Resumo: Este artigo, com base em uma revisão bibliográfica, investiga as principais causas da morosidade judiciária no Brasil contemporâneo e sua relação direta com a superlotação carcerária. A partir dessa análise, explora as consequências negativas para a população encarcerada, cujos direitos fundamentais são frequentemente violados devido à precariedade das condições no sistema penitenciário. Em um paralelo com os corredores da morte adotados por países que aplicam a pena capital, o estudo sugere que os presos provisórios no Brasil, confinados em locais insalubres durante o trâmite processual, também se encontram em uma espera angustiante, como se aguardassem a morte. A pesquisa enfatiza que a morosidade judicial não apenas agrava o problema da superlotação, mas intensifica a vulnerabilidade dos presos, especialmente daqueles sem julgamento definitivo. Como solução, o artigo propõe a adoção do princípio numerus clausus, que, se implementado de maneira consistente, poderia reduzir os índices de encarceramento e mitigar a crise penitenciária. Esta abordagem oferece uma análise crítica sobre a ineficácia do sistema prisional brasileiro, destacando a necessidade urgente de reformas no Judiciário para garantir maior celeridade e respeito aos direitos fundamentais dos custodiados.
Palavras-chave: Morosidade do processo penal. Direito Penal. Direitos Fundamentais. Corredores da morte. Numerus clausus.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado uma problemática significativa e crescente em relação à superlotação de suas unidades prisionais, o que tem se agravado de forma contínua. Entre outros fatores, a ampliação da tipificação de novos crimes como resposta ao Direito Penal de Emergência e a morosidade dos processos penais fez com que o número de pessoas privadas de liberdade (presos provisórios e definitivos) aumentasse substancialmente.
O referido crescimento exponencial da população carcerária brasileira foi evidenciado por dados oficiais fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que, em 2017, classificou o Brasil como o terceiro país com o maior número de presos em todo o mundo, ficando atrás apenas de potências globais como os Estados Unidos da América e a República Popular da China.
Esse cenário de superpopulação carcerária gera uma série de implicações e desafios para o sistema penitenciário brasileiro, que não conseguiu acompanhar o crescimento vertiginoso da população aprisionada. Além disso, o Judiciário nacional, sobrecarregado com um grande volume de processos e recursos, também não tem sido capaz de proporcionar respostas judiciais rápidas e eficazes.
A questão da razoável duração do processo será abordada no primeiro ponto do desenvolvimento deste trabalho acadêmico, levando em consideração a sua previsão tanto na Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que incluiu no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 o inciso LXXVIII, quanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e nos julgamentos da Corte Europeia dos Direitos do Homem, trazendo critérios e compreensões para assegurar o tempo razoável do trâmite processual.
Após, no segundo ponto do desenvolvimento, será abordada a realidade alarmante brasileira, em que a maioria das unidades prisionais apresenta déficit de vagas, como demonstrado pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2015 e 2016, o qual apontou que 89% da população prisional encontrava-se em unidades com excesso de presos. A referida realidade tem como uma de suas causas a morosidade processual penal, destrinchada melhor nos tópicos posteriores deste artigo.
A gravidade desse problema (superpopulação) está diretamente ligada às constantes violações dos direitos fundamentais dos custodiados. Esses indivíduos, confinados em ambientes insalubres, enfrentam condições degradantes que comprometem sua dignidade e, em última instância, tornam suas penas (ou a espera delas) ainda mais severas do que o previsto pela legislação.
Frente a essa realidade, torna-se imperativo identificar as raízes desse problema e buscar soluções viáveis que, ao mesmo tempo em que respeitem os direitos fundamentais dos custodiados, possam contribuir para a redução dos impactos sociais causados pela superlotação.
Para tanto, analisa-se, ainda no tópico segundo, a morosidade processual penal como um elemento essencial a ser considerado, sendo este um dos fatores que mais contribuem para o agravamento da crise prisional no Brasil.
Nesse contexto, desponta o terceiro ponto deste artigo científico, o qual enfatiza o fato de que a vida em cárcere no Brasil é uma experiência penosa, caracterizada pela espera angustiante, seja pela conclusão de um processo judicial, no caso dos presos provisórios, seja pelo cumprimento integral de uma pena, no caso dos presos já sentenciados. Em ambos os casos, a falta de condições mínimas dignas torna essa espera semelhante a uma antecipação da própria morte.
Como possível solução à celeuma, advém, no final do último ponto do desenvolvimento, a sugestão de aplicação do princípio numerus clausus como alternativa às problemáticas tratadas ao longo de todo o trabalho acadêmico, cabível tanto no âmbito da execução penal, quanto na esfera das prisões provisórias.
2 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004 E O INCISO LXXVIII, DO ARTIGO 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 (EC nº 45/2004) trouxe uma modificação significativa no texto da Constituição Federal de 1988, ao incluir no artigo 5º, inciso LXXVIII, a garantia de uma "razoável duração do processo" no âmbito judicial e administrativo, bem como a adoção de medidas que assegurem a celeridade em sua tramitação. Tal dispositivo buscou responder a uma demanda social e jurídica por maior eficiência e agilidade no Judiciário brasileiro, cuja morosidade já se fazia evidente.
É relevante destacar que o princípio da razoável duração do processo está diretamente relacionado à efetividade da prestação jurisdicional, uma vez que a demora na resolução dos conflitos pode frustrar as expectativas das partes envolvidas, comprometer a justiça e gerar insegurança jurídica.
No campo do Direito Penal, essa celeridade é ainda mais crucial, considerando que o atraso na tramitação dos processos pode resultar em consequências graves, como o prolongamento indevido da prisão provisória, o aumento da população carcerária e a violação de direitos fundamentais.
Além da Constituição Federal, o princípio da razoável duração do processo também é assegurado por tratados internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica, que em seu artigo 8.1 estabelece o direito de toda pessoa ser ouvida "dentro de um prazo razoável" por um tribunal competente:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza [grifos do autor].
Vale ressaltar que a Corte Europeia dos Direitos do Homem entende que três critérios devem ser respeitados, de acordo com as circunstâncias de cada caso, para assegurar o tempo razoável do trâmite processual, quais sejam: a complexidade do assunto; o comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da defesa no processo; e, por último, a atuação do órgão jurisdicional. No caso brasileiro, podemos acrescentar a análise da estrutura do órgão judiciário (DIDIER, 2017, p. 109).
No Brasil, a EC nº 45/2004 foi uma tentativa de modernizar o Judiciário e reduzir os atrasos processuais. Entretanto, apesar do avanço trazido pela emenda, a prática ainda revela que o Judiciário brasileiro continua sobrecarregado, e a celeridade processual, especialmente em matéria penal, permanece um desafio.
Nesse contexto, embora o tempo demandado para tutela de uma pretensão seja relativo, bem como considerado de extrema necessidade para o desfecho eficaz do processo, pode-se dizer que, quando é demasiado longo, ele pode perder não só sua utilidade, como deixar de alcançar seus fins sociais. Para Marinoni (1999), esse retardo exacerbado na prestação jurisdicional pode torná-la “mero adorno”.
É relevante mencionar, ainda, o liame existente entre o princípio da duração razoável do processo e o princípio da economia, o qual preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2015, p. 97). Logo, quanto mais demorado o trâmite processual, mais dispêndio financeiro ocorrerá e, por consequência, um desequilíbrio no binômio custo-benefício, seja para o órgão jurisdicional, seja para a parte ré.
Frisa-se, assim, que a justiça célere foi e sempre será o ideal de todo um desafio posto ao Poder Judiciário, para a realização da promessa democrática de acesso a uma ordem jurídica justa e efetiva (NALINI,1994, p. 100).
Enfim, o princípio da duração razoável processual deve balancear as necessidades, por um lado, de dar celeridade ao processo, visando sua realização plena, e, por outro, de evitar a descredibilização da instituição jurisdicional frente à sociedade.
3 A MOROSIDADE PROCESSUAL PENAL COMO UM DOS MOTIVOS DA SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA
A lentidão na tramitação dos processos judiciais no Brasil, especialmente na seara penal, é um fator determinante para o agravamento da superlotação carcerária. A incapacidade do sistema de julgar os casos com a devida celeridade faz com que muitos indivíduos permaneçam presos por períodos prolongados, mesmo sem uma sentença condenatória definitiva. Esse fenômeno impacta diretamente o sistema penitenciário, que se vê incapaz de absorver o fluxo constante de novos detentos sem que os antigos sejam liberados.
Partindo para a análise da demora na tramitação processual recorrente no Brasil, principalmente no que se refere a ser um dos fatores contribuintes para o crescimento da população prisional no país, é preciso avaliar, previamente e de forma ampla, as causas dessa morosidade processual penal.
Como ressaltado por Joaquim Barbosa, em seu discurso de posse no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, a falência da Justiça brasileira em razão da prestação jurisdicional tardia aponta para a necessidade urgente de aprimoramento na prestação dos serviços judiciais.
Segundo seu relato, “a Justiça falha porque é prestada tardiamente. E não raro porque presta um serviço que não é imediatamente fruível por aquele que o buscou”, logo, necessita-se, com urgência “de um maior aprimoramento da prestação jurisdicional, especialmente no sentido de tornar efetivo o princípio constitucional da razoável duração do processo”.
3.1 Causas da morosidade processual penal
No contexto do processo penal brasileiro, pode-se afirmar que a proliferação exponencial das demandas dirigidas ao Judiciário se configura como o fator predominante que intensifica a mora processual. Este fenômeno é especialmente evidenciado pela constante introdução de novos tipos penais no ordenamento – como política de Populismo Penal – e pelo vasto número de recursos disponíveis para os litigantes, conforme analisado por Batista (2017). A multiplicação das categorias criminais e a complexidade do sistema recursal contribuem significativamente para a sobrecarga dos tribunais, exacerbando a lentidão e a ineficiência dos procedimentos judiciais.
No mesmo sentido, Marinoni (2009) destaca que o crescimento da população, a revolução tecnológica, a ampliação do exercício da cidadania, o foco ampliado nos direitos das pessoas, impulsionado pela Constituição Federal de 1988, bem como a migração em massa da população rural para a urbana durante os anos 80, em decorrência do processo de industrialização do país, também desempenharam papéis cruciais no aumento do volume de ações judiciais. Essas transformações sociais e econômicas têm levado a um maior acionamento do sistema judiciário, o que intensifica ainda mais a carga de trabalho dos tribunais e contribui para a morosidade processual.
Adicionalmente, conforme os dados apresentados pelo Relatório Infopen de 2015 e pelo levantamento do primeiro semestre de 2016, aproximadamente 40% da atual população carcerária é composta por indivíduos que se encontram em regime de prisão provisória.
Este dado é corroborado pelo estudo "Liberdade em Foco" (2016), realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que evidencia a utilização abusiva das prisões provisórias no Brasil. O estudo revela que a duração dessas prisões muitas vezes se estende por três meses ou até mais, uma situação que demonstra a gravidade e a frequência com que essas medidas cautelares são aplicadas sem o devido fundamento legal.
O mesmo estudo revela que a ausência de prazos legalmente estabelecidos para a duração das prisões provisórias amplifica a angústia e o sofrimento dos acusados, que ficam à espera de uma resolução para o seu processo sem qualquer previsão concreta para o seu desfecho.
A situação se agrava ainda mais para aqueles que, apesar de estarem encarcerados, não possuem uma decisão condenatória definitiva e, portanto, têm sua inocência presumida. A incerteza prolongada e a privação da liberdade sem uma condenação formal criam um estado de angústia ainda mais severo e preocupante para os detentos.
Ademais, o estudo "Liberdade em Foco" aponta que, nos casos em que a liberdade provisória foi finalmente concedida, isso ocorreu apenas após cerca de 52 (cinquenta e dois) dias, o que equivale a quase dois meses de encarceramento cautelar. Esse prazo excessivamente longo reforça a inadequação e a ineficiência do sistema de justiça, sublinhando a necessidade urgente de reformas e medidas que assegurem uma resposta mais ágil e eficaz por parte do Estado.
Em suma, conclui-se que o aumento substancial das demandas judiciais, aliado ao elevado número de prisões provisórias, configura-se como as principais causas da morosidade processual penal no Brasil. Esse cenário tem contribuído diretamente para a inflação da população penitenciária e para as inúmeras violações aos direitos fundamentais que emergem dessas condições adversas.
A necessidade de uma revisão crítica e de reformas estruturais no sistema de justiça criminal é, portanto, imperativa para a mitigação desses problemas e para a garantia de um processo penal mais justo e eficiente.
4 OS “CORREDORES DA MORTE” NO CENÁRIO CARCERÁRIO BRASILEIRO
Em um primeiro momento, é importante explicar os fatores que nos permitem comparar os corredores da morte reais à atual situação do sistema carcerário nacional. Para isso, é preciso abordar alguns conceitos.
A expressão "corredores da morte", utilizada para descrever a situação das prisões brasileiras, no presente trabalho, refere-se às condições extremas em que os presos se encontram, em que a espera pelo julgamento ou pelo cumprimento da pena é vista como uma antecipação da própria morte, devido à insalubridade e às violações de direitos constantes no cárcere nacional.
4.1 Conceitos fundamentais
No contexto jurídico dos países que mantêm a pena de morte como uma forma de sanção penal, o termo "corredores da morte" refere-se ao período e ao espaço específicos durante o qual indivíduos condenados à pena capital aguardam a execução de sua sentença. Este conceito assume uma importância crítica tanto na análise do sistema penal quanto na avaliação dos direitos fundamentais e das condições carcerárias.
Nesse ínterim, corredores da morte são locais com várias celas, dentro de prisões de máxima segurança (em regra), que abrigam pessoas condenadas à morte pela lei de seus países, enquanto elas aguardam a execução de suas sentenças.
Esta expressão engloba não apenas o espaço físico, mas também o estado psicológico e emocional dos detentos, que vivem sob a iminência constante da execução. Ressalte-se, ainda, que segundo a Anistia Internacional, são lugares em que o confinamento em solitárias e o uso de dispositivos de imobilização são frequentes.
O impacto psicológico de viver no corredor da morte é um aspecto de grande relevância na discussão sobre a pena capital. A literatura científica e os estudos empíricos têm demonstrado que a expectativa constante da execução, associada ao isolamento severo, pode provocar efeitos devastadores, incluindo depressão profunda, ansiedade, e outros distúrbios mentais.
A questão do sofrimento psicológico infligido por essa forma de punição tem levado a debates sobre a compatibilidade dos corredores da morte com os direitos humanos, especialmente no que tange à proibição de penas cruéis, desumanas ou degradantes.
Em síntese, o conceito de corredores da morte aplica-se não apenas a locais onde a pena de morte é executada, mas também a ambientes onde os presos vivem em condições degradantes, com a saúde mental e física comprometida. A analogia entre esses corredores e o sistema carcerário brasileiro se dá em razão das precárias condições das prisões, que fazem com que a espera pela liberdade ou pelo cumprimento da pena seja permeada por sofrimento físico, psicológico e violação de direitos.
Assim, a comparação feita neste trabalho entre os referidos corredores e a situação prisional brasileira hodierna considera o fato de que as pessoas privadas de liberdade no Brasil encontram-se em situações tão críticas, devido às condições atuais dos presídios, que a angústia e o medo da morte enfrentados por eles se assemelham àqueles vivenciados pelos presos nos corredores da morte reais. Sendo imprescindível, agora, apresentar tais condições.
4.2 A situação degradante dos presídios nacionais e as violações aos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade
As prisões brasileiras são conhecidas por sua precariedade estrutural, onde a superlotação, a falta de saneamento básico, a alimentação inadequada e a ausência de cuidados médicos satisfatórios tornam a vida no cárcere uma experiência desumana.
Relatórios da Anistia Internacional e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que os presos enfrentam riscos constantes de doenças, violência e mortes, agravados pela falta de ação por parte do Estado.
Nesse viés, vale reforçar que o sistema penitenciário brasileiro se encontra em um verdadeiro estado de coisas inconstitucional, uma situação reconhecida formalmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015. Esse conceito reflete a violação sistemática e persistente de direitos fundamentais dentro das unidades prisionais, como a superlotação, a insalubridade e a insuficiência de serviços básicos.
A condição degradante a que estão submetidos os presos é resultado de uma política punitivista que prioriza o encarceramento em massa como resposta ao crime, sem oferecer estrutura ou condições adequadas para garantir a dignidade da pessoa privada de liberdade, conforme previsto na Constituição Federal de 1988.
O estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário revela um problema estrutural, em que a ausência de políticas públicas eficazes para reintegração social e a falência do sistema de justiça criminal são evidentes.
A superlotação, que atinge níveis alarmantes, é agravada pela falta de celeridade na aplicação de penas alternativas e pela dificuldade em conceder benefícios legais aos custodiados (provisórios e definitivos), como prisões domiciliares, progressões de regime, indultos e comutações de pena.
Esse cenário gera uma situação de violência interna, onde a convivência forçada em condições desumanas eleva os índices de doenças, violações de direitos e a perpetuação do ciclo de criminalidade.
A responsabilização do Estado brasileiro por essa situação transcende o aspecto jurídico e alcança a esfera ética e moral, especialmente no que diz respeito ao dever de garantir a dignidade humana. A omissão do poder público em oferecer as mínimas condições para a recuperação dos presos contribui para a manutenção de um sistema que, longe de ressocializar, aprofunda as desigualdades e marginalizações.
Este estado de coisas inconstitucional não só perpetua a exclusão social dos presos, mas também configura uma grave afronta aos princípios constitucionais, sendo necessário um esforço conjunto e contínuo para reformar as bases do sistema penitenciário brasileiro.
Repise-se que, em consonância com a Anistia Internacional, torturas, mortes, violência e insalubridade permanecem como regra dentro das prisões do país – o que se agrava ainda mais com a superlotação carcerária. A exemplo disso, no estado do Rio Grande do Norte, em 2017, uma rebelião ocorrida na Penitenciária Estadual de Alcaçuz acarretou mais de 120 (cento e vinte) mortes, sendo a maioria por decapitação, corroborando para a comprovação do caos presente nesses ambientes e da falta de interesse, por parte dos governantes, em reverter a situação.
Como se não bastasse, a inflação populacional e a péssima infraestrutura carcerária no Brasil foram amplamente denunciadas em um relatório de 2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura (MNPT) e pelo Relator Especial da Organização das Nações Unidas para Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes. No entanto, respostas eficazes por parte do Estado não foram adotadas.
Alia-se a isso, devido ao sucateamento das instituições carcerárias e à superlotação, a facilidade em se adquirir doenças, sobretudo respiratórias, como tuberculose e pneumonia, e de se transmitirem doenças como a hepatite.
Essa realidade ocorre, pois, uma cela abrigando um número maior de pessoas do que suporta, apresenta, além do calor, problemas de circulação de ar. Não obstante isso, as condições de higiene são precárias, sendo ínfima a possibilidade de não se contrair vírus e bactérias nesses ambientes:
A superlotação das celas, sua precariedade e sua insalubridade tornam as prisões num ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de doenças. Todos esses fatores estruturais aliados ainda à má alimentação dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a lugubridade da prisão, fazem com que um preso que adentrou lá numa condição sadia, de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde fragilizadas (DIAS, 2016).
Segundo entendimento de Martinelli e Bem (2018), a atuação judicial deve identificar o processado como ser dotado de direitos, evitando excessos e buscando a menor onerosidade do custodiado, e para isso salvaguardar a dignidade da pessoa humana.
Assim, tem-se o princípio da humanidade penal, alicerçado nas postulações da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), bem como no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e ainda nas Regras Mínimas ao Tratamento do Preso no Brasil[1]. Ultimamente, entretanto, percebe-se um distanciamento entre tal princípio e os presos no Brasil, urgindo a tutela de seus direitos fundamentais o mais rápido possível.
4.3 A aplicação do princípio numerus clausus como alternativa aos anseios da superpopulação carcerária brasileira
O numerus clausus, inicialmente proposto por Gilbert Bonnemaison na França em 1989, limita o número de presos de acordo com a capacidade dos estabelecimentos penais, visando combater a superlotação e preservar a dignidade humana.
No Brasil, essa ideia busca estabilizar ou reduzir a população carcerária, evitando a criação de novas vagas e proibindo transferências que simplesmente desloquem o problema da superlotação (ROIG, 2014).
Para Rodrigo Roig (2014), o citado princípio propõe a limitação quantitativa de encarceramentos como medida de controle da superlotação carcerária e preservação dos direitos fundamentais dos privados de liberdade. Esse princípio parte do pressuposto de que o sistema prisional deve operar com uma capacidade máxima pré definida, semelhante a uma "quota" de vagas, de modo a impedir que novos presos sejam admitidos além do limite estrutural estabelecido.
Segundo o referido estudioso (ROIG, 2021), o princípio do numerus clausus é, em verdade: “Um princípio por meio do qual cada nova entrada de uma pessoa no âmbito do sistema carcerário deve necessariamente corresponder ao menos a uma saída, de forma que a proporção presos-vagas se mantenha sempre em estabilidade ou tendencialmente em redução”.
A ideia se fundamenta no reconhecimento de que o sistema penitenciário brasileiro, historicamente, não tem condições de absorver o crescente número de encarcerados sem violar princípios básicos como a dignidade da pessoa humana e o cumprimento de penas em condições adequadas.
O numerus clausus, no âmbito da execução penal, se subdivide em três espécies, quais sejam: numerus clausus preventivo, numerus clausus direto e numerus clausus progressivo (ROIG, 2014).
No tocante ao preventivo, pode-se dizer que diz respeito à vedação de novos ingressos no sistema penitenciário, transformando o encarceramento em prisão domiciliar. Em vez de suspender a execução da pena até a abertura de vagas, o preso cumpriria prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, ou o início da execução seria sobrestado até que houvesse espaço disponível. O modelo tem como objetivo assegurar que a superlotação não prejudique o início da pena e que não haja insegurança jurídica para os condenados que aguardam vagas.
No que concerne à ideia de numerus clausus direto, implica no deferimento de indulto ou prisão domiciliar àqueles que estão próximos de alcançar a liberdade, como forma de reduzir a superlotação.
O indulto funcionaria como uma política criminal de gestão da capacidade carcerária, com um cálculo proporcional para cada Estado, conforme a necessidade de redução do contingente prisional. O critério principal para a concessão do numerus clausus direto seria o índice comportamental do preso e a proximidade temporal da progressão para a liberdade condicional.
Por fim, referente ao numerus clausus progressivo, tem-se que está baseado no sistema de “transferências em cascata” com a movimentação de presos entre regimes (do fechado para o semiaberto, do semiaberto para o aberto, e do aberto para o livramento condicional).
Esse mecanismo aceleraria as progressões de regime para reduzir o contingente em cada fase do cumprimento de pena. A progressão ocorreria antes do prazo regulamentar, com base em critérios objetivos, como a conduta carcerária e a proximidade da progressão natural, assegurando que o sistema prisional não ultrapasse sua capacidade legal.
Cada uma dessas formas visa uma redução controlada e estruturada do número de encarcerados, assegurando que o sistema prisional opere dentro dos limites de sua capacidade e respeite os direitos fundamentais dos privados de liberdade.
Ao adotar o numerus clausus, o Brasil poderia mitigar o problema estrutural da superlotação sem recorrer à simples construção de novas prisões, e sim com uma gestão mais inteligente e humanizada da população prisional (ROIG, 2014).
No âmbito criminológico, o supracitado princípio provoca uma reavaliação do uso da prisão como principal resposta ao crime. Ao impor limites ao número de indivíduos que podem ser encarcerados, ele incentiva a adoção de medidas alternativas à prisão, como penas restritivas de direitos, prestação de serviços à comunidade e a monitoração eletrônica.
Dessa forma, busca-se promover um sistema de justiça mais equilibrado e eficiente, capaz de punir o crime sem recorrer sistematicamente ao encarceramento em massa. Essa abordagem, além de humanitária, visa também enfrentar a raiz dos problemas sociais que frequentemente levam ao crime, estimulando políticas preventivas e ressocializadoras em vez de meramente punitivas.
Reflete, assim, uma perspectiva inovadora de contenção do poder punitivo estatal, forçando o Estado a repensar sua política criminal e a desenvolver estratégias que respeitem os limites da capacidade prisional e os direitos fundamentais dos detentos. A implementação desse princípio também desafia o Judiciário a encontrar soluções dentro de uma nova lógica de racionalidade penal, na qual o encarceramento deixa de ser o caminho padrão.
O foco passa a ser a construção de um sistema que lide de maneira mais inteligente e sustentável com o fenômeno da criminalidade, preservando a função social da punição sem comprometer os valores constitucionais.
Em conclusão, a aplicação do numerus clausus como resposta imediata à superlotação carcerária brasileira oferece uma alternativa viável e constitucionalmente adequada para lidar com o colapso do sistema prisional. Ao limitar o número de presos à capacidade estrutural dos estabelecimentos penais, promove-se uma gestão racional das vagas, priorizando a dignidade humana e o cumprimento legal das penas.
A adoção de suas três modalidades – preventivo, direto e progressivo – revela uma abordagem pragmática e humanista, que alinha o sistema penal à necessidade de alternativas ao encarceramento em massa.
A implementação desse princípio visa não apenas mitigar o problema da superlotação, mas também repensar as bases do poder punitivo estatal, buscando soluções que se afastem do punitivismo exacerbado e privilegiem políticas de reintegração e justiça social.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo revela, de forma clara e substancial, que, apesar dos avanços e garantias conferidos por dispositivos legais e normativos nacionais e internacionais, como a Constituição Federal de 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), a celeridade processual no Brasil continua enfrentando desafios significativos no contexto jurídico contemporâneo.
A constatação de que o trâmite legal ainda persiste em apresentar uma duração irrazoável é um reflexo das falhas estruturais e operacionais que permeiam o sistema judiciário brasileiro.
Em específico, a Emenda Constitucional nº 45/2004, que visava fortalecer a necessidade de uma atuação jurisdicional célere, teve o intuito de mitigar as consequências prejudiciais associadas à morosidade processual. Contudo, a realidade prática demonstra que essa celeridade ainda não se tornou uma característica predominante no país. Consequentemente, os processos muitas vezes falham em alcançar seus objetivos sociais primordiais, que são a resolução efetiva dos conflitos e a promoção da pacificação social.
Neste contexto, foram identificadas e analisadas as principais consequências adversas que resultam da demora intrínseca ao trâmite processual no Brasil. Entre essas consequências, destaca-se a superlotação carcerária, um problema grave com repercussões amplamente reconhecidas.
A superlotação não apenas acarreta a degradação das condições de vida dos custodiados, como também levanta sérios problemas relacionados ao desrespeito aos direitos fundamentais dos detentos e à dignidade humana, aspectos esses que deveriam ser inalienáveis e prioritários em um sistema que se pretende justo e humano.
A analogia entre os corredores da morte reais e a situação psicológica dos encarcerados que aguardam, muitas vezes por anos, o julgamento de seus processos e/ou a execução de suas sentenças, revela a profundidade da crise que assola o sistema penitenciário brasileiro.
As semelhanças entre a angústia, o medo e o sofrimento experimentados pelos custodiados e os corredores da morte são alarmantes e indicam que as diferenças são, infelizmente, mínimas e inaceitáveis.
A realidade das prisões brasileiras é marcada pela superlotação crônica, condições insalubres e uma infraestrutura deficiente. As repercussões dessas condições adversas incluem, mas não se limitam, ao aumento da vulnerabilidade a doenças infecciosas, um clima constante de tensão e violência, e episódios de rebeliões sangrentas, como a infame rebelião ocorrida na Penitenciária Estadual de Alcaçuz em 2017, no Rio Grande do Norte. Essas condições não apenas afetam a integridade física e psicológica dos detentos, mas também perpetuam um ciclo de violência e desespero dentro do sistema penitenciário.
Diante desse cenário, é evidente que a mudança do quadro atual é não apenas necessária, mas urgente. O interesse do Estado em reverter essa situação, aliado ao seu dever fundamental de garantir a dignidade das pessoas privadas de liberdade, deve ser uma prioridade absoluta.
Não existem justificativas plausíveis para a perpetuação de violações aos direitos fundamentais em qualquer circunstância. A manutenção de um sistema penitenciário caótico e negligente inviabiliza a ressocialização efetiva da população prisional, contrariando o princípio de reabilitação que deveria nortear as políticas penais.
Como alternativa à morosidade processual penal e suas consequências, a adoção do princípio do numerus clausus surge como uma proposta relevante. Esse princípio baseia-se na premissa de que, para cada nova entrada na unidade prisional, deve haver uma saída correspondente.
Essa abordagem não apenas aliviaria a superlotação, mas também promoveria uma gestão mais equilibrada e eficiente do sistema penitenciário, contribuindo para a criação de condições mais justas e humanas para os detentos. A implementação dessa medida, portanto, não deve ser vista como uma solução isolada, mas como parte de um esforço mais amplo para reformar e modernizar o sistema de justiça criminal no Brasil, visando à criação de um ambiente que respeite e valorize a dignidade humana.
REFERÊNCIAS
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BATISTA, Fernando Rodrigues. A (de) mora processual penal, em face dos direitos e garantias fundamentais. Conteúdo Jurídico, Brasília, 1 dez. 2017. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-de-mora-processual-penal-em-face-dos-direitos-e-garantias-fundamentais,590091.html#_ftn1. Acesso em: 10 jun. 2019.
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[1] Resolução n. 14/1994, de 11 de novembro, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Bacharela em Direito e Pós-Graduada em Direito de Execução Penal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CANO, Júlia Rodrigues. A superlotação carcerária no Brasil sob a égide da (ir)razoável duração do trâmite processual: a violação de direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, os “corredores da morte” brasileiros e a adoção do princípio numerus clausus como alternativa à questão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2024, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/66984/a-superlotao-carcerria-no-brasil-sob-a-gide-da-ir-razovel-durao-do-trmite-processual-a-violao-de-direitos-fundamentais-das-pessoas-privadas-de-liberdade-os-corredores-da-morte-brasileiros-e-a-adoo-do-princpio-numerus-clausus-como-alternativa-questo. Acesso em: 13 nov 2024.
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