A edição da Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, representou uma inflexão histórica no sistema tributário brasileiro, ao instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), reconfigurando profundamente a tributação sobre o consumo. Dentre os diversos aspectos inovadores, merece especial atenção o regime específico criado para a tributação dos serviços financeiros, que passou a ser tratado de maneira detalhada, autônoma e sofisticada nos artigos 181 a 232 da referida lei. Este artigo busca oferecer uma visão ampla e integrada desse regime, sem descuidar do rigor técnico-jurídico exigido pelo tema.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que o legislador infraconstitucional reconheceu a peculiaridade da intermediação financeira, ao estipular que determinadas atividades estariam submetidas a um regime próprio de apuração do IBS e da CBS, afastando-se da sistemática ordinária de tributação sobre o valor da operação (art. 181). Assim, conforme delineado no art. 182, enquadram-se nesse regime atividades como operações de crédito, câmbio, compra e venda de títulos e valores mobiliários, securitização, faturização (factoring), arrendamento mercantil, gestão de fundos, seguros, previdência complementar, entre outras. O critério adotado foi funcional: o fornecimento oneroso de bens ou serviços diretamente ligados ao negócio financeiro, afastando rendimentos passivos ou meramente patrimoniais, que permanecem fora do campo de incidência (art. 6º, V a VII).
De igual modo, o art. 183 enumerou as pessoas obrigadas a esse regime, abrangendo não apenas instituições financeiras reguladas pelo Banco Central, mas também entidades não financeiras que desempenhem as atividades descritas, como securitizadoras, administradoras de consórcio, gestoras de recursos e sociedades de capitalização.
No tocante à base de cálculo, o art. 185 estabeleceu que se considerará a receita auferida nas atividades abrangidas pelo regime específico, com diversas exclusões dispostas nos arts. 186 e 187. Em especial, é vedada a dedução de despesas administrativas ou outras não diretamente vinculadas à prestação de serviços financeiros (art. 187). Para evitar interpretações ampliativas, o art. 192 pormenorizou as deduções admitidas, como encargos financeiros de captação de recursos, valores de principal e encargos pagos ao investidor, perdas com créditos e sinistros, dentre outras, sempre atreladas à essência do serviço financeiro.
Em relação às alíquotas, a lei conferiu à matéria um tratamento dinâmico e evolutivo. O art. 189 dispõe que, de 2027 a 2033, as alíquotas serão determinadas com base nos parâmetros do art. 233, buscando equivalência à carga tributária efetiva dos tributos substituídos (PIS, Cofins, ISS, ICMS e IPI), incidindo exclusivamente sobre o setor financeiro. A partir de 2034, essas alíquotas permanecerão fixas, observando-se a proporção entre o IBS e a CBS estabelecida anteriormente. Tal sistema visa assegurar neutralidade e previsibilidade, em consonância com o art. 2º da LC 214, que consagra a neutralidade como princípio informador do IBS e da CBS.
Quanto à apropriação de créditos, o art. 190 delega ao regulamento a disciplina detalhada, condicionando-a à existência de fornecimentos onerosos, com o fito de garantir não cumulatividade plena, sem favorecer acumulação de créditos em operações atípicas. Além disso, a lei impõe deveres instrumentais reforçados, inclusive no tocante à apresentação de demonstrações financeiras e informações detalhadas à administração tributária (art. 191).
Por sua vez, nas hipóteses de importação de serviços financeiros, os artigos 231 e 232 estabelecem incidência do IBS e da CBS, mas com fator de redução na base de cálculo, e alíquota zero se houver direito a crédito do adquirente. No que tange à exportação, a imunidade foi assegurada, exigindo-se, contudo, a reversão proporcional das deduções efetuadas (art. 232). Trata-se de medidas que garantem a competividade internacional e evitam a exportação de tributos.
No campo do Imposto Seletivo (IS), é importante ressaltar a ausência de previsão de incidência sobre serviços financeiros na LC 214/25, o que ratifica a intenção do legislador de limitar o IS a bens e serviços com externalidades negativas, não abrangendo intermediação financeira, conforme delimitado no Livro II da norma.
Por fim, cumpre realçar que o desenho normativo buscou aliar rigor técnico a uma visão pragmática da intermediação financeira, tratando-a como vetor essencial do sistema econômico e, por isso mesmo, objeto de tributação compatível com sua natureza específica. A opção pelo regime específico revela preocupação com a neutralidade, a não cumulatividade e a simplicidade, evitando interpretações conflitantes ou assimétricas. A LC 214/25, assim, inaugura um novo paradigma na tributação de serviços financeiros, cuja efetiva implementação dependerá da regulação infralegal e da interpretação jurisprudencial que se consolidar nos anos vindouros, o que exigirá dos operadores do Direito especial atenção e preparo técnico.
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