RESUMO: Esse trabalho aborda a questão do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária. É sabido que as as instâncias administrativa e penal são independentes e que a ação penal para a apuraçao do crimes tributários é pública incondicionada. Porém, para se ingressar no judiciário é necessário que exista a figura do tributo devido e é competência privativa da autoridade administrativa apurar a existência ou não de tributo devido. Sendo assim, apresenta-se como indispensável para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária o esgotamento da instância administrativa, já que enquanto não ocorrer o julgamento na via administrativa acerca da existência do débito tributário não há que se falar em materialidade do delito.
Palavras-chave: instância administrativa, tributo devido, ação penal, crimes contra a ordem tributária.
INTRODUÇÃO
O assunto a ser abordado neste artigo refere-se à questão do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária.
Primeiramente serão analisadas, de maneira suscinta, as peculiaridades dos crimes contra a ordem tributária, abordando ainda a diferença existente entre o Direito Penal Tributário e o Direito Tributário Penal.
Em seguida será estudado o tema deste trabalho, oportunidade em que serão expostas opiniões doutrinárias e julgados do Supremo Tribunal Federal.
Na parte conclusiva será demonstrado que, data vênia os argumentos adversos, é inadmissível o ingresso da ação penal por crime tributário antes da conclusão do procedimento administrativo.
Os crimes contra a ordem tributária são disciplinados pela Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, a qual também se aplica aos crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo.
Tendo em vista que a referida Lei não definiu em que consiste a ordem tributária, deve-se recorrer à doutrina para tanto.
Consoante Edmar Oliveira Andrade Filho (2007, p. 82) “A ordem tributária deve ser entendida como uma abstração que diz respeito à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos ou contribuições sociais”.
É válido frisar que tanto a instituição, quanto a arrecadação e a fiscalização de tributos devem decorrer de legislação tributária eficaz que tenha observado todos os princípios constitucionais tributário.
Quanto ao bem jurídico tutelado, entende-se que, por se emprestar natureza extintiva da punibilidade ao pagamento, o intuito da Lei é proteger a higidez financeira da Fazenda Pública (SOUSA, 2002, p. 04).
Sendo assim, na sua essência, o bem jurídico protegido é o patrimônio dos sujeitos ativos da obrigação tributária, vez que quando há a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal surge para o ente tributante um direito de receber determinada quantia.
E, quando o exercício desse direito é frustrado em virtude de conduta dolosa do sujeito passivo, há um dano ao patrimônio da Fazenda Pública, dano esse que se encontra tipificado nos artigos da Lei 8.137/90.
Nesse diapasão, a mencionada Lei dedicou o seu capítulo I, composto por três artigos, para definir as condutas caracterizadoras dos crimes contra a ordem tributária.
Os dois primeiros artigos tratam dos crimes praticados por particulares, enquanto o terceiro se dirige aos realizados por funcionários públicos.
De forma genérica, pode-se afirmar que a Lei dos crimes contra a ordem tributária incrimina as condutas que traduzem supressão ou redução indevida de tributo ou contribuição social sem, contudo, conferir- lhes conceito próprio, devendo-se recorrer ao direito tributário para isso.
Destarte, segundo o artigo 3° do Código Tributário Nacional:
“Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Por sua vez, as contribuições sociais são as primeiras das subespécies de contribuições especiais previstas no artigo 149 da Constituição Federal.
“É terminologicamente incorreto utilizar a expressão contribuição social como gênero, pois elas são apenas subespécie de contribuições especiais utilizadas pela União, quando esta quer conseguir recursos tributários para atuar na área social” (ALEXANDRE, 2007, p. 70).
Passando a analisar o elemento subjetivo do tipo dos delitos em questão, a simples ausência da previsão culposa na legislação pertinente já é suficiente para se concluir que os tipos penais são, sem exceção, dolosos.
Isso porque o Código Penal, que se aplica subsidiariamente, prescreve a excepcionalidade do tipo culposo no seu artigo 17, § único, in verbis:
“Salvos os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.
Como conseqüência direta disso tem-se que o erro de tipo, aquele existente sobre o elemento constitutivo do tipo legal de crime, de que trata o artigo 20 do Código Penal, tem, nesta seara dos crimes contra a ordem tributária o condão de afastando o dolo, excluir a própria tipicidade e à míngua de expressa previsão da forma culposa de agir, afastada estaria a existência do crime (SOUSA, 2002, p. 03).
Referente ao sujeito ativo, os delitos em estudo estão enquadrados entre aqueles em que a conduta delituosa pode exteriorizar-se tanto por intermédio de pessoa física como de pessoa jurídica.
A pessoa física na condição de contribuinte de determinado tributo, quando pratica alguma conduta típica, continua sendo sujeito passivo na relação tributária e adquire a condição de sujeito ativo do crime contra a ordem tributária.
Quando o sujeito ativo é a pessoa jurídica, a conseqüência é diversa, haja vista em nosso ordenamento jurídico-penal ela não estar sujeita a outra pena que não seja de caráter patrimonial, como as multas pelo descumprimento da obrigação tributária (ANDRADE FILHO, 2007, p. 97).
Assim, é incorreto afirmar que o sujeito ativo nos crimes contra a ordem tributária será sempre aquele que se encontra no pólo passivo da relação jurídico-obrigacional, que surge quando realizado o fato descrito em lei como necessário e suficiente para o estabelecimento da obrigação de pagar tributo ou contribuição social, cujo cumprimento é frustrado pela ação ou omissão criminosa.
No que tange à responsabilidade penal, é necessário fazer a distinção desta com a responsabilidade tributária.
“A natureza civil da responsabilidade tributária permite que sejam alcançados patrimonialmente qualquer daqueles que figurem no quadro social da pessoa jurídica, sem que seja necessário cogitar-se de sua participação ou não na concretização da evasão fiscal”. (SOUSA, 2002, p. 05).
Já na responsabilidade penal isso não tem amparo legal, vez que existem no nosso ordenamento jurídico os princípios constitucionais da intranscedência e da individualização da pena.
Como se sabe, a pessoa física pode utilizar-se da pessoa jurídica para efetivar a supressão ou redução ilegal de tributos e contribuições.
Entretanto, tanto numa situação como noutra, a regra é a de que devem ser responsabilizados todos quantos tenham concorrido, de forma omissiva ou comissiva, para a supressão ou redução ilegal.
Por isso, há que se distinguir, nas hipóteses em que a pessoa jurídica é o meio utilizado para a prática do delito, as circunstâncias em que a vantagem é auferida apenas pelo agente, mandatário, preposto ou empregado, das hipóteses em que a vantagem é distribuída também entre os sócios ou acionistas.
Falando ainda sobre a responsabilidade penal, interessante é a questão relativa aos efeitos penais do pagamento do tributo.
A extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária pela quitação do tributo devido foi disciplinada pelo artigo 14 da Lei 8.137/90, o qual determinava que o pagamento do débito tributário feito antes do recebimento da denúncia criminal era causa excludente da punibilidade, contudo o referido dispositivo fora revogado pelo artigo 98 da Lei 8.383/91.
Não obstante, a Lei 9.249, de 26 de dezembro de 1995, voltou a admitir a extinção da punibilidade nos mesmos termos acima expendidos.
A competência para julgar o delito em comento é estabelecida de acordo com o Ente Estatal que sofreu a lesão.
Logo, como os tributos podem ser instituídos pela União, pelos Estados ou pelos Municípios, competente é aquele que foi prejudicado pela fraude.
Um outro ponto a ser enfocado é se o delito é de resultado ou formal, ou seja, se há ou não crime independentemente da efetiva evasão fiscal.
A simples leitura do artigo 1° da Lei 8.137/90 é suficiente para se afirmar que a configuração dos crimes decorrentes de tais condutas não se perfaz enquanto não houver o dano.
Entretanto, as normas dos incisos do artigo 2° da referida Lei são formais, o que significa que o momento da consumação do delito independe da ocorrência do resultado (SOUSA, 2002, p. 03).
Portanto, nos casos abrangidos pelo artigo acima, restará configurado o crime tributário mesmo que não produza resultado no plano externo, sendo a intenção de reduzir ou suprimir do tributo considerada ilícita e passível de punição.
Os crimes contra a ordem tributária são de iniciativa pública e, conquanto não esteja expressa na norma apenadora, tal iniciativa não está condicionada, por exemplo, à representação do ofendido.
Nesses termos, o Supremo Tribunal Federal, em 17 de outubro de 1984, editou a súmula 609, na qual está expressa que é pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal.
Finalmente, é mister diferenciar o ramo do Direito definido como Direito Penal Tributário do outro ramo qualificado como Direito Tributário Penal.
Não restam dúvidas que o simples retardamento do cumprimento da obrigação tributária, bem como seu inadimplemento completo, criam para o sujeito ativo o direito de impor as penalidades previamente estabelecidas na legislação tributária.
Entretanto, quando o descumprimento da obrigação tributária for originado de condutas arroladas como crime no ordenamento jurídico-penal, incide a regra geral garantidora do direito que o Estado tem de punir.
“Assim, temos o Direito Tributário Penal quando se cuida das sanções tributárias, as quais decorrem da legislação tributária e são aplicadas no caso de descumprimento de qualquer dispositivo legal ou regulamentar relativo à obrigação tributária” (ANDRADE FILHO, 2007, p. 35).
Ressalte-se que a penalidade pode ser aplicada sem a obrigatoriedade de restar provada a culpa do sujeito passivo, sendo suficiente apenas agir contrariamente ao que prescreve a legislação tributária.
Tal afirmação está amparada no artigo 136 do Código Tributário Nacional, o qual, em linhas gerais, estatui que, salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente.
Por sua vez, caso o inadimplemento da obrigação seja precedido de crime incidiriam as normas do Direito Penal Tributário.
Conforme Edmar Oliveira Andrade Filho (2007, p. 360),
Entende-se como Direito Penal Tributário o conjunto de normas jurídicas que tutelam o patrimônio do sujeito ativo da obrigação tributária e que prescrevem penas privativas de liberdade e multa, sempre que o descumprimento de tais obrigações se der por meio de artifícios fraudulentos, segundo a descrição contida na lei, e que estejam presentes os elementos que informam a culpabilidade.
Em suma, a infração apenas tributária constitui objeto do Direito Tributário Penal, enquanto que o ilícito tributário tipificado como fato punível vem a ser objeto do Direito Penal Tributário.
Praticado o crime contra a ordem tributária, como de resto qualquer outro crime, nascem para o Estado o direito e o dever de adotar as medidas indicadas na lei para punir a conduta reprovável.
Todavia, para aplicação da sanção prevista em lei, precisa ser formada a culpa do agente, através de um processo, que permita a observância do princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa do acusado, e esteja fundado em lei que especifique todo seu rito.
Com o advento da Lei 4.357, de 16 de julho de 1964, tem-se início uma celeuma acerca da (des)necessidade do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária.
O dispositivo legal acima mencionado asseverava em seu artigo 11, § 3°, que a ação penal seria iniciada por meio de representação da Procuradoria da República, à qual a autoridade julgadora de primeira instância é obrigada a encaminhar as peças principais do feito, destinadas a comprovar a existência do crime, logo após decisão final condenatória proferida na esfera administrativa.
Dessa maneira, o exercício da ação penal estava condicionado ao deslinde do procedimento administrativo.
Todavia, antes mesmo que os tribunais pudessem se manifestar sobre o assunto, entrou em vigor a Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, que definiu os crimes de sonegação fiscal, e mudou a concepção construída pela norma anterior. O seu artigo 7°, § 1°, tratou sobre o tema da seguinte maneira:
Artigo 7°. As autoridades administrativas que tiverem conhecimento de crime previsto nesta Lei, inclusive em autos e papéis que conhecerem, sob pena de responsabilidade, remeterão ao Ministério Público os elementos comprobatórios da infração, para instrução do procedimento criminal cabível.
§ 1°. Se os elementos comprobatórios forem suficientes, o Ministério Público oferecerá, desde logo, denúncia.
Como se percebe, referida norma não exigiu o prévio exaurimento da instância administrativa como condição para o ingresso no judiciário.
Durante a vigência do artigo acima, foi editada a já mencionada súmula 609 do Pretório Excelsior, dando a ensejar que a questão da necessidade do esgotamento do processo administrativo para a propositura da ação penal parecia superada.
Porém, com o advento da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, mais especificamente do seu artigo 83, cuja redação atual é dada pela Lei nº 12.350/2010, se restabeleceu a discussão.
Versa o citado artigo, ipsis litteris:
“Artigo 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”.
Pois bem, o fato é que ainda há discordância no mundo jurídico acerca da necessidade ou não do prévio esgotamento da instância administrativa para a persecução penal.
Primeiramente, trazem-se à baila alguns argumentos levantados com o intuito de negar o condicionamento da ação penal à decisão final no âmbito administrativo.
Nesse sentido, deve-se dizer que o repúdio ao artigo 83 da Lei 9.430/96 foi tanto que, logo depois de sua entrada em vigor, foi argüida sua inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, através da ADI n° 1.571-1.
Tal ação foi julgada improcedente, com a conseqüente declaração de constitucionalidade do artigo, mas um trecho de seu aresto merece destaque, a saber:
(...) Não cabe entender que a norma do artigo 83 da Lei n° 9.430/1996 coarcte a ação do Ministério Público Federal, tal como prevista no artigo 129, I da Constituição, no que concerne à propositura da ação penal, pois, tomando o MPF, pelos mais diversificados meios de sua ação, conhecimento de atos criminosos na ordem tributária, não fica impedido de agir, desde logo, utilizando-se, para isso, dos meios de prova a que tiver acesso (STF, 2003, p. 265) (...).
Como é sabido, a propositura da ação penal para a persecução de autores de fatos que configurem crimes tributários é pública incondicionada, eis que nenhuma exceção foi prevista.
Aliás, se os legisladores julgassem convincente e apropriado que a esfera administrativa fosse realmente um pressuposto para a deflagração da ação penal, teriam feito isso de uma forma expressa e objetiva, retirando dos juristas qualquer possibilidade de argumentação contrária, já que o artigo 83 da Lei 9.430/96, deixa luzente que a condição é para a representação, não proibindo a deflagração pelo Ministério Público da ação baseada em prova obtida por outra forma (NEVES, 2005, p. 04).
Até porque seria inaceitável que nos casos de fraudes detectadas de plano pelo fisco ou pelo Ministério Público, um recurso administrativo tolhesse a propositura ou o andamento de uma ação penal baseada em provas fáticas, susceptíveis de condenação por práticas defraudatórias.
Sem falar que, caso o recurso administrativo impedisse o andamento da ação penal, poderia haver hipóteses em que contribuintes já condenados judicialmente por crime tributário, cuja sentença não tenha transitado em julgado, viessem a recorrer administrativamente visando somente procrastinar o prosseguimento da ação penal ou até mesmo da execução da pena.
Por isso, deve ser estabelecido que não está o Ministério Público submetido ao término, ou resultado do processo administrativo, desde que o delito tributário se revista de indícios de autoria e materialidade.
Ainda, não se pode olvidar que a Carta Magna, em seu artigo 5°, inciso XXXV, assegura como direito e garantia individual que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
A Constituição Federal de 1988, diferentemente da anterior, afastou a necessidade da chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, o que, de fato, constituía verdadeiro obstáculo ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário.
“Já se decidiu pela inexigibilidade de exaurimento das vias administrativas para obter-se o provimento judicial, pois foi excluída a permissão, que a E.C. n° 07 à Constituição anterior estabelecera, de que a lei condicionasse o ingresso à exaustão das vias administrativas” (NEVES, 2005, p. 06).
Diante disso, a legislação infraconstitucional, no caso concreto a Lei 9.430/96, não tem o condão de exigir o esgotamento da instância administrativa para a impetração da ação no judiciário.
Outro argumento usado pelos defensores da desnecessidade do prévio esgotamento do procedimento administrativo nos crimes contra a ordem tributária está relacionado com a questão da independência das instâncias administrativa e penal.
As responsabilidades administrativa e criminal são independentes e autônomas, bastando lembrar que nos delitos fiscais o lançamento apenas declara e formaliza o crédito tributário existente, ou seja, o ilícito penal existiu em período anterior e diante da fiscalização realizada é constatado e devidamente documentado por meio de auto de infração (NOGUEIRA DA GAMA, 2005, p. 05).
Devido a isso, não se pode descartar a hipótese de que seja descoberta conduta que se caracterize como típica no âmbito dos crimes tributários sem qualquer procedimento administrativo prévio, por exemplo, quando o crédito tributário esteja prescrito, mas o delito, em face da pena mais rigorosa, não.
Nesse caso, de maneira alguma cabe alegar que a ação penal não poderia ser iniciada e finda independentemente de qualquer responsabilização administrativa.
“É certo que o oferecimento de impugnação ou interposição de recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário, mas não a possibilidade de se ingressar com a ação penal correspondente, diante da independência das instâncias” (NOGUEIRA DA GAMA, 2005, p. 07).
Por seu turno, abaixo serão vistos alguns fundamentos daqueles que entendem que é condição sine qua nom para a denúncia por crimes tributários o esgotamento da via administrativa.
A priori, é preciso esclarecer que o artigo 83 da Lei 9.430/96, ao determinar que a participação do Ministério Público só deve ocorrer a partir da conclusão do procedimento administrativo, não visou retirar desse órgão a competência material constitucionalmente assegurada.
O que pretendeu, na realidade, o mencionado artigo foi ordenar, no tempo, a atuação de cada um dos órgãos interessados nas condutas que constituem crimes contra a ordem tributária, evitando que o Ministério Público comece a devassar a intimidade do contribuinte quando o núcleo do tipo penal ainda não foi razoavelmente identificado (ANDRADE FILHO, 2007, p. 126).
Em outras palavras, a atuação do Órgão Ministerial deve respeitar o tempo e as circunstâncias impostas pela lei, até mesmo porque quando a Constituição Federal deu poderes ao parquet, foi taxativa ao mencionar que esses poderes deveriam ser exercidos na forma da lei.
Impende destacar que referido dispositivo não pôs em xeque a independência existente entre as instâncias penal e administrativa, vez que não há dúvidas quanto à autonomia das mesmas, pois tanto o Ministério Público como os agentes fiscais têm seus âmbitos materiais de atuação marcados pela lei.
Ao dizer que a representação fiscal será encaminhada ao Ministério Público após proferida decisão final, na esfera administrativa, sobre exigência do crédito tributário correspondente, ela não criou nenhum laço de dependência entre as supracitadas instâncias.
Na verdade, como bem asseverou Luis Flávio Gomes e Alice Bianchini (2007, p. 98), “Não se trata propriamente de independência de instâncias. O que ocorre é que inexiste a figura jurídica do tributo devido, elementar nos crimes do art. 1° da Lei 8.137/90, situação que somente resultará modificada com a decisão final do procedimento administrativo”.
Outrossim,
“É certo que a Lei 8.137/90 define também crime formal, ou de mera conduta. Mesmo neste, porém, é imprescindível a existência de um tributo devido, sem o qual o dolo específico não é possível” (MACHADO 2002, p.159).
Portanto, para se ingressar no judiciário é necessária a figura do tributo devido, e, no sistema jurídico brasileiro, compete privativamente à autoridade administrativa discutir acerca da existência ou não de tributo devido e qual o seu valor.
Pela inteligência do artigo 142 do Código Tributário Nacional, compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor aplicação da penalidade cabível.
Logo, quando se discute no âmbito administrativo se o tributo é devido ou não, somente após a conclusão do procedimento é que se dissipa a dúvida sobre esse ponto.
Se a administração fiscal ao menos definiu se o tributo é devido ou não, como poderiam, no juízo penal, ser elaboradas discussões acerca de eventual lesão fiscal? Enquanto pendente de decisão administrativa a conduta do contribuinte não passa de possibilidade de que se constitua em um ilícito fiscal (GOMES; BIANCHINI, 2007, p. 97).
Sendo assim, verifica-se que enquanto não ocorrer o julgamento na via administrativa acerca da existência do débito tributário exigível, ausente se encontra uma das condições da ação, qual seja, a justa causa, haja vista a materialidade do delito encontrar-se vinculada à decisão administrativa.
Não é demais frisar que a impertinência da ação penal nesses casos específicos salta aos olhos, já que o débito tributário não está reconhecido definitivamente, o que significa que a manifestação final da autoridade administrativa competente é indispensável para que se possa ter como configurado o crime de supressão ou redução de tributo.
Afora isso, não se pode mitigar o artigo 34 da Lei 9.249/95, que garante ao contribuinte a oportunidade de extinção da punibilidade através do pagamento antes do recebimento da denúncia, de modo que o seu oferecimento só será legítimo a partir do momento em que o quantum devido tornar-se definitivo, vale dizer, depois que o credor diga, debaixo do contraditório e da ampla defesa, a exata dimensão desse quantum.
Inclusive, também nos casos em que o Órgão Ministerial tome conhecimento, por qualquer meio, dos fatos que, em tese, caracterizam crimes tributários, a garantia prevista no artigo 34 da Lei 9.249/95 deve ser respeitada, o que só ocorrerá, em concreto, depois de esgotadas todas as instâncias administrativas previstas no ordenamento jurídico vigente (ANDRADE FILHO, 2007, p.95).
Ainda, não aguardar o término do procedimento administrativo para dar início a um processo criminal é ferir frontalmente o princípio da ampla defesa insculpido no artigo 5°, LV, da Carta Maior.
Nos termos desse princípio, é assegurado aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Diante desse postulado não restam dúvidas de que o contribuinte, sob pena de supressão de direito constitucional, só pode ser processado criminalmente depois de encerrado o processo administrativo fiscal de acertamento tributário.
Sobre o tema, leciona Hugo de Brito Machado (2002, p. 162):
“Admitir o início da ação penal antes da manifestação definitiva da autoridade administrativa sobre a ocorrência da supressão ou redução do tributo, implica maus tratos à garantia constitucional da ampla defesa no procedimento administrativo”.
Registre-se, por oportuno, que quando o contribuinte efetuar o pagamento antes da certeza do débito o mesmo terá o seu patrimônio diminuído injustamente, o que vai de encontro, mais uma vez, com um direito garantido pela Carta Magna.
Isso porque, aduz o seu artigo 5°, inciso LIV, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal.
Essa cláusula implica que se aguarde o término do procedimento administrativo, para só então exigir-se a parcela do patrimônio a que o contribuinte está obrigado.
E, para finalizar, é mister transcrever dois julgados do Supremo Tribunal Federal que ratificam o posicionamento da necessidade do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária.
"habeas corpus" - delito contra a ordem tributária - sonegação fiscal - procedimento administrativo-tributário ainda em curso - ajuizamento prematuro, pelo ministério público, da ação penal - impossibilidade - ausência de justa causa para a válida instauração da "persecutio criminis" - invalidação do processo penal de conhecimento, desde o oferecimento da denúncia, inclusive - crime de quadrilha - prescrição penal da pretensão punitiva do estado reconhecida pela procuradoria-geral da república - configuração - declaração de extinção, quanto a tal crime, da punibilidade dos pacientes - pedido deferido.
1. tratando-se dos delitos contra a ordem tributária, tipificados no art. 1º da lei nº. 8.137/90, a instauração da concernente persecução penal depende da existência de decisão definitiva, proferida em sede de procedimento administrativo, na qual se haja reconhecido a exigibilidade do crédito tributário ("an debeatur"), além de definido o respectivo valor ("quantum debeatur"), sob pena de, em inocorrendo essa condição objetiva de punibilidade, não se legitimar, por ausência de tipicidade penal, a válida formulação de denúncia pelo ministério público. precedentes.
2. enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da lei nº. 8.137/90. em conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (cp, art. 111, i). precedentes (stf, 2008, p. 360).”
“ementa: habeas corpus. constitucional. processual penal. ausência de constituição definitiva do crédito tributário: impedimento da persecução penal dos crimes materiais contra a ordem tributária. trancamento do inquérito policial. precedentes. habeas corpus deferido para trancar o inquérito policial.
1. a jurisprudência deste supremo tribunal federal firmou-se no sentido de que a ausência de constituição definitiva do crédito tributário impede a persecução penal dos crimes materiais contra a ordem tributária. precedentes.
2. habeas corpus deferido para trancar o inquérito policial (stf, 2008, p. 929).”
Diante do exposto parece indubitável a necessidade do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária.
É cediço que a consumação dos crimes contra a ordem tributária só pode ser afirmada depois de esgotadas todas as instâncias administrativas de que dispõe o sujeito passivo para discutir a exação.
Então, admitir-se a ação penal por crime de supressão ou redução de tributo, sem que a autoridade administrativa competente tenha dito existente o próprio objeto do cometimento ilícito é excluir o direito do contribuinte de ter apurada, na via própria, a real existência da relação tributária e a sua correspondente quantificação econômica.
Ademais, como alguém pode ser denunciado por um débito que sequer existe?
Não se deve esquecer também que o pagamento do tributo, desde que feito antes do recebimento da denúncia, extingue a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, o que, por sua vez, traduz o direito do contribuinte de ter regularmente apurada a existência do tributo e do seu valor.
Porém, caso o Ministério Público entenda que já possui elementos para oferecer a denúncia antes do término do procedimento administrativo, outra opção não restará para o magistrado que não seja rejeitá-la, haja vista faltar ao parquet interesse de agir, devido a não comprovação do resultado descrito no tipo penal e, por conseqüência, inexistirá justa causa para a ação penal antes que se afirme na instância administrativa que houve supressão ou redução do tributo devido.
Referências
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ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a previdência social. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2007.
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GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Prévio exaurimento da via administrativa e crimes tributários. In: TANGERINO, Davi de Paiva Costa; GARCIA, Denise Nunes (Coords.). Direito penal tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 83-127.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. ADI 1.571/UF. Relator: Ministro GILMAR MENDES. Decisão por maioria. Brasília, 10.12.2003. DJ de 30.04.2004 p. 265.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Segunda Turma. HC 86032/RS. Relator: Ministro CELSO DE MELLO. Decisão unânime. Brasília, 04.09.2007. DJ de 13.06.2008 p. 360.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Primeira Turma. HC 93209/SP. Relatora: Ministra CÁRMEM LÚCIA. Decisão unânime. Brasília, 18.03.2008. DJ de 18.04.2008 p. 929.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, vinicius domingues. A questão do esgotamento da instância administrativa para a propositura da ação penal nos crimes contra a ordem tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/42093/a-questao-do-esgotamento-da-instancia-administrativa-para-a-propositura-da-acao-penal-nos-crimes-contra-a-ordem-tributaria. Acesso em: 09 out 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Thaisa Barbosa Souza de Araújo
Por: Euripedes Clementino Ribeiro Junior
Por: Jéssica Cristina Vitorino da Silva
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