A discussão em torno da devolução de valores pagos a maior no regime de substituição tributária para frente (ICMS-ST) sempre suscitou relevantes controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, especialmente diante da exigência de comprovação do não repasse do ônus tributário ao consumidor final, prevista no art. 166 do Código Tributário Nacional (CTN). Contudo, ao julgar o REsp 2.034.975/MG, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.191), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento que altera substancialmente a lógica até então prevalente. O STJ consagrou, com clareza e coesão, a tese de que não se aplica o art. 166 do CTN quando o contribuinte substituído revende mercadoria por preço inferior à base de cálculo presumida, configurando-se mero ressarcimento, e não repetição de indébito.
Contextualização jurídica: ICMS-ST e o papel do art. 166 do CTN
A substituição tributária para frente, prevista no art. 150, § 7º, da Constituição Federal de 1988, consiste na antecipação do pagamento do ICMS por um contribuinte responsável (substituto tributário), com base em uma presunção de valor futuro da operação final. O recolhimento ocorre com base numa base de cálculo presumida, e seu objetivo é facilitar a arrecadação e reduzir a evasão fiscal.
Ocorre que, por vezes, o preço efetivamente praticado na revenda da mercadoria revela-se inferior ao valor presumido utilizado para o recolhimento do tributo. Surge, então, a discussão sobre a possibilidade de o contribuinte substituído reaver a diferença paga a maior. Nesse ponto, o art. 166 do CTN impõe condicionantes à restituição de tributos indiretos, como o ICMS, exigindo a comprovação de que o contribuinte não transferiu o encargo ao consumidor ou, se o fez, que tenha autorização expressa deste.
Essa exigência visava evitar enriquecimento ilícito por parte do contribuinte, mas no contexto do ICMS-ST, sua aplicação vinha sendo questionada, especialmente diante da impossibilidade de repasse ao consumidor de tributo que não incidiu sobre a operação final.
O julgamento do STJ e a construção da tese jurídica
No caso julgado, o Estado de Minas Gerais pleiteava a aplicação do art. 166 do CTN como condição para a restituição da diferença de ICMS/ST paga a maior, uma vez que, em tese, haveria o risco de repasse do ônus ao consumidor. Entretanto, o relator, Ministro Herman Benjamin, pontuou que, na substituição tributária para frente, o valor pago não era indevido no momento da arrecadação, pois se baseava na presunção legalmente estabelecida. A diferença entre a base presumida e a efetiva não configura, portanto, pagamento indevido (regido pelo art. 165 do CTN), mas sim fato superveniente que gera direito ao ressarcimento.
O STJ entendeu que não se trata de repetição de indébito, e sim de ressarcimento do valor pago a maior, amparado no art. 150, § 7º, da CF/88 e no art. 10 da LC 87/96 (Lei Kandir). Dessa forma, o art. 166 do CTN, por se referir a hipóteses de pagamento indevido, não se aplica. Esse entendimento foi sustentado por jurisprudência consolidada da Primeira e da Segunda Turmas do STJ, em julgados como o REsp 525.625/RS, AgInt no REsp 1.968.227/MG e AgInt no AREsp 2.209.468/MG.
A tese fixada foi a seguinte:
“Na sistemática da substituição tributária para frente, em que o contribuinte substituído revende a mercadoria por preço menor do que a base de cálculo presumida para o recolhimento do tributo, é inaplicável a condição prevista no art. 166 do CTN.”
Efeitos práticos: segurança jurídica e previsibilidade tributária
Do ponto de vista prático, a decisão representa significativa redução de ônus probatório para o contribuinte, que não mais precisa demonstrar que não repassou o valor ao consumidor. Tal exigência, na sistemática do ICMS-ST, mostrava-se incompatível com a natureza da relação, uma vez que o tributo foi recolhido de forma antecipada e com base em fatos que não se concretizaram.
A mudança jurisprudencial promove segurança jurídica e previsibilidade tributária, elementos centrais para a atividade empresarial. Ao reconhecer que o valor recolhido em excesso não foi efetivamente suportado pelo consumidor, o STJ evita injustiças fiscais e impede que o Estado se beneficie de um tributo calculado sobre um fato econômico presumido que não se realizou.
Além disso, a decisão reforça a supremacia da Constituição Federal, especialmente no tocante ao art. 150, § 7º, que assegura o direito à restituição quando o fato presumido não se consuma ou se realiza de forma diversa. O STJ, ao interpretar o art. 166 do CTN de modo restritivo, preserva o equilíbrio federativo e o respeito ao pacto constitucional tributário.
Doutrina e jurisprudência: fundamentos e respaldo teórico
A doutrina tributária já apontava a necessidade de distinguir repetição de indébito de ressarcimento por fato superveniente. Roque Antônio Carrazza, ao abordar a substituição tributária, sustenta que o recolhimento antecipado do ICMS-ST, quando maior do que o efetivamente devido, gera direito ao ressarcimento do valor excedente, independentemente de comprovação de repasse (ICMS, 19ª ed., Malheiros, 2022, p. 350).
A decisão do STJ, nesse sentido, alinha-se à evolução teórica da tributação indireta, ao passo que refina a aplicação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da vedação ao confisco. Na jurisprudência, a decisão reforça a linha já traçada no RE 593.849/MG (Tema 201 do STF), no qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à restituição, mas não enfrentou a questão do art. 166 do CTN, lacuna esta agora preenchida pelo STJ.
Conclusão
O julgamento do REsp 2.034.975/MG pelo STJ não apenas pacifica uma antiga controvérsia jurisprudencial, como também alinha o direito tributário infraconstitucional às premissas constitucionais de justiça fiscal e segurança jurídica. Ao afirmar a inaplicabilidade do art. 166 do CTN nos casos de ICMS-ST recolhido a maior por base de cálculo presumida superior à efetiva, o tribunal confere racionalidade ao sistema e desonera o contribuinte de um ônus probatório desproporcional.
A decisão, além de relevante para a comunidade jurídica, traduz um avanço na proteção dos direitos dos contribuintes e na contenção de excessos arrecadatórios, evitando que o Estado se beneficie indevidamente de tributos baseados em presunções não realizadas. Trata-se, enfim, de um marco interpretativo que harmoniza a prática tributária à efetiva realidade econômica das operações comerciais.
Referências bibliográficas:
CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores/Juspodivm, 2022.
STF, RE 593.849/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 19/10/2016.
STJ, REsp 2.034.975/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 14/08/2024.
Precisa estar logado para fazer comentários.