MARCOS VINÍCIUS DE JESUS MIOTTO[1]
(orientador)
RESUMO: Analisa-se, nesse artigo, o consequencialismo jurídico positivado no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), especificamente na atuação da Administração Pública. Desse modo, tem-se como objetivo geral refletir acerca da necessidade de positivação do consequencialismo jurídico no âmbito da Administração Pública. Por sua vez, como objetivos específicos, busca-se compreender a importância de previsão das consequências práticas das decisões dos administradores, investigar a conduta dos gestores frente a inovação das tomadas de decisões e, por fim, analisar a necessidade de inserção, na norma jurídica, do consequencialismo jurídico. Para tanto, a fim de efetivar os objetivos ora propostos, utiliza-se do método fenomenológico, visto que este possibilita estudar a essência do fenômeno e/ou realidade do objeto de pesquisa, associado à pesquisa exploratória, porquanto esta conceitua as inter-relações entre as propriedades do objeto em estudo. Ademais, recorre-se às pesquisas bibliográfica e legislativa para determinar o itinerário da inserção desse instituto jurídico nas decisões da Administração Pública. Enfim, com a coleta dos dados e dos resultados analisados, percebe-se que houve a necessidade de positivar o consequencialismo jurídico no ordenamento pátrio, uma vez que o gestor público, em diversas situações, não analisa e avalia as consequências práticas de suas decisões e, com isso, acaba prejudicando direitos dos administrados.
PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública. Consequencialismo jurídico. Tomada de decisão.
ABSTRACT: This article analyzes the positivized legal consequentialism in the Brazilian legal system, specifically in Article 20 of the Law of Introduction to Brazilian Legal Norms (LINDB), regarding the actions of the Public Administration. The general objective is to reflect on the need for the positivization of legal consequentialism within the scope of the Public Administration. The specific objectives are to understand the importance of predicting the practical consequences of administrators' decisions, investigate the conduct of managers in the face of innovative decision-making, and finally, analyze the need for the incorporation of legal consequentialism into legal norms. In order to achieve these proposed objectives, the phenomenological method is employed, as it allows for the study of the essence of the phenomenon and/or reality of the research object, combined with exploratory research, which conceptualizes the interrelationships between the properties of the object under study. Additionally, bibliographic and legislative research is used to determine the pathway for the incorporation of this legal concept into the decisions of the Public Administration. Ultimately, with the collection and analysis of the data and results, it is evident that there is a need to positivize legal consequentialism in the national legal system, as public managers, in various situations, fail to analyze and evaluate the practical consequences of their decisions, thereby harming the rights of the administered.
KEYWORDS: Public Administration. Legal consequentialism. Decision-making.
1 INTRODUÇÃO
Busca-se compreender, nessa pesquisa, o dever legal do gestor público brasileiro de observar as consequências práticas em sua tomada de decisão. Tendo em vista que o Consequencialismo jurídico foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro, sendo previsto no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Ademais, pretende-se investigar se a Administração Pública brasileira, no momento atual, está além ou aquém de sua capacidade em decidir conforme dispõe o diploma legal. Dessa forma, contextualizar-se-á a corrente do consequencialismo jurídico, bem como as inquietações referentes à sua aplicabilidade pelo gestor público.
Nesse sentido, estudar-se-á a teoria do consequencialismo jurídico na decisão administrativa e em até que ponto essa corrente teórica ou técnica de interpretação deve ser aplicada nas decisões administrativas.
Diversos questionamentos envolvem o tema proposto para análise. Afinal, mesmo positivada, haverá a efetiva aplicação desta corrente ou técnica pelo gestor público? Em que medida o gestor público está preparado para a aplicabilidade dessa teoria? As decisões continuarão sendo tomadas com base em valores jurídicos abstratos, reforçando-se, ainda mais, a discricionariedade, ou, ainda, com fundamentação consequencialista condicionada às suas afinidades pessoais ao caso concreto? Em síntese, pretende-se verificar em que medida a positivação do consequencialismo jurídico impactará na qualidade da decisão da Administração Pública brasileira.
Justifica-se, pois, o presente objeto de estudo, para compreender a importância do instituto em análise e em qual medida poderá impactar na tomada de decisões, especialmente com a exigência de o gestor público expressamente indicar, na motivação dos atos, as consequências práticas de suas decisões.
A escolha da temática do consequencialismo jurídico na Administração Pública brasileira surgiu da necessidade de entender a expressão “consequências práticas da decisão” pelo administrador público introduzida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei n.º 13.655/2018.
Decidimos investigar esse assunto por ser uma temática relativamente nova no ordenamento jurídico pátrio. Mesmo decorridos cinco anos da vigência da Lei, não sabemos qual o impacto dessas alterações no cotidiano da Administração Pública. Especialmente ao considerarmos que o descumprimento da norma implica na responsabilidade dos envolvidos.
Nesse interim, é preciso a compreensão do porquê da teoria do consequencialíssimo ser positivada no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, sabe-se que o Estado brasileiro ainda é burocrático e que há muitas normas administrativas, muitas das quais contribuem para certa insegurança jurídica dos administrados.
Portanto, o desenvolvimento deste estudo empenha-se em contribuir com a doutrina de Direito Administrativo no sentido de apontar o quanto será determinante a Administração Pública tomar decisões considerando suas consequências práticas.
Outrossim, a Lei n.º 13.655/2018 impacta, sobremaneira, a atuação e o comportamento dos agentes públicos, que são obrigados a cumprir a norma positiva em suas decisões. Por isso, questionar sobre essa alteração no Direito Administrativo brasileiro contribuirá para entender até que ponto haverá uma transformação de cultura administrativa e comportamental no setor público.
Finalmente, pretende inferir a intenção do legislador ao positivar o consequencialíssimo jurídico no direito público brasileiro, especialmente para o gestor público e se, realmente, a justificativa do Projeto de Lei n.º 349/2015, do Senado Federal, teve êxito para os problemas apontados: a) do alto grau de indeterminação de várias normas públicas; b) da incerteza relativa ao verdadeiro conteúdo de cada norma inerente ao Direito; c) da tendência à superficialidade na formação da motivação sobre questões jurídico-públicas na Administração Pública brasileira.
Nesse sentido, aponta-se, a partir do referencial teórico selecionado, as discussões já existentes em relação ao tema proposto no sentido de apontar eventuais diretrizes para uma atuação eficiente do Estado e tentativa de se efetivar o modelo gerencial de Administração Pública.
Para tanto, a fim de realizar apontamentos para que a técnica da interpretação consequencialista esteja presente na tomada de decisão na Administração Pública, adotou-se o método fenomenológico para o desenvolvimento do objeto de estudo, associado às pesquisas bibliográfica e legislativa.
Com efeito, verifica-se que, desde o surgimento do Estado, este se torna o principal centralizador da organização da vida em sociedade e normatizador das relações jurídicas públicas e privadas, de modo que a questão de normas reguladoras entre órgão estatal e administrados se faz necessária.
A fim de impor limites ao próprio Estado, exige-se que sua atuação seja adstrita ao princípio da juridicidade, atuando nos termos da lei e em respeito a todo o ordenamento jurídico.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DESENVOLVIMENTO DO ESTADO: DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL
Na experiência da história humana houve diversos tipos de Estado. Nesse estudo, a tipologia de Noberto Bobbio (apud Costin, 2010, p. 8) contempla os fins da pesquisa. Bobbio tipifica a evolução histórica do Estado em feudal, estamental, absoluto e representativo.
O Estado feudal trata-se de um modo de Estado em que existe uma fragmentação de poder em múltiplos grupos sociais. Além disso, possui uma concentração de diferentes funções em diversas pessoas. O poder do rei consistia em organizar o exército e a estruturação de defesa do território (Costin, 2010, p. 8).
No Estado estamental há uma constituição de órgãos colegiados em que indivíduos possuidores da mesma esfera social “detêm os mesmos direitos e privilégios frente ao poder soberano” (Costin, 2010, p. 8). Enfim, essa forma de Estado surge como contraposição ao rei e aos seus funcionários.
Por outro lado, o Estado absolutista caracterizava-se pelo fato de o rei ser o governante supremo e que poderia praticar qualquer ato sem consultar as instituições vigentes, pois a sua vontade tornava-se lei. Nesse tipo de Estado, as características significativas são: a unidade territorial, concentração de poder na figura do monarca, controle das práticas econômicas, das práticas da justiça e das forças armadas. Logo, havia uma centralização do poder na pessoa do monarca. Em vista disso, a organização das cidades, sociedades comerciais ou corporações só podia existir mediante autorização do poder central (Costin, 2010, p. 8).
O Estado representativo se refere à ideia de representação. Isto é, os cidadãos escolhem representantes para agir em nome deles na organização e administração da coisa pública. Em outras palavras, nesse tipo de Estado os representantes são eleitos para decidir quais leis devem governar aquela sociedade. Por fim, o presidente ou primeiro ministro age representando a coletividade por um período delimitado (Costin, 2010, p.8)
Também, utilizamos a nomenclatura Estado Moderno, em suas mais diversas formas[2]. Além do mais, engloba o último tipo de Estado na classificação de Noberto Bobbio. Em suma, o Estado moderno se caracteriza pela soberania, territorialidade e povo. Nesse modelo de Estado, há uma necessidade de unidade com o fim de buscar um único governo em um território delimitado (Lopes, 2012, p.11).
Em resumo, nesse modelo de Estado se preconiza a limitação ao exercício do poder do governante, estabelecendo as bases para o desenvolvimento do Estado de Direito, onde todos, inclusive o governante, deve observar o ordenamento jurídico (Di Pietro, 2023, p. 32).
No Estado moderno, houve um reconhecimento dos direitos dos indivíduos/cidadãos. Isso representou uma “revolução no relacionamento entre governantes e governados” (Costin, 2010, p. 10). Portanto, o cidadão se tornou portador de direitos individuais fundamentais e de direitos sociais. Sendo que esses direitos deveriam ser atendidos pelo Estado.
Segundo Matias-Pereira (2018, p. 127) na evolução do Estado moderno houve duas reformas administrativas fundamentais, quais sejam: reforma burocrática e reforma da gestão pública. O autor afirma que na reforma burocrática “tem início na segunda metade do século XIX. Trata-se do processo de transição do Estado patrimonial para o Estado burocrático weberiano” e a reforma da gestão pública “orienta a transição do Estado burocrático para o Estado gerencial” (Matias-Pereira, 2018, 127).
A administração burocrática surge nos meados do século XIX com o fim de combater os comportamentos corruptivos, o nepotismo e além de outros vícios praticados na administração patrimonial. A administração burocrática tem como princípios norteadores de seu desenvolvimento a “a profissionalização, a ideia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade e o formalismo, em síntese, o poder racional-legal” (Chiavenato, 2022, p. 69).
Nesse modelo de administração há uma desconfiança prévia tanto nos administradores como nos cidadãos em seus atos. Devido a isso, o controle transforma a razão de ser do funcionário público.” Em consequência, o Estado volta-se para si mesmo, perdendo a noção de sua missão básica, que é servir a sociedade” (Chiavenato, 2022, p. 69). Logo, os efeitos desse modelo são ineficiência e incapacidade de prestar um serviço de qualidade aos administrados.
Em contraposição ao modelo burocrático, surge a denominada administração pública gerencial na segunda metade do século XX. Esse modelo se apoia em muitos princípios e critérios da administração burocrática. Em outras palavras, há uma evolução das práticas administrativas que antes era voltada para o controle e um fim em si mesmo do Estado; já na administração pública gerencial a conduta da administração é direcionada para os resultados.
Em suma, na administração burocrática o Estado buscar controlar o comportamento de si mesmo e do cidadão. Na administração gerencial, visa-se um esforço permanente em resultados melhores para o cidadão. “Na administração pública gerencial, a estratégia volta-se para: a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade. A garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para atingir os objetivos contratados. O controle ou cobrança a posteriori dos resultados” (Chiavenato, 2022, p. 70).
Portanto, na administração pública de origem burocrática “assume que o modo mais seguro de evitar o nepotismo e a corrupção é pelo controle rígido dos processos, com o controle de procedimentos.” (Matias-Pereira, 2018, p.129). Por outro lado, na administração gerencial “parte do princípio de que é preciso combater o nepotismo e a corrupção, mas que, para isso, não são necessários procedimentos rígidos, e sim outros meios, como indicadores de desempenho, controle de resultados etc.” (Matias-Pereira, 2018, 129).
Enfim, na administração pública burocrática há uma ideia de formalismo, rigidez, técnico, centralização e autoritária. Enquanto na administração pública gerencial se orienta pelos os princípios de confiança e descentralização da decisão, exige formas flexíveis de gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções e incentivos à criatividade e inovação” (Matias-Pereira, 2018, 129).
Desse modo, faz-se necessária uma breve evolução do Estado brasileiro. Assim, antes de se tornar um Estado Democrático de Direito, o Brasil foi colônia de Portugal. Aqui, existia uma organização administrativa vinculadas as normas legais portuguesas.
Com a chegada da família real, em1808, iniciou-se, propriamente, a instituição do Estado e da Administração Pública brasileira, apesar de o Brasil ser ainda colônia. Nesse período, a estrutura da Administração Pública tinha um viés patrimonialista, visto que “o rei Dom João VI criou cargos e honrarias para compensar os súditos que fielmente o acompanhara” (Paludo, 2012, p. 78). Além do mais, nesse período existiam os estamentos, ou seja, “grupos da sociedade que detinham parcela de poder e status jurídicos próprios. Ex. juristas, militares segmentos da classe política” (Paludo, 2012, p. 79). Era um sistema em que a administração pública pertencia a uma pequena parcela da sociedade que se apropriava e usufruía das vantagens do Estado.
Com a Proclamação da República até os dias atuais, há mudança, lenta e gradual, de tratamento da coisa pública. Porém, o modo de organizar a estrutura administrativa do Estado mescla entre a forma patrimonialista e burocrática de administrar os bens públicos (Paludo, 2012, p. 77-79).
Por exemplo, um marco fundamental da administração burocrática brasileira foi a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1936. Teve como objetivo, modernizar a estrutura administrativa na esfera federal (Chiavenato, 2022, p. 73). Enquanto, na administração gerencial, podemos citar a criação do Ministério da Desburocratização e do Programa Nacional de Desburocratização (PRND) em meados de 1980, cujo objetivo era “a revitalização e agilização das organizações do Estado, a descentralização da autoridade, a melhoria e simplificação dos processos administrativos e a promoção da eficiência” (Chiavenato, 2022, p. 73).
Outro momento fundamental em direção ao modo gerencial da administração pública foi a promulgação da Emenda Constitucional n.º 19/1998, em que o princípio da eficiência é inserido como princípio expresso na Constituição Federal, especificamente, no artigo 37, caput (Brasil, 1988). Por consequência deste, objetiva-se o estabelecimento de um modelo de administração pública voltada para cumprimento de metas e resultados.
Em síntese, na evolução histórica da administração pública brasileira, destacam-se os seguintes momentos: “a Administração Colonial; o Brasil como sede do império português; o Império (1º reinado, regências e 2º reinado); a República Velha; o varguismo e a implantação da Reforma de 1936; o desenvolvimentismo e o início da Reforma do Ministério da Fazenda; o regime militar, o estatismo, a modernização e a Reforma de 1967; a democratização e o retorno ao formalismo; a reforma da Gestão Pública de 1995” (Costin, 2010, p. 40).
Embora o Estado brasileiro tenha passado por duas grandes reformas administrativas: a burocrática, de início em 1937, e gerencial, com início em 1995 (Bresser-Pereira, Luiz Carlos apud Costin, 2010, p.73), não raras vezes, toma decisões ou adota comportamentos ou posturas que geram desconfianças nos administrados. Implicando, dessa maneira, em insegurança jurídica, porquanto edita normas jurídicas sem considerar suas consequências práticas e efeitos nefastos ao próprio interesse público.
Isso porque, ao editar normas administrativas em demasia, praticar atos ou contrato administrativos e ao tomar decisões, as autoridades públicas brasileiras, em geral, não possuíam o dever (legal expresso) de se preocupar com as consequências práticas da decisão. Nessa perspectiva, o legislador infraconstitucional entendeu por bem positivar a exigência de interpretação consequencialista, o que se deu por meio da Lei n.º 13.655/2018, na LINDB.
O artigo 20 da norma acima, dispõe explicitamente que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (Brasil, 2018). Em outros dizeres, a decisão tomada pelo gestor público deve observar os elementos fáticos e as consequências práticas que impactaram na vida dos administrados.
Diante das práticas administrativas e dos princípios dos modelos burocráticos e gerenciais de gerir a coisa pública, diga-se que ainda estão presentes na administração pública brasileira, o gestor público brasileiro, muitas das vezes, encontra-se em dúvida em sua tomada de decisão, especialmente, em casos complexos. Em consequência disso, o legislador inseriu na LINDB que toda decisão do administrador público deve levar em consideração os aspectos consequenciais da decisão administrativa. É o que estudaremos no próximo tópico.
3 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA E AS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DA DECISÃO DO ARTIGO 20 DA LEI DE INTRODUÇÃO AS NORMAS DO DEREITO BRASILEIRO (LINDB)
No âmbito do Direito Público brasileiro, não existia uma regulamentação precisa e consistente que orientasse a atuação da Administração Pública na sua tomada de decisões ou que exigisse, expressamente, a avaliação e análise das consequências práticas decorrentes dessas decisões e de sua atuação.
Nesse sentido, havia certa insegurança jurídica na ação decisória do gestor público, especificamente em casos difíceis, posto que o agente público decidia levando-se em conta os valores jurídicos abstratos e/ou indeterminados, além dos princípios gerais do direito para fundamentação do ato administrativo ou da decisão administrativa (Damasceno, 2018, p. 11).
Tendo em vista esse cenário, foi apresentado, no Senado Federal, o Projeto de Lei n.º 349/2015, de autoria do Senador Antônio Anastasia. O Projeto de Lei citado cujo “objetivo é melhorar a qualidade da atividade decisória pública no Brasil, exercida nos vários níveis da Federação (federal, estadual, distrital e municipal) e nos diferentes Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e órgãos autônomos de controle (Tribunais de Contas e Ministérios Públicos)” (Sundfeld; Marques Neto, 2018, p. 7). Em sendo assim, o projeto visa proteger os administrados, as organizações dos setores públicos e privados das incertezas, riscos e/ou eventuais injustiças na decisão administrativa.
É preciso pontuar que, a partir da Lei n.º 12.376/2010, a Lei de Introdução ao Direito Civil passou a ser denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, e que não dispunha de normas específicas que orientasse a aplicação do Direito Público visando as consequências práticas da decisão do gestor público (Brasil, 2015).
Assim, a exigência de observância das consequências práticas da decisão administrativa se fazia necessária para os defensores do Projeto, já que o Direito Público se tornou mais complexo com as novas relações e necessidades sociais. Isso porque o Estado, por meio da Administração Pública, intervém assiduamente nas relações jurídicas do particular.
Ademais, o Direito Público deixou há muito tempo de ser uma simples aplicação do fato à norma positiva sem levar em consequências da aplicabilidade da norma jurídica (Brasil, 2015). Pois, na concepção “mecanicista” a norma jurídica pressupõe que todas as circunstâncias da vida real estão contidas no dispositivo legal. Na concepção realista da aplicação do direito, há uma dinâmica que é insuscetível a previsão antecipada de todos os casos no mundo fático quando se elabora a lei. Tendo em vista que “o legislador e os próprios dispositivos na lei não são omniscientes”, nas palavras de Justen Filho (2018, p.7). Desse modo, “toda norma legal (inclusive a própria Constituição) reflete um momento existencial da sociedade que a produz (Justen Filho, 2018, p.9).
Com o advento da Lei n.º 13.655/2018, o Direito Público brasileiro passa por significativas alterações, especialmente na relação entre a Administração Pública e o administrado. Nesse contexto, foram incluídos dez novos artigos relacionados ao Direito Público na LINDB (Brasil, 1942).
Conforme disposto alhures, a Lei acima decorreu do Projeto de Lei n.º 349/2015, baseada em pesquisas da Sociedade Brasileira de Direito Público em parceria com a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Coube a elaboração desse Projeto aos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques (Brasil, 2015).
De acordo com Marques Neto e Sundfeld (2013, p. 278), o Projeto de Lei propôs medidas com finalidade de neutralizar fatores de distorção das atividades jurídico-decisória, dentre as quais destacam-se a indeterminação das normas jurídicas administrativas; a incerteza quanto ao conteúdo da norma; as dificuldades do Poder Público em obter o cumprimento voluntário e rápido de obrigações perante terceiros; pelo risco de invalidação posterior nas instâncias de controle (Tribunal de Contas ou Poder Judiciário); maneira autoritária em que são concebidas e editadas as normas pela Administração Pública.
Também, os professores Marques Neto e Sundfeld (2013, p. 279) ainda ressaltam o uso de novos princípios a serem observados pelas autoridades públicas no momento da decisão baseadas em normas jurídicas indeterminadas nos artigos 20 e 21 do Projeto de Lei, objetos de análise desta pesquisa.
Sundfeld e Salama (2015, p. 13) explicam que o objetivo da norma jurídica é dispor de segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público, pois o Poder Público edita muitas normas administrativas provocando, às vezes, incerteza e imprevisibilidade na aplicação nos atos administrativos. Além disso, toma decisões administrativas em que não se leva conta as consequências práticas por tal comportamento.
Por isso, com o fim de mitigar a insegurança jurídica, o Legislador aprovou o Projeto de Lei n.º 349/2015 do Senado Federal. Por conseguinte, foi sancionado à época pelo então Presidente da República, Michel Temer, recebendo a numeração de Lei n.º 13.655/2018.
Apesar dos novos artigos e diversas alterações promovidas na legislação, para os fins propostos neste estudo, interessa-nos a análise específica dos artigos 20 e 21 do referido diploma normativo. Para tanto, o quadro abaixo indica a redação do Projeto de Lei, comparando-a com a redação dos artigos da Lei:
Projeto de Lei n.º 349/2015 |
Lei n.º 13.655/2018 |
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e adequação da medida, inclusive em face das possíveis alternativas. |
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. |
Art. 26. A decisão que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso as suas consequências e, quando for o caso, as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional, equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor, aos sujeitos atingidos, ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e adequação da invalidação e das medidas impostas, inclusive em face das possíveis alternativas. |
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. |
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Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, salvo quanto ao art. 29 acrescido à Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), pelo art. 1º desta Lei, que entrará em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial. Brasília, 25 de abril de 2018; 197º da Independência e 130º da República. MICHEL TEMER Gilson Libório de Oliveira Mendes Eduardo Refinetti Guardia Walter Baere de Araújo Filho Wagner de Campos Rosário Eliseu Padilha Grace Maria Fernandes Mendonça. |
Elaborada pelo autor. Grifo nosso.
Da análise dos dispositivos legais acima, o Legislador ressalta que nas decisões administrativas, controladoras e judiciais, ao serem fundamentadas, devem apontar as consequências práticas da referida decisão.
Em outras palavras, enfatiza-se a importância de avaliar os efeitos reais e concretos das decisões tomadas pelo poder público, a fim de garantir a efetividade e o impacto positivo das medidas adotadas. Pretende-se, com isso, incentivar a reflexão sobre os resultados práticos das decisões administrativas, contribuindo para uma gestão pública mais eficiente e responsável.
Antes de se discorrer sobre o Consequencialismo jurídico, deve-se salientar que a decisão tomada pelos indivíduos baseada no critério da consequência teve origem na tradição da Filosofia Moral do XVIII, tendo como principais teóricos David Hume, em sua obra “Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral”, e por Jeremy Bentham, no livro “Uma introdução aos princípios da moral e legislação” (Cardoso, 2019, p. 66).
Nesse sentido, a corrente utilitarista é uma teoria de perspectiva mais ampla no entendimento da maximização do bem, enquanto o Consequencialismo seria uma subdivisão do Utilitarismo, em que a decisão escolhida deve ser analisada e julgada pelas possíveis consequências, preocupando-se, desse modo, com os resultados gerados.
Portanto, é possível afirmar que, para o Consequencialismo jurídico, os resultados são o mecanismo de efetividade e segurança da decisão tomada. Aliás, o Consequencialismo jurídico é uma abordagem ética e moral que se concentra nas consequências práticas e nos resultados das ações no campo do Direito. Essa perspectiva argumenta que a avaliação ética das decisões deve ser baseada nos efeitos que elas produzem, priorizando o bem-estar geral, a justiça e a maximização dos resultados positivos.
O Consequencialismo jurídico procura determinar a corretude moral de uma ação com base nos seus efeitos práticos e nas consequências que ela gera para as pessoas afetadas. Ao adotar essa abordagem, consideram-se os impactos reais das decisões legais e como elas contribuem para o bem comum e para a promoção da justiça social.
A interpretação consequencialista aplica-se em tomada de decisões em casos mais complexos, especialmente no âmbito jurídico. Dessa forma, não afasta a possibilidade de a Administração Pública se utilizar desse instrumento, porquanto é uma imposição legal no ordenamento jurídico brasileiro. Nesses casos, o julgador ou o administrador público decide levando-se em conta as consequências práticas em sua tomada de decisão.
Damasceno (2018, p. 24) relata que o Consequencialismo tem sua origem no Utilitarismo e/ou no Pragmatismo, ou até mesmo é sinônimo deste para Richard Posner. Chaves e Lima (2020, p. 140), contudo, explicam que o Utilitarismo se apresenta como uma corrente filosófica que possui como fundamento maximizar o bem e evitar o mal, a dor, o desprazer ao máximo. Portanto, aquele é mais específico no sentido de que se preocupa com as possíveis consequências de uma determinada decisão jurídica ou que no presente estudo, na decisão administrativa.
Faleiros Júnior, Borges e Ayzama (2020, p. 114) afirmam que duas vertentes influenciaram para o surgimento da intepretação consequencialista: a primeira, com origem na Common Law e na Análise Econômica do Direito, por Ronald Coase e Guido Calabresi, e a segunda, da Teoria Jurídica de Neil MacCormick.
Referindo-se à teoria consequencialista de Neil MacCormick, Cardoso (2019, p. 70-71) diz que a justificação das decisões judiciais por suas consequências comporta duas posições extremadas: primeira, alguns creem que as consequências são a única justificativa possível para uma decisão; segunda, outros desqualificam as consequências práticas como justificativas aptas.
No entanto, o próprio Neil MacCormick rejeita ambas as posições. Ele reconhece, segundo Chaves e Lima (2020, p. 144) que apenas algumas consequências estão aptas para justificar determinadas decisões judiciais. Nesse sentido, as consequências possuem uma função intermediadora entre as possíveis decisões extremas. Assim sendo, considera que o argumento consequencialista se relaciona com as consequências normativas e com as repercussões da decisão judicial proferida.
Com base nessas premissas, adotamos a definição de consequencialismo jurídico formulada por Schuartz (2008, p. 130-131), para quem se trata de “[...] qualquer programa teórico que se proponha a condicionar, ou qualquer atitude que condicione explícita ou implicitamente a adequação jurídica de uma determinada decisão judicante à valoração das consequências associadas à mesma e às suas alternativas”.
Ao encontro desse posicionamento, destaca-se o conceito de consequencialismo jurídico proposto por Mendonça (2018, p. 47): trata-se de uma “[...] postura interpretativa que considera, como elemento significativo da interpretação do Direito, as consequências de determinada opção interpretativa”.
A perspectiva do consequencialismo jurídico torna-se inevitável em determinadas decisões quer sejam judiciais, administrativas ou controladoras. No Poder Judiciário, por exemplo, cada vez mais se ajuízam ações envolvendo casos complexos. Cita-se, a título ilustrativo, condenações em obrigações de fazer consistentes no fornecimento de drogas lícitas de altíssimo valor.
No contexto da Administração Pública brasileira, enfrentam-se inúmeros desafios sem a disponibilidade de recursos financeiros para resolvê-los. Também, nos Tribunais de Contas, surge o dilema de fiscalizar e punir o gestor público ou terceiros que tenham praticado atos prejudiciais aos cofres públicos.
Schuartz (2008, p. 152) observa que, na realidade brasileira, há três tipos ideais de consequencialismo, denominados de “festivo”, “militante” e “malandro”. O festivo “advoga uma ampla desdiferenciação entre aplicação do direito e formulação de políticas públicas, comandada por uma apropriação superficial e seletiva da literatura norte-americana de análise econômica do direito”.
Por sua vez, Schuartz (2008, p. 152) explica que o consequencialismo militante “caracteriza-se por não se deter diante das regras do direito positivo e não se preocupar em reestruturar as suas referências normativas na forma de programas condicionais prévia e cuidadosamente lapidados com as ferramentas da dogmática jurídica”, enquanto o consequencialíssimo malando “cria, redesenha e eventualmente aperfeiçoa a dogmática jurídica para colocar a seus serviços, ainda que pontualmente e para o caso, um ordenamento jurídico recalcitrante” (Schuatz, 2008, p. 152).
Desse modo, faz necessário trazer o consequencialismo jurídico para dentro das exigências do Estado Democrático de Direito com a finalidade de modelar os limites de controle de constatar fatos, de prognosticar os elementos constituintes e analisar os parâmetros para o veredito da decisão administrativa.
Também sustenta que o consequencialismo jurídico alcança integrar a norma jurídica positivada pelo Estado e o fato posto no processo judicial ou administrativo. Sai, desse modo, do plano abstrato para o plano dos fatos, posto que cada situação jurídica se apresenta a sua singularidade. Nesse sentido, o julgador ou gestor público deve escolher a decisão que melhor se amolde ao caso positivado (Chaves; Lima, 2020, p. 141).
Portanto, o Legislador, o Magistrado, a Autoridade pública, o Ministro ou Conselheiro de Tribunais de Contas, assim como qualquer outro agente público ao tomar uma decisão, deve levar em conta não somente os aspectos econômicos, mas todos os prejuízos à sociedade, que igualmente devem ser analisados com a finalidade de se promover o menor impacto social.
Trata-se, pois, de obter menores consequências prejudiciais aos sujeitos do processo, bem como à sociedade. Na tomada de decisão do ponto de vista consequencialista, o julgador deve ponderar as consequências, pois ele necessita pensar qual o melhor resultado que produzirá sua decisão.
Um exemplo, no âmbito da Administração Pública, seria quando um gestor público precisa tomar uma decisão em relação a um determinado projeto de infraestrutura. Em vez de se basear apenas na conformidade estrita às normas legais ou nos interesses imediatos das partes envolvidas, o gestor avalia as consequências práticas das diferentes opções disponíveis.
Nesse exemplo, deve o gestor considerar o impacto social, econômico e ambiental de cada alternativa, perscrutando maximizar os benefícios e minimizar os danos para a sociedade como um todo. Essa abordagem consequencialista permite que a Administração Pública tome decisões mais informadas e responsáveis, visando ao bem-estar coletivo e ao desenvolvimento sustentável.
Para isso, os sujeitos do processo judicial ou administrativo precisam subsidiar o julgador de elementos informativos sobre a demanda. Com os dados fornecidos pelas partes, o juiz ou a autoridade pública motivará a decisão de modo concreto e que a decisão seja bem específica, uma vez que avaliará a consequência exata da realidade posta. Traz, assim, uma qualidade melhor das decisões, principalmente, na seara administrativa e tributária.
O consequencialíssimo proporciona uma base sólida para a tomada de decisões, levando em consideração os resultados esperados de diferentes cursos de ação. Isso ajuda os gestores públicos a adotar escolhas fundamentadas e embasadas em dados concretos, em vez de depender apenas de critérios subjetivos ou conformidade estrita às normas jurídicas.
Por fim, o consequencialíssimo jurídico analisa a potencial adequação legal do ato avaliado (administrativo ou judicial) na realidade concreta da interação humana, bem como o meio onde tal atividade acontece com os valores inerentes ao Direito.
Conforme já ressaltado em outra oportunidade, no Brasil, o Consequencialismo jurídico ou uma interpretação consequencialista encontra-se positivado no artigo 20 da LINDB, in verbis: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão [...]” (Brasil, 2018).
Logo, as autoridades públicas deverão observar as possíveis consequências práticas de suas decisões. Em vista disso, tenta concatenar a análise econômica e fática em contraposição da análise legalista da decisão. Isso porque, com essa técnica, é possível a obtenção de uma visão ampla e completa dos impactos de suas ações. Dessa forma, permite uma avaliação mais precisa dos efeitos positivos e/ou negativos que uma decisão pode ter sobre a sociedade, a economia, o meio ambiente, por exemplo.
4 CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS OU ABSTRATOS À LUZ DO CONSEQUENCIALISMO NA TOMADA DE DECISÕES PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Com a Democracia, nas sociedades modernas, surgiu a necessidade de editar leis com um maior grau de abstração no sentido de contemplar os eventuais fatos jurídicos que poderiam ocorrer no mundo fático. A abstração da norma jurídica originou-se da representatividade nos parlamentos dos vários setores da sociedade, ou seja, um fenômeno político-social de uma sociedade multiclasse, porquanto os Parlamentos possuem representantes eleitos pelos diversos grupos sociais e, obviamente, com seus interesses (Justen Filho, 2018, p. 17).
A abstração das leis refere-se à natureza conceitual e geral das normas jurídicas. Elas são formuladas de forma abstrata para abranger uma ampla gama de situações e serem aplicáveis a diferentes contextos. A abstração permite que as leis sejam flexíveis e adaptáveis às mudanças sociais, tecnológicas e econômicas ao longo do tempo (Justen Filho, 2018, p. 8).
Essa abstração pode ser justificada na medida em que o Direito deve ser capaz de lidar com uma variedade de casos e circunstâncias diversas, fornecendo uma estrutura legal que oriente as decisões e comportamentos das pessoas. No entanto, a abstração das leis também pode apresentar desafios (Justen Filho, 2018, p.10-11).
De fato, sendo a lei aprovada de modo geral e abstrato para solucionar casos concretos, estes muitas das vezes são resolvidos também abstratamente. Desse modo, podem ocorrer soluções contraditórias entre si, o que exige o estabelecimento de se estabelecer diferenças entre princípios e regras para se compreender a solução posta pelo administrador, controlador ou juiz (Justen Filho, 2018, p. 11).
Nesse sentido, a regra é a norma jurídica vinculante de um comando à ocorrência de determinada situação do mundo real descrita hipoteticamente. Já os princípios, possuem uma gradatividade de indeterminação notável, pois é norma de concepções gerais que são aplicados a casos concretos e que, por sua vez, vinculam-se a valores abstratos, impondo ao aplicador o poder/dever de construção de solução dentro das circunstâncias fáticas (Valadão, 2019).
É possível se inferir, neste contexto, que isso pode resultar em elevado grau de abstração pelo agente ou gestor público ao justificar a decisão administrativa com base em conceitos indeterminados ou em valores jurídicos abstratos.
O próprio Decreto n.º 9.830, de 10/06/2019, que regulamenta os artigos 20 a 30 da LINDB, conceitua os valores jurídicos abstratos como “[...] aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração” (Brasil, 2019). Ademais, é possível encontrar, na própria LINDB, em seu artigo 4º, a possibilidade de o juiz se utilizar dos “princípios gerais do direito” (valores) em caso de omissão legislativa a fim de evitar que não haja decisão non liquet (Martins, 2019, p. 1).
Todavia, a definição contida no referido Decreto só se refere ao elevado grau de indeterminação e abstração da norma jurídica, e a Lei n.º 13.655/2018 não explicita o que poderia se considerar como valores jurídicos abstratos.
Mesmo assim, podemos concluir que a intenção do Legislador foi a vedação do voluntarismo do agente público em detrimento da segurança jurídica. Desse modo, quis o Legislador evitar o subjetivismo na decisão e uma compreensão do Direito com sistema íntegro e coerente.
Na relação do consequencialismo jurídico com o conceito jurídico indeterminado, ou valor jurídico abstrato, percebe-se que, pelo fato de a lei não conferir uma definição ou limitar o alcance de sua expressão, a própria LINDB se preocupou em estabelecer a necessidade de o fundamento da decisão, em que pese poder se utilizar de valores abstratos e/ou conceitos indeterminados, observar e indicar expressamente suas consequências práticas.
No Estado Democrático de Direito, o Poder Público intervém com alto grau na esfera jurídica subjetiva dos administrados/cidadãos. Para evitar a arbitrariedade por parte dos agentes públicos, o sistema jurídico exige que as autoridades fundamentem suas decisões. Ou melhor, torna-se um dever que os atos administrativos sejam motivados.
A Constituição Federal, por exemplo, em seu artigo 93, X, artigo 121, §2º e artigo 169, §4º, dispõe acerca desse dever (Brasil, 1988). No âmbito da administração pública federal, a Lei n.º 9.784/1999, em seu artigo 2º, caput, faz referência à motivação do ato administrativo. Aliás, trata-se de um princípio explícito infraconstitucional. Outrossim, nos artigos 38, §2º e 50, traz, expressamente, quais atos administrativos devem necessariamente serem motivados e, caso não sejam, prevê que são passíveis de invalidade (Brasil, 1999).
A Lei nº 13.655/2018, impôs que a decisão tomada pelo agente público (administrador, controlador e juiz) tem o dever de usar o princípio da motivação e, além disso, deve observar as consequências práticas dessa decisão. Especificamente, obriga a Administração a motivar os atos administrativos e que os motivos sejam respaldados pela realidade fática.
A motivação do ato administrativo é de extrema importância no contexto da Administração Pública. A motivação refere-se à exposição das razões e fundamentos que levaram à tomada de determinada decisão administrativa. Essa exposição deve ser clara, transparente e consistente, fornecendo uma justificativa adequada para a ação adotada (Meireles, 2002, p. 97).
A motivação do ato administrativo desempenha um papel crucial na garantia da legalidade, transparência, controle e proteção dos direitos na Administração Pública. Ela assegura que as decisões sejam tomadas de forma fundamentada, dentro dos limites legais e com justificativas claras, promovendo a confiança e a legitimidade das ações do poder público. A exceção ocorre apenas para os atos de mero expediente, os ordinatórios e os determinados pela Constituição Federal (Mello, 2002, p. 355).
Embora a Constituição Federal de 1988 não disponha expressamente do princípio da motivação, isso não é um argumento convincente que não haja uma obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos. Em primeiro lugar, porque há diversos princípios constitucionais reconhecidos aplicáveis ao Poder Público, tal como a supremacia do interesse público e segurança jurídica.
Em segundo lugar, o artigo 93, X, da Constituição Federal, numa interpretação sistemática, deve ser aplicado a toda Administração Pública. Caso contrário, seria contraditório que as decisões do Poder Judiciário fossem motivadas e as decisões dos outros Poderes não possuírem igual exigência, tendo em vista que seu fundamento é o próprio controle, seja por parte dos Poderes, seja por parte da sociedade civil.
Por fim, a relação entre valores jurídicos abstratos e Consequencialismo na Administração Pública reside na maneira como os valores abstratos são considerados e equilibrados em averiguar as consequências práticas desejáveis. Embora os valores jurídicos abstratos, como justiça, igualdade, segurança e bem comum, forneçam diretrizes gerais, o Consequencialismo se concentra na análise das consequências específicas das ações para determinar a melhor decisão em termos de resultados práticos.
Na Administração Pública, os gestores podem aplicar o Consequencialismo ao ponderar os valores abstratos ao tomar decisões de políticas públicas ou ao enfrentar dilemas éticos complexos. Alguns exemplos incluem, por exemplo, a distribuição de recursos. Ao decidir como alocar recursos escassos, como orçamento público ou serviços, os gestores podem adotar uma abordagem consequencialista. Eles podem considerar as consequências práticas de diferentes opções de distribuição de recursos e esforçar-se em maximizar o bem-estar social ou reduzir desigualdades, equilibrando valores abstratos, como justiça distributiva e eficiência econômica.
Outro exemplo diz respeito à tomada de decisões em razão de situações éticas desafiadoras, em que princípios abstratos podem entrar em conflito, o Consequencialismo pode ser aplicado para avaliar as consequências das diferentes escolhas. Por exemplo, ao lidar com um caso de corrupção, os gestores podem considerar os efeitos práticos de punir ou perdoar um agente corrupto, avaliando como isso se pode afetar a confiança pública, a prevenção de futuros casos e a integridade institucional.
Igualmente, na formulação de políticas públicas, os gestores podem realizar análises de impacto para avaliar as consequências práticas das diferentes opções. Eles podem considerar como as políticas afetarão os diversos segmentos da sociedade, a economia, o meio ambiente e outros aspectos relevantes. Essa abordagem consequencialista ajuda a tomar decisões informadas, considerando os resultados concretos que se espera alcançar.
Aqui, devemos fazer uma distinção do agir discricionário e do agir arbitrário. Neste o agente público agride e/ou viola a ordem jurídica comportando-se além do que a Lei permite. Em consequência, o ato é ilícito e pode ser corrigido judicialmente. De outro modo, a discricionariedade administrativa, a norma jurídica outorga uma faculdade ao administrador público para atingir, no caso concreto, a melhor alternativa de satisfazer o interesse público (Mello, 2002, p. 380-381) e, em virtude do surgimento do artigo 20 da LINDB, deve observar as consequências práticas de seu modo de agir.
O poder discricionário da Administração Pública é limitado, pois decorre da própria norma jurídica o pressuposto de validade do ato administrativo e na prática da boa gestão. Para isso, o gestor público deve observar requisitos mínimos ligados ao princípio da realidade e ao da razoabilidade no momento em que a conveniência e a oportunidade faça parte do ato discricionário para satisfação da finalidade desse ato.
5 CONCLUSÃO
A leitura do artigo 20 da LINDB, sem especial atenção, pode levar à conclusão, equivocada, de que as decisões fundamentadas em valores abstratos e/ou conceitos jurídicos indeterminados estão vedadas desde a promulgação da Lei n.º 13.655/2018.
Entretanto, a interpretação adequada a ser dada nessas situações implica na exigência de, no caso de emprego de princípios, valores abstratos ou conceitos indeterminados, as decisões tomadas no âmbito administrativo, controlador e judicial devem ser, também, motivadas com suas consequências práticas.
A alteração legislativa, denominada pela doutrina de Consequencialismo jurídico, veio para contribuir com o administrador, controlador e juiz no momento da tomada de decisão. Essa técnica de interpretação hermenêutica enquanto espécie de teoria da argumentação empenha-se em equilibrar a aplicabilidade das normas jurídicas no âmbito da função executiva/ administrativa em casos difíceis.
Ademais, com a necessidade de apontamento das consequências práticas da decisão, os agentes públicos devem levar em conta as abrangências temporal e territorial das decisões judiciais, controladoras e administrativas, bem como a abrangência da repercussão humana dessas decisões.
Portanto, na lógica do Consequencialismo jurídico a autoridade pública não deve agir somente ao adstrito à legalidade estrita, mas atender os reclames reais dos administrados. Dessa forma, por exemplo, a motivação dos atos administrativos desempenha um papel crucial na garantia da proteção dos direitos na Administração Pública, assegurando que as decisões sejam tomadas de forma fundamentada, dentro dos limites legais e com justificativas claras, promovendo a confiança e a legitimidade das ações do poder público.
Embora não haja uniformidade sobre a corrente teórica do Consequencialismo, visto que se atribui diversas linhas de pensamento, as consequências são utilizadas como critério de decisão. Desse modo, as alterações na LINDB vieram para fornecer mais transparência nas condutas do administrador público e, por consequência, trazer a tão almejada segurança jurídica requerida pelos administrados.
O critério do Consequencialismo jurídico possui uma lógica bidimensional no qual se torna necessária a identificação e a exposição das opções disponíveis e, logicamente, a relevância de valorá-las, selecionando, num segundo momento, a alternativa mais adequada. Eis o objetivo fundamental da Administração Pública ao tomar a decisão com a finalidade de efetivar o interesse público.
Por fim, destaca-se que a relação entre valores jurídicos abstratos e Consequencialismo na Administração Pública envolve o uso dos valores abstratos como diretrizes, enquanto o Consequencialismo envida em determinar as melhores ações com base nas consequências práticas esperadas. A combinação desses dois elementos pode levar a decisões mais fundamentadas, eticamente aceitável e em vista disso atingir o interesse público dos cidadãos e o bem-estar da sociedade de modo geral.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor orientador. Mestre em Direito pela Universidade de Marília. Especialista em Direito Administrativo, Direito Público e Direito Digital e Compliance pelo Instituto Educacional Damásio. Integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected].
[2] Estado Absolutista, Comunista, Socialista, Nazista, Fascista, Liberal, etc.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Jales – UNIJALES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Francisco Clismaicleiton da. Aplicabilidade do argumento consequencialista na Administração Pública brasileira decorrente do artigo 20 da LINDB Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 set 2024, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66319/aplicabilidade-do-argumento-consequencialista-na-administrao-pblica-brasileira-decorrente-do-artigo-20-da-lindb. Acesso em: 22 dez 2024.
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