RESUMO: O estudo investiga a situação feminina na sociedade israelita antiga. Existe a necessidade de conhecer o Pentateuco no que tange aos direitos das mulheres, identificando a estrutura social do antigo Israel, levando em consideração que para o entendimento da norma jurídica faz-se necessário o conhecimento das condições sociais existentes à época em que foi elaborada. O trabalho busca identificar a herança dessa sociedade no nosso ordenamento jurídico. Ao analisar os institutos jurídicos do passado, o escopo da pesquisa é investigar a condição da mulher positivada nas normas do direito hebraico, conforme se encontram transmitidas na Bíblia hebraica. A pesquisa aborda a hermenêutica da literatura bíblica relacionada ao assunto e também analisar a dinâmica da sociedade hebraica a partir de um modelo teocrático e patriarcal, bem como estuda as leis como produto dos valores sociais desse povo.
PALAVRAS-CHAVES: Direito Hebraico. Mulher. Pentateuco.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a investigar a situação da mulher na sociedade dos antigos hebreus. Toma como fonte textos da Bíblia hebraica, entendidos como um documento histórico, produto de uma construção social que revela a dinâmica da sociedade do período no qual foi redigida.
Como observa Paulo Nader (1994, p. 19), o Direito, necessário à regulação da vida em sociedade e à manutenção da ordem, compreende o complexo dos valores e costumes de um determinado grupo, expressos pelas leis, que são elaboradas a partir do confronto da realidade com as necessidades sociais, o que constitui uma relação dialética em que a sociedade influencia o direito e, ao mesmo tempo, é influenciada por este.
O Direito Hebraico é um direito religioso, que tem como fonte um livro considerado sagrado, a Bíblia, e contém a “Lei” revelada por Deus aos israelitas por meio de Moisés. A maior parte destas leis está registrada no Pentateuco, que é a positivação de um direito consuetudinário, ou seja, a formalização das leis morais de um povo, consolidando os valores de uma sociedade regida por um sistema teocrático e patriarcal. Segundo Marcos Antônio de Souza,
O estudo do direito hebraico consiste em um tipo de garimpagem, numa tentativa de reconstituição de um sistema jurídico em suas diferentes formas resultantes de transformações sociais e políticas ocorridas ao longo dos vinte séculos da história de Israel (SOUZA, 2007, p. 54).
Nesta pesquisa, procura-se compreender a situação da mulher na codificação do Direito hebraico ou mosaico. Busca-se ver como se constituía o poder familiar e se a mulher possuía ou não direitos bem como se a sua condição obedecia a uma determinada fase de desenvolvimento das sociedades de classes. Sobre esta última questão, Rose Marie Muraro salienta que
da época em que foi escrito o Gênesis até os nossos dias, isto é, de alguns milênios para cá, a narrativa básica de nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita eficiência. A partir deste texto, a mulher é vista como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação com a transcendência e também aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que tem de ser rigorosamente normatizados. (MURARO, 1991, p. 12).
Como forma de ampliar as discussões acerca do assunto, pretende-se também analisar textos da Bíblia hebraica em cotejo com a história do Direito em outras civilizações antigas, comparando os direitos das mulheres na sociedade israelita em relação a outras sociedades e codificações legais. Em consonância com os estudos de Haroldo Reimer, “de uma forma geral, poder-se-ia dizer que a situação da mulher israelita é descrita em referência a um homem” (REIMER, 2000, p. 131).
Outro aspecto importante que se almeja estudar é relativo às penas, identificando as formas de punição aplicadas às mulheres, como o apedrejamento e a pena de morte, caracterizando um direito penal que utilizava a punição corporal como principal forma de tutela jurisdicional.
É importante ressaltar, seguindo o pensamento Rodrigo Freitas Palma (2007, p. 20), que a concepção jurídica do Israel antigo influenciou diretamente o Direito Canônico, que por sua vez está na raiz do ordenamento jurídico dos países ocidentais, sendo importante analisar os resquícios desse direito nas nossas leis.
Assim, a pesquisa procura interligar a história da civilização hebraica com a interpretação da literatura bíblica, fazendo um estudo do direito hebraico na perspectiva de gênero, levando em consideração que a Bíblia, além de fonte formal de direito, também é a principal fonte histórica para conhecimento do povo hebreu.
2. O DIREITO HEBRAICO
Entende-se por Direito hebraico o conjunto de leis e preceitos religiosos vigente na sociedade hebraica, no período correspondente ao século XIII a.C. (data aproximada do êxodo hebraico) e a destruição do Templo pelos Romanos, já no ano de 70 d.C.
Os hebreus habitaram, na Antiguidade, uma parte do Oriente Próximo. Eram, originalmente, povos nômades semitas, que viviam em tribos, e se sedentarizaram na região da Palestina, caracterizando uma sociedade agrária, patriarcal e monoteísta.
Os israelitas passaram por diversas fases de desenvolvimento. Assim divide-se a história de Israel conforme estudo de Marcos Antônio de Souza: a) Período patriarcal, do século XXI ao século XVI a.C., com a característica político-social de povo nômade; b) Confederação, que corresponde ao período entre o século XVI e século XII a.C., formado pelas doze tribos e mais conhecido como tempo dos “Juízes”; c) Reino Unido, do século XII ao século X a.C., em que há a centralização do poder e a criação de uma monarquia hebraica. Este período abrange os reinados de Saul, Davi e Salomão; Reino Dividido, do século X ao século VI a.C., formado pelos reinos do norte, Reino de Israel, com capital em Samaria, e do sul, Reino de Judá, com a capital em Jerusalém; d) Período de vassalagem – compreendido do século VI a.C ao século II d.C. e corresponde ao cativeiro na Babilônia, subjugações pelos persas, gregos e romanos sucessivamente. No entanto existem divergências doutrinárias acerca da datação das diversas fases de desenvolvimento no antigo Israel.
Sobre a história de Israel, assim leciona Marcos Antônio de Souza:
A história da Israel Antiga abrange um período de cerca de vinte séculos, compreendido entre c. 2000 a.C. e 135 d.C., portanto de quarenta a vinte séculos distantes de nossa época, sistemas políticos organizacionais que compreendem um sistema patriarcal de um povo nômade, uma confederação de tribos, um reino unido, dois reinos separados e, finalmente, uma nação súdita de diferentes governos de nações estrangeiras (Assíria, Persa, Grécia e Roma). (SOUZA, 2007, p. 49).
No que concerne ao estudo do direito hebraico, este restringe-se à análise do período do Israel bíblico, que vai do século XIII ao século IV a.C.. Isso se justifica pela insuficiência de documentos e dados históricos existentes sobre o período patriarcal, e é devido ao fato de que as informações da sociedade hebraica provém, em grande parte, da Bíblia. “Nesse aspecto, tanto para o estudo da língua hebraica antiga quanto para o estudo do Direito hebraico antigo, a Bíblia funciona como uma ilha por ser o único documento hebraico antigo disponível para consulta”. (SOUZA, 2007, p. 42).
O Direito hebraico é um direito religioso, baseado em normas consideradas sagradas, que são consideradas produto de uma revelação divina, apresentando a essência ética, religiosa e dogmática da cultura hebraica. De acordo com Rodrigo Freitas Palma, “trata-se de um direito histórico, não-estatal, de caráter social religioso”. (PALMA, 2007, p. 32). Convém, contudo, acrescentar que este direito, apesar da sua vestimenta de ‘sagrado’, também é resultado do confronto entre fatos e valores na história hebraica, redundando, assim, na constituição de normas.
A fonte do Direito Hebraico é o TaNaK, chamado de Antigo Testamento no mundo cristão, sendo composto pela Torá (Torah), Profetas (Nebiim) e Escritos (Ketubim). Destaca-se como fonte ainda o Talmud, os costumes e provérbios populares da cultura hebraica, que não serão objeto desta pesquisa.
Insta salientar que o Talmud registra a tradição oral e foi escrito entre os séculos II e VI de nossa era. Tendo em vista que a soberania de Israel como nação existiu somente até 70 d.C., este livro é objeto do Direito Talmúdico e não do Direito Mosaico.
A principal fonte deste estudo é a Torá, que corresponde ao Pentateuco cristão, formado pelos cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Segundo a tradição hebraica, a Torá foi transmitida a Moisés por Deus no Monte Sinai. Ela contém vários gêneros de textos escritos, tais como genealogias, narrativas, e mitos, além dos textos estritamente legais. Em consonância com os estudos de Haroldo Reimer:
De uma forma geral, a Torá, ou o Pentateuco, constitui a lei de Deus para o povo hebreu. Basicamente, a Tora é apresentada na estrutura de uma lei revelada ao povo no monte Sinai, tendo a figura de Moisés como mediador. Numa leitura sincrônica dos textos da Torá, torna-se necessária a dedução de que as leis aí contidas são de idade elevada, consideradas, pois, do ‘tempo mosaico’. Numa perspectiva diacrônica, isto é, com o estudo do perfil histórico-social dos textos jurídicos, é opinião comum na pesquisa que dentro da Torá existem vários conjuntos e códigos de leis, que surgiram em épocas distintas e que foram alocadas mitico-literariamente junto ao Sinai por ocasião da composição da Torá como obra histórica e teológica representativa da comunidade. (REIMER, 2006, p. 15).
O Gênesis é o livro que apresenta o retrato da cosmogonia judaica. Narra as origens do cosmo, da nação judaica, a história dos patriarcas hebreus, Abraão, Isaac e Jacó. Já o Êxodo relata a história do povo de Israel no Egito, onde foram escravos por cerca de 400 anos. Contém os discursos de Moisés ao povo, bem como a saída do Egito liderada por Moisés em direção à Palestina. O Levítico apresenta em seu texto os esquemas litúrgicos e ritualísticos, a lei da santidade e o calendário religioso, além de normas que regulariam a religião. Números registra e categoriza as linhagens das tribos de Israel e a rota dos israelitas no deserto. Por fim, o último livro do Pentateuco, Deuteronômio prevê leis caráter litúrgico, além de regras civis e penais que dispões sobre o funcionamento da sociedade.
Referente aos textos jurídicos no Pentateuco, destacam-se pequenas coleções, o decálogo cúltico (Ex 34), o decálogo ético (Ex 20,1-17; Dt 5), o Código da Aliança (Ex 20,22-23,19), o Código Deuteronômico (Dt 12-26), o Código da Santidade (Lv 17-26), e o Código da Pureza (Lv 11-15). Somente em um momento posterior da história dos hebreus, mais precisamente no final do século V e início do século IV, estas coleções foram integradas e historicizadas dentro da obra que até hoje chamamos de Torá ou Pentateuco.
Quanto à classificação formal das leis, a doutrina entende que existem duas categorias: a) as leis apodíticas, que possuem a forma de uma asserção categórica e incondicional de certo e errado; b) e as leis casuísticas, que definem um caso específico, distinguindo-o de outros casos similares e estabelecem responsabilidades legais.
Vamos, a seguir, esboçar alguns elementos a partir de algumas das coleções de leis integradas na Torá.
2.1. DECÁLOGO
O Decálogo, mais conhecido pelo nome “Dez Mandamentos”, corresponde à essência normativa prioritária, aos preceitos sagrados do Direito Hebraico. Sobre o tema, Rodrigo Freitas Palma salienta:
Do ponto de vista jurídico, pode-se entender que nenhuma das demais seiscentas regras de conduta é mais relevante que estas, mesmo porque, muitas delas, guardadas as exceções, são meros desdobramentos tardios das primeiras. Destarte, sob o prisma da hermenêutica, ousamos opinar no sentido de que os mandamentos são superiores em importância a quaisquer outras regras que, eventualmente, venham com eles conflitar. Ademais, sabe-se que os Dez Mandamentos contribuíram decisivamente para a pavimentação filosófica e ideológica que determinou o nascimento das duas outras religiões monoteístas da história, a saber, o Cristianismo e o Islamismo. (PALMA, 2007, p. 55).
O texto dos Dez Mandamentos está em Êxodo 20, e é apresentado ao povo como tendo sido transmitido por Deus a Moisés, no Monte Sinai, antes da entrada na terra prometida. O mesmo texto, com pequenas diferenças, é repetido em Deuteronômio 5, porém precedido da declaração “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos.”
Os três primeiros mandamentos são regras apodíticas negativas, pois determinam algo que não deve ser feito. Tratam da reverência diante do nome de Deus, e condenam o uso de imagens. Assim dispõem:
Não terás outros deuses diante de mim. (Dt 5,7)
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra; não te curvarás a elas, nem as servirá; porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais sobre os filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem, e faço misericórdia em milhares aos que me amam e guardam os meus mandamentos. (Dt 5,8-10)
Não tomarás o nome do Senhor teu Deus, em vão, porque o Senhor não terá por inocente ao que tomar o seu santo nome em vão. (Dt 5,11)
O quarto mandamento diz respeito ao descanso semanal. É uma regra apotídica positiva, que determina que deve cessar todo o labor no período compreendido entre o cair da tarde de sexta-feira e o crepúsculo de sábado. Veja-se:
Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra.
Mas o sétimo dia é sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhuma obra nele, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de tuas portas; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o SENHOR, teu Deus, te tirou dali com mão forte e braço estendido; pelo que o SENHOR, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado. (Dt 5,12-15).
O quinto mandamento preconiza o respeito à família, que era sagrada para as sociedades orientais. In verbis: “Honra a teu pai e a tua mãe, como o SENHOR, teu Deus, te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que te vá bem na terra que te dá o SENHOR, teu Deus”. (Dt 5,16).
Já o sexto mandamento diz respeito ao crime contra a vida, o homicídio: Não matarás (Dt 5,17). O Homicídio era condenado em toda e qualquer sociedade do mundo antigo. Também nesse sentido: “Quem ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto”. (Ex 21,12)
O sétimo mandamento estatui: “Não cometerás adultério”. (Dt 5,18). Cabe ressaltar que de acordo com as normas mosaicas, o adultério somente se consumava com as relações sexuais mantidas com uma mulher casada.
No oitavo mandamento há a proteção ao patrimônio, na seguinte forma: “Não roubarás”. (Dt 5,19). Neste caso, não havia qualquer distinção entre furto e roubo.
O nono abrange os crimes contra a honra, sem fazer distinção entre os crimes de calúnia, difamação ou injúria. “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Dt 5,20).
Por fim, há a condenação moral à cobiça, e inobstante não haver qualquer punição para a inobservância do décimo mandamento, a sanção se dá no aspecto moral. Assim prescreve: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo; a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Dt 5,21).
2.2. CÓDIGO DA ALIANÇA E CÓDIGO DEUTERONÔMICO
O chamado “Código da Aliança” é o código legal mais antigo do Pentateuco, nele há normas de caráter social, cultual, ético e social, compreendendo as leis a serem obedecidas pelos israelistas em razão da sua aliança com o Deus Yahveh.
Sobre o Código da Aliança, Frank Crusemann destaca:
A história do surgimento do Código da Aliança é simultaneamente a gênese daquilo que constitui a essência e a particularidade do direito veterotestamentário e daquilo que, a partir do Deuteronômio, passa a levar o nome de Torá. No Código da Aliança, se define toda a compreensão do surgimento e da essência da base sustentadora da Torá. (CRUSEMANN, 2002, p. 160).
Dentre as principais inovações deste Código destaca-se a lei de libertação dos escravos no sétimo ano, ano sabático, conforme previsto em Êxodo 21,2-11. Percebe-se uma espécie de pacto social, visando solucionar os numerosos conflitos sociais entre israelitas empobrecidos e senhores.
Já o Código Deuteronômico é o conjunto de regras religiosas e jurídicas aplicadas aos hebreus, previstas em Deuteronômio 12-26. Também é chamado de “segunda lei”, pois é considerado uma reformulação e ampliação do Código da Aliança, em ligação com as reformas promovidas pelo rei Josias, tendo em vista a evolução social e econômica do Israel Antigo.
Também está ligado à concepção da aliança hebraica, e assim inicia-se: “Estes são os estatutos e os juízos que tereis cuidado em cumprir na terra que vos deu o SENHOR Deus de vossos pais, para a possuir todos os dias que viverdes sobre a terra”. (Dt 12,1). Dentre as inovações, se preocupa com a necessidade de proteção de algumas parcelas da sociedade, tais como as viúvas, os órfão, os estrangeiros e os camponeses empobrecidos.
Nesse desiderato:
Com o Código deuteronômico (Dt 12-26), Israel começa a formular pela segunda vez a vontade do seu Deus em um livro de leis. Geralmente, quando as circunstâncias mudam, as leis são ampliadas, alteradas, romanceadas. Encontramos esse fenômeno no Código da Aliança, onde as fontes mais antigas utilizadas já apresentavam marcas evidentes de complementação e atualização e onde também, em termos gerais, foi acrescentada uma camada complementar mais recente. Observamos isso mais ainda no próprio Deuteronômio, que apresenta múltiplos sinais de atualização e romance. Comparada com uma tal ampliação, uma codificação totalmente nova significa um corte essencialmente mais radical. (CRUSEMANN, 2002, p. 283)
O Código Deuteronômico traz diversos institutos jurídicos, tais como: os deveres dos juízes (16,18); a repetição dos dez mandamentos (5,7-21); uma modificação na lei sobre os escravos (15,12ss); as leis da guerra (20); disposições acerca dos limites e das testemunhas (19,14ss); determinações sobre o poder familiar (21,18-21); sobre crenças e cultos religiosos (17,3 e 7); sobre o casamento (22,13-14-20-28); e adultério (22,22).
2.3 DOS CRIMES E PUNIÇÕES
No Direito Mosaico não há o termo crime ou delito, de forma que o ato punível é considerado um pecado, uma violação da vontade de Deus. Assim, as punições impostas serviam para manter a terra livre de aviltamento à vista de Deus, mantinham o respeito pela santidade da vida, pela lei, pelo Legislador, Deus, e pelo próximo. Para Marcos Antônio de Souza:
Na lei mosaica, todos os atos, sejam proibitivos ou mandatórios, são considerados pecados contra Deus. A distinção consiste apenas em relação à punição pela sua violação. No caso de um ato de violação de uma lei mandatória, a punição fica por conta de Deus e costuma ser classificada como não sendo crime, mas apenas violação de um dever religioso. Por outro lado, a transgressão de uma lei proibitiva acarreta uma punição estabelecida por um tribunal de justiça. (SOUZA, 2007, p. 65)
Cabe ressaltar que as proibições e punições previstas na Torá foram estabelecidas segundo seu contexto histórico-social da Antiguidade Oriental, bem como influenciadas pelo Código de Hamurábi, e tem como característica principal a Lei de Talião, como se vê em Deuteronômio 19,21, “O teu olho não perdoará; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.
As formas de punições encontradas no sistema de leis mosaicas eram diversificadas, havendo crimes puníveis com morte; pela eliminação; pelo banimento; pela flagelação; pela lex talionis; com pagamento de multa; e pela escravidão penal.
Aplicava-se a pena de morte em várias situações, principalmente através da lapidação, ou seja, do apedrejamento. Este utilizado para os crimes considerados de maior gravidade para a comunidade, quais sejam, a blasfêmia, adoração a qualquer outro Deus, o adultério, quando o homem comprometia-se intimamente com uma noiva, se ficasse constatado, nas núpcias, que a moça não era mais virgem, para o filho “rebelde e indócil”, dentre outros.
Já a flagelação era a penalidade para as ofensas mais simples, tais como uma briga entre duas pessoas, e aplicada após a sentença pronunciada pelo juiz em função de um litígio, conforme se vê:
Quando houver contenda entre alguns, e vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão. E será que, se o injusto merecer açoites, o juiz o fará deitar-se, para que seja açoitado diante de si; segundo a sua culpa, será o número de açoites. Quarenta açoites lhe fará dar, não mais; para que, porventura, se lhe fizer dar mais açoites do que estes, teu irmão não fique envilecido aos teus olhos. (Dt 25,1-3)
Os principais crimes previstos na Torá são: blasfêmia (Dt 5,11); idolatria (Dt 5,7-8); homicídio (Dt 5,17); roubo/furto (Dt 5,19); adultério (Dt 5,18); inobservância do descanso sabático (Dt 5,12-14); feitiçaria (ex 22,17); indignidade (Dt 5,16); incesto (Lv 20,11-14); bestialidade; rapto (Ex 21,16) e falso testemunho (Dt 5,20).
Cabe ressaltar ainda que a lei hebraica fazia uma distinção entre crime voluntário e involuntário. Para os últimos havia uma cidade de refúgio, prevista, por exemplo, em Números 35,9-15. Sobre o tema:
Importante ressaltar que os israelistas esboçaram uma tentativa preliminar de distinguir o homicídio doloso do homicídio culposo. A alternativa legal, para quem atentasse culposamente contra a vida do próximo, seria buscar imediato refúgio numa das seis cidades destinadas para tanto. Uma vez lá, deveria o indivíduo se dirigir a uma autoridade religiosa local, bem como relatar o ocorrido e esperar dela guarida. Deste modo, o “vingado de sangue” – um parente próximo da vítima - estaria impedido de levar a cabo qualquer execução sumária contra o homicida. (PALMA, 2007, p. 58)
2.4 DAS RELAÇÕES CIVIS
As regras civis no direito israelita eram frutos da concepção de uma sociedade originariamente tribal, na qual a terra era coletiva e visava à proteção do grupo familiar. Assim leciona Rodrigo Freitas Palma:
Sabe-se que no período anterior ao processo de sedentarização da nação, antes da instauração da monarquia benjamita, esta se organizava em tribos. Ora, sabe-se que o sentimento de solidariedade desponta com facilidade no contexto clânico. Assim, os laços entre as pessoas eram muito estreitos. Uma afronta contra um significava uma imediata afronta contra todos ao mesmo tempo. Aqui não havia espaços para exclusivismos ou individualismos. Igualmente, a perda de um único membro diminuía todos enquanto grupo. As colheitas eram coletivas neste início da conquista da terra. O mesmo pode-se dizer dos cultos e rituais. Os idosos eram tidos em alta conta. Os patriarcas comandavam as grandes famílias, o que, sob este aspecto, aproxima o Direito Hebraico da fase inicial do Direito Romano, quando a cidade foi governada por reis. (753-510 a.C)”. (PALMA, 2007. p. 77-78).
Dessa forma, as relações civis concernentes à propriedade, família e sucessão eram mantidas, preferencialmente, dentro do grupo familiar, em especial os casamentos.
O casamento era regido por uma espécie de contrato matrimonial chamado de Ketubah, no qual estavam minuciosamente estipuladas as obrigações dos nubentes. Havia a previsão de pagamento do dote, estipulado segundo as condições do noivo, e pago ao pai da noiva ou seu representante, assegurando assim ao noivo o direito à noiva.
A cerimônia do casamento funcionava como uma transação oral, confirmada pela presença da comunidade, que agiam como testemunha do ato.
Havia ainda a forma de casamento conhecida como “levirato”, pelo qual o irmão do homem falecido sem deixar filhos era obrigado a casar-se com a cunhada, para gerar um filho, que será considerado filho do irmão falecido, para perpetuar o nome do irmão entre o povo judeu. Se a união não atendesse à perpetuação do nome do falecido, estaria tipificada a prática de uma forma de incesto (Dt 25,5).
Cabe ressaltar que havia a previsão do divórcio, leis de sucessão e previsão de adoção.
3. A SITUAÇÃO JURÍDICA DA MULHER
A situação da mulher no direito israelita deve ser analisada dentro do contexto histórico da sociedade hebraica, uma civilização da Antiguidade Oriental, levando em consideração que a lei é o reflexo dos valores e costumes de determinado povo, e que se destina à manutenção da ordem social de determinada sociedade.
Assim deve-se levar em conta que a Torá foi escrita num período de dominação patriarcal, de forma que a mulher, durante a maior parte de sua vida, encontra-se sob a tutela de algum homem, seja o pai, o marido, ou algum irmão. As mulheres ocupavam, dessa forma, um espaço subalterno e dependente dentro da estrutura familiar e social do Antigo Israel. Para Frank Crusemann:
De fato, nos textos legais deparamo-nos com um mundo masculino: o sistema jurídico está quase totalmente em mãos masculinas, os textos são dirigidos a homens e os tratam como sujeitos do direito. As mulheres são mencionadas somente quando indispensáveis em seus papéis específicos de esposas e mães. Isto inclui por último a ampla esfera do culto, da qual elas praticamente deveriam estar excluídas, a julgar por sua menção nas partes cultuais dos textos legais. (CRUSEMANN, 2002, p. 348)
Da análise de diversos institutos jurídicos no Antigo Testamento, principalmente do Código da Aliança e do Código Deuteronômico, referente às regras de casamento, sexualidade, punições, direito de herança, é possível identificar as relações sociais de gênero por trás destas normas hebraicas.
Em proêmio, enfoca-se a situação da mulher, na Lei de libertação de escravos e escravas no sétimo ano, que procura regular os conflitos oriundos de dívidas econômicas, que levavam à escravização das famílias camponesas empobrecidas. O primeiro texto a abordar a questão é Êxodo 21, 2–11, e posteriormente, observam-se modificações em Deuteronômio 15,12-18.
Em Êxodo 21,2-11, a duração da servidão é limitada a um período de seis anos. “Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas ao sétimo sairá livre, de graça” (Ex 21,2). No entanto, as escravas não seriam libertadas no sétimo ano assim como os escravos; elas seriam servas para o resto da vida, pois assim determina o versículo 7, “E se um homem vender sua filha para ser serva, ela não sairá como saem os servos” (Ex 21,7).
Nesse caso há uma clara distinção em termos de gênero, que evidência as relações de subordinação da mulher. Ademais, a mulher deveria acompanhar o marido que se tornasse servo. Sobre o tema:
Enquanto para os escravos homens a questão do fundamento e do motivo permanece obscura, nesta passagem tudo muda de figura: trata-se da venda de filhas. A partir da estrutura da família, na qual a propriedade de terra e com isso também a liberdade está ligada aos filhos, as filhas são as primeiras a serem vendidas em tempos de necessidade. Elas também devem ter sido bem atrativas para os donos dos escravos, tanto por sua força de trabalho quanto pelas possibilidades sexuais. Em termos jurídicos, as filhas que estavam sob a autoridade do pai certamente eram semelhantes às viúvas. (CRUSEMANN, 2002, p. 224).
Cabe ressaltar ainda que se o escravo iniciasse sua servidão junto com sua mulher, ambos seriam libertados, todavia, se o escravo recebesse uma mulher do senhor, esta pertenceria ao senhor, bem como seus filhos, restando ao escravo sair sozinho ou tornar-se escravo para sempre. Como se vê:
Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era homem casado, sua mulher sairá com ele.
Se seu senhor lhe houver dado uma mulher e ela lhe houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele sairá sozinho.
Mas se aquele servo expressamente disser: Eu amo a meu senhor, e a minha mulher, e a meus filhos; não quero sair livre,
Então seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta, ou ao umbral da porta, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. (Ex 21,3-6)
Desse modo, “a mulher/jovem escrava claramente é usada como âncora para sedimentar as relações de subordinação dentro da casa patriarcal” (REIMER, 2000, p. 132). Ora, tratava-se de manter o escravo preso pelos laços familiares, até porque os escravos por dívida, comumente, eram crianças e jovens, e provavelmente, se casariam após a servidão.
Ainda na lei de escravidão, os versículos 7 a 11 tratam da situação da escrava dentro da casa patriarcal, a fim de evitar que esta se torne uma “prostituta doméstica”. A regra do versículo 8 determina que em caso de desgosto, isto é, quando não agradar nem ao senhor nem ao filho, o senhor ofereça a mulher para a própria família para que seja resgatada. Ocorre que a família que a vendeu dificilmente teria condições de resgatá-la, e provavelmente o senhor disporia da mulher para ser escrava de algum outro escravo, como se pressupõe em Ex 21,4. Assim é o texto em questão:
E se um homem vender sua filha para ser serva, ela não sairá como saem os servos.
Se ela não agradar ao seu senhor, e ele não se desposar com ela, fará que se resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, agindo deslealmente com ela.
Mas se a desposar com seu filho, fará com ela conforme ao direito das filhas.
Se lhe tomar outra, não diminuirá o mantimento desta, nem o seu vestido, nem a sua obrigação marital. (Ex 21,7-10).
As regras supracitadas prestam-se ainda a assegurar os direitos mínimos da escrava, sendo que o versículo 9 determina que, em caso de casamento com um filho do senhor, ela deverá ser tratada segundo o direito das filhas. E, tendo em vista que ao homem era permitido ter várias mulheres, assegurou-se a elas direito à alimentação, ao vestuário e às obrigações maritais.
A não observância destas três imposições possibilitaria a libertação da escrava, sem indenização, como se vê: “E se lhe não fizer estas três coisas, sairá de graça, sem dar dinheiro” (Ex 21,11). Para Haroldo Reimer (2000, p.135)
O Código da Aliança, embora tente resguardar direitos dos pobres, claramente sedimenta direito dos ricos/credores. Por outro lado, dentro dessa tessitura das relações sociais dependentes, as mulheres, no geral, experimentam submissão em qualquer uma das realidades.
Passando a analisar o Código Deuteronômico (Dt 12-26), verifica-se que esta lei sofreu algumas modificações, acompanhando as alterações sociais promovidas pelas reformas de Josias, em 625 a.C, que buscavam atenuar a gravidade da crise social no Israel Antigo.
Assim é o texto em Deuteronômio 15,12-18:
Quando teu irmão hebreu ou irmã hebréia se vender a ti, seis anos te servirá, mas no sétimo ano o deixarás ir livre.
E, quando o deixares ir livre, não o despedirás vazio.
Liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do teu lagar; daquilo com que o SENHOR teu Deus te tiver abençoado lhe darás.
E lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito, e de que o SENHOR teu Deus te resgatou; portanto hoje te ordeno isso.
Porém se ele te disser: Não sairei de ti; porquanto te amo a ti, e a tua casa, por estar bem contigo;
Então tomarás uma sovela, e lhe furarás a orelha à porta, e teu servo será para sempre; e também assim farás à tua serva.
Não seja duro aos teus olhos, quando despedi-lo liberto de ti; pois seis anos te serviu em equivalência ao dobro do salário do diarista; assim o SENHOR teu Deus te abençoará em tudo o que fizeres.
Dentre as inovações do Código Deuteronômico, observa-se nas regras supracitadas que a lei de libertação de escravos no sétimo ano passa a valer tanto para homens quanto para mulheres. Assim, no que tange à relação de dependência em virtude de questões de dívidas, há uma equiparação entre homem e mulher perante a lei, com a extinção da servidão vitalícia da mulher.
Outro aspecto relevante nas relações de gênero dentro da Torá são as leis relacionadas ao casamento, herança e divórcio na sociedade israelita.
No que tange ao casamento, chama atenção a lei para o caso de viuvez da mulher, a lei do levirato, pela qual o irmão do homem falecido sem deixar filhos era obrigado a casar-se com a viúva, para gerar um filho, que será considerado filho do irmão falecido, visando a perpetuação do nome do irmão entre o povo judeu, bem como o bem estar e proteção da viúva.
Quando irmãos morarem juntos, e um deles morrer, e não tiver filho, então a mulher do falecido não se casará com homem estranho, de fora; seu cunhado estará com ela, e a receberá por mulher, e fará a obrigação de cunhado para com ela.
E o primogênito que ela lhe der será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o seu nome não se apague em Israel.
Porém, se o homem não quiser tomar sua cunhada, esta subirá à porta dos anciãos, e dirá: Meu cunhado recusa suscitar a seu irmão nome em Israel; não quer cumprir para comigo o dever de cunhado.
Então os anciãos da sua cidade o chamarão, e com ele falarão; e, se ele persistir, e disser: Não quero tomá-la;
Então sua cunhada se chegará a ele na presença dos anciãos, e lhe descalçará o sapato do pé, e lhe cuspirá no rosto, e protestará, e dirá: Assim se fará ao homem que não edificar a casa de seu irmão;
E o seu nome se chamará em Israel: A casa do descalçado. (Dt 25, 5-10)
Neste caso a mulher a mulher tem o dever de se casar com o irmão do marido falecido, e ao mesmo tempo tem o direito de exigir que o cunhado cumpra com o seu dever, sob pena de ser envergonhado publicamente. A regra dos versículos 7-10 garante à mulher o direito de fazer a acusação pública diante dos anciãos da cidade, convocando o ritual denominado de remoção da sandália, “a mulher aqui não é apenas pessoalmente a acusadora, mas ela também executa a sentença em público” (CRUSEMANN, 2002, p. 355).
No que concerne à partilha da herança, o filho primogênito tinha direito a duas partes dos bens do pai, e o restante era dividido em partes iguais com os outros filhos, conforme preconiza Deuteronômio 21,17. As mulheres só seriam herdeiras se o patriarca não tivesse filhos homens. “E falarás aos filhos de Israel, dizendo: Quando alguém morrer e não tiver filho, então fareis passar a sua herança à sua filha”. (Nm 27,8)
Na ausência de filhos homens, as filhas passavam a ter direitos sobre a herança desde que estivessem casadas com pessoas do próprio clã (Nm 27: 1-11;36). No entanto, normalmente não possuíam direitos sobre qualquer parte das propriedades do pai de modo a evitar que parte dos bens de uma família se transferisse para outra família pelo casamento. (SOUZA 2007, p. 63).
Também a viúva não tinha direitos. Se não houvesse nenhum herdeiro, as posses passariam para os irmãos do falecido. Assim está escrito na Torá:
E falarás aos filhos de Israel, dizendo: Quando alguém morrer e não tiver filho, então fareis passar a sua herança à sua filha.
E, se não tiver filha, então a sua herança dareis a seus irmãos.
Porém, se não tiver irmãos, então dareis a sua herança aos irmãos de seu pai.
Se também seu pai não tiver irmãos, então dareis a sua herança a seu parente, àquele que lhe for o mais chegado da sua família, para que a possua; isto aos filhos de Israel será por estatuto de direito, como o SENHOR ordenou a Moisés. (Nm 27, 8-11)
E no sentido possibilitar a continuação do nome do patriarca, havia ainda a possibilidade da adoção, que era uma alternativa no caso da esterilidade do homem, objetivando a continuação do seu nome. Do contrário, se a mulher estivesse incapacitada de gerar filhos, o cônjuge provavelmente procuraria ter outras esposas, o que era comum no contexto das sociedades patriarcais daquele período no Oriente Próximo.
Quanto ao divórcio, percebe-se claramente a posição subalterna da mulher, já que somente ao homem era permitido requerer a dissolução do casamento. “Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa”. (Dt 24,1).
Em nenhum lugar a desigualdade dos sexos e as limitações da liberdade da mulher aparece mais vigorosamente do que no assunto divórcio. Não havia nenhuma circunstância em que a esposa podia divorciar do seu marido, ao passo que o direito do marido de divorciar de sua esposa em qualquer tempo e por qualquer motivo era absoluto. (EMMERSON, 1995, p. 368)
Nesta situação, algum sacerdote era normalmente convocado a testemunhar o término da união. Este, após se certificar da impossibilidade da reconciliação, dá por desfeito o enlace matrimonial perante outras testemunhas. As normas determinavam ainda que o marido não poderia aceitar a mulher de volta, se esta se casasse novamente e ficasse viúva ou se fosse novamente rejeitada, pois estaria contaminada. Como se vê:
Se ela, pois, saindo da sua casa, for e se casar com outro homem,
E este também a desprezar, e lhe fizer carta de repúdio, e lha der na sua mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer,
Então seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a tomá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada; pois é abominação perante o SENHOR; assim não farás pecar a terra que o SENHOR teu Deus te dá por herança.(Dt 24, 2-4)
Sobre o adultério, determina Deuteronômio 22,22: “Quando um homem for achado deitado com mulher que tenha marido, então ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher, e a mulher; assim tirarás o mal de Israel”.
Da leitura da referida norma observa-se que adultério para a lei mosaica consistia no fato de o homem se relacionar com mulher casada, para o qual havia pena de morte para ambos. Se este se relacionar com mulher solteira não se considerava adultério. Assim, verifica-se mais uma vez que o direito hebraico tinha por objetivo a proteção da estrutura patriarcal, procurando sempre evitar a divisão e a transferência de seus bens para outro grupo familiar. Assim leciona Crusemann (2002 p. 356):
A formulação mostra claramente que, na descrição legal do flagrante de adultério, somente a mulher é indicada como casada, e o homem não. Este só pode destruir outros casamentos. Pode-se ver claramente a estrutura do matrimônio patriarcal, com sua grande ênfase na garantia da legitimidade dos descendentes.
Saliente-se ainda que, diferentemente do divórcio, o adultério era considerado crime e não assunto particular. Neste caso o marido traído não tinha mais o direito de matar em caso de flagrante. A única instância competente era o tribunal público.
Outro tema protegido pela legislação hebraica era a virgindade, que também era assunto a ser discutido pelo Tribunal dos Anciãos, já que culturalmente, na sociedade israelita, havia uma grande valorização da virgindade, e restando comprovado que a mulher não era mais virgem, prescrevia-lhe a pena de morte. Assim é o texto legal:
Quando um homem tomar mulher e, depois de coabitar com ela, a desprezar,
E lhe imputar coisas escandalosas, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher, e me cheguei a ela, porém não a achei virgem;
Então o pai da moça e sua mãe tomarão os sinais da virgindade da moça, e levá-los-ão aos anciãos da cidade, à porta;
E o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a este homem, porém ele a despreza;
E eis que lhe imputou coisas escandalosas, dizendo: Não achei virgem a tua filha; porém eis aqui os sinais da virgindade de minha filha. E estenderão a roupa diante dos anciãos da cidade.
Então os anciãos da mesma cidade tomarão aquele homem, e o castigarão.
E o multarão em cem siclos de prata, e os darão ao pai da moça; porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. E lhe será por mulher, em todos os seus dias não a poderá despedir.
Porém se isto for verdadeiro, isto é, que a virgindade não se achou na moça,
Então levarão a moça à porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão, até que morra; pois fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai; assim tirarás o mal do meio de ti. (Dt 22,13-21)
É interessante notar que a acusação deveria ser feita pelos pais da mulher, que iriam ao tribunal público denunciar o homem por difamação. Cabia a estes a prova da virgindade da filha. E se restasse comprovado que o homem levantou acusações falsas, este seria chicoteado e condenado a pagar uma multa, além de não pode mais divorciar-se da mulher.
Se, no entanto, não houvesse comprovação de que a mulher era virgem, esta seria apedrejada até a morte diante da porta da casa paterna.
Não há dúvida como a estrutura patriarcal da antiga sociedade israelita transparece no direito hebraico. Não é apropriado reconstruir o papel real, e também o legal das mulheres na vida social, unicamente a partir das referências explícitas a mulheres. A razão disso está na “capacidade misteriosa das palavras masculinas de incluir as mulheres” (CRUSEMANN, p.348), isto é, a linguagem inclusiva. O principal problema de método para a compreensão da posição jurídica da mulher é seu ocultamento nas expressões masculinas. O fato de se falar só do homem não significa que só ele tem direitos. “Especialmente no direito, até hoje, os termos e expressões masculinas excluem as mulheres em termos lingüísticos, mas em termos de conteúdo, certamente as incluem”. (CRUSEMANN, p. 348-349).
Pontuada essa questão, impende ressaltar a constituição do Direito como um processo histórico. Nesse sentido, a construção dos direitos das mulheres mostra como o Direito realmente é fruto de um processo histórico. Os dispositivos do ordenamento jurídico refletem o contexto histórico de uma determinada sociedade. Importante relembrar as palavras de Lyra Filho (1993, p.86):
Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir a ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.
Pois bem, sabe-se que a mulher passou pela subordinação do homem na sociedade hebraica. Como o ordenamento dessa sociedade influenciou o Direito Canônico, que por sua vez ascendeu sobre os ordenamentos das sociedades ocidentais, percebe-se que a subordinação da mulher vem sendo reiterada no caminhar da História. Sem embargo, a dinamização das sociedades modernas estabeleceu novos contextos nos quais a mulher se afasta cada vez mais da inferioridade imposta anteriormente. A proteção da estrutura patriarcal, intento maior do direito hebraico, resistiu fortemente, mas já demonstra sinais evidentes de que é possível mudar as condições sociais. Assim, estudar a sociedade israelita instiga as mulheres, entendendo as raízes de seu caráter historicamente subalterno, a empreenderem lutas e demandas para a construção de uma sociedade mais justa hodiernamente.
Quanto ao trabalho de iniciação científica, forçoso reconhecer, de minha parte, a dificuldade em garantir maior apuro metodológico e conceitual ao trabalho. Certifico como uma circunstância crítica a especificação da metodologia e os procedimentos para aplicação da pesquisa. Dessa forma, explicitar os materiais e objetos que foram utilizados nessa análise se tornou uma tarefa árdua. A falta de estudo epistemológico consistente também importou em obstáculo para apontar as conclusões da pesquisa, e apesar dessas dificuldades houve um substancial aprendizado.
REFERÊNCIAS:
BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2. ed. Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CRUSEMANN, Frank. A torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Tradução Haroldo Reimer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
EMMERSON, Grace I. In CLEMENTS, R. E. O Mundo do Antigo Israel. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995).
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: UNESP-FHDSS, 2005.
MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica [a obra O Martelo da Feiticeiras]. In: KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 5-17.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
PALMA, Rodrigo Freitas. Manual elementar de Direito Hebraico. Curitiba: Juruá Editora, 2007.
REIMER, Haroldo. Leis e relações de gênero – Apontamentos sobre Êxodo 21,2-11 e Deuteronômio 15,12-18. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, São Leopoldo, v. 37, p. 126-138, 2000.
REIMER, Haroldo. Sobre Economia No Antigo Israel e No Espelho de Textos da Bíblia Hebraica. In RICHTER REIMER, Ivoni (Ed.). Economia no mundo bíblico. Enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: Sinodal; Cebi, 2006, p. 7-32.
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SANTOS, Boaventura (org). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SOUZA, Marcos Antônio de Souza. O Direito Hebraico antigo. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos da História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 41-69.
Assistente Jurídico do TJGO - Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pela PUC-GO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Anita de Lima. A situação jurídica da mulher no Direito Hebraico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/46708/a-situacao-juridica-da-mulher-no-direito-hebraico. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Rafael Cascardo Cardoso dos Santos
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