LILIANE DE MOURA BORGES[1]
RESUMO: A presente proposta de estudo tem como objetivo a demonstração do superendividamento do idoso como um fenômeno vísivel no Brasil, que acaba por gerar efeitos extremamente negativos na vida privada e no âmbito social. O trabalho busca conceituar a figura do superendividado e mostrar as consequências do superendividamento, apontando a existência de prejuízos tanto ao devedor, que já possui uma idade mais avançada, quanto à sociedade. É uma pesquisa qualitativa com base no método indutivo usando como técnica a revisão bibliográfica, análise de textos legais, artigos, livros e periódicos. Ao fim. Conclui que, por mais que o país tenha apresentado uma demora significativa na tomada de medidas protetivas para o consumidor superendividado, a promulgação da Lei nº 14.181/2021 transformou-se em um mecanismo de suma importância para a prevenção e o tratamento do superendividamento da pessoa idosa.
Palavras-chave: Consumidor; Idoso; Crédito; Superendividamento;
INTRODUÇÃO
Por volta do ano de 1994, com a estabilidade da moeda brasileira e, ainda, a introdução do plano real, a oferta de crédito passou a ser mais significativa no Brasil. Assim, este mecanismo começou a compor o contexto orçamentário do instituto familiar como instrumento de gestão financeira.
A concessão de crédito sem critérios apropriados, aliado à ausência de educação financeira levou a população brasileira ao assombroso número de 70,9% das famílias brasileiras, consideradas endividadas. A maior proporção em 11 anos, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) .
Entre os fatores que fomentam o superendividamento, há a atuação abusiva dos fornecedores que facilitam a concessão crediária ignorando alguns pressupostos imprescindíveis, tais quais a condição do consumidor de quitar suas dívidas e, pior ainda, a pré-existência de outras inadimplências que possam gerar consequências ao sustento próprio das vítimas desse fenômeno.
Além disso, não se pode ignorar a presença de grupos sociais que são assolados por uma condição de hipervulnerabilidade maciça, o que, devido a condições físicas e até mesmo mentais, são os maiores prejudicados por essa relação de consumo abusiva. Nesse momento, a falta de informação adequada, o uso excessivo de publicidades e o abuso do direito dos fornecedores, tomam uma proporção de maior prejudicialidade quando se trata de figuras sociais como aquelas que possuem faixa etária mais elevada.
É notório que o endividamento é um contexto social característico da sociedade capitalista, o que acentua-se pela concessão excessiva de crédito. A consequência disso é o desencadeamento de problemas sociais de alta gravidade, que indubitavelmente necessitam de melhor análise e tutela pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Destaca-se, entretanto, que o superendividamento nada mais é do que a incapacidade de adimplir da pessoa física, a qual começa a comprometer seus recursos financeiros e, consequentemente, a garantia do mínimo existencial ferindo os preceitos da dignidade da pessoa humana.
No Brasil, observa-se uma reiterada falta de atenção, bem como preocupação tardia quando se trata da tutela dos direitos do consumidor hipervulnerável.
Nesse sentido, a presente pesquisa possui alta relevância quanto ao seu objeto de estudo, tendo em vista que trata-se de uma análise aprofundada do fenômeno do superendividamento do idoso e as possíveis maneiras de proteção dos direitos fundamentais destes indivíduos.
Isso significa que dentre as consequências sociais negativas apresentadas na prática atual, deve-se destacar a violação da dignidade da população idosa, que enfrenta as consequências do superendividamento, por vezes colocando o consumidor em má situação junto à agência de crédito e, assim, impedindo a inserção dessa pessoa no economia.
Apesar desse efeito direto, não se pode esquecer os muitos outros fatores indiretos envolvidos, como a desintegração da família, o rompimento de um vínculo matrimonial e o fato de, dependendo da causa da dívida, transforma-se como única forma possível do consumidor e sua família ganhar a vida, o que significa que as perdas incorridas como resultado da perda da dívida são muito maiores do que aquelas refletidas na análise, pois a manutenção das condições essenciais ainda está em risco.
Diante disso, o estudo científico em tese preocupou-se em abordar o superendividamento com foco na figura da pessoa idosa, inicialmente tratando sobre o envelhecimento da pessoa idosa e o aumento das dívidas dessa faixa etária. Posteriormente, faz-se uma análise aprofundada acerca das causas e consequências desse cenário consumerista e, por fim, os mecanismos de tratamento e repressão que atualmente podem ser utilizados contra as circunstâncias apresentadas uma vez que, o assédio de consumo e forneceimento de crédito não responsável constituem um grande problema para a proteção do consumidor idoso.
Quanto à metodologia utilizada neste estudo, trata-se de pesquisa qualitativa baseada no método indutivo usando como técnica a revisão bibliográfica baseada na análise de texo legal, livros doutrinários, artigos cientificos e periódicos acadêmicos.
Ao final, conclui-se que a presente situação tem sido matéria de discussão presente no ordenamento jurídico brasileiro uma vez que além da preocupação do legislador no que se refere às medidas protetivas que podem ser tomadas para reverter o quadro alarmante do superendividamento que, tem prejudicado principalmente indivíduos caracterizados pela hipervulnerabilidade, há uma necessidade urgente da comunidade jurídica e a sociedade civil se mobilizar para a implantação dos mecanismos previstos na lei para o fim de prevenção e tratamento.
1. ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA E AUMENTO DE DÍVIDAS DA PESSOA IDOSA
Através de pesquisa realizada pelo Serviço de Proteção ao Crédito brasileiro, no mês de agosto de 2019 foi estimado um total de 4,3 (quatro vírgula três) milhões de idosos com dívidas ativas registradas, o que soma a um montante de 27% ( vinte e sete por cento) da população total dessa faixa etária. Assim, foi possível perceber um crescimento de mais que o dobro da média em relação ao calculado no ano de 2014. Desse valor, a maior quantia pertence aos Bancos que somam uma quantidade de 47,26 %( quarenta e sete vírgula vinte e seis por cento) dessas dívidas relacionadas a idosos entre 64 e 94 anos.
A caracterização da pessoa idosa diferencia-se para países desenvolvidos e subdesenvolvidos, sendo que para os primeiros a Organização Mundial da Saúde (OMS), considera idoso o indivíduo com idade igual ou superior a 65 anos, e para os demais, os que possuem idade igual ou superior a 60 anos. Isso acontece devido à taxa de fecundidade inferior e a ascensão tecnológica, bem como ao maior acesso a recursos médicos, dos países desenvolvidos quando comparados aos subdesenvolvidos.
Essa faixa etária está sendo chamada comumente de idade prateada em alusão aos cabelos grisalhos, e o perfil dessa faixa da população tem se modificado ao longo dos anos. São pessoas que se aposentam, mas ainda se sentem ativos, portanto, são consumidores e movimentam a chamada “economia prateada”. Pessoas idosas com renda e tempo são alvo do mercado, assim, a economia comportamental busca traçar o perfil desses consumidores e as empresas tem investido cada vez mais em produtos específicos para essa faixa etária.
Historicamente, o envelhecimento populacional, conforme explica Carvalho e Garcia (2003) teve início na Europa Ocidental, no final do século XIX, expandindo para as demais nações até o século XX, atingindo uma maior esfera de alcance dos países subdesenvolvidos tal qual o Brasil.
Em artigo, profa. Cláudia Lima Marques, afirma que no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem hoje 31,981 milhões de idosos (maiores de 60 anos), correspondendo a 15,4% de nossa população, sendo a população com mais de 80 anos já de 2,2%, correspondendo a 4,524 milhões de pessoas. No ano de 2018, o IBGE divulgou uma nova pesquisa sobre a projeção demográfica brasileira, que aponta o rápido e intenso processo de envelhecimento no país. Desde 2012, mais 4,8 milhões de pessoas passaram para a condição de idoso no Brasil e o crescimento deste grupo etário, em cinco anos, foi de 18%.
Atualmente o Brasil encontra-se em um cenário no qual o número de idosos está em crescimento, provocando, portanto, uma modificação na estrutura etária da população. Nesse sentido, de acordo com Johannes Doll (2015, s.p.), é possível destacar alguns fatores contribuintes ao envelhecimento do país, senão vejamos:
[...] Sob o ponto de vista demográfico, o envelhecimento populacional é resultado de dois fatores principais: o primeiro é a forte diminuição da taxa de fecundidade, que caiu de 6,2 filhos por mulher em 1960 para 1,8 filhos em 2012; o segundo é a diminuição da mortalidade infantil, que passou de 121% em 1960 para 15,7% em 2012. Tais fatores foram impulsionados por mudanças no campo social, educacional, cultural e da saúde, como a descoberta dos antibióticos, a criação das unidades de terapia intensiva e das vacinas, na metade do século passado, e as mudanças no estilo de vida, nos anos 1960. Com isso, a população brasileira envelheceu rapidamente nos últimos 50 anos, e o grupo das pessoas idosas aumentou de 4,7% (1960) para 12,6% (2012).
Segundo eles, a perspectiva é que, com esse contexto do aumento da longevidade, em 2060 mais de um terço da população brasileira será constituída por idosos. Dessa forma, a presença cada vez maior dos idosos na população brasileira representa, no âmbito das relações de consumo, um grupo ativo de consumidores com idade igual ou superior a 60 (sessenta anos), que merecem enfoque e proteção especiais, tendo em vista trata-se de indivíduos que possuem certo caráter vulnerável, independentemente de outros critérios como escolaridade, faixa de renda ou gênero.
Diante dessa perspectiva, o Código de Defesa do Consumidor fundamenta-se no princípio da vulnerabilidade, que está previsto no artigo 4º, inciso I, que estabelece:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (BRASIL, 1990, s.p.)
Já nas explicações de Bruno Miragem (2014, p. 147):
[...] Há na sociedade atual o desequilíbrio entre dois agentes econômicos, consumidor e fornecedor, nas relações jurídicas que estabelecem entre si. [...] A noção de vulnerabilidade do direito associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica.
Ressalta-se, portanto, a presença da chamada hipervulnerabilidade que caracteriza-se por uma condição de vulnerabilidade intensificada, tal qual se observa na população idosa. Assim, conforme defende o autor, é possível identificar a vulnerabilidade do consumidor idoso através de dois aspectos:
[...] a) a diminuição ou perda de determinadas aptidões físicas ou intelectuais que o torna mais suscetível e débil em relação à atuação negocial dos fornecedores; b) a necessidade e catividade em relação a determinados produtos ou serviços no mercado de consumo, que o coloca numa relação de dependência em relação a seus fornecedores. (2014, p. 128)
Sendo assim, o primeiro ponto trata-se do uso da condição ou falta de compreensão do idoso para coagi-lo a consumir produtos e serviços sem o devido entendimento, enquanto o segundo relaciona-se à necessidade que esse indivíduo possui sobre produtos ou serviços específicos, colocando-o como dependente dos fornecedores.
Isto posto, constata-se que a vulnerabilidade é considerada um princípio no âmbito do direito do consumidor, mesmo presuntivo, dada a vulnerabilidade dos consumidores em relação aos fornecedores. Além disso, é possível observar ainda que o Direito do Consumidor concede proteções particularizadas a determinados grupos de consumidores que, em razão de possuírem determinadas particularidades, requerem tutela e proteção distintas devido à presença de características que os tornam mais vulneráveis, a chamada hipervulnerabilidade, como é o caso da pessoa idosa, objeto deste estudo.
O Código de Defesa do Consumidor cuida da proteção contra o assédio de consumo como o gênero para todas as práticas comerciais agressivas, que limitam a liberdade de escolha do consumidor, considerando o prevalecimento “da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social” (Art. 39, IV).
Dessa maneira, resta evidente que a pessoa idosa necessita de uma tutela mais intensa e eficaz que possa ser eficiente contra fornecedores que se aproveitam da sua condição de vulnerabilidade para pressioná-los a consumir determinado produto ou serviço, sobretudo aqueles relacionados a créditos e até mesmo contratos assistenciais de saúde.
2. CAUSAS DE ENDIVIDAMENTO DA PESSOA IDOSA
Conforme anteriormente destacado, quando trata-se das possíveis causas do superendividamento, insta salientar que inexiste fator único que justifique o crescimento desse cenário no país uma vez que é visível a presença de inúmeros aspectos a serem analisados que podem levar o consumidor a esse tipo de condição. Ademais, a apresentação dessas chaves contribuintes ao crescimento incontrolável de dívidas ativas é apenas um exemplo, considerando que não é plausível agregar qualquer taxatividade a respeito do tipo de dívida, quando se trata do superendividamento.
O Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) dispõe em seu artigo 6º, inciso III, sobre o direito básico do consumidor. In verbis:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
[...] III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
Sérgio Cavalieri Filho (2011, p.47) determina que o direito à informação é um dos mais intrínsecos e basilares do direito consumerista, sendo que também correlaciona-se com os princípios da transparência e da vulnerabilidade, possuindo como objetivo principal a garantia do livre exercício de escolha aos consumidores.
[...] além de informar ao consumidor (dever de informar) e de esclarecê-lo (dever de esclarecer), tem o fornecedor especialista, diante de um consumidor não especialista, o dever de aconselhá-lo e orientá-lo (dever de aconselhamento), o que significa dotar o consumidor de todas as informações e indicações necessárias, bem assim a posição crítica do especialista, para que possa escolher entre as diversas opções que lhe apresentam.
Nessa perspectiva, deverá ocorrer a oferta de informação de maneira adequada e sem falsas afirmações, ou seja, deve haver o esclarecimento do consumidor no que se refere ao aceite e uso de quaisquer produtos ou serviços. Ressalta-se que Cavalieri ainda explica quais são os componentes da informação adequada, sendo eles: “a) as condições da contratação; b) as características dos produtos ou serviços objetos da relação de consumo; c) eventuais consequências e riscos da contratação” (2011, 49).
Portanto, este princípio nada mais é do que um direito fundamental do consumidor e uma obrigação do fornecedor, o qual deve assegurar a liberdade de escolha destes indivíduos, que podem optar ou não por escolher determinadas ofertas a partir das informações que lhes são fornecidas.
Acontece que nem sempre os consumidores dispõem de todas as informações de que necessitam para se pronunciar sobre determinado contrato, apesar dos direitos do consumidor e do dever de informar do fornecedor, essenciais à liberdade de escolha.
Além disso, muitos consumidores não têm as informações necessárias, muitas vezes devido a burocracias volumosas ou prorrogações de contrato, de modo que o contrato pode se tornar um grande problema para os consumidores no futuro. Infelizmente, isso geralmente acontece com consumidores extremamente vulneráveis, como por exemplo, a pessoa idosa.
Isso acontece porque as informações detidas pelos fornecedores não são adequadamente repassadas ou, muitas vezes, até inexistentes ou falsas, visto que seu objetivo principal é se aproveitar da condição de hipervulnerabilidade, promovendo um verdadeiro assédio de consumo.
A pessoa idosa, por sua vez, em muitos momentos é incapaz de compreender até mesmo informações básicas, o que pode fazer com que deixem de analisar os riscos tanto sociais, quanto financeiros (superendividamento) e até mesmo levando a riscos à sua saúde física ou mental, ponto importante que será melhor abordado mais à frente.
É nesse sentido que apontamos a falta de informação como um dos fatores que contribuem para o superendividamento, tendo em vista que sem a informação necessária e suficiente o consumidor não pode fazer julgamentos sensatos sobre seus contratos e, se for o caso, a ponto de não conseguir cumprir as obrigações acordadas, criando uma situação em que a dívida se acumula e leva a um endividamento excessivo. Para os consumidores mais velhos, essa abordagem do direito à informação torna-se mais sensível e necessária devido às características específicas dessa faixa etária e sua elevada vulnerabilidade.
Outro fator de contribuição direta ao superendividamento desses indivíduos nada mais é do que a oferta de crédito e as condições especiais de incentivo e facilidade que designam ao seu consumo. Conforme anteriormente destacado, o consumo e o crédito estão diretamente ligados.
Nesse ponto de vista, Elisabete Araújo Porto (2015, s.p.) aduz:
[...] Essa expansão do crédito é resultado de campanhas mais incisivas na oferta deste serviço, promovidas pelos bancos, embora com maior seletividade em relação ao tomador. A carteira se diversificou e produtos de massa, com ou sem segmentação específica, como o crédito direto ao consumidor e o empréstimo consignado, surgiram ou foram regulamentados, tornando o mercado de crédito muito atrativo para seus atores.
Perante esta terrível situação de consolidação de dívidas, com a intenção de utilizar e dar sem cautela, surge o endividamento excessivo do consumidor, devido à instabilidade financeira provocada pelo sobre-endividamento.
Além da hipervulnerabilidade do consumidor, existe a atitude do fornecedor, no caso as instituições financeiras, de não informar o consumidor de forma adequada, principalmente, no que diz respeito aos riscos e obrigações contratuais. Nesse sentido, conforme mencionado no artigo anterior, a falta de conhecimento pode ser um fator de endividamento para consumidores mais velhos.
Portanto, nota-se que a facilidade e motivação para obtenção de crédito, além da hipervulnerabilidade do consumidor idoso e a ausência ou omissão de informações por parte das instituições financeiras, principalmente informações sobre riscos e responsabilidades decorrentes da solvência, são fatores muito importantes que estimulam os consumidores idosos a enfrentaram a condição do superendividamento.
3. CONSEQUÊNCIAS DO SUPERENDIVIDAMENTO PARA O IDOSO
É evidente os efeitos que o superendividamento causa na vida econômica e financeira da sociedade, isso porque essa situação se espalha em razão da dificuldade que o consumidor encontra para pagar suas dívidas atuais e futuras, aumentando o endividamento e, consequentemente, também os custos.
Como visto anteriormente, existem grupos sociais que, por natureza, parecem estar em maior risco de processos de endividamento induzidos pela folha de pagamento. No caso dos consumidores mais velhos, a situação é pior porque, dada a realidade brasileira, essas pessoas passam muitos anos de seu trabalho árduo, com restrições financeiras para obter bens permanentes, quando finalmente se aposentam e desfrutam de uma vida tranquila, são coagidos a acreditar que a dívida é um meio para realizar seus sonhos e aspirações.
É nesse cenário social que as instituições financeiras aproveitam e passam a fornecer linhas de crédito sem oferecer as informações necessárias que possam tornar o contrato de empréstimo compreensível, o que gera um desconhecimento do impacto de um contrato firmado, que na maioria das vezes acaba por comprometer grande parte da sua renda com descontos excessivos diretamente na folha de pagamento.
O que não se expõe é que esse jogo de cintura que os fornecedores possuem pode levar o idoso a enfrentar consequências extremamente negativas. Ora, com o comprometimento da sua renda, toda a sua qualidade de vida, bem estar social, saúde e lazer restam comprometidos. Imperioso destacar ainda que a figura do idoso é a mais carente de cuidado tanto em relação à saúde mental, quanto física e cuidados diários.
Portanto, é fácil ver as consequências da venda de crédito indiscriminadamente, não só para os consumidores, mas também para a sociedade como um todo, pois o que proporcionaria o início da inclusão social pode ter um efeito prejudicial, do qual se rebelaram e com a apoio de sua família em risco. Resta esclarecer que aliada à oferta excessiva também está a entrega sem pedido de cartão de crédito consignado, o que é uma abertura para a ocorrência de inúmeras fraudes usando o CPF e até mesmo assinatura ilegítima de pessoas idosas.
Outra consequência perceptível da oferta demasiada de crédito aos idosos, é o elevado número de diligências a serem respondidas nos tribunais. O consumidor idoso precisa buscar o apoio dos órgãos de defesa do consumidor ( PROCON, DPE, MPE) para acionar o judiciário muitas vezes para regularizar questões de débitos, cancelamentos de cartões não solicitados e muitas outras situações. Quanto ao famigerado cartão de crédito consignado, vale conhecer alguns julgados:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE CONTRATUAL DE EMPRÉSTIMO/CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO EM FOLHA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. EMPRÉSTIMO. PRESTAÇÕES DEBITADAS NO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DO CONSUMIDOR/IDOSO. COBRANÇA QUE ULTRAPASSA AS PARCELAS PACTUADAS. SUPERENDIVIDAMENTO. RESPONSABILIDADE DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. BOA-FÉ CONTRATUAL. NULIDADE. RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS A MAIOR. POSSIBILIDADE. ART. 42, DO CDC. APLICAÇÃO. DANO MORAL CONFIGURADO. REFORMA DA SENTENÇA. I- De acordo com a legislação consumerista, a responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços é objetiva, devendo o mesmo responder pelos riscos de sua atividade, independentemente de dolo ou culpa. II- Tendo sido violado o direito básico de informação do consumidor, conforme os preceitos contidos no art. 6º, III, CDC, e não tendo ainda, o Apelado, observado o dever de boa-fé a que estão adstritos os contratantes, ocorreu falha na prestação de serviço e o consentimento do apelado foi destinado à celebração de um empréstimo consignado. III- Não obstante o Apelante, em sua boa-fé, acreditar que contratou um empréstimo consignado com o Apelado, com prazo determinado, foi formalizado um contrato de cartão de crédito, em que apenas o valor mínimo do débito era devidamente quitado por meio do desconto consignado em seu benefício previdenciário, e recaiam os encargos inerentes ao crédito rotativo sob o restante do débito. Tal situação implica na incidência de juros do cartão e juros contratados no empréstimo, gerando, assim, uma situação de impossibilidade de pagamento, ou seja, superendividamento. IV- Instituição financeira, que permite a contratação de empréstimo de forma híbrida, como a entabulada, impossibilitando o pagamento integral da dívida pelo consumidor, viola a boa-fé contratual, além de agir de forma negligente com o consumidor hipossuficiente e idoso, impondo-se a nulidade do contrato. V- É de responsabilidade do banco recorrido arcar com os prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais experimentados pelo consumidor, já que as mencionadas violações comprovam a falha na prestação do serviço, sendo irrelevante que tenha agido com ou sem culpa (art. 14 do CDC). VI-Evidenciados os descontos superiores às parcelas que entendia contratadas, na conta bancária do consumidor, é de ser reconhecido o dever do Réu suspender os referidos descontos e restituir-lhe, em dobro, os valores cobrados, indevidamente da sua remuneração, nos termos do artigo 42, do CDC. VII-O flagrante desconto indevido no beneficio previdenciário do Autor, face à má prestação dos serviços do fornecedor, suprimindo-o o direito de acesso à renda de natureza alimentar, configura a causa dos danos morais, que, devidamente comprovados, tornam-se passíveis de indenização. VIII- Evidenciada a ocorrência do ato ilícito, do nexo causal e do dano, é de ser condenado o ofensor a indenizar o ofendido, por danos morais, tendo como objetivo apenas minimizar a dor e a aflição suportada pela parte prejudicada, devendo ser fixada dentro dos padrões de razoabilidade, para que não acarrete enriquecimento ilícito. Portanto, fixa-se o quantum indenizatório de R$ 10.000,00 (dez mil reais). IX- Ante a reforma da sentença, as custas processuais e honorários advocatícios, no percentual de 15% (quinze por cento), sobre o valor da condenação, devem ser arcados pelo Apelado, em consonância com os parâmetros previstos no artigo 85, § 2º do CPC. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” (Classe: Apelação,Número do Processo: 0502626- 11.2016.8.05.0146, Relator (a): Roberto Maynard Frank, Quarta Câmara Cível, Publicado em: 21/03/2018 ) (TJ-BA - APL: 05026261120168050146, Relator: Roberto Maynard Frank, Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: 21/03/2018)
É visível, diante destas jurisprudências, que os Tribunais tem decidido pela tutela e garantia do mínimo existencial do devedor e, ainda, dos seus familiares, com o intuito de estimulá-los a quitar as dívidas contraídas de imediato. Ainda, há um consenso jurisdicional que defende o limite máximo de 30% de descontos na folha de pagamento dos empréstimos contraídos.
Entretanto, conforme anteriormente mencionado, são inúmeros os fatores que dificultam o acesso do idoso à justiça, sendo que quando possível, em razão da demora muitos vem a falecer antes mesmo de quitarem seus débitos ou reaverem possíveis créditos em razão de fraude. Nessa perspectiva, urgente é a implementação de um mecanismo de tratamento e prevenção que possam fornecer uma melhor proteção a essa esfera da sociedade, assunto que será abordado no próximo capítulo.
4. INSTRUMENTOS DE PREVENÇÃO E TRATAMENTO APRESENTADAS PELA LEI Nº 14.181/2021
Diante de todo o exposto, apesar de ser perceptível a preocupação tardia do Brasil em relação ao superendividamento, ainda assim, nota-se a postura do legislador em buscar medidas administrativas e jurídicas que procuram confrontar esse cenário marcado pelo aumento de dívidas ativas. A exemplo disso, destaca-se o Projeto de Lei do Senado Federal nº 283/2012, construído por uma Comissão especializada em direito do consumidor. Anteriormente em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 3.515/2015, após deferimento em 1º de julho de 2021, passou a receber a nomenclatura de Lei nº 14.181 “Lei Cláudia Lima Marques”, a qual modifica o Código de Defesa do Consumidor e também o Estatuto do Idoso em relação a matéria de prevenir e tratar o superendividamento.
As principais contribuições da Lei, que alteram os regulamentos do CDC e dos idosos, incluem o seguinte. Originalmente, vale ressaltar que os incisos IX e X foram incluídos no artigo 4º do CDC, que tinha o objetivo de promover ações relacionadas à educação financeira e ambiental do consumidor, prevenir e tratar o excesso de endividamento e, ainda evitar a exclusão social dos consumidores. (BRASIL, 2021)
Em outras palavras, pensava-se que a intenção original era prevenir o superendividamento da população por meio da educação do consumidor e visava evitar que os consumidores fossem superendividados e, portanto, excluídos socialmente. No artigo 5º, incluindo os incisos VI e VII, pode-se observar o estabelecimento de mecanismos de prevenção e proteção ao consumidor do superendividamento, bem como a criação de centros de mediação e arbitragem de conflitos decorrentes do superendividamento. (BRASIL, 2021)
Em complemento aos acordos extrajudiciais e novas possibilidades de renegociação, o artigo 6º, ao incluir o inciso XI, propõe a ideia de manter o mínimo existente por meio de revisão e renegociação de dívidas, além de outras medidas que poderiam ser utilizadas para lidar com situações de superendividamento. (BRASIL, 2021)
Já o artigo 104-A, traz a importante previsão de que o juiz pode instaurar processo de repactuação de dívidas, quando reivindicado pelo consumidor superendividado, fazendo uso de audiência de conciliação contando com a presença de todos os credores para atestar a apresentação do consumidor de plano de pagamento, respeitando o mínimo existencial e, ainda, dentro do prazo limite de 5 (cinco) anos. (BRASIL, 2021)
No entanto, essa não é a maior inclusão da Lei do Superendividamento, uma vez que, com a criação do capítulo VI-A no CDC, o dispositivo trouxe à luz a prevenção desse fenômeno para a pessoa natural, além de dispor também sobre a educação financeira e o crédito responsável.
Assim, nos termos do artigo 54-A, §1°, fica definido o superendividamento como a impossibilidade do consumidor de boa-fé de quitar totalmente suas dívidas, sem que possa comprometer o mínimo existencial, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 2021)
Posteriormente, o artigo 54-B estabelece uma série de informações importantes que o fornecedor deve apresentar aos consumidores em termos de concessão de crédito e parcelamento de vendas (além das obrigações contidas no artigo 52 do CDC), tais como: componentes descritivos; a taxa de juros mensal efetiva, a taxa de juros de mora e o valor total das despesas, de qualquer natureza, previstas para mora; o valor das parcelas e o prazo de habilitação da oferta, que deve ser de, no mínimo, 2 (dois) dias; nome e endereço eletrônico e residencial do fornecedor; o direito do consumidor de pagar a dívida tempestivamente e sem risco de onerosidade. (BRASIL, 2021)
A Lei 14.181/2021 evidencia o objetivo claro de proteger o consumidor frente a ofertas litigiosas, visando reprimir o uso de mecanismos de fornecimento ardiloso de serviços, crédito, bens ou produtos. Dessa forma, com base na apresentação das principais alterações propostas pela Lei nº 14.181/2021, é notório que a sua aprovação foi um grande avanço quando trata-se da busca de instrumentos de prevenção e tratamento do superendividamento, constituindo um marco para a defesa desses indivíduos.
Isso acontece porque uma pessoa superendividada, quando em casos extremos, perde sua capacidade de uso e, consequentemente, perde sua dignidade pela incapacidade de administrar suas despesas e necessidades, mesmo que sejam básicas. Além das já mencionadas alterações no CDC, vale destacar a alteração da Lei do Idoso, onde se verificou que a negação de dívida induzida por dívida de adulto não é crime, o que se espera que contribua para o combate do endividamento e proteção da fonte de renda utilizada na garantia de alimentos e medicamentos. (BRASIL, 2021)
Isto posto, por mais que não haja uma maneira absoluta e plena de proteção do consumidor, a aprovação da Lei do superendividamento representa, além de considerável avanço na tutela do consumidor natural, bem como dos hipervulneráveis, um marco inicial na defesa de direitos e princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, tal qual a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 2021)
A Lei Federal 14.181/21 entrou em vigor no dia 1º de julho de 2021, e ficou conhecida como Lei Cláudia Lima Marques, em homenagem a esta ativista do direito do consumidor no Brasil. Esta lei cria mecanismos para consumidores que não conseguem pagar suas prestações de empréstimos ou de compras no crediário. Trouxe uma grande inovação que é a renegociação das dívidas em bloco. Trata-se de uma possibilidade par ao consumidor de boa fé regularizar sua vida financeira, sair da margem do mercado e garantir o mínimo para sua sobrevivência enquanto paga o débito.
CONCLUSÃO
Foi possível concluir, através deste estudo, que existem inúmeros fatores de contribuição para o superendividamento da pessoa idosa, dentre eles, a oferta irresponsável de crédito e a dificuldade de compreensão nas contratações, afetando não apenas o consumidor idoso, mas toda a sociedade.
O consumidor idoso muitas vezes não possui o conhecimento necessário acerca dos riscos contratuais, mas muitas vezes não recebe as orientações necessárias para a possibilidade de escolha da aquisição ou não do crédito e, consequentemente pactua com obrigações altamente onerosas de difícil adimplência.
Compete afirmar, portanto, que o cenário crescente do superendividamento só pode ser solucionado mediante modificações estruturais na mentalidade do consumidor brasileiro, seja pela oferta de educação financeira, seja pela informação adequada por parte do fornecedor.
A cultura do consumo, os anúncios atraentes as estratégias de marketing que levam a aquisição por impulso ou por acreditar ser uma grande vantagem, agrega uma situação repleta de consequências negativas para a vida das pessoas superendividadas e de todos ao seu redor. Este é um problema que tem de ser identificado, corrigido e resolvido.
Além de toda estratégia para coagir os idosos a consumirem o que quer que possa ser de seu interesse, os fornecedores se valem também de um mecanismo facilitador de aquisição do crédito, a fim de coibi-los a recorrer a esse tipo de contratação com demasiada facilidade. Conforme anteriormente constatado, o maior índice de contratações no Brasil são os empréstimos ou créditos consignados, que permitem descontos diretos nas folhas de pagamento, o que contribui para o comprometimento da renda dos aposentados, chegando a um nível em que pode danificar o acesso destes a itens básicos da vida, como a saúde e os alimentos e, ainda, impossibilitar a quitação dessas obrigações.
Ressalta-se que, o limiar de toda essa problemática origina-se da redução dos rendimentos da pessoa idosa em decorrência de necessidades imprescindíveis que surgem devido à idade e, conforme mencionado, no ato contínuo de consumir sem a informação devida. Dito isso, é imperioso buscar um novo posicionamento quanto à proteção dessa parcela social mais vulnerável, uma vez que é preciso garantir o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais do indivíduo.
Dessa forma, o ordenamento jurídico tem optado por desenvolver novos instrumentos de proteção e tratamento, tal qual a Lei nº 14.181/2021 que altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, com o objetivo de tutelar a oferta do crédito ao consumidor, valendo-se da inserção de meios de prevenção e mediação judicial e extrajudicial com o intuito de assegurar os direitos fundamentais. Este dispositivo veio para garantir a devida informação quanto a oferta de crédito, além do acesso a uma educação financeira de qualidade, mecanismos estes que possam contribuir para a prevenção e o tratamento do cenário socialmente imposto pelo superendividamento.
Dessa feita, o presente estudo traz luz à necessidade de utilização dos preceitos trazidos pela Lei do superendividamento, no que diz a prevenção e tratamento para minimizar essa grande problemática da sociedade brasileira que é o alto índice de endividamento sobretudo das pessoas idosas, considerando ainda, que a maioria são aposentados e pensionistas usuários de crédito consignado.
REFERÊNCIAS
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[1] Advogada, Mediadora de Conflitos, Especialista em Direito do Consumidor, Professora Mestra na Faculdade Serra do Carmo. E-mail: [email protected].
Artigo publicado em 16/06/2022 e republicado em 11/10/2024.
Bacharelando em Direito pela Faculdade Serra do Carmo- FASEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, PEDRO PAULO LORENZONI. Superendividamento do consumidor idoso: uma análise jurídico-social sobre a prevenção e tratamento à luz da Lei 14.181 de 2021 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 out 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/58693/superendividamento-do-consumidor-idoso-uma-anlise-jurdico-social-sobre-a-preveno-e-tratamento-luz-da-lei-14-181-de-2021. Acesso em: 21 dez 2024.
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