PARECER/CVM/PJU/n.º 004/2003.
Em 10 de março de 2003
REFERÊNCIA: proc. nº (...), em trâmite perante a 4ª Vara Cível do Distrito Federal.
INTERESSADOS: (...)
ASSUNTO: Responsabilidade civil decorrente de venda não autorizada de ações.
EMENTA: Venda não autorizada de ações. Responsabilidade da companhia emissora e da instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais, a teor dos arts. 34, § 3º e 103, caput, ambos da Lei nº 6.404/76.
CONSULTA:
Trata-se de questão consistente na responsabilidade civil decorrente da venda não autorizada de ações do Banco (...) de propriedade de sociedade da qual são os autores sucessores, processada por meio de procuração falsa.
PARECER:
O cerne da questão reside em decidir quem é responsável pela reparação do dano causado aos autores, uma vez que o prejuízo por eles sofrido é fato incontroverso, não contestado pelo réu Banco (...) ou pela litisdenunciada, (...) Corretora de Valores e Câmbio S/A.
Inicialmente, é preciso tecer algumas considerações no que se refere ao sistema de emissão de ações escriturais, custódia e negociação dessas ações.
O sistema jurídico vigente no Brasil prevê a existência apenas de ações nominativas (art. 20 da Lei nº 6.404/76). Essas ações podem ter registro nos livros da própria companhia emissora ou registro em instituição financeira depositária, responsável por essa escrituração. No primeiro caso, as ações são nominativas registradas; no segundo, são as ações nominativas escriturais, mais conhecidas como escriturais. Não há no Brasil, portanto, ações ao portador, assim como não tem relevância jurídica a existência dos certificados ou cautelas representativas de ações nominativas.
A Lei nº 6.404/76 utiliza de forma ambígua a expressão instituição depositária, referindo-se tanto à instituição financeira responsável pelo serviço de registro das ações escriturais, como à instituição financeira responsável pela custódia dessas ações. Confira-se o inteiro teor do art. 34, que trata das ações escriturais, e o art. 41, que trata da custódia das ações.
Não obstante a dupla utilização da expressão instituição depositária, a Lei claramente trata o serviço de registro de ações escriturais como situação jurídica distinta da custódia de ações.
Com efeito, a custódia das ações (art. 41) pode estar com a instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais (art. 34). Nessa situação as ações não podem ser negociadas na Bolsa. Para que exista a negociação na Bolsa, é preciso que a custódia da ação seja transferida ou à própria Bolsa de Valores (caso dos autos) ou a instituição depositária responsável pelo serviço de liqüidação das operações realizadas na Bolsa (atualmente é a CBLC – Companhia Brasileira de Liqüidação e Custódia, para as operações realizadas na BOVESPA).
Ocorrendo essa situação, a instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais de uma companhia qualquer continua responsável pela manutenção dos registros de acionistas dessas ações. Apenas perde a custódia dessas ações, decorrente de ordem do acionista que as deseja negociar na Bolsa, que passa a ser de outra entidade. Costuma-se dizer que as ações estão "bloqueadas", pois a instituição responsável pela escrituração dos acionistas não detém a custódia das ações que estão sendo negociadas na Bolsa.
Se a negociação é privada, isto é, se não ocorre por meio da Bolsa de Valores ou Mercado de Balcão (organizado ou desorganizado), a situação é inversa: é preciso que a custódia das ações esteja com a instituição financeira responsável pelo serviço de escrituração das ações, para que possa alterar em seus registros a transferência da propriedade do acionista vendedor para o comprador, mediante ordem nesse sentido.
No caso concreto, o Banco (...) é a companhia emitente das ações, assim como é também a instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais. O Banco (...) foi também a instituição custodiante das ações, até o momento em que recebeu a OT1, cuja cópia consta dos autos, quando deixou de ser custodiante.
Não é acaciano ressaltar que não é relevante para o caso concreto a discussão existente na doutrina do direito do mercado de capitais no tocante à natureza jurídica da custódia de valores mobiliários, se consiste em depósito regular ou irregular, por ser questão impertinente, uma vez que a Lei nº 6.404/76 tem comandos expressos no tocante a responsabilidade civil decorrente de falhas no serviço de emissão e registro de ações.
Enquanto companhia emitente das ações, o Banco (...) é responsável pela reposição acionária dos autores, nos termos do art. 34, § 3º, da Lei nº 6.404/76, que assim dispõe:
"Art. 34. O estatuto da companhia pode autorizar ou estabelecer que todas as ações da companhia, ou uma ou mais classes delas, sejam mantidas em contas de depósito, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem emissão de certificados.
(...)
§ 3o A companhia responde pelas perdas e danos causados aos interessados por erros ou irregularidades no serviço de ações escriturais, sem prejuízo do eventual direito de regresso contra a instituição depositária. "
A toda evidência, a expressão erros ou irregularidades constante do texto de lei tem alcance amplo, no sentido de que qualquer prejuízo decorrente do serviço de escrituração das ações pela instituição depositária não poderá ser imputado ao investidor. Com efeito, a instituição depositária é contratada pela companhia emitente, razão pela qual qualquer prejuízo causado por ato da instituição depositária – ainda que ausente dolo ou culpa – não poderia atingir o investidor, que é terceiro na relação jurídica existente entre a companhia emitente e a instituição depositária.
O caso concreto tem a particularidade de que a instituição depositária, responsável pelo serviço de ações escriturais é o próprio Banco (...). Nesse sentido, o art. 103, caput, da Lei nº 6.404/76, tem disposição que importa responsabilidade do Banco (...), agora enquanto instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais, em face do prejuízo causado aos investidores:
"Art. 103. Cabe à companhia verificar a regularidade das transferências e da constituição de direitos ou ônus sobre os valores mobiliários de sua emissão; nos casos dos artigos 27 e 34, essa atribuição compete, respectivamente, ao agente emissor de certificados e à instituição financeira depositária das ações escriturais."
Como se vê, a instituição financeira depositária das ações escriturais é responsável sim pela regularidade das transferências dos valores mobiliários.
Não fosse claro o texto de Lei, o Superior Tribunal de Justiça, órgão constitucionalmente responsável por dar a palavra final no tocante à interpretação da legislação federal, afirmou a responsabilidade do Banco com fundamento no art. 103 da Lei nº 6.404/76, no julgamento do Recurso Especial nº (...), relativo a caso concreto que envolvia justamente o Banco (...) e a alienação das ações com a utilização de procurações falsas. Consta do voto condutor desse precedente o seguinte trecho:
"Ao efetuar o bloqueio das ações, requisito indispensável para a operação, o Banco examinou o instrumento do mandato, como era do seu dever, na forma do que dispõe o art. 103 da Lei 6.404/76:"
Portanto, de acordo com a orientação trilhada pela mais alta corte do país em matéria de interpretação de lei federal, não há como subtrair do Banco (...), na qualidade de instituição financeira responsável pelo serviço de ações escriturais, a responsabilidade pelo dano sofrido pelos investidores.
Não poderia ser de outro modo, uma vez que o sistema jurídico da Lei nº 6.404/76 contém um arcabouço jurídico protetivo do investidor, em última análise figura primordial no desenvolvimento do mercado de capitais e da própria economia do país. Interpretação distinta, além de violar o espírito da lei, faria do investimento no mercado de capitais situação de risco jurídico incompatível com a necessidade de segurança jurídica que esse mercado deve ter para atingir seus objetivos. Com efeito, o único risco que o investidor deve correr é o risco econômico da operação, que consistir em aplicar seu capital em companhia viável ou inviável sob aspecto de produção e circulação de riquezas.
Por fim, impende afirmar de pronto a responsabilidade da litisdenunciada, (...), em face do Banco (...), uma vez que resta incontroverso que a ordem para a venda das ações não partiu dos autores, mas sim decorrente de uma procuração forjada, o que em nada prejudica ou interfere, evidentemente, na responsabilidade do Banco (...) perante os autores.
É o parecer submetido à apreciação.
Bruno Mattos e Silva
Procurador Federal
Matr. CVM nº 7001102 – OAB/DF nº 15.688
Advogado em Brasília e Consultor Legislativo do Senado Federal. Autor dos livros "Compra de Imóveis" (Ed. Atlas), "Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário" (Ed. Forense) e "Direito de Empresa (Ed. Atlas). Site: www.brunosilva.adv.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Bruno Mattos e. Venda fraudulenta de ações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2008, 07:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Peças Jurídicas/14951/venda-fraudulenta-de-acoes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Conteúdo Jurídico
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