Como a questão da transmissibilidade e cessibilidade do direito à indenização por danos morais (e respectivo direito de ação) pode fomentar a industrialização do sofrimento.
A questão da transmissibilidade, ou não, da indenização por danos morais há muito tempo instiga acirrados debates na doutrina e na jurisprudência nacionais. Sobre o tema, existem três correntes doutrinárias que merecem destaque[1]: a primeira, sustenta a intransmissibilidade absoluta dos danos morais, vez que o instituto visa proteger a honra subjetiva do indivíduo, que se trata de direito personalíssimo e, portanto, é intransmissível. Assim, o direito de obter reparação por dano moral e o respectivo direito de ação se extinguiriam com a morte da vítima que teve seus direitos da personalidade ofendidos pelo agressor. Pontue-se que esteve entendimento já chegou a ser chancelado[2] pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”).
Já a segunda corrente doutrinária defende a ideia da “transmissibilidade condicionada”. Em suma, os herdeiros da vítima do dano moral somente estariam aptos a suceder o pleito indenizatório do de cujus caso o processo tenha sido por ele ajuizado, ainda em vida. Vale dizer: o sofrimento suportado pela vítima é intransmissível; todavia, uma vez exercido o direito de ação pelo ofendido, o conteúdo econômico resultante do processo (indenização) poderia, sim, ser transmitido aos herdeiros (neste caso, o espólio substituiria a vítima falecida no polo ativo da relação processual). Por fim, há a teoria da transmissibilidade incondicionada. Aqui, como o próprio nome sugere, o direito à indenização por dano moral seria transmissível aos herdeiros da vítima, tenha ela ajuizado a ação indenizatória em vida, ou não. Ou seja, há transmissibilidade do direito à indenização e do respetivo direito de ação.[3]
Recentemente, a Corte Especial do STJ pacificou o tema ao cristalizar a teoria da transmissibilidade incondicionada na Súmula n. 642, publicada em 07.12.2020, cujo enunciado prescreve: “O direito à indenização por danos morais transmite-se com o falecimento do titular, possuindo os herdeiros da vítima legitimidade ativa para ajuizar ou prosseguir a ação indenizatória.”
Embora pacífico o entendimento – jurisprudencial e doutrinário – de que o sofrimento psicológico e/ou físico suportado pela vítima é intransmissível, não se pode negar que o correspondente direito de indenização pela lesão sofrida possui conteúdo econômico e se incorpora ao patrimônio da vítima, viabilizando a transmissibilidade da indenização. Este é o raciocínio por trás da nova Súmula n. 642 do STJ. Portanto, sob a égide do entendimento sumulado, tanto o direito de ação quanto o direito à indenização por danos morais possuem caráter patrimonial, transmissível aos herdeiros.
Mas aqui exsurge um novo problema. O instituto da indenização por danos morais – corolário da responsabilidade civil – é pautado pelo caráter compensatório da soma pecuniária arbitrada pelo Poder Judiciário para, justamente, compensar a lesão (extrapatrimonial) sofrida pela vítima. Inclusive, o quantum indenizatório costuma refletir a intensidade da ofensa suportada pela vítima.
Quando os herdeiros da vítima pleiteiam e/ou recebem a indenização pelo sofrimento suportado pelo de cujus (seja em nome próprio, por meio de exercício autônomo do direito de ação transmitido causa mortis; seja por meio da substituição processual no âmbito de processo já ajuizado em vida pelo falecido), a nosso ver, desnatura-se o elemento compensatório da indenização, pois somente a vítima poderia ser compensada pela lesão anímica por ela experimentada. Do contrário, estar-se-ia reconhecendo que o dano moral (sofrimento psicológico e/ou físico) é transmitido juntamente com o direito à indenização (e correspondente direito de ação), o que – em nossa opinião – não é possível.
Então, partindo do pressuposto de que o de cujus – dada sua condição – não pode mais ser compensado pelo dano psicológico sofrido, a única função restante para justificar a transmissibilidade da indenização por danos morais seria o viés punitivo do instituto (entendemos que a indenização por dano moral possui função compensatória e punitiva). Afinal, a morte da vítima funcionaria como verdadeiro prêmio e/ou incentivo ao agressor caso não houvesse a possibilidade de transmissão do direito à indenização (e correspondente direito de ação). Sobre o tema, André Gustavo Corrêa de Andrade teceu os seguintes comentários:
“Não prospera, também, a objeção de que, com a morte da vítima, a indenização não mais preencheria sua função de compensação ou satisfação. Sempre restaria o caráter sancionatório ou punitivo, próprio de qualquer reparação e que é ainda mais acentuado em se tratando de indenização do dano moral, uma vez que a doutrina dominante considera que esta exerce uma dupla função: punitiva a compensatória. A função punitiva justificaria a transmissibilidade mortis causa da indenização do dano moral, uma vez que a indenização, embora não pudesse exercer nenhuma função de reparação, compensação ou satisfação para a vítima, ainda seria útil como forma de punição do lesante.”[4]
Concordamos com tal assertiva, qual seja, que a transmissibilidade da indenização por danos morais (e respectivo direito de ação) causa mortis tem como fundamento o caráter punitivo do instituto. Frise-se que nosso ponto de vista parte da premissa de que o de cujus não pode mais ser compensado pela lesão extrapatrimonial sofrida, isto é, falecendo vítima antes do pagamento da respectiva indenização, desnatura-se a função compensatória do instituto. Registre-se que a indenização punitiva tem natureza preponderantemente patrimonial, na medida em que sua finalidade é castigar financeiramente (e possivelmente coibir condutas futuras semelhantes) o agressor, o que reforça a transmissibilidade. Curiosamente, o mesmo STJ que editou a Súmula n. 642 tem o hábito[5] de rechaçar o instituo dos danos punitivos (punitive damages).
Outra questão que merece destaque neste artigo é a questão da transmissibilidade da indenização por danos morais por meio de ato inter vivos. Ora, se é verdade que a indenização por dano moral possui natureza patrimonial e, por isso, o direito à indenização, bem como o respectivo direito de ação, são transmissíveis causa mortis, também é verdade que tais direitos podem ser transmitidos por meio de ato inter vivos
Embora tal prática não seja amplamente difundida no Brasil, a comercialização do direito à indenização por danos morais existe em território nacional; e pode ser exemplificada da seguinte forma: “A” sofre danos psicológicos em razão de uma conduta praticada por “B”. Por variadas razões (p. ex. falta de tempo para aguardar a tramitação de um processo judicial e/ou necessidade premente de dinheiro”) “A” pode decidir “vender” seu direito de indenização para “C” (que pode ser, p. ex., um fundo de investimento) mediante a aplicação de um “deságio” no preço da aquisição, isto é, “A” tem justa expectativa de receber R$ 10.000,00 de indenização por danos morais, mas acaba aceitando R$ 3.000,00 de “C” para ceder seu direito de ação, pois “C” tem custos operacionais (p. ex., contratação de escritório de advocacia e incerteza quanto ao êxito da ação) e precisa de uma margem de lucro para sustentar seu empreendimento e satisfazer eventuais investidores.
Se antes da edição da Súmula n. 642 do STJ havia incertezas quanto à cessibilidade do direito de ação para pleitear danos morais, agora não há dúvidas de que se trata de direito patrimonial, passível de transmissão e cessão. Note o leitor que no parágrafo anterior falávamos de comercialização do direito à indenização; e neste estamos tratando do direito de ação[6]. Em resumo, havendo comercialização do direito à indenização, a ação deve ser proposta em nome da vítima; e, havendo êxito ao final do processo, a indenização seria levantada pelo comprador, que passa a ter um verdadeiro direito creditório sobre o montante obtido. Já no caso da venda do direito de ação, o próprio comprador poderia ajuizar a ação (em nome próprio) mediante apresentação do instrumento de cessão de direitos.
Do ponto de vista estritamente jurídico, se o herdeiro possui legitimidade ativa ad causam para pleitear – em nome próprio – indenização por danos morais sofridos pelo de cujus, também não vemos óbice processual para que o adquirente faça o mesmo em relação ao direito de ação cedido onerosamente pela vítima, por meio de ato inter vivos.
Contudo, tal conjuntura suscita um grande dilema (mais ético do que jurídico): um fundo de investimento (ou qualquer outro interessado) agora pode pleitear – em nome próprio – indenização por dano moral sofrido por terceiros, com intuito exclusivo de lucrar com tal atividade, com respaldo (ainda que indireto) na Súmula n. 642 do STJ. Eis a industrialização do dano moral. Este fenômeno certamente distorce a função do instituto (que, primariamente, visa compensar a vítima pela lesão anímica sofrida; e, em segundo plano, representa uma punição ao agressor). E a mercantilização do dano moral segue direção diametralmente oposta ao movimento de despatrimonialização do direito civil, estruturado a partir da Constituição de 1988 e encampado pelo Código Civil de 2002.
Com efeito, a partir do advento da Constituição Federal de 1988 – nitidamente preocupada com o bem-estar e dignidade da pessoa humana, em detrimento da propriedade privada, que era a principal preocupação dos institutos jurídicos liberais que a precederam a Carta de 1988 (v.g., Código Civil de 1916) – verificou-se a ocorrência de um fenômeno conhecido como “constitucionalização do Direito Civil”[7], segundo o qual as normas do Direito Privado deveriam ser concebidas e interpretadas sob o prisma axiológico da valorização da pessoa humana, preterindo-se o “ter” pelo “ser”, deixando a propriedade privada de representar um fim em si mesmo, transformando-se em um meio à consecução de sua função social[8] (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88); e, aos poucos, essa mudança de paradigma (focado no ser humano em detrimento do patrimônio) engendrou a tendência de “despatrimonialização do Direito Civil”, tendência esta que permeou jurisprudência dos tribunais pátrios, culminando no consenso de que o instituto dos danos morais não pode ser vulgarizado.
Pondere-se que este autor não defende que é ilícita a comercialização da indenização por danos morais; ou que a tese da transmissibilidade da indenização por danos morais e respectivo direito de ação é equivocada. Por meio deste artigo, simplesmente pretende-se contribuir com o debate doutrinário apontando o que aparenta ser um movimento pendular[9] do foco do Direito Civil, no qual o núcleo axiológico volta a ser a propriedade em detrimento do ser humano (“patrimonialização do Direito Civil”). Em resumo, ao mesmo tempo em que a Súmula n. 642 do STJ pacificou a questão da transmissibilidade causa mortis da indenização por danos morais (e respectivo direito de ação), acabou – ainda que indiretamente – por endossar a mercantilização do instituto dos danos morais, fenômeno que se resume basicamente à geração de lucros a partir do sofrimento alheio, o que, certamente, não é o objetivo primário da indenização-compensatória.
[1] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade civil. 11ª Ed., São Paulo: Atlas, 2014, p. 120-122. No mesmo sentido: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A transmissibilidade do Direito de Indenização por Dano Moral, in Revista da EMERJ, v. 7 n. 28, 2004, pp. 99-109.
[2] STJ. REsp n. 302.029-RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 29.05.2001.
[3] Importante deixar claro que quando nos referimos a “direito de ação”, estamos tratando do direito subjetivo público de deduzir em juízo determinada pretensão (no caso do artigo, trata-se do pleito de indenização por danos morais). Registre-se que o exercício do direito de ação não implica – automaticamente – na existência do direito material alegado (indenização), tampouco no reconhecimento judicial dos danos morais que dão suporte ao pleito. Nas palavras de Dinamarco, “A ação que se exerce no processo de conhecimento é o poder de exigir a sentença de mérito”, seja ela de procedência, ou improcedência. Cf. DINAMARCO, Cândido Range. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, Tomo I, p. 481.
[4] ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A transmissibilidade do Direito de Indenização por Dano Moral, in Revista da EMERJ, v. 7 n. 28, 2004, p. 113.
[5] STJ. AgRg no AREsp n. 712.010-RJ, Min. Rel. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. em 01.10.2015; AgRg no Ag n. 850.273-BA, Min. Rel. Honildo Amaral de Mello Castro (Des. Convocado do TJAP), Quarta Turma, j. em 03.08.2010; e REsp n.1.315.479-SP, Min. Rel. Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, j. em 14.03.2017.
[6] Vide nota de rodapé n. 3.
[7] Segundo Carlos Roberto Gonçalvez: “a expressão direito civil-constitucional apenas realça a necessária releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição, redefinindo as categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, na nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º)", cf. GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 45.
[8] Sobre este tema, confira-se a doutrina de Cavalieri Filho: “Temos sustentado que após a Constituição de 1988 todos os conceitos tradicionais de dano moral tiveram que ser revistos. Assim é porque a atual Carta, na trilha das demais Constituições elaboração após a eclosão da chamada questão social, colocou o homem no vértice do ordenamento jurídico da Nação, fez dele a primeira e decisiva realidade, transformando os seus direitos no fio condutor de todos os ramos jurídicos”. Cf. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 106.
[9] Dizemos que o movimento é pendular pois o fenômeno da “despatrimonialização” do direito civil surgiu no bojo do Estado de Bem Estar Social, em contraposição ao ideal liberal pós Revolução Francesa, a partir do qual a principal função do Direito Civil seria preservar o direito de propriedade. E, agora, volta-se a dar posição de prestígio à propriedade.
Advogado (OAB/SP 407.499), sócio proprietário do Fidelis Sociedade Individual de Advocacia (https://fidelisadvocacia.com/), bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), e especialista em Direito Empresarial pela FGV-SP (pós-graduação lato sensu).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Heitor José Fidelis Almeida de. Comentários sobre a nova Súmula n. 642 do STJ e a mercantilização do instituto dos danos morais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2021, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56121/comentrios-sobre-a-nova-smula-n-642-do-stj-e-a-mercantilizao-do-instituto-dos-danos-morais. Acesso em: 21 nov 2024.
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