade pelos meios convencionais, para que venham usucapir, conjuntamente, com a finalidade de que cada morador destas localidades possa se tornar o real proprietário de seu terreno.
Assim, é de suma importância o instituto da usucapião especial coletiva urbana para a perfeita regularização fundiária dos grandes centros, vez que possibilita o desenvolvimento organizacional regular destas cidades, podendo-se até extinguir as moradias irregulares existentes nas mesmas.
Insta ressaltar que divergências foram apontadas pela doutrina acerca de ser a usucapião especial coletiva urbana um direito novo no ordenamento pátrio. No entanto, observa-se que a Lei fala em áreas com mais de 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados, impossibilitando a usucapião especial urbana individual.
Como finalidade desta usucapião, temos a consolidação de um condomínio e a possibilidade de substituição processual e de formação de litisconsórcio ativo com inúmeros possuidores, o que não existia anteriormente. Os demais requisitos desta modalidade de usucapião serão estudados de forma aprofundada em capítulo específico.
3 REQUISITOS PROCESSUAIS ATINENTES A TODAS AS MODALIDADES DE USUCAPIÃO
Conforme podemos observar, em todas as modalidades de ação, existem requisitos essenciais estabelecidos na lei processual civil que são indispensáveis para a obtenção do direito tutelado. Os requisitos essenciais da ação de usucapião serão analisados a seguir.
3.1. Da possibilidade jurídica do pedido e do interesse de agir
Possibilidade jurídica do pedido é a aptidão do pedido para ser acolhido, assim, se em tese é possível que o pedido seja acolhido, há a constatação desta. Essa condição foi pensada por Liebman para explicar os casos em que se pedia divórcio na Itália, à época, proibido. Em uma situação como aquela, nem mesmo deveria se processar, visto que o pedido não era admitido pelo ordenamento jurídico. Posteriormente houve aprovação dessa possibilidade e Liebman ficou sem seu único exemplo para explicar tal condição. Diante disso, na edição seguinte de seu livro o autor resolveu por excluir essa condição. Todavia, dadas as dificuldades de comunicação naquela época, essa informação não foi passada aos processualistas brasileiros e, por isso, tal condição consta em nosso Código de Processo Civil.
Segundo Didier[21], trata-se de algo um tanto quanto inapropriado, visto que, se o pedido não pode ser acolhido pelo ordenamento jurídico, a hipótese seria de improcedência do mesmo, e não de carência de ação, que é decisão sem exame de mérito. Tal entendimento encontra fundamento legal no artigo 169, I, do Código de Processo Civil.
Desta forma, a possibilidade jurídica do pedido se enquadra na ação de usucapião, quando o autor da demanda tenha formulado pedido individualizando, atendidos os requisitos essenciais da modalidade que pretende usucapir e desde que o bem imóvel que pretende transferir para o seu domínio seja passível de ser usucapido.
Já a condição do interesse de agir, segundo Didier[22], deveria ser considerada um pressuposto processual, dada a sua importância. Trata-se da necessidade de que a demanda seja útil e necessária. Deve-se estabelecer que aquela demanda acarretará algum proveito, não se tratando de frivolidade. Por isso, quando há a perda do objeto, fala-se na perda do interesse de agir, pois o processo não terá qualquer utilidade.
Uma demanda necessária, por sua vez, é demonstrada pela necessidade de ir a juízo para que se atinja seus propósitos. Em não se restando comprovada essa necessidade, diz-se que tal ida é abusiva.
Não obstante, parte da doutrina defende que o interesse de agir tem uma terceira dimensão, pois, além da utilidade e da necessidade, no exame do interesse de agir também estaria adequação, ou seja, busca-se comprovar que o procedimento seja adequado ao que se pede. De forma diversa, o procedimento seria considerado inadequado, pela falta de interesse-adequação. Isto por que a escolha do procedimento nada tem a ver com a demanda, visto que aquela é puramente processual. Além disso, quando a parte escolhe o procedimento inadequado, nada impede que o juiz o conserte, diferentemente da utilidade e da necessidade.
Com efeito, Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini[23], afirmam que o interesse processual nasce, portanto, da necessidade da tutela jurisdicional do Estado, invocada pelo meio adequado, que determinará o resultado útil pretendido, do ponto de vista processual. Sendo assim, não é admitida a usucapião nos casos em que o autor da demanda poderá adquirir a propriedade do imóvel pela via ordinária, ou seja, administrativa. Isto ocorre quando, por exemplo, o possuidor possui uma escritura válida de compra e venda, mas não registra para se eximir do pagamento do registro no Cartório de Registro de Imóveis competente e do imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI), ou quando os herdeiros pleiteiam a usucapião de imóvel que deveria ser objeto de partilha, uma vez que com a mesma poderão regularmente registrar o mesmo no registro de imóveis.
3.2 Da legitimidade: capacidade de ser parte, de estar em juízo e postulatória
O conceito de parte se relaciona com a capacidade processual prevista nos artigos 7º e seguintes do Código de Processo Civil. Com referência ao conceito de parte, mister se faz distinguir três aspectos: capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória.
A capacidade de ser parte está prevista especialmente no artigo 12. Ela se refere à capacidade de ter direitos como ser humano, uma vez que a personalidade civil é reconhecida desde o nascimento com vida, embora desde a concepção se resguardem alguns direitos do nascituro, nos termos do artigo 2º do Código de Processo Civil. Toda pessoa pode ser titular de direitos civis e figurar em relação jurídica processual seja como autor ou réu.
A capacidade de estar em juízo significa legitimidade para o processo e somente é cabível àqueles que se encontrarem no exercício de seus direitos, nos termos do artigo 7º do Código processual civil. Essa legitimação não se confunde com capacidade de ser parte, visto que constitui um requisito do processo de usucapião e não da ação, dizendo respeito à capacidade de exercício da demanda. Desta forma, analisando-se os artigos 4º, 5º, 8º, 9º e 1.767, todos do Código Civil, os absolutamente incapazes não poderão praticar qualquer ato no processo, devendo haver representação e os relativamente incapazes o poderão fazer, mediante assistência de quem lhes complete a capacidade.
Já a capacidade postulatória é o poder de requerer pessoalmente em juízo e somente será atingido através de pessoas especializadas e mediante outorga de mandato por escrito a advogado legalmente habilitado e inscrito nos quadros da Ordem de Advogados do Brasil[24].
3.3 Dos requisitos gerais e especiais
Conforme disciplina o artigo 282 do Código de Processo Civil, são requisitos da petição inicial e deverão estar indicados na mesma: o juiz a que é dirigida; prenomes, sobrenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e réu; fato e fundamentos jurídicos do pedido; pedido com suas especificações; valor da causa; provas que o autor pretende produzir e requerimento para citação do réu.
Como requisitos especiais da ação de usucapião, temos o disposto nos artigos 942 e 943 do Código processualista, a saber, o autor deverá juntar a planta do imóvel usucapiendo, requererá a citação do proprietário e dos confrontantes do imóvel e por edital os réus em local incerto e terceiros interessados; serão intimados por via postal as Fazendas Públicas da União, Estado e Município em que se localiza o bem objeto da ação.
Ademais, outros documentos especiais devem ser apresentados pelo autor da ação de usucapião, como a certidão atualizada do imóvel, a fim de que se comprove em nome de quem o imóvel está registrado e demais certidões negativas dos demais cartórios de registros de imóveis, se houver no local da situação do bem imóvel; certidões de ações possessórias e petitórias em nome do usucapiente e de seus antecessores na posse, a fim de se comprovar que a posse, de fato, foi mansa, pacífica e ininterrupta; memorial descritivo a ser apresentado conjuntamente à planta do imóvel, sendo que ambos deverão possuir assinatura do engenheiro responsável com prova de anotação de responsabilidade técnica no CREA ao qual o mesmo está vinculado; dependendo da modalidade de usucapião pretendida também é necessária certidão dos cartórios de registros de imóveis da localidade do bem, comprovando que o autor da ação não é proprietário de quaisquer outros imóveis (usucapiões especial individual e coletiva).
4 A USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA URBANA E SEUS REQUISITOS PROCESSUAIS ESSENCIAIS E ESPECÍFICOS
4.1 Aspectos gerais
Tendo em vista esta especialíssima modalidade de usucapião, seus requisitos essenciais e processuais vão ser objeto de estudos do presente capítulo, vez que o Estatuto das Cidades ao implementá-la, fez exigências distintas sobremaneira de todas as outras modalidade de usucapião existentes em nosso ordenamento jurídico.
Sendo assim, o presente capítulo objetiva complementar o estudado no capítulo 3 acima descrito, analisando os requisitos específicos e próprios da usucapião especial coletiva urbana.
4.2. Requisitos processuais
Reza o artigo 10 do Estatuto da cidade, que nas áreas urbanas com mais de 250 (duzentos e cinqüenta) metros quadrados onde não se possa identificar os terrenos, haverá a possibilidade de a comunidade carente, pleitear em juízo, coletivamente a usucapião especial coletiva urbana.
Nos dizeres de Portilho Mattos[25], os grandes obstáculos enfrentados pelos municípios para regularizarem de forma ágil o parcelamento do solo era a abordagem individualista e privatista disciplinada no Código Civil de 1916. Até mesmo a Constituição Federal de 1988, intitulada de “constituição cidadã” não operou com veemência a esta possibilidade da usucapião coletiva que trouxe o novel Estatuto da Cidade.
Pode-se dizer que esta nova modalidade possibilita de forma nunca antes existente a regularização fundiária dos centros urbanos, pois a prova da obtenção do prazo prescricional poderá se fazer de forma coletiva, assim, desde que demonstrada a antiguidade da ocupação no prazo mínimo de cinco anos após a vigência do Estatuto da cidade, poderá a comunidade carente proceder à usucapião.
Esta possibilidade se deve à grande mobilidade dos moradores, principalmente daqueles que habitam em favela, vez que é comum a constante mudança de uma favela para outra vizinha e até dentro da mesma favela, devido a insalubridade e riscos que os barracos apresentam em determinadas regiões destes conglomerados.
Nesta modalidade de usucapião, não existe limite para o tamanho da área total a ser usucapida, apenas deverá ser superior a 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados.
Destarte, como nas outras modalidades de usucapião acima expendidas, não é possível a usucapião de terras públicas, sejam elas de interesse comum do povo, especial ou devolutas. Assim, a área deverá ser de particular e ocupada por possuidores que habitam em barracos ou habitações precárias.
Benedito Silvério Ribeiro[26] aduz que:
Como óbvio, tendo em vista os parâmetros constitucionais, não é possível aceitar que cada um dos ocupantes receba fração ideal, conquanto possa ser diferenciada (§3° do artigo 10 do Estatuto da Cidade), que supere 250m², quantum estipulado para moradia urbana, consoante se infere do preceito contido no artigo 183 da CF.
Portanto, mister há de ressaltar que a metragem máxima para cada condômino não poderá ultrapassar os contornos da política urbana inserida no artigo 182 da CF. Neste sentido, o ora possuidor não poderá usucapir área maior do que 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados, mesmo não existindo o limite máximo previsto no artigo 10 da Lei, pois assim, restaria inconstitucional este artigo.
Nos termos do artigo 10, §3° da Lei, cada possuidor terá uma fração ideal idêntica à dos outros condôminos após o registro da sentença no cartório de registro de imóveis. Diz-se que o legislador assim determinou, tendo em vista a desorganização das moradias existentes nas favelas brasileiras. Pode-se afirmar que esta determinação garantiu ampla liberdade ao Poder Público para implementar programas de regularização fundiária, para se utilizar da melhor maneira o solo urbano nas áreas a serem usucapidas coletivamente pela população carente.
Nos dizeres de Portilho[27]:
Muitas vezes, a forma histórica de ocupação da área consagrou injustiças que podem ser corrigidas por um projeto que, ainda que respeitando as especificidades da ocupação, redistribua de forma mais ética a terra na favela. Essa possibilidade liberta o poder público de um grande obstáculo prévio ao Estatuto da Cidade para a regularização de favelas: o fato de que ao propor qualquer rearranjo territorial na área a ser usucapida, o Poder Público quebrava a continuidade da posse de cinco anos do possuidor relocalizado e o prazo se reiniciava do zero.
Destarte, o artigo possibilita que se os usucapientes ingressarem em juízo com acordo coletivo, as frações ideais poderão ser dispostas diversamente na forma pactuada para cada um dos futuros condôminos. Afirma-se que esta possibilidade pode ser uma boa solução quando a favela for ordenada territorialmente, ou quando a organização comunitária for enraizada e legitimada socialmente, casos em que serão desnecessárias as intervenções do Poder Público.
4.2.1 Da Legitimidade ativa, do interesse de agir e do objeto hábil
Reza o artigo 12 da Lei 10.257/2001:
Artigo 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:
I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
II – os possuidores, em estado de composse;
III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados.
§ 1o Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.
§ 2o O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis.
O legislador quando da elaboração do presente artigo vislumbrou dirimir dúvidas que pudessem surgir na prática do processamento das ações de usucapião especial coletiva, estabelecendo quem são os legitimados a propor a ação de usucapião.
São legitimados: o possuidor em litisconsórcio ativo que pode ser superveniente à propositura da ação; o conjunto de moradores/possuidores do imóvel, através da composse exercida por todos que dá azo ao litisconsórcio e a associação de moradores que pode ingressar em juízo, e através da substituição processual, representar seus associados.
A “ocupação” constante no artigo 10 do Estatuto deve ser realizada por população carente, que é quem tem a legitimidade ativa para a propositura da ação de usucapião. A doutrina entende que esta legitimidade advém do objetivo do legislador em dar oportunidade à população de baixa renda para que consiga usucapir uma moradia para habitar.
O possuidor poderá pleitear a usucapião coletiva somente ou com sua família, porém, esta deverá ser de forma pessoal e direta, sendo proibida a posse por intermédio de prepostos. Como a finalidade desta usucapião foi possibilitar um teto para a população de baixa renda morar, o possuidor não poderá ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Ainda, deverá o usucapiente exercer a posse, no prazo mínimo de cinco anos, com animus domini, ou seja, além de utilizá-la para a moradia, também deverá ter o ânimo de dono, ou seja, portar-se perante a sociedade como se realmente fosse o proprietário daquela gleba.
Entende grande parte da doutrina que a expressão “para sua moradia” constante do caput do artigo 10 da Lei, não afasta a possibilidade da utilização do imóvel para pequenos comércios, tais como, “boteco”, “venda” e “quitanda”, dentre outros. Ressaltando-se este posicionamento, aduz o professor Benedito Silvério[28]:
As favelas, no entanto, constituem um todo orgânico e devem ser consideradas como unidades, daí por que alguns imóveis comerciais não podem, desde que exista predominância de residência, impedir futura urbanização. Não é de afastar a possibilidade de usucapião coletiva, no caso em que poucos imóveis sejam utilizados para fins comerciais (...).
O possuidor, a fim de cumprir o prazo prescricional estabelecido no caput do artigo 10 da Lei, poderá somar a sua posse com a do seu antecessor, não fazendo o legislador qualquer ressalva em ser o sucessor obrigatório ou facultativo, desde que ambas sejam contínuas, ou seja, não haja intervalo de tempo entre a posse do antecessor e a do sucessor.
Segundo doutrina dominante, a ação coletiva especial exige que os interesses individuais não sejam conflitantes, pois não há possibilidade de se obrigar quem quer que seja a usucapir coletivamente, portanto, os interesses devem ter origem comum, não obstante serem os direitos divisíveis.
Quanto ao litisconsórcio dos moradores da comunidade carente, ou seja, a adesão ou não de certos possuidores à usucapião coletiva, certas diferenças quanto à localização de suas glebas podem interferir sobremaneira no intento dos demais usucapientes.
Sendo o imóvel possível de ser “desmembrado” da totalidade, o litisconsórcio será facultativo, pois a ação coletiva de usucapião não se torna inviável com a não adesão dos mesmos. Entende-se por imóvel desmembrado aquele que seja marginal à área, ou seja, que possa ser individualizado, vez que não está dentre os demais.
Outrossim, caso o imóvel esteja inserido no interior da área que se queria usucapir e o possuidor não concorde com o ingresso da ação coletiva de usucapião, resta esta prejudicada, vez que o litisconsórcio neste caso será necessário, vez que a recusa inviabiliza a demanda dos demais possuidores.
Porém, ressalte-se que existe uma solução jurídica para tal impasse, vez que os possuidores podem ingressar com a ação coletiva em juízo e procederem com a citação do possuidor omisso para integrar o pólo ativo da lide. Caso aceite, a legitimação resta cumprida, caso discorde, caberá ao juiz verificar se a procedência da demanda será oposta às suas conveniências ou se a recusa configura abuso de direito.
Assim, entendendo o juiz ser a recusa justificada, o processo será julgado extinto e os demais possuidores deverão ingressar individualmente, em querendo, com a ação de usucapião especial urbana disposta no artigo 9° do Estatuto da Cidade, porém, caso entenda a não anuência injustificada, o feito prosseguirá com situação semelhante à supressão de outorga de cônjuge.
A participação das associações de moradores, que possuem legitimidade para atuarem como substitutos processuais podem assumir papel relevante na urbanização posterior da área usucapida coletivamente, exigindo providências do Poder Público, promovendo a realização de plantas e memoriais descritivos das glebas usucapidas, das vias públicas e das áreas reservadas.
4.2.2. Dos demais requisitos processuais essenciais
A primeira parte do § 4º do artigo 10 do Estatuto da Cidade, disciplina que o condomínio especial que vem a ser constituído após a sentença que julgou procedente o pedido de usucapião especial coletivo urbano é indivisível e não se extingue. No entanto, sua segunda parte aduz que por deliberação de dois terços dos condôminos poderá extinguir-se, no caso de urbanização posterior à sua constituição.
É cediço que para a efetivação e execução da urbanização relativa a área urbana que foi objeto da usucapião coletiva, deverá haver previsão de recursos no plano diretor dos municípios com mais de vinte mil moradores.
A fim de se obter a posterior urbanização, não se restringirá a regularização fundiária em mera outorga de título de domínio, mas sim em uma efetiva realização de infra-estrutura básica da área usucapida coletivamente. Desta forma, o Poder Público poderá urbanizar a área, ou permitir que os próprios moradores a realizem, desde que observadas normas básicas para que não se comprometa o ordenamento do solo estabelecido no plano diretor do município.
Segundo Benedito Silvério[29]:
as leis estaduais e municipais que venham complementar o Estatuto da Cidade precisam atentar para o fato de que se evitem novas invasões, sobremodo em locais inapropriados e cuja regularização demande gastos extraordinários, a fim de que não desfigurem as cidades e não se prejudiquem aqueles que com muito custo adquirem seus imóveis e observam as posturas.
Quanto às deliberações na administração do condomínio especial, afirma Portilho Mattos[30]:
as decisões tomadas pela maioria dos condôminos obrigam a todos. Aqui, trata-se de maioria simples, ou seja, maioria dos presentes à assembléia. Esta é uma regra básica de qualquer sistema democrático: os que se ausentam devem submeter-se às decisões tomadas por aqueles que participam do processo de tomada de decisão. Da mesma forma, os vencidos em uma decisão tomada de forma democrática devem conformar-se ao decidido.
Tal como acontece na usucapião especial urbana, os possuidores encontram-se amparados pela justiça gratuita e assistência judiciária gratuita, com a isenção do pagamento de custas e honorários advocatícios pelo prazo de 05 anos, nos termos do artigo 12 da LAJ, bem como para o registro da sentença da usucapião coletiva no cartório de registro de imóveis, tendo em vista a hipossuficiência financeira dos posseiros que buscam esta via para a obtenção da propriedade.
O Estatuto da Cidade trouxe outra inovação disposta em seu artigo 13, que é a possibilidade de o possuidor que comprove a existência de todos os requisitos exigidos na Lei, alegar como matéria de defesa esta posse nas ações em que for réu, podendo até mesmo a usucapião especial urbana ser reconhecida e sentenciada nas ações em que o propósito do autor era a retirada do posseiro do imóvel.
Estabelece o artigo 11 do Estatuto da Cidade que “na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo”.
Sendo esta regra de caráter processual, visa estabelecer uma ordem hierárquica de prioridades acerca da usucapião especial coletiva, em detrimento das demais ações relativas ao mesmo terreno.
Leciona Mores Salles[31] que esta norma visa impedir a concomitância da ação de usucapião e das ações petitórias ou possessórias, com “o objetivo evidente de evitar decisões contraditórias, que poderiam decorrer do processamento concomitante ou simultâneo de ambas as ações”.
Por fim, objetivando diminuir a morosidade nos processos de usucapião, a Lei disciplinou em seu artigo 14 que o rito processual a ser observado é o sumário. Esta determinação, nos dizeres de Portilho Mattos[32] “deriva de uma conjunção de facilidades admitidas pelo Estatuto da Cidade”.
Não obstante, também haverá a participação do Ministério Público nesta modalidade de usucapião, exercendo o papel de custos legis, vez que deverá acompanhar todos os atos do processo, nos termos dos artigos 943 e 944 do Código de Processo Civil e artigo 12, §1° do Estatuto da Cidade. Esta participação do Parquet é determinante na concretização da prescrição aquisitiva pela usucapião especial coletiva.
Neste entendimento, ressalta Fiorillo[33]:
O Ministério Público além de participar na ação de usucapião especial urbana intervindo obrigatoriamente (artigo 12, § 1° do Estatuto), tem legitimidade ativa para propositura da usucapião ambiental metaindividual em decorrência do que estabelece o artigo 127, caput da CF.
Diz-se que a sentença da usucapião coletiva é declaratória de direito, e não constitutiva de direito, vez que o juiz declara a existência de requisitos autorizadores da aquisição do domínio pela usucapião através deste decisium.
Assim, para fins de registro do título, o possuidor ou a associação de moradores, caso ocorra a substituição processual, utilizar-se-á desta sentença, levando-a ao cartório de registro de imóveis, vez que é o ato que aperfeiçoa a prescrição aquisitiva do domínio, encerrando a insegurança da posse que outrora existia.
Portanto, a sentença que declara a usucapião especial coletiva urbana reconhece a aquisição da propriedade que foi realizada pelos posseiros, garantindo-se, assim, a segurança jurídica para fins de que possam obter sua regular moradia.
4.3 Críticas à ação de usucapião especial coletiva urbana
A doutrina pátria faz críticas do caráter processual da ação de usucapião especial coletiva urbana, afirmando que o número elevado de pessoas no polo ativo dificulta o regular andamento processual, haja vista a morosidade na citação e intimação de todos os condôminos, confrontantes, réus e terceiros interessados, além da intimação de cônjuges, herdeiros, dentre outros.
Também será dificultoso para o poder público julgar as ações de usucapião especial coletiva, tendo em vista a enorme dificuldade para produção de provas, tanto documentais (comprovação de que o possuidor não é proprietário de outro imóvel urbano ou rural), quanto testemunhais (possuidor recente tente comprovar que reside há mais de cinco anos no terreno), bem como para reunir as centenas de moradores para deliberarem acerca do condomínio especial criado no Estatuto da Cidade.
Por fim, há de se ressaltar que as críticas da doutrina não são unânimes, uma vez que o assunto tratado pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) é bastante polêmico e divergente, já que a manutenção das favelas não é a melhor maneira de se atender ao plano diretor dos municípios, que visam o ordenamento urbano, com o regular parcelamento do solo. Além disso, a população carente vive marginalizada nessas áreas, devido aos riscos à saúde e integridade física, bem como o perigo estrutural dos barracos e da própria comunidade.
Em contrapartida, o Poder Público não pode deixar de atender à enormidade de pessoas carentes existentes no Brasil, impedindo que tenham o constitucional direito à moradia. Além disso, deve ser atendida a função social da propriedade, vez que a usucapião de favelas, é direito coletivo, vide a abrangência de centenas de possuidores carentes que não poderiam, pelos meios próprios, obter uma regular moradia, mas desde que cumpridos todos os requisitos legais e processuais à concessão da sentença declaratória de usucapião especial coletiva urbana.
CONCLUSÃO
O presente estudo objetivou identificar e especificar as hipóteses e requisitos processuais das ações de usucapião de imóveis existentes no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade.
Muito embora tenham sido especificados todas as espécies de usucapião de bens imóveis do Código Civil de 2002, este estudo visou primordialmente discriminar e pesquisar acerca da nova modalidade de usucapião que foi inserida no ordenamento jurídico pátrio, com o advento do Estatuto da Cidade.
Esta modalidade de usucapião é denominada tanto pela lei quanto pela doutrina de usucapião especial coletiva urbana e tem como fator principal, possibilitar à população carente, residente de loteamentos urbanos irregulares e favelas, usucapir coletivamente glebas de terra onde exercem sua posse.
Além da observância do Estatuto, questões de ordem urbanística também foram objeto deste estudo, que demonstrou o direito à moradia, a função social da propriedade e a urbanização dos municípios brasileiros, com o plano diretor.
Portanto, não obstante, ser a lei de caráter fundamentalmente social, uma série de requisitos são exigidos dos carentes para que possam usucapir coletivamente os terrenos em que exercem a composse.
Desta forma, restou demonstrado que as exigências legais devem ser respeitadas e cobradas pelo poder judiciário, mesmo que o andamento do processo se torne moroso, pois deverá ser mantida a segurança jurídica, bem como o contraditório e a ampla defesa, com a citação e intimação regular de condôminos, proprietários, confrontantes, herdeiros e cônjuges.
Outrossim, configurou-se que o entendimento da doutrina pátria não é uníssono, vez que há críticas quanto à processualidade das ações de usucapião especial coletiva urbana.
Além do mais, o Estatuto da Cidade ainda é recente em nosso ordenamento jurídico e tendo em vista a morosidade dos processos de usucapião especial coletiva urbana, não existem muitos julgados, tampouco é uníssona a jurisprudência.
Desta forma, deixo a seguinte indagação, extraída do posicionamento de Moraes Salles (2002, p. 319), acerca da usucapião especial coletiva urbana:
“Demagogia? Espírito tacanho incapaz de perceber a barbaridade cometida com tamanho disparate? Não sabemos!” Sequer sabemos se é realmente um grande disparate, haja vista as inúmeras favelas em nosso País e o direito constitucional de todos à moradia.
REFERÊNCIAS
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[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 4. p. 138.
[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, v.5 – 3 ed. São Paulo: Atlas. 2003. p. 198.
[3] BESSONE, Darcy. Da compra e venda. 3. Rio de Janeiro: Saraiva, 1998. p. 171.
[4] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 3. p. 155.
[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v.1 - 39 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 120/121.
[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 4. p. 155.
[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 4. p. 137.
[8]RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião. 4ª. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1. p. 158.
[9] ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.
[10] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião. 4ª. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1. p. 237.
[11] SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 2. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992. p. 67.
[12] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 39ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 124.
[13] RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: lei. nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 255.
[14] SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 2ª. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992. p. 279.
[15] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 4. p. 173.
[16] DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 54.
[17] MATTOS, Liana Portilho. (org.) Estatuto da Cidade Comentado. Lei 10.257 de 10 de junho de 2001. Belo Horizonte. Mandamentos. 2001. p. 152.
[18] SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 2. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 303.
[19] MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (Coord.). Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 96.
[20] LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 300/301.
[21]DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo de conhecimento. 5ª ed. Salvador: Juspvdium, 2010. v. 1. p. 261.
[22] idem. p. 263
[23] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007. v.2. p. 321.
[24] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 2. p. 1.119/1.137.
[25] MATTOS, Liana Portilho (Org). Estatuto da Cidade Comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. P. 156.
[26] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 2. p . 993.
[27] MATTOS, Liana Portilho (Org). Estatuto da Cidade Comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 158.
[28] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 2. p. 998.
[29] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 2. p. 1.009.
[30] MATTOS, Liana Portilho (Org). Estatuto da Cidade Comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 161.
[31] SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 2. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. P. 329.
[32] MATTOS, Liana Portilho. (org.) Estatuto da Cidade Comentado. Lei 10.257 de 10 de junho de 2001. Belo Horizonte. Mandamentos. 2001. P. 165.
[33] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado: lei 10.257/2001: lei do meio ambiente artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Especialista em direito processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Julian Gonçalves da. As modalidades de usucapião e seus requisitos processuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2012, 09:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Monografias-TCC-Teses-E-Book/28117/as-modalidades-de-usucapiao-e-seus-requisitos-processuais. Acesso em: 23 dez 2024.
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