O art. 7º, nº 2, da CADH reza que ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas nas Constituições políticas de cada Estado-parte e pelas leis de acordo com elas promulgadas. Essa norma baliza tanto a prisão cautelar quanto a execução antes do trânsito em julgado. Quanto à primeira modalidade de prisão, a ementa do HC 99.879, julgado em 2009 pelo STF, da relatoria do Min. Celso de Mello, dispõe que esse dispositivo convencional “não assegura de modo irrestrito ao acusado o direito de (sempre) recorrer em liberdade”. Já quanto à execução provisória, o STF julgou o HC 84.078 no mesmo ano, com relatoria do Min. Eros Grau, entendendo que a Lei de Execução Penal, na parte em que exige o trânsito em julgado para o cumprimento da pena, se sobrepõe temporal e materialmente ao art. 637 do CPP, que vedava o efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário. Com isso foi alterada a jurisprudência sedimentada desde a promulgação da CF/88, que permitia a execução provisória da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias.
O novo entendimento tomado em 2009 perdurou até 2016, quando houve o julgamento pelo STF do HC 126.292, da relatoria do Min. Teori Zavascki. Naquela ocasião, a corte retomou a jurisprudência sedimentada que vigorou por duas décadas. Mas essa viragem durou pouco, sendo novamente restabelecido o critério do trânsito em julgado no julgamento das ADCs 43, 44 e 54 em novembro de 2019. Tão logo se encerrou o julgamento, foi promulgado o Pacote Anticrime, que reforçou o critério do trânsito em julgado como regra geral, mas criou uma exceção no julgamento pelo Júri. De fato, a nova lei manteve incólume a disposição do art. 283 do CPP, ao passo que inseriu uma exceção no caso de condenação pelo tribunal popular a uma pena igual ou superior a 15 anos.
Sobre a alteração, Guilherme Nucci pontuou: “Neste ponto, a Lei 13.964/2019 incluiu um dispositivo, impondo ao juiz presidente que mantenha ou decrete a prisão de quem for condenado a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão. Embora mencione que o juiz pode atribuir efeito suspensivo a essa decisão, assim como o relator no Tribunal, não há como viabilizar esse entendimento, depois que o STF, em julgamento realizado em fins de 2019, retornou à posição de 2009, impedindo o cumprimento da pena antecipada, mesmo depois de decisão de segundo grau. Portanto, igualmente, não pode o juiz presidente determinar a prisão do réu com base exclusivamente na pena estabelecida.” (Curso de Direito Processual Penal, editora Forense, 17ª edição, 2020).
O STF apreciou a constitucionalidade das novidades trazidas pelo Pacote Anticrime na ADI-MC 6.299/DF, mas este julgamento não incluiu a execução antecipada da pena no Tribunal do Júri. Já o STJ inicialmente rechaçou a exceção criada, considerando-a inválida por suas duas turmas criminais. No entanto, a corte relutou em levar a questão à corte especial, aguardando uma definição do STF. Na esteira do STJ, diversos tribunais de segundo grau também negaram vigência ao art. 492, I, “e”, do CPP, em contrariedade à Súmula Vinculante nº 10, que exige a reserva de plenário nestes casos, disposta no art. 97 da CF, e que é excepcionada apenas para os julgamentos do próprio STF. Já o pretório excelso validou o dispositivo em julgamentos pontuais de grande repercussão, como o caso da boate Kiss, aplicando o art. 492, I, “e”, do CPP, com determinação de recolhimento imediato dos condenados à prisão para o cumprimento da pena, mesmo sem trânsito em julgado.
A partir daí, o STF se inclinou para a formação de uma maioria favorável à constitucionalidade da norma, o que encorajou o STJ a alterar seu posicionamento em 2023, a exemplo do julgamento do HC 849.880/SC, passando a encampar a validade do dispositivo. Finalmente, sobreveio em 2024 a decisão do STF no RE 1.235.340, com repercussão geral, declarando a constitucionalidade da execução provisória da pena no Tribunal do Júri, independente da pena aplicada. A análise deste recurso iniciou-se antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime, mas posteriormente incluiu suas disposições.
Em suma, o relator no STF apontou que é estatisticamente irrelevante o número de condenações pelo Tribunal do Júri que vêm a ser invalidadas, não ocorrendo violação ao princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, pois nenhum tribunal tem o poder de substituir a decisão do Júri. Além disso, a indefinida procrastinação do trânsito em julgado, mediante recursos sucessivos, faz com que a pena prescreva ou seja cumprida muitos anos após o fato. E que o imediato cumprimento do veredicto do Júri não se afigura incompatível com a decisão proferida pela corte no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, no sentido da constitucionalidade do art. 283 do CPP, pois essa declaração de constitucionalidade não tem a força de paralisar a incidência da cláusula pétrea em que se pauta a soberania do Júri, cabendo a ponderação da intensidade do princípio da presunção de inocência com a proteção da vida humana, ambos de envergadura constitucional. Alguns ministros também ressaltaram a intangibilidade quanto ao mérito das decisões dos jurados, e que o poder de revisão dos tribunais somente alcança aspectos técnico-jurídicos, e não fáticos.
Na esteira deste julgamento, o STF também julgou o ARE 1.225.185 logo em seguida, igualmente com repercussão geral, confirmando que a acusação pode apelar em caso absolvição por clemência, caso entenda que o veredicto é manifestamente contrário à prova dos autos.
Os julgamentos nos temas 1068 e 1087 buscaram conciliar a soberania dos veredictos e a presunção de inocência, e serão analisados em conjunto.
Este tema se insere na questão mais ampla acerca da segregação do réu antes do final definitivo do processo, com ou sem cautelaridade, a exemplo da vedação à liberdade provisória ao preso em flagrante, prevista no art. 44 da Lei 11.343/2006, e tida como inválida pelo STF, bem como a não recepção do art. 594 do CPP, que exigia recolhimento do réu à prisão para recorrer. O STJ também reforçou na súmula 357 a possibilidade de o réu recorrer sem a necessidade de se recolher à prisão.
A Constituição Federal dispõe no art. 5ª, LV, que aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Ao passo que o art. 5°, LVII, dispõem que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória, acolhendo a presunção de não culpabilidade. Mas a jurisprudência do STF rechaça o caráter absoluto deste princípio, harmonizando-o com outros princípios de mesma envergadura constitucional, como a soberania dos veredictos do Júri previsto no art. 5°, XXXVIII, da CF. A interpretação literal do dispositivo revela que “não ser considerado culpado” não é o mesmo de “não ser preso”. Tanto que a própria CF exige para a prisão que a ordem seja escrita e fundamentada, aplicável às prisões cautelares.
Já quanto à condenação pelo Júri, o CPP contém um regramento específico. De fato, a sentença no tribunal do júri dispensa relatório (381, II) que já foi entregue aos jurados antes da sessão de julgamento (423, II), após a formação do Conselho de Sentença (472, parágrafo único). O juiz também não precisa fundamentar (art. 96 da CF), sendo uma exceção constitucional, bastando se reportar às respostas dos jurados, a partir da decisão de pelo menos quatro deles (381, III).
Percebe-se, porém, que ambos os entendimentos da Suprema Corte refogem à simples análise conceitual e principiológica, incursionando em razões de política criminal. De fato, o país vem reduzindo sua taxa de homicídios nos últimos anos, de um máximo de 60 mil em 2017 para 39 mil em 2023. Porém, há um represamento de 186 mil júris aguardando a sessão de julgamento, com sentença de pronúncia publicada em apenas 23 mil casos. Um levantamento do CNJ feito em 2022 por ocasião do Mês Nacional do Júri constatou que há condenação do réu em metade dos julgamentos. Este levantamento dividiu os casos em que os policiais são vítimas ou réus, casos de vítimas menores de 14 anos e de feminicídios.
Esses números espelham a cifra negra, também presente em países desenvolvidos. Mas há casos bem-sucedidos, em estados que estabeleceram programas de integração de suas forças de segurança com o sistema de justiça, logrando acelerar os casos pendentes de feminicídios, com realização do Júri em até dois anos após o fato delituoso.
Nessa questão, é preciso considerar os custos com o processo penal, e com o Júri em particular. No Brasil, não há levantamentos que estimem esse custo, que possui um peso diferente para cada nação, a depender da população, taxa de homicídios e porte econômico. Estudos preliminares do IPEA utilizando dados de 2010 estimaram o custo médio de um processo penal entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. Mas esses valores estão muito defasados, e não se aplicam ao Júri. O relatório anual Justiça em Números do CNJ também não detalha esse cálculo.
Alguns levantamentos no exterior compilaram esses dados. Um estudo de 2016 da RAND Corporation publicado no American Journal of Criminal Justice estimou o custo médio de um homicídio para o sistema judicial dos EUA entre US$ 22 mil e US$ 44 mil. No Canadá, Thomas Gabor publicou um levantamento em 2015 intitulado “Custos do Crime e Resposta da Justiça Criminal”, que faz um compilado de estudos agregados de diversos países, como Canadá, EUA, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, França e Itália, incluindo também dois estudos no Chile e um na Polônia. O custo total de um homicídio inclui custos tangíveis e intangíveis, como dor, sofrimento e uma vida abreviada, sendo estimado entre US$ 4,8 milhões e US$ 5,9 milhões. Já o curso médio específico de um processo judicial por homicídio até a condenação foi calculado em US$ 544 mil. Acrescente-se o custo médio anual de US$ 81 mil para a custódia de adultos por crimes graves por longo período. Esse mesmo levantamento indicou que o custo médio dos processos por homicídio nos EUA é o dobro dos demais países desenvolvidos analisados. Não à toa a justiça negocial neste país inclui homicídios. No Brasil, a transação penal e o ANPP são limitados a crimes de baixo e médio potencial ofensivo.
Torna-se evidente que a comparação do impacto dos homicídios no gasto com o sistema judicial deve levar em conta alguns fatores. Os EUA têm um número elevado de homicídios, em comparação com os demais países desenvolvidos. Por outro lado, a Austrália tem uma taxa de homicídios baixa. Logo, a comparação do gasto do Brasil com o gasto na Austrália e nos EUA é indevido. A comparação deve ser feita entre países emergentes com taxas de homicídios compatíveis. É preciso ainda diferenciar o gasto efetivo e o gasto potencial, afinal, em países com altas taxas de homicídios, apenas uma fração deles são levados a julgamento.
Sem dúvida, a conjugação das altas taxas de homicídios, porte econômico e cifra negra pesaram no entendimento do STF para a execução provisória da pena no Júri. Antes, essa limitação era contornada com a prisão preventiva, utilizada como sanção para aplacar o clamor público, desfigurando sua natureza cautelar, principalmente em casos midiáticos, para indicar punição e prevenção geral positiva. Não foi mera coincidência os dois recursos dizerem respeito a casos de feminicídio.
Assim, a questão que se coloca é: se a tramitação recursal fosse célere, a Suprema Corte manteria esse entendimento? Como a comunidade jurídica apontou a via recursal como a culpada pela impunidade, principalmente nos tribunais superiores, estas cortes passaram a adotar uma jurisprudência defensiva. De fato, o STJ adotou a tese de que não cabe em Recurso Especial o revolvimento fático-probatório para absolver, pronunciar, desclassificar ou impronunciar o réu no Júri, levando a defesa a se utilizar do habeas corpus. Para um rápido vislumbre, em 2023 ingressaram no STJ 105 mil HCs e RHCs. Esse número elevado decorre do uso do HC substitutivo de Recurso Especial. O provimento de ofício do HC, já adotado pela jurisprudência, foi positivado pela lei 14.836/2024. Além disso, é comum a defesa interpor o Recurso Especial para evitar o trânsito em julgado e, concomitantemente, impetrar habeas corpus para sanar ilegalidade. A situação no STF não é diferente, com HCs compondo a maioria das causas na 1ª e 2ª turmas, com a ordem sendo concedida em apenas 5% dos casos.
Nada obstante a intenção de celeridade, é preciso confrontar a decisão da corte com casos limítrofes. Não resta dúvida que o entendimento adotado contrasta com o princípio da isonomia, já que cria uma distinção entre condenados. De fato, se o réu é condenado pelo Júri a uma pena de quatro anos de reclusão por homicídio simples privilegiado, deverá iniciar o cumprimento da pena tão logo se encerre o julgamento, ao passo que o condenado à pena de 30 anos de reclusão por latrocínio só iniciará o cumprimento da pena após o esgotamento de todos os recursos. O primeiro réu se submeterá ao regime do art. 492, I, “e” do CPP, enquanto o segundo se submeterá ao regime art. 283 do CPP.
Por outro lado, o trânsito em julgado também influencia outros institutos. De fato, a Lei nº 12.403/2011 alterou o art. 283 do CPP, exigindo o trânsito em julgado para a execução da pena. Essa lei também revogou o art. 323, IV, do CPP, permitindo a concessão da fiança mesmo com trânsito em julgado de outro crime doloso. O trânsito em julgado da condenação também é aplicado para a prisão preventiva, no art. 313, II, do CPP, além de habilitar os efeitos patrimoniais, como a ação civil ex delicto (art. 63), avaliação e venda em leilão público de bens sequestrados (art. 133) e a transferência definitiva da propriedade para o órgão público em caso de perdimento de bens (133-A, §4º). O art. 686 do CPP igualmente exige o trânsito em julgado para a execução da pena de multa. Não se revela razoável que os efeitos patrimoniais do homicídio aguardem o trânsito em julgado, enquanto o encarceramento possa ser cumprido provisoriamente. Além disso, a execução provisória da pena possui natureza híbrida, de direito material e processual, surgindo a questão de sua aplicação retroativa a milhares de casos pendentes de recursos nos tribunais do país.
Por outro lado, nos dois julgamentos do STF, os ministros invocaram casos de apelo social com vítimas vulneráveis, a exemplo de feminicídio, racismo e homotransfobia, não incluindo homicídios contra crianças. Alguns votos chegaram mesmo a ventilar a hipótese de aplicação apenas a estes casos específicos, prevalecendo, porém, a aplicação irrestrita a todos os julgamentos da competência do Júri.
Mas não se pode esquecer os casos em que o réu é condenado pelo Júri, e o tribunal ordena seu refazimento por nulidade. Anos depois, o réu é novamente condenado e o tribunal ordena que o júri seja refeito mais uma vez, desta feita por contrariedade manifesta à prova dos autos. O reú é então condenado pela terceira vez, encerrando-se a via da renovação da sessão de julgamento, e iniciando o itinerário para a redução de pena, com sucessivos recursos para a segunda e terceira instâncias.
Em se tratando de feminicídio, o STF considerou a tese da legítima defesa da honra inconstitucional na ADPF 779. Decidiu ainda que, se a defesa alegar a tese buscando gerar nulidade posterior, não terá o direito à renovação do julgamento. Este entendimento confere racionalidade ao sistema de justiça. De fato, há casos em que o réu é confesso, arrepende-se do crime perante os jurados e expressa o desejo de cumprir imediatamente punição. Ainda assim, a defesa técnica pode interpor recursos indefinidamente, procrastinando o cumprimento da pena por longos anos, já que o direito ao recurso é irrenunciável e prevalece a vontade da defesa técnica ante a defesa leiga. A esse respeito, o STJ firmou a tese de que, na intimação da sentença condenatória, não é necessária a apresentação do termo de recurso ou a indicação sobre a intenção do réu em recorrer.
É emblemático o caso do jornalista Pimenta Neves, que matou a tiros a namorada em 2000. Réu confesso, ele só foi preso onze anos depois do crime. Foi condenado pelo Júri em 2006 a uma pena de 19 anos de reclusão, o que impedia o protesto por novo júri, mas teve a pena reduzida sucessivamente em grau recursal. Só foi preso em 2011, cinco anos após o julgamento. Percebe-se deste caso a dificuldade de se chegar ao trânsito em julgado, por não haver um critério objetivo para tanto. Ao definirem o trânsito em julgado e determinarem seu encarceramento, os ministros do STF expressaram receio, debatendo em várias ocasiões se ainda caberia ou não algum recurso, após a interposição e análise de dezenas deles.
Além desses casos limítrofes opostos, tanto de afronta à isonomia quanto de impunidade, o entendimento do STF deve se adequar ao direito convencional. Não é possível submeter a decisão do STF ao controle de convencionalidade no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois esta corte afastou a tese da quarta instância. De igual modo, o STF entendeu na ADPF 153 que sua decisão final é irreformável, por força da soberania nacional inscrita no art. 1º, I, da CF. No entanto, ele próprio deve harmonizar sua jurisprudência ao direito convencional. Mas tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos quanto a Constituição Federal não exigem o trânsito em julgado para a execução da pena. A Convenção Europeia de Direitos Humanos também não o exige. A Corte IDH e o TEDH igualmente não fazem essa exigência, tanto que muitos países submetidos às suas respectivas jurisdições autorizam a execução provisória da pena de modo amplo para todos os processos penais, sem a necessidade de esgotamento dos recursos internos. Isso não impede que estas cortes exerçam a supervisão nestes casos, permitindo a adoção desta sistemática pelos Estados signatários sob a condição de outorgarem garantias mínimas aos acusados, como o direito de revisão da sentença.
No caso do Júri, o STF foi além de seu entendimento tradicional, de execução provisória da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias, que perdurou de 1988 a 2009, e de 2016 a 2019. De fato, conciliar esse critério com a soberania dos veredictos, tida como uma garantia institucional pela corte, não se revela tarefa trivial. Isso porque a apelação no Júri não possui efeito devolutivo amplo, descabendo ao tribunal de segundo grau reformar a decisão dos jurados. Ou seja, a decisão dos jurados, por mais injusta que pareça aos olhos do juiz presidente ou dos desembargadores, deverá ser respeitada, ressurgindo a questão do direito ao duplo grau de jurisdição, que tem sede convencional explícita no artigo 8º, item 2, “h” do Pacto de São José da Costa Rica. Como o STF não exigiu para a execução provisória um julgamento coletivo propriamente dito, emanado de órgãos fracionários de tribunais, e tampouco o esgotamento das instâncias ordinárias, entendeu satisfeita a garantia ao duplo grau de jurisdição com a mera possibilidade de interposição de apelação, ainda que despida de cognição exauriente.
De fato, não há direito ao duplo grau de jurisdição no Júri, mas sim direito ao duplo Júri. A despeito de não poderem modificar a decisão, os tribunais de segundo grau podem anulá-la, ordenando que a sessão seja refeita, exercendo a supervisão meritória (decisão manifestamente contrária à prova dos autos) ou procedimental (vícios processuais). Logo, o critério do esgotamento das instâncias ordinárias não se confunde com o critério do julgamento colegiado. Este último tem sido o padrão adotado no direito sancionador, como na Lei da Ficha Limpa e na Lei de Improbidade Administrativa. Mas o Júri não se caracteriza como um julgamento propriamente colegiado, por ser formado por juízes leigos. No âmbito dos tribunais de segundo grau, a diferença entre o julgamento unânime e por maioria nos órgão fracionários habilita a defesa a manejar os embargos infringentes e de nulidade, previstos no art. 609, parágrafo único, do CPP, ampliando-se o julgamento com a convocação de mais dois julgadores.
Além disso, o art. 489 do CPP, que dispõe que as decisões do Júri se darão por maioria, não possui o mesmo fundamento do art. 615 do CPP, já que calcado no sigilo e segurança dos jurados. Em outros países, há diferença material entre uma decisão do Júri unânime ou tomada por maioria, como no estado norte-americano da Flórida, que exige atualmente um veredicto unânime dos jurados para aplicação da pena capital.
Logo, para o STF, a possibilidade de concessão de efeito suspensivo na apelação pelo juiz presidente ou pelo relator concilia a soberania dos veredictos com a presunção de inocência, além de adequar o procedimento aos preceitos convencionais.
De fato, apesar de não possuir efeito devolutivo amplo, a apelação no júri pode ter efeito suspensivo, deferido pelo juiz presidente (art. 492, §3º) ou pelo relator (art. 492, §5º), neste caso após a apresentação das razões e contrarrazões. Segundo a disposição legal, o efeito suspensivo operava ope legis caso a pena fosse inferior a 15 anos e ope judicis caso a pena fosse igual ou superior a esse patamar. Com a decisão do STF, restou apenas o efeito suspensivo ope judicis, aplicável a todos os casos de condenação. Além disso, a “questão substancial” de que fala a lei para o deferimento do efeito suspensivo não se confunde com a distinção entre questão substancial/material e questão processual, abrangendo ambas e denotando, em verdade, a força do fundamento.
De fato, os fundamentos recursais do art. 593, III, "a" a "c" CPP se relacionam a erros procedimentais. Já a alínea "d" diz respeito ao mérito, cujo exame é limitado pelo parágrafo 3° deste mesmo artigo, que utiliza o advérbio de intensidade “manifestamente”, e circunscreve o poder de revisão à renovação do julgamento, entendimento reforçado pela súmula 713 do STF. De seu turno, o art. 596 e a parte final do art. 598 do CPP indicam que, em caso de absolvição, a apelação da acusação não tem efeito suspensivo, e o réu deve ser colocado imediatamente em liberdade. O parágrafo único do art. 596 excepciona apenas as medidas de segurança. Contrariamente, o art. 597 do CPP dispõe que, em caso de condenação, a apelação defensiva possui efeito suspensivo. Essa regra geral agora é excepcionada pelo art. 492, I, “e”, do CPP no caso de condenação pelo Júri. Mas mesmo neste caso o efeito suspensivo pode ser restabelecido pelo juiz ou relator da apelação. A lei adotou uma redação diferente para definir a “questão substancial” para o juiz e para o relator. Quanto ao primeiro, a lei se resume em indicar a plausibilidade revisional da condenação. Quanto ao segundo, ela especifica a possibilidade de absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para um patamar inferior a 15 anos. Logo, com o entendimento do STF, a parte final do inciso II do §5º do art. 492 do CPP tornou-se inócuo.
Desta feita, no caso de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, é possível à defesa postular o efeito suspensivo, buscando evitar a prisão do réu. Caso o réu já esteja preso preventivamente por ocasião da realização do Júri, a defesa ainda assim pode pleitear o efeito suspensivo buscando sua soltura, se o fundamento da prisão cautelar deixar de existir após o julgamento, o que não é incomum. A “questão substancial” também pode surgir no caso de ser negada pelos jurados a desclassificação para crime culposo, bem como no reconhecimento de qualificadora, visando assim afastar a hediondez do crime.
Quanto aos demais recursos, a súmula 604 do STJ indica que descabe mandado de segurança para conferir efeito suspensivo ao Recurso em Sentido Estrito. Esse entendimento se aplica também ao Agravo de Petição. A impetração do writ pela acusação nestes casos visava manter a prisão do réu em caso de concessão de liberdade provisória ou de progressão de regime. O STJ entende que não há direito líquido e certo ao efeito suspensivo previsto legalmente nestes casos. Excepcionalmente, a acusação pode se socorrer de medida cautelar inominada, caso presentes os requisitos de cautelaridade.
Definiu-se a execução provisória por meio de um critério intermediário, com base na pena aplicada. O legislador acolheu o patamar de 15 anos, conferindo preponderância ao juiz. De fato, se a acusação lograsse convencer os jurados a condenar o réu e reconhecer alguma qualificadora, a pena mínima passa para 12 anos no caso de homicídio doloso consumado. Segundo a sistemática da segunda fase do procedimento do Júri, ao Conselho de Sentença cabe decidir as qualificadoras e as causas de aumento e diminuição, cabendo ao juiz presidente aferir as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP e as agravantes e atenuantes, podendo lançar mão das qualificadoras sobejantes para tanto.
Desta forma, como efeito prático da alteração legal, ao juiz presidente conferiu-se o poder para decidir se o réu seria ou não preso ao final do julgamento, a depender da pena aplicada. Mas o STF passou o bastão para as partes, bastando à acusação conseguir a condenação para que o réu seja preso, com aplicação do regime fechado no caso de a pena superar oito anos, descontada a detração com prisões cautelares porventura aplicadas no curso do feito, segundo a súmula 716 do STF.
Por outro lado, caso a defesa logre a absolvição por clemência, pode o juiz presidente manter ou decretar a prisão preventiva, se houver pedido da acusação e estejam presentes os requisitos concretos de cautelaridade, não mais cabendo a prisão automática pela gravidade abstrata do crime. Esse pedido também poderá ser manejado no corpo do recurso de apelação, com a decretação da prisão no próprio acórdão que a julgar.
Em determinados casos, quando o Júri operava a desclassificação do elemento subjetivo, alguns juízes tomavam o feito para si e condenavam o réu por homicídio culposo. Atualmente, a absolvição genérica prepondera sobre a desclassificação, devendo o juiz presidente quesitar aquela com antecedência. Esse entendimento também confere protagonismo às partes, em linha com a plenitude de defesa.
De fato, a absolvição por clemência ocorre no 3° quesito, após acatadas pelos jurados a materialidade e autoria. Trata-se de um quesito genérico de absolvição, que não possui vinculação com as provas, podendo ser tomado por compaixão, como a imaturidade do réu. Neste caso, o STF permitiu à acusação apelar com base no art. 483, III, c/c § 2°, e art. 593, III, “d”, CPP, quando entender que a decisão é manifestamente contrário à prova dos autos. Percebe-se que no primeiro precedente qualificado, a corte reforçou a soberania dos veredictos, em prejuízo ao réu, determinando a execução provisória da pena. Já no segundo precedente qualificado, a corte relativizou a soberania dos veredictos, também em prejuízo ao réu, permitindo a apelação na absolvição genérica. Porém, o veredicto absolutório no segundo julgamento possui soberania qualificada, não podendo mais ser contestado pelo mesmo fundamento.
Ambos os julgados do STF possuem uma ampla margem de aplicação. A corte entende que o latrocínio é da competência do juiz singular, desde a edição da súmula 603, há quarenta anos. De fato, não faria sentido submeter este tipo de crime ao tribunal popular, já que sua motivação se resume ao ganho econômico do bem móvel subtraído. De igual modo, os dois entendimentos não se destinam à grande maioria dos homicídios praticados no país, vinculados à guerra entre facções criminosas. Isso porque, como regra, estes réus já respondem todo o processo em prisão preventiva, inclusive em grau recursal. Além disso, dificilmente se aplica a absolvição genérica nestes casos. O tribunal popular se destina precipuamente ao julgamento de homicídios em que há nuances emocionais e circunstanciais envolvidas.
Mas também aos acidentes automobilísticos fatais com dolo eventual, ainda que haja percalços procedimentais. Em um julgamento que presenciamos, um acidente em que o motorista estava ébrio e em alta velocidade resultou na morte de quatro passageiros do veículo. Na votação dos quesitos, os jurados decidiram pela condenação quanto à primeira vítima, desclassificação para lesão seguida de morte quanto à segunda vítima, desclassificação para homicídio culposo quanto à terceira vítima e absolvição quanto à quarta vítima. Apesar de o fato ser uno, a quesitação foi fracionada. De fato, de acordo com o art. 482, parágrafo único, e o art. 483, §6°, do CPP o questionário deve ser feito em proposições distintas, com uma série de quesitos para cada crime. A reforma operada pela Lei n° 11.689/2008 retirou dos jurados a votação dos aspectos técnicos, como concurso de crimes, continuidade delimita e circunstâncias judiciais, limitando-se a questões fáticas. Como o concurso de crimes impacta na dosimetria da pena, a lei reservou seu exame ao juiz presidente. No caso indicado, há nítido concurso formal de crimes, resultante de uma só conduta, sendo ilógico condenar por uma vítima e absolver por outra. No entanto, os jurados podem assim entender por sua íntima convicção, a depender do grau de relação de cada vítima com o réu, bem como a punição que entendem adequada ao caso. Se o segundo veredicto for de fato soberano, a decisão dos jurados deve ser respeitada, ainda que desconforme à técnica jurídica.
A esse respeito, o STJ já havia firmado a tese genérica de que o exame da controvérsia acerca do elemento subjetivo do delito é reservado ao Tribunal do Júri. Mas a partir do julgamento de recursos recentes, como o AgRg no AREsp. nº 2026454/PE, publicado em 13/05/2024, a corte atualizou sua tese, entendendo que a aferição do elemento subjetivo especificamente no acidente automobilístico fatal, quando houver elementos que “possivelmente” caracterizam o dolo eventual, deve ser feita pelo Júri, como juiz natural da causa.
Porquanto, conclui-se que razões de política criminal levaram a estes três entendimentos recentes emanados das cortes superiores, buscando celeridade em casos de homicídios com vítimas vulneráveis e visando reduzir a alta taxa de letalidade no trânsito.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A Soberania dos Veredictos e a Presunção de Inocência nos Temas 1068 e 1087 do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/67127/a-soberania-dos-veredictos-e-a-presuno-de-inocncia-nos-temas-1068-e-1087-do-stf. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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