Cuida-se de agravo de instrumento interposto pela dona-de-casa ZÉLIA MANOEL DEMÉTRIO contra decisão prolatada pelo juízo da 1ª Vara da comarca de São Francisco do Sul, que nos autos da Execução de Sentença nº 061.03.000623-7/001 ajuizada pela professora aposentada ERNESTINA MARIA S. THIAGO PEREIRA, assim declarou:
"cuida-se de processo em fase de cumprimento de sentença, em que se pretende o reconhecimento de fraude à execução, em razão da doação de um imóvel, após a citação, sem que restassem outros bens capazes de garantir o crédito.
Intimada, a executada argumentou que o imóvel foi adquirido com dinheiro enviado por sua filha, que trabalha na Espanha, e transferido para seu outro filho. Outrossim, teceu considerações sobre os danos verificados no imóvel da requerente.
A certidão de f. 162 comprova que, em 06/06/05, a requerida transferiu o imóvel ao filho, por doação. Esta alienação ocorreu após o trânsito em julgado da sentença proferida na fase de conhecimento e após ter tomado conhecimento da tramitação da execução do julgado (conforme se conclui da petição de nomeação de bens à penhora – f. 105). Ou seja, operou-se após a citação.
De outra parte, a certidão de f. 174 comprova que a executada não possui outros bens passíveis de penhora, o que significa que a alienação a reduziu à insolvência.
A alegação de que o registro em nome do filho somente formalizou uma situação antiga, pois o bem há muito deveria ter sido registrado em nome do filho, além de não demonstrada, não impede o reconhecimento da fraude à execução, haja vista que, sabidamente, se a alienação ocorreu após a citação e reduziu o devedor à insolvência, "há presunção peremptória de fraude e, por isso, em execução movida contra o alienante, a penhora pode recair sobre os bens transmitidos, como se não tivesse havido alienação" (RTJ 94/918).
Por fim, são irrelevantes os argumentos referentes aos danos no imóvel da credora, pois a sentença transitou em julgado há muito tempo, formando coisa julgada. Tais questões não podem mais ser discutidas.
Com estas considerações, declaro ineficaz em relação à credora a alienação de f. 162.
Expeça-se o mandado de penhora, avaliação e intimação.
Intimem-se" (fls. 285/286).
Malcontente, a agravante sustenta, em síntese, que:
"o imóvel em questão foi adquirido com numerário enviado pela filha da Agravante ALEXANDRA DEMÉTRIO WOLFF, que exerce atividade remunerada na Espanha, conforme faz prova os documentos já anexos, para seu irmão HÉLIO WOLFF JÚNIOR, e, portanto, para este deveria ser transferido, não ocorrendo na época, somente posteriormente" (fl. 06).
Afirma, mais adiante, que "o MM. Juiz de Direito nem ao menos oportunizou a Agravante, através de audiência para colheita de prova testemunhal, a comprovação de suas alegações na demanda" (fl. 07), motivo pelo qual pugna pela concessão da tutela recursal, com a imediata atribuição de efeito ativo e posterior provimento do reclamo, revogando-se a decisão objurgada (fls. 02/11).
Devidamente preparado (fl. 412) e tempestivo (fls. 02 e 287), além das condições de admissibilidade, o presente recurso reúne os requisitos de regularidade formal exigidos pela lei processual, destacando-se a juntada de cópia da decisão agravada às fls. 285/286.
É o relato do essencial.
Passo à fundamentação, sobressaindo, já num primeiro momento, que inexiste qualquer documento comprovando que o imóvel objeto da constrição judicial tenha sido adquirido com os R$ 3.307,21 (três mil, trezentos e sete reais e vinte e um centavos) em 15/03/1999 remetidos do exterior por ALEXANDRA DEMÉTRIO WOLFF (fl. 238).
A bem da verdade, segundo se extrai do documento de fl. 22, com a transcrição no registro imobiliário a agravante adquiriu o imóvel em 17/03/2000, apresentando ao registrador Escritura Pública de Compra e Venda lavrada em 02/03/2000.
Esse curioso interregno de aproximadamente um ano, não foi sequer mencionado pela embargante que, de forma subjetiva, afirmou que em verdade o imóvel teria sido destinado por sua filha ALEXANDRA ao seu também filho HÉLIO. Isto muito embora tenha figurado ela própria – mãe de ambos – como titular do respectivo domínio junto ao Cartório do Registro de Imóveis da comarca de São Francisco do Sul.
Sabe-se que segundo o disposto no art. 1.227 da Lei nº 10.406/02, `os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código´.
Evidenciando sedimentado entendimento contrário a pretensão da agravante, o STJ tem reiteradamente decidido que:
"em face do sistema legal em vigor, a propriedade de imóvel se adquiriu pela transcrição do título aquisitivo no registro imobiliário, presumindo-se pertencer o direito real à pessoa em cujo nome esteja feita a transcrição (a matrícula)" (STJ. 1ª Turma. Resp. nº 153828-SP. Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO. v. u. Julgado em 1º/12/1998).
Segundo o ônus atribuído pelo art. 333, inc. I, do CPC, a agravante deveria ter amparado suas assertivas em substrato probatório eficiente, ceifando o caráter subjetivo de que estão revestidas. Sem isso, não há como acolher-se a pretensão, sob pena de se afrontar injustamente o direito imediato da exequente/agravada à satisfação de seu crédito.
Acerca do ônus da prova leciona OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, em clássica conclusão, que:
"o autor só poderá dar consistência objetiva à sua pretensão em juízo fazendo afirmações sobre a existência de fatos e a pertinência deles a uma relação jurídica. Enquanto ele afirma, deve naturalmente provar as afirmações que faz. Assim também o réu se, ao defender-se, tiver necessidade de fazer afirmações em sentido contrário. O réu poderá, certamente, limitar-se a negar os fatos afirmados pelo autor e esperar que este tente demonstrar a sua veracidade. Se o réu limitar-se a simples negativa, sem afirmar a existência de outros fatos incompatíveis com aqueles afirmados pelo autor, nenhum ônus de prova lhe gravará; se, todavia, também ele afirma fatos tendentes a invalidar os fatos afirmados pelo autor, caber-lhe-á o ônus de provar os fatos afirmados" (`in´ Teoria geral do processo. 3. ed. RT, 2002. p. 300).
No mesmo rumo o magnânimo HUMBERTO THEODORO JÚNIOR salienta que:
"não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados e do qual depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisdicional. Isto porque, segundo a máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente" (`in´ Curso de direito processual civil. 26. ed. v. 1. Forense, 1999. p. 423).
Portanto, não logrando êxito em comprovar que o imóvel penhorado efetivamente pertence (ia) a seu filho HÉLIO WOLFF JÚNIOR, muito menos que tenha sido adquirido com recursos disponibilizados por ALEXANDRA DEMÉTRIO WOLFF, há que se rechaçar por completo a teratológica pretensão recursal.
À guisa de esclarecimento convém salientar que o aludido oferecimento à penhora de uma lava-roupas no valor de R$ 1.069,00 (fls. 118/119), além de incapaz de garantir o juízo – uma vez que a dívida, em 1º/02/2005, já alçava à monta de R$ 11.410,91 (onze mil, quatrocentos e dez reais e noventa e um centavos - fl. 132) – vai de encontro a certidão negativa de fl. 221, o que legitima a adequada atuação jurisdicional de primeiro grau.
Aliás, ao decretar a fraude à execução, o juízo a quo não estava obrigado a observar o contraditório, circunstância afeita ao instituto da fraude contra credores, hipótese jurídica bastante diversa da espécie...
Neste sentido, entendo imprescindível a transcrição de elucidativo excerto do acórdão de julgamento do recurso de Agravo de Instrumento nº 2006.047638-6:
"mister traçar, ainda que superficialmente, as diferenças entre dois institutos jurídicos: a fraude contra credores e a fraude à execução.
Sobre a primeira, assim lecionam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:
"É vício social do negócio jurídico. A fraude pauliana ocorre quando houver ato de liberalidade, alienação ou oneração de bens ou direitos, capaz de levar o devedor à insolvência, desde que: a) o credor seja quirografário; b) o crédito seja anterior ao ato da alienação ou oneração (anterioridade de crédito); c) tenha havido dano ao direito do credor (eventus damni); d) tenha havido ciência da conseqüência do ato (scientia fraudis) ou consenso entre o devedor e o adquirente (consilium fraudis) (CC 158 a 165; CC/1916 106 a 113) (...) No sistema do direito positivo brasileiro vigente, a fraude contra credores enseja a anulação do mencionado ato (CC 171, II; CC/1916 147 II) (...)" (in: Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 7ª ed. São Paulo: Editora RT, 2003. p. 987).
Dos mesmo autores, ainda, as seguintes linhas sobre fraude à execução:
"É ato atentatório à dignidade e à administração da justiça, muito mais grave do que a fraude pauliana. Na fraude contra credores o prejudicado direto é o credor; na fraude de execução, o prejudicado imediato é o Estado-juiz. A existência de fraude de execução enseja a declaração, pura e simples, da ineficácia do negócio jurídico fraudulento, em face da execução (Araken, Coment. CPC, VI, n. 98, p. 225)".
Vê-se, pois, que as duas figuras são amplamente distintas, embora busquem garantir o recebimento do crédito. A fraude a credores é ato anulável, a atingir diretamente o credor quirografário, o qual deixa de ter qualquer garantia do recebimento de seu crédito, ante o estado de insolvência a que reduzido o devedor. Para seu reconhecimento, é imprescindível a utilização da ação pauliana, sendo dispensável a existência de ação em que o ocupante do pólo ativo da obrigação busque o reconhecimento ou a satisfação do crédito a que faça jus. Almeja-se, neste tipo de ação, desconstituir o negócio jurídico celebrado, fazendo retornar ao patrimônio do devedor o bem (ou bens) objeto da alienação fraudulenta.
Diferentemente se põe a fraude contra execução. Nesta, o prejudicado direto é o Estado-juiz, que tem frustrada sua atividade de realizar, no plano material, o direito reconhecido ao credor. Imprescindível, por isso, a existência de citação válida em ação que busque a satisfação do direito do credor, não importando que se esteja a falar em processo de conhecimento, execução ou cautelar. Aqui, ainda, o reconhecimento da fraude atinge o plano da eficácia, e não o da validade, como na fraude contra credores. Deste modo, o negócio não é desconstituído, mas, apenas, tornado ineficaz em relação ao processo executivo.
Sobre o tema, ainda, as palavras do eminente Ministro Luiz Fux:
"Ora, se é verdade que a alienação de bens pode frustrar credores que sequer ajuizaram as suas ações em face dos devedores, com muito mais razão ressalta lesiva a venda de bens quando pendente processo cuja satisfatividade do resultado depende da potência patrimonial do devedor.
Desta sorte, comprometido que está com os fins do processo o patrimônio genérico do devedor, qualquer que seja a forma de alienação do mesmo implica frustrar-se o processo satisfativo, considerando-se a venda, em 'fraude de execução'" (in: Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 50-51).
Vê-se, então, que, ao contrário do que afirmam os recorrentes, não é necessário, para que se reconheça a fraude à execução, a propositura da ação pauliana, restrita esta à decretação da fraude contra credores e conseqüente anulação do negócio jurídico. Aquela pode ser reconhecida - até mesmo de ofício - nos autos da execução, sem que seja imprescindível permitir ao adquirente, de boa ou de má-fé, qualquer tipo de defesa.
Válido ressaltar, ainda, que a alegação de que não foi proporcionado ao terceiro a ampla defesa e o contraditório importa em violação a um dos princípios mais básicos do processo civil, o de que a ninguém é dado pleitear direito alheio em nome próprio (CPC, art. 3º). Não podem, os devedores, defender o interesse do terceiro, visto que a suposta violação seria a direito desse, e não daqueles. O legitimado seria, pois, apenas o adquirente, mas nunca os agravantes.
Finalizando o assunto, imperioso registrar que o adquirente pode propor embargos de terceiro, acaso entenda possível e necessário defender sua posse contra a decretação de fraude à execução. Esta, aliás, poderá ser argüida como matéria de defesa em sede de embargos, ao contrário da fraude contra credores, cuja alegação é vedada (STJ, súmula 195).
Por sua natureza de resguardo à própria jurisdição, a fraude contra a execução prescinde da existência do acerto de vontades fraudulento (concilium fraudis), ou mesmo de dolo do devedor. Basta, apenas, que o devedor caia em insolvência, impossibilitando ou dificultando o recebimento do crédito, para que seja decretada.
Neste sentido, ainda, a lição de Luiz Fux:
"(...) pouco importa o elemento volitivo-subjetivo no sentido de que a venda que causa o malogro da execução tenha sido praticada com esse fim específico. A fraude, ao revés, constata-se objetivamente, sem indagar a intenção dos partícipes do negócio jurídico. Basta que na prática tenha havido frustração da execução em razão da alienação quando pendia qualquer processo, para que se considere fraudulenta a alienação ou oneração de bens" (op. cit. p. 52).
Esta frustração decorre da inexistência de patrimônio suficiente à satisfação do crédito e é presumida, ainda que de maneira relativa, em face da alienação ou oneração do bem ou bens. Deste modo, incumbe ao devedor comprovar que os bens que lhe restam são bastantes à satisfação do crédito, do que não existe prova nos presentes autos.
Neste sentido, colhe-se das lições de Araken de Assis:
"A cognição judicial, no exame do elemento insolvência para fins de fraude contra o processo executivo, se torna sumária, portanto, e é realizada no próprio processo em que a denúncia do credor se materializa. Exigir que o credor prove a inexistência de bens penhoráveis constitui exagero flagrante, provocando as dificuldades inerente à prova negativa, a despeito de lhe tocar o ônus da prova. Cabe invocar a presunção de insolvência, decorrente da falta de bens livres para nomear à penhora (art. 750, I). Ao alegar existirem bens livres, o ônus toca ao executado (art. 600, IV), principalmente quanto à titularidade de bens móveis, ou imóveis situados fora do juízo da execução" (in: Manual do Processo de Execução. 6ª ed. São Paulo: Editora RT, 2000. p. 394).
Adotando referido entendimento, os seguintes precedentes do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL. FRAUDE À EXECUÇÃO. ART. 593, II, DO CPC. INOCORRÊNCIA.
Para que se tenha por fraude à execução a alienação de bens, de que trata o inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil, é necessária a presença concomitante dos seguintes elementos: (...) c) que a alienação ou a oneração dos bens seja capaz de reduzir o devedor à insolvência, militando em favor do exeqüente a presunção juris tantum (...) (Resp 235201/SP, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 25.06.2002).
Ainda:
"Processual Civil. Fraude de execução. Insolvência. Ônus da prova.
Na fraude da execução não é do credor o ônus da prova do fato negativo da insolvência em face da alienação de bens após o ajuizamento da demanda.
O encargo da prova de solvabilidade é do demandado" (Resp 13.988/ES, rel. Min. Claudio Santos, julg. 04.05.1993).
Assim, estando presentes os requisitos para decretação da fraude à execução, e não havendo que se cogitar de utilização da ação pauliana para tal intento, nada há que se alterar na decisão recorrida.
Diante do exposto, vota-se no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento".
Ainda à luz do judicioso excerto, convém destacar que os argumentos manejados pela agravante atentam contra o disposto no art. 3º do CPC, o que inviabiliza, em definitivo, o pedido recursal.
Portanto, em razão da absoluta ausência de verossimilhança da teratológica pretensão, a rigor do disposto nos arts. 527, inc. I, e 557, do CPC, conheço do recurso e nego-lhe provimento.
Por ser manifestamente infundado, vai a agravante condenada ao pagamento de multa no equivalente a 10% (dez por cento) do `quantum´ exequendo, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada à comprovação do depósito do respectivo valor (art. 557, § 2º, do CPC).
Intimem-se.
Comunique-se.
Florianópolis, 22 de abril de 2009.
Luiz Fernando Boller
RELATOR
Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (SC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BOLLER, Luiz Fernando. Declaração de fraude à execução, diz TJ, dispensa contraditório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2009, 07:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Peças Jurídicas/17307/declaracao-de-fraude-a-execucao-diz-tj-dispensa-contraditorio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Conteúdo Jurídico
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