CONSULTA
Consulente: empresa...............
Assunto: Compensação de créditos vencidos representados por precatóriosestaduais de natureza alimentícia com os débitos do ICMS à luz do § 2º, do art. 78, do ADCT.
A consulente, por intermédio do Dr. Marcelo Polachini Pereira, solicita nosso parecer sobre a matéria em epígrafe e formula os seguintes quesitos:
1 - Ao teor do art. 78, § 2º do ADCT é possível conferir aos créditos de natureza alimentar o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora? Em caso positivo, pode o cessionário exercer o direito à compensação? Pede-se a fundamentação das respostas.
2- Quais as possibilidades de derrota em eventual discussão judicial envolvendo a compensação dos créditos oriundos de precatórios alimentícios estaduais com os débitos do ICMS?
PARECER
A matéria objeto de consulta envolve duas questões de natureza constitucional em torno da interpretação do § 2º do art. 78 do ADCT, que assim prescreve:
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.
...........................................................................
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidados até o final do exercício a que se refere, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.”
(Disposições introduzidas pela EC nº 30, de 13-9-2000)
A primeira questão resume-se em saber se o poder liberatório a que alude o citado § 2º tem aplicabilidade imediata, ou se a sua eficácia depende de regulamentação no nível de legislação ordinária.
A segunda questão consiste em saber se, ao teor do § 2º, do art. 78 do ADCT, os créditos oriundos de precatórios alimentares podem ser compensados com débitos tributários da entidade política devedora, ou seja, se esses precatórios possuem poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.
Examinemos separadamente essas duas questões.
Da auto-aplicabilidade do § 2º do art. 78 do ADCT
Alguns julgados proclamaram a necessidade de regulamentação legal do § 2º do art. 78 do ADCT pela entidade política competente ao teor do art. 170 do CTN, que faculta ao legislador ordinário de cada ente político tributante autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.
Por isso, a compensação era reconhecida judicialmente apenas nos Estados-membros onde a legislação respectiva contemplava a figura de compensação, que é uma das formas de extinção do crédito tributário (art. 156, II do CTN).
Entretanto, essa tese mostra-se equivocada. O § 2º do art. 78 do ADCT não se confunde com a compensação do art. 170 do CTN que se opera apenas entre tributos. A norma constitucional autoriza o sujeito passivo do tributo extinguir o crédito tributário mediante o uso de precatório inadimplido pela entidade política devedora. Por isso, a respeito já assinalamos: “Não se trata de compensação que se opera entre tributos, mas de dação em pagamento. O contribuinte devedor de tributo e ao mesmo tempo credor da Fazenda poderá dar em pagamento seu direito de crédito, decorrente de parcela de precatório descumprido para extinguir o crédito tributário”[1].
Entretanto, para ficar em harmonia com a expressão consagrada pela doutrina e pela jurisprudência utilizaremos a palavra “compensação” para designar a forma de extinção do crédito tributário prevista no dispositivo constitucional sob comento.
Realmente, o poder liberatório implica a faculdade de o credor por precatório descumprido, ou o seu cessionário dar em pagamento o valor por ele representado para extinguir o crédito tributário da entidade devedora.
O preceito constitucional não se subordina ao dispositivo do Código Tributário Nacional e nem deve ser interpretado com a violação do princípio da hierarquia vertical das leis.
O § 2º, do art. 78, do ADCT configura uma norma constitucional enunciadora de direitos: de um lado, assegura à Fazenda Pública o direito de pagamento parcelado dos precatórios; de outro lado, garante o poder liberatório do pagamento de tributos da Fazenda Pública devedora nas condições aí previstas.
Nada há que dependa da intervenção do legislador ordinário para que o credor por precatório inadimplido possa fruir o direito que lhe é assegurado. O legislador constituinte não deixou qualquer margem de liberdade ao legislador ordinário para restringir ou introduzir novos requisitos para a deflagração do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora que não seja o inadimplemento das parcelas anuais vencidas.
A norma sob exame insere-se dentre aquelas de aplicação imediata que no dizer de Celso Ribeiro Bastos “são as normas ‘cheias’, que não demandam complementação, e, muito pelo contrário, se forem complementadas, deverão sê-lo com muita cautela, já que sua estrutura basta a si mesma, e qualquer regulamentação posterior poderá extrapolar os limites da constitucionalidade”[2].
O preceito do § 2º possui, pois, densidade normativa e autonomia suficientes para deflagrar os efeitos nele previstos. Subordinar a sua eficácia à ação dos legisladores ordinários de 27 Estados-membros e de mais de 5.500 Municípios é o mesmo que esvaziar o conteúdo e alcance daquela norma constitucional, conferindo-lhe natureza meramente dispositiva no que diz respeito ao cidadão-contribuinte.
Ademais, o comando normativo do § 2º, do art. 78 do ADCT configura direito fundamental do cidadão-contribuinte enquanto subsistir situação normatizada pela disposição transitória. Por tal razão ele tem aplicação imediata ao teor do § 1º[3], do art. 5º da CF.
A respeito leciona José Afonso da Silva:
“Finalmente, a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais.
.........................................................................
Sua existência só por si, contudo, estabelece uma ordem aos aplicadores da Constituição no sentido de que o princípio é o da eficácia plena e a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos, de tal sorte que só em situação de absoluta impossibilidade se há de decidir pela necessidade de normatividade ulterior de aplicação”[4].
Exatamente nesse sentido vem decidindo os tribunais do País. O STF já decidiu pela “compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas a que se refere o art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2000” (Adin nº 2.851-1-RO, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 3-12-2004).
O Superior Tribunal de Justiça, que inicialmente vinha sustentando a tese de que o comando contido no § 2º, art. 78 , do ADCT não é auto- aplicável, por exigir a compensação a previsão legal na forma do art. 170 do CTN, vem alterando essa orientação como se pode constatar nos autos da Medida Cautelar nº 13.915 aparelhada incidentalmente no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 26.500-GO, Rel. Min. Teori Albino Zawascki.
O Min. Relator concedeu a liminar, em antecipação de tutela recursal, para deferir o pedido de compensação do ICMS até o julgamento do recurso conforme decisão de 3-3-2008, publicada no DJ de 7-3-2008.
A referida liminar foi confirmada no julgamento do ROMS nº 26.500-GO, provido por unanimidade, onde ficou assinalado no item 3 da ementa do V. Acórdão:
“3. A revogação, pela Lei Estadual nº 15.316/2005, da legislação local que regulamentava a compensação de débito tributário com créditos decorrentes de precatórios judiciais (Lei Estadual nº 13.646/2000) não pode servir de obstáculo à compensação pleiteada com base no art. 78, § 2º, do ADCT, referente as parcelas de precatório já vencidas e não pagas, sob pena de negar a força normativa do referido preceito constitucional” (ROMS nº 26.500-GO, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 4.6.2009, DJ de 15-6-2009).
Finalizando, pode-se afirmar que não há mais divergência jurisprudencial quanto à auto-aplicabilidade do comando contido no § 2º, do art. 78, do ADCT.
Do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade
política inadimplente de precatório de natureza alimentícia
Trata-se de examinar se a norma do § 2º, do art. 78, do ADCT tem aplicabilidade em relação a precatórios de natureza alimentar inadimplidos pela entidade política devedora.
Havia uma tendência que aos poucos está sendo afastada, no sentido de interpretar isoladamente o § 2º, do art. 78, do ADCT por ser uma norma de natureza excepcional estabelecendo um regime específico de pagamento, em até dez anos, de precatórios pendentes na data da promulgação da EC nº 30/2000, bem como daqueles resultantes de ações judiciais propostas até 31 de dezembro de 1999.
Por essa interpretação isolada e literal excluem-se do benefício do poder liberatório do pagamento de tributos os precatórios de natureza alimentar, porque não atingidos pela moratória de dez anos estatuída pela EC nº 30/2000.
Entendemos que essa interpretação simplista e isolada do texto constitucional acaba por afrontar a vontade da Constituição Federal que é a de conferir prioridade absoluta aos precatórios de natureza alimentícia por razões até mesmo óbvias. Não há que se descartar, também, a interpretação à luz do elemento histórico que ajudará a entender a razão pela qual o constituinte derivado deixou de incluir expressamente os precatórios alimentícios na esfera do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora.
Assim, impõe-se uma interpretação sistemática dos textos constitucionais – os do art. 100 e parágrafos da Constituição e os do art. 78 e § 2º do ADCT – buscando a harmonia necessária de sorte a não conferir aos precatórios não-alimentares privilégios maiores do que os conferidos aos de natureza alimentar, ainda que de forma transitória. Examinemos esses dispositivos.
Dispõe o art. 100 da CF:
“Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.
§ 2º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito”.
O privilégio de que gozam os créditos de natureza alimentícia deriva de sua insubmissão à ordem cronológica de apresentação de precatórios, na dicção expressa do texto constitucional “à exceção dos créditos de natureza alimentícia”, significando pagamento imediato. Os créditos de outra natureza sujeitam-se à inserção na ordem cronológica com a inclusão das verbas requisitadas até o dia 1º de julho de cada ano no orçamento do exercício seguinte (§ 1º) a fim de serem pagos até o final do exercício mediante utilização de verba consignada diretamente ao Poder Judiciário (§ 2º).
Portanto, há um interregno de seis meses a dezoito meses entre a data da requisição (até 1º de julho) e o prazo final para o pagamento da quantia requisitada. Esse interregno é afastado, com solar clareza, pelo texto constitucional em se tratando de condenação judicial referente à verba de natureza alimentar.
É verdade que, na prática, evoluiu-se para a formação de fila autônoma de precatórios de natureza alimentícia dada a impossibilidade financeira de pagar a todos os credores da espécie em um único momento. Diga-se de passagem que essa situação é fruto, em sua maior parte, do descumprimento de leis salariais pelo poder público, em um primeiro momento e, ao depois, da resistência oferecida pelo mesmo poder público no cumprimento da ordem judicial, após o trânsito em julgado da decisão condenatória.
O certo é que, quando o legislador constituinte derivado promulgou a EC nº 30, de 13-9-2000, ele partiu do pressuposto de que os créditos de natureza alimentar são privilegiados impondo-se seu pagamento imediato, independentemente da observância daquele interregno de seis a dezoito meses acima mencionado. Daí a razão de sua não inclusão no regime excepcional de pagamentos em até dez parcelas anuais.
E mais, na época não havia, ainda, uma posição definitiva da Corte Suprema quanto à insubmissão de créditos alimentícios à ordem cronológica específica, o que só veio a acontecer com o advento da Súmula nº 655 publicada em 13-10-2003:
“Súmula 655 - A exceção prevista no art. 100, “caput”, da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”.
Repita-se, por ocasião da promulgação da EC nº 30/2000 o entendimento era no sentido de pagamento imediato do crédito alimentar com a dispensa de ordem cronológica, como está expresso no caput do art. 100 da CF. Dessa forma, a sua previsão expressa no § 2º, do art. 78, do ADCT implicaria consagração do entendimento de que os créditos de natureza alimentícia devem ser incluídos na ordem cronológica, antecipando-se à decisão da Corte Suprema que só veio pacificar definitivamente a matéria com o advento da Súmula 655 em 13-10-2003, editada pelo STF na condição de intérprete máximo da Constituição Federal.
Contudo, o fato de os créditos de natureza alimentícia terem ficado à salvo de parcelamentos (porque devem ser satisfeitos imediatamente) não pode significar que esses créditos, representados por precatórios privilegiados não têm prazo de pagamento e não há sanções nas hipóteses de seu inadimplemento, como pretendem os governantes que, como é público e notório, partiram para o congelamento da fila de precatórios alimentícios. Não pagam e quando pagam, o fazem de forma esporádica dando preferência absoluta ao pagamento de parcelas dos precatórios não alimentares, porque expressamente munidos de mecanismos garantidores de seu cumprimento. De fato, na hipótese de inadimplemento, esses precatórios não-alimentares ensejam o seqüestro e a deflagração do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.
Não se pode interpretar o texto constitucional com uma visão positivista extremada apegando-se à expressão literal do § 2º, do art. 78 do ADCT ao ponto de negar a função da Justiça e contrariar o bom-senso, conferindo ao precatório não-alimentar mais direitos que ao precatório de natureza alimentícia.
Incogitável a idéia de “punição” do credor de natureza alimentícia que o legislador constituinte quis privilegiar. Impõe-se o reconhecimento de que ao precatório de natureza alimentar não pago no prazo constitucional (no final de cada exercício) deve ser conferido o poder liberatório de que cuida o § 2º, do art. 78, do ADCT.
Visto sob outro ângulo e por meio de uma interpretação teleológica conclui-se que o crédito alimentício, representado por um precatório vencido e não pago há mais de dez anos como é comum no Estado de São Paulo, por exemplo, de há muito perdeu sua natureza alimentícia.
De fato, um vencimento ou provento que tenha sido ilegalmente suprimido, no todo ou em parte, durante anos perde a sua característica de crédito de natureza alimentícia por perda de sua finalidade: manter a subsistência do credor e seus dependentes no dia a dia. Os incômodos, as situações de desconforto suportados pelo credor são de natureza irreparável.
Ora, se não mais subsiste o pressuposto levado em conta pelo legislador constituinte derivado – pagamento imediato dos créditos alimentares – que o levou a não incluir expressamente esses créditos no comando previsto no § 2º, do art. 78, do ADCT parece óbvio que se deva considerar esses créditos munidos do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora.
Pela mesma razão perde a característica de crédito alimentício se houver cessão desse crédito a terceira pessoa, principalmente, à pessoa jurídica que, evidentemente, não precisa de alimentos. Há jurisprudência nesse sentido:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE DE HAVER CESSÃO DE CRÉDITO DE PRECATÓRIO ALIMENTAR. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. 1. Possibilidade de haver cessão de crédito de precatório alimentar. 1.1 Inexistindo norma proibitiva expressa, nada obsta que o titular de crédito de pensão previdenciária, amparado por precatório de natureza alimentar, o negocie por meio de cessão. Tal crédito não é intransferível, haja vista a transmissão aos herdeiros, logo, pode ser cedido, sob pena de reconhecer-se aos herdeiros direito maior do que ao próprio autor da herança, além da violação do direito de propriedade, uma vez que traz ínsito o direito de não ser proprietário, no caso, o direito de dispor (CF, art. 5º, XXII, CC/1916, art. 524; CC/2002, art. 1.228). A única conseqüência é a de que, com a cessão, o crédito perde a natureza alimentícia (CF, art. 100). 1.2 A cessão de crédito de precatório de natureza alimentícia não fere a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). O não pagamento sim, é que fere a coisa julgada, pois, na prática subtrai a efetividade da prestação jurisdicional no seu momento mais importante ao credor: receber o que lhe é de direito. Ainda, subtraindo a efetividade da prestação jurisdicional, o efeito prático é o da exclusão do Poder Judiciário, o que fere o princípio da ubiqüidade (CF, art. XXXV). 2 Substituição processual. A possibilidade de o titular de crédito amparado em título executivo cedê-lo está prevista no art. 567, II, do CPC, caso em que o cessionário substitui no processo o cedente. Despicienda, outrossim, a anuência da parte contrária (CPC, art. 42, § 1º), pois não há mais litígio. 3 Agravo desprovido” (Agravo de instrumento nº 70025419151, 1ª Câm. Cív. Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. Irineu Mariani, DJ de 20-10-2008). No mesmo sentido os Agravos de Instrumentos ns. 70025243833, 70027617182 do mesmo Relator.
Entretanto, o que há de incontroverso nos tribunais, até o momento, é a preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia proclamada pela jurisprudência de nossos tribunais..
Transcrevemos, a titulo ilustrativo, a ementa do acórdão proferido pelo STJ no Recurso em Mandado de Segurança nº 24.510-SP, em 21-5-2009, em que se fez referência a inúmeros precedentes do STF:
“EMENTA
CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. CRÉDITO ALIMENTAR.
PRIORIDADE EM RELAÇÃO AOS COMUNS. QUEBRA DA PRECEDÊNCIA. SEQUESTRO. CABIMENTO.
1. Os atos do presidente ou do colegiado de Tribunal de Justiça que disponham sobre processamento e pagamento de precatório não têm caráter jurisdicional, mas administrativo (Súmula 311/STJ; Súmula 733/STF). Segundo a jurisprudência do STF (v.g.: ADI 1.098, Min. Marco Aurélio, DJ de 25.10.96; RE 281.208, Min. Ellen Gracie, DJ de 26.04.02) e do STJ (v.g.: RMS 14.940/RJ, 1ª T., DJ de 25.11.2002 RMS 26.990/SP, 1ª T., DJe 28.08.2008; RMS 19.047/SP, 2ª T. DJ de 26.09.2005; RMS 17.824/RJ, 2ª T., DJ de 01.02.2006), esse entendimento é aplicável também às decisões que, no curso do processamento, deferem ou indeferem pedido de seqüestro de recursos públicos.
2. "A jurisprudência do Supremo, ao interpretar o disposto no caput do artigo 100 da Constituição da República, firmou-se no sentido de submeter, mesmo as prestações de caráter alimentar, ao regime constitucional dos precatórios, ainda que reconhecendo a possibilidade jurídica de se estabelecerem duas ordens distintas de precatórios, com preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia (ordem especial), sobre aqueles de caráter meramente comum (ordem geral)" (STA - Ag 90, Min. Ellen Gracie, DJ de 26.10.97). No mesmo sentido, reconhecendo a "preferência absoluta" dos créditos alimentares, cujo pagamento deve ser atendido prioritariamente: ADI-MC 571, Min. Néri da Silveira, DJ de 26.02.93 e na ADI 47, Min. Octávio Gallotti, DJ de 13.06.97. Nesse pressuposto, o pagamento de crédito comum antes do alimentar importa quebra de precedência, autorizando a ordem a expedição de ordem de seqüestro de recursos públicos.
3. Recurso provido”. (ROMS nº 24.510, Rel. Min. Denise Arruda, Rel. para acórdão, Min. Teori Albino Zavascki).
Dessa preferência absoluta do precatório alimentar é possível extrair-se a conclusão de que ele pode e deve, na hipótese de seu descumprimento, deflagrar o efeito liberatório do pagamento de tributo da entidade devedora. De fato, é inadmissível que créditos de natureza alimentícia, qualificados como de preferência absoluta, estejam desprovidos do mecanismo garantidor da efetivação dos direitos que protegem os créditos de outra natureza.
Ora, se o precatório alimentar preterido, o que se constata pelo simples confronto das duas filas de precatórios distintos, enseja o seqüestro (instituto garantidor previsto no § 4º, do art. 78 do ADCT) na linha da atual jurisprudência de nossos tribunais, parece lógico que ele possibilita, também, a utilização de outro instituto garantidor, ou seja, o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora e inadimplente expressamente previsto no § 2º, do mesmo art. 78, do ADCT.
E mais, se ao invés do pagamento imediato, pressuposto levado em conta pelo legislador constituinte derivado, os créditos alimentares estão sendo preteridos pelos não-alimentares forçoso é concluir que aqueles créditos alimentares oriundos de precatórios pendentes na data da promulgação da EC nº 30/2000, bem como aqueles que decorram de ações judiciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 estão amparados pelo poder liberatório do pagamento de tributos a que alude o § 2º, do art. 78, do ADCT.
Destoa-se do bom direito a interpretação literal que leva a atribuir ao precatório, que goza de preferência absoluta, menos direito do que ao precatório não privilegiado submetido ao regime de pagamento parcelado em até dez anos.
A toda proclamação de direitos, e no caso trata-se de direitos fundamentais do cidadão-contribuinte, devem corresponder mecanismos assecuratórios com vistas à efetivação dos direitos proclamados. De nada adianta a proclamação do direito de preferência dos credores a título alimentício se estes estiverem desprovidos de meios assecuratórios que estariam ao alcance apenas dos credores não-alimentícios.
Não discrepa desse raciocínio a lição de grandes mestres do Direito Constitucional:
“A afirmação dos direitos fundamentais do homem no Direito Constitucional positivo reveste-se de transcendental importância, mas, como notara Maurice Hauriou, não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo, porque virão ocasiões em que será discutido e violado. Ruy Barbosa já dizia que uma coisa são os direitos, outra as garantias, pois devemos separar, ‘no texto da lei fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos, estas, as garantias: ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito’. Não são nítidas, porém as linhas divisórias entre direitos e garantias, como observa Sampaio Dória, para quem ‘os direitos são garantias, e as garantias são direitos’, ainda que se procure distingui-los”[5].
“A garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contra intervenção indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos direitos de liberdade não se afigura suficiente para assegurar o pleno exercício da liberdade. Observe-se que não apenas a existência de lei, mas também a sua falta pode revelar-se afrontosa aos direitos fundamentais. É o que se verifica, v.g., com as chamadas garantias de natureza institucional, com os direitos à prestação positiva de índole normativa, inclusive o chamado direito à organização a ao processo (Recht auf Organization und auf Verfahren) e, não raras vezes, com o direito de igualdade.
A concretização desses direitos exige, não raras vezes, a edição de atos legislativos, de modo que eventual inércia do legislador pode configurar afronta a um dever constitucional de legislar”[6].
Indubitável, pois que há de ser buscado um mecanismo assecuratório do direito à prioridade absoluta dos créditos de natureza alimentícia proclamada pelos tribunais.
Por isso, interpretação que afasta a incidência da norma do § 2º, do art. 78 do ADCT em relação aos créditos de natureza alimentar nega a proclamada prioridade absoluta e choca-se com o princípio da supremacia da Constituição, pois ela em seu art. 100 caput, interpretada pelo STF, conferiu privilégio especial a esses créditos.
Se o grande número de credores alimentícios, decorrente de desrespeitos às leis salariais cometidos pelos governantes, tornou inviável financeiramente o pagamento das condenações judiciais a esse título de uma só vez, conduzindo à formação de ordem cronológica em separado, por óbvio, essa espécie de precatório alimentar há de ter precedência absoluta sobre os não-alimentares, conforme já proclamada pela jurisprudência. Afinal, ele representa verbas alimentares ilegalmente subtraídas ao longo de tempo de seus legítimos titulares causando situações de desconforto para si e seus familiares.
A inversão que vem ocorrendo na prática , fato público e notório, é inconstitucional, imoral e intolerável em face da ordem constitucional vigente, que não permite que esses credores continuem morrendo na fila de precatórios alimentares, depois de obterem vitória na Justiça ao cabo de mais de cinco anos de discussão judicial.
Impõe-se o reconhecimento do direito à compensação de que cuida o § 2º, do art. 78, do ADCT aos credores alimentícios que tiveram seus precatórios descumpridos no final do exercício respectivo, principalmente, àqueles vitimados com a preterição no seu direito de precedência verificável mediante o confronto das duas filas de precatórios: alimentares e não-alimentares.
Concluir de forma diversa é violar o princípio da coisa julgada (art. 5º, XXXVI da CF), pois subordinar a definição da época do pagamento à vontade unilateral do governante equivale, na prática, à subtração da efetividade da jurisdição em seu momento mais importante para o demandante vitorioso, qual seja, o momento de receber o que lhe é devido. E, por conseguinte, vulnera, também, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da CF), porque torna inócua a atuação do Poder Judiciário.
No âmbito do STF, o Min. Eros Grau, em decisão monocrática datada de 28-8-2007, publicada no DJ, de 18-9-2007, havia dado pavimento ao RE nº 550.400-RS para reconhecer o direito à compensação do precatório alimentar expedido contra autarquia de um Estado-membro com os créditos tributários do mesmo Estado-membro. Contudo, por força do agravo regimental e por proposta do próprio Min. Relator (Eros Grau) a 2ª Turma do STF deliberou submeter ao Plenário o julgamento da causa, conforme decisão tomada em 30-9-2008, publicada no DJ de 10-10-2008.
Além desse caso, pende de julgamento pelo Plenário da Corte Suprema o RE nº 566.349-MG, Rel. Min. Carmen Lúcia, onde se reconheceu a existência de repercussão geral dos temas relativos à aplicabilidade imediata do art. 78, § 2º, do ADCT e à possibilidade de se compensar precatórios de natureza alimentar com débitos tributários.
É de se esperar que prevaleça a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais, atentando-se para a realidade em que os credores privilegiados por disposição expressa da Constituição estão em posição inferior aos credores de outra natureza, aos quais são facultados o uso de mecanismos garantidores de seus direitos (seqüestro e compensação com tributos da entidade devedora).
Afinal, direito desprovido de mecanismos assecuratórios é o mesmo que nada. A única forma de tornar efetivo o direito de preferência absoluta dos credores alimentícios é reconhecendo em relação a esses créditos o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, sempre que esta deixar de pagá-los no prazo constitucional, que já é longo, principalmente, quando houver quebra do direito de precedência.
RESPOSTAS AOS QUESITOS
1 - Ao teor do art. 78, § 2º, do ADCT é possível conferir aos créditos de natureza alimentar o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora? Em caso positivo, pode o cessionário exercer o direito à compensação?
R. Sim. Mediante interpretação sistemática dos textos constitucionais, levando em conta, ainda, o elemento histórico como ressaltados no corpo deste parecer, conclui-se que os créditos de natureza alimentícia oriundos de precatórios pendentes na data da promulgação da EC nº 30/2000, bem como aqueles que decorram de ações judiciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 estão amparados pelo poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora a que alude o § 2º, do art. 78, do ADCT.
Para exercício desse direito basta simples inadimplemento do precatório alimentar no prazo constitucional. Razão maior haverá para efetivar a compensação na hipótese de preterição do direito de precedência no pagamento de precatório privilegiado.
O direito à compensação pode ser exercido, tanto pelo credor originário, como também pelo seu cessionário. A cessão de crédito há de ser comprovada por instrumento revestido de formalidades legais com observância do art. 286 e seguintes do Código Civil.
2- Quais as possibilidades de derrota em eventual discussão judicial envolvendo a compensação de créditos oriundos de precatórios alimentícios estaduais com os débitos do ICMS?
R. Como esclarecemos no corpo deste parecer duas questões constitucionais estão sendo apreciadas pelo Plenário da Corte Suprema: a) a questão da auto-aplicabilidade do § 2º, do art. 78, do ADCT e; b) a questão da compensação dos créditos de natureza alimentícia.
Quanto à primeira questão já há jurisprudência firmada, tanto no STJ, como no STF no sentido da auto- aplicabilidade do comando contido no § 2º, do art. 78, do ADCT. Não é preciso, portanto, que haja uma lei estadual dispondo sobre a matéria, sendo inaplicável o disposto no art. 170 do CTN que não cuida da extinção do crédito tributário pela forma prevista no § 2º, do art. 78 em questão.
A questão referente à possibilidade de compensação do crédito de natureza alimentar com o tributo da entidade política devedora constitui matéria que a Corte Suprema decidirá definitivamente no bojo do RE nº 566.349-RS/MG.
Tratando-se de um julgamento em que deve ser levado em conta o componente político torna-se difícil fazer um prognóstico a respeito. Porém, é certo que em sede de decisão monocrática, o Min. Eros Grau havia reconhecido o direito à compensação dos créditos alimentícios, mas que por força do Agravo Regimental o julgamento da causa ficou afetado ao Plenário da Corte Suprema.
É certo, também, como demonstrado neste parecer, que a interpretação sistemática dos textos constitucionais conduz o intérprete à conclusão de que os créditos de natureza alimentícia, aos quais a jurisprudência confere prioridade absoluta no pagamento, estão amparados pelo mecanismo assecuratório previsto no § 2º, do art. 78, do ADCT.
É o nosso parecer smj.
São Paulo, 23 de junho de 2009
Kiyoshi Harada
OAB/SP 20.317
Especialista em Direito Tributário e Financeiro pela FADUSP
Pareceres/consulta Gran Sapore
[1] Cf. nosso Desapropriação doutrina e prática, 7ª ed.. São Paulo: Atlas, 2007, p. 172.
[2] Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 3ª ed. 2002, p. 91.
[3] “§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[4] Curso de direito constitucional positivo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 465.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª Ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 185.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 44-45.
Advogado em São Paulo (SP). Mestrado em Teoria Geral do Processo pela Universidade Paulista(2000). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site:www.haradaadvogados.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HARADA, Kiyoshi. Compensação de créditos vencidos representados por precatóriosestaduais de natureza alimentícia com os débitos do ICMS à luz do § 2º, do art. 78, do ADCT Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2009, 08:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Peças Jurídicas/17707/compensacao-de-creditos-vencidos-representados-por-precatoriosestaduais-de-natureza-alimenticia-com-os-debitos-do-icms-a-luz-do-2o-do-art-78-do-adct. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Conteúdo Jurídico
Por: Conteúdo Jurídico
Precisa estar logado para fazer comentários.