JANAINA ALCANTARA VILELA
(orientadora)
Resumo: O presente artigo explora como a cultura institucional da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) molda a identidade profissional dos seus membros e influencia a transição para a aposentadoria. A pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa, por meio de análise documental de legislações e entrevistas semiestruturadas com policiais aposentados. A análise revela que a identidade do policial é fortemente vinculada aos valores de hierarquia, disciplina e lealdade, elementos centrais da cultura militar da PMMG. A transição para a aposentadoria, embora garantida pela Emenda Constitucional nº 103/2019, apresenta desafios emocionais e sociais significativos, levando muitos policiais a retornarem ao trabalho após a reserva remunerada. Entre os motivos destacados estão a perda de propósito e a dificuldade de adaptação à vida fora da corporação. O estudo conclui que, apesar das garantias previdenciárias e do Programas de Preparação para a Reserva, há uma lacuna no suporte psicológico oferecido aos policiais, o que impacta diretamente o sucesso da transição para a aposentadoria.
Palavras-chave: identidade, cultura organizacional, Polícia Militar, aposentadoria, implicações jurídicas, retorno ao trabalho.
Abstract: This article explores how the institutional culture of the Military Police of Minas Gerais (PMMG) shapes the professional identity of its members and influences their transition to retirement. The research adopts a qualitative approach, utilizing documentary analysis of relevant legislation and semi-structured interviews with retired police officers. The findings reveal that the officers' identity is deeply rooted in the values of hierarchy, discipline, and loyalty, which are central to PMMG's military culture. Although retirement is guaranteed by Constitutional Amendment No. 103/2019, the transition poses significant emotional and social challenges, leading many officers to return to work after entering paid reserve status. Key reasons for this return include a loss of purpose and difficulty adapting to life outside the force. The study concludes that, despite pension guarantees and the existence of Retirement Preparation Programs, there is a notable gap in the psychological support provided to officers, which directly impacts the success of their transition to retirement.
Keyword: identity, organizational culture, Military Police, retirement, legal implications, return to work.
1.INTRODUÇÃO
A identidade profissional dos policiais militares é moldada por um complexo sistema de valores institucionais que combina cultura organizacional e senso de dever público. A Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) opera sob uma estrutura hierárquica rígida, regida por normas de disciplina estabelecidas em legislações específicas, como o Estatuto dos Militares Estaduais de Minas Gerais (Lei nº 5.301/69). Essas normas definem o funcionamento da instituição e estabelecem os deveres dos seus integrantes, influenciando diretamente a forma como os policiais constroem sua identidade no ambiente de trabalho.
Essa identidade é mais do que uma simples definição de função laboral. Conforme o art. 142 da Constituição Federal (CF/88), a Polícia Militar faz parte das forças auxiliares e de reserva do Exército, o que confere à sua atuação um caráter militar, impondo aos seus membros valores como disciplina e hierarquia. Essa realidade transforma o trabalho policial em algo que transcende o simples cumprimento de tarefas diárias, assumindo um significado de missão. A transição para a aposentadoria, ou reserva remunerada, apresenta-se como um momento de grande impacto, tanto profissional quanto pessoal, uma vez que marca o fim de um ciclo de dedicação plena à corporação.
O presente artigo busca investigar como a estrutura organizacional e a cultura da PMMG moldam a experiência de trabalho e a identidade dos policiais militares. Além disso, analisam-se as implicações jurídicas e sociais associadas à transição para a reserva remunerada e ao crescente fenômeno do retorno ao mercado de trabalho, frequentemente observado entre policiais aposentados.
2.IDENTIDADE, REPRESENTAÇÃO SOCIAL E SENTIDO DO TRABALHO PARA O POLICIAL MILITAR
A identidade do policial militar é construída ao longo de sua carreira e profundamente influenciada pelas interações sociais e institucionais que ocorrem dentro da corporação. Segundo Goffman (2019), a identidade é formada a partir das interações que os indivíduos têm em seus ambientes, sendo constantemente moldada pelas regras e valores institucionais. No caso da PMMG, a identidade dos policiais está intrinsecamente ligada aos valores de hierarquia, disciplina e lealdade, presentes desde o início da carreira. O conceito de representação social, conforme Souza (2001), é central para entender o papel simbólico que o trabalho policial desempenha na vida dos agentes:
Esta instituição, dentre os seus símbolos, tem nas “vestimentas” sua maior representação. A farda e a cobertura (boina) relacionam-se ao que se pode nomear de “mito da indestrutibilidade”, o que nos parece um dado relevante no processo de construção identitária do policial militar, já que podem fazer com que eles se sintam autênticos “super-homens”, julgando-se muitas vezes imortais (SOUZA, 2001, p.9).
A farda, as insígnias e os rituais diários de respeito à hierarquia não são apenas formalidades, mas elementos fundamentais que conferem ao policial um status que vai além do ambiente de trabalho. A Lei nº 5.301/69, que regula a carreira militar em Minas Gerais, reforça essa ideia ao exigir do policial dedicação integral à sua função, o que, na prática, faz com que o trabalho se misture à vida pessoal do agente.
O sentido do trabalho para o policial militar é mais do que um meio de subsistência. Tsuitsui (2009) ressalta que o policial se vê como um defensor da sociedade, o que confere ao trabalho um valor simbólico e moral que vai além da simples execução de tarefas. O compromisso solene assumido pelo Soldado da Polícia Militar de Minas Gerais, , é selado na formatura de conclusão de cursoancorado nos pilares da hierarquia e da disciplina,o juramento reafirma seu papel como defensor da ordem pública e guardião dos direitos fundamentais e da dignidade humana:
"Ao ser declarado Soldado da Polícia Militar de Minas Gerais, sob os princípios da hierarquia e da disciplina, assumo o compromisso: de executar as atribuições que me competem na promoção da paz social; Cumprir, rigorosamente, as ordens das autoridades a que estiver subordinado; assegurar a dignidade humana, as liberdades e os direitos fundamentais; servindo a sociedade, em toda sua diversidade: com respeito e participação, com ética e transparência, com coragem e justiça, e dedicar-me, inteiramente, ao serviço Policial Militar, Mesmo com sacrifício da própria vida." (MINAS GERAIS, 2024)
Esse compromisso molda a identidade profissional do policial, imbuindo-o de um sentido de dever que ultrapassa interesses pessoais e enfatiza a lealdade à missão institucional, refletindo-se no desenvolvimento de uma identidade fortemente marcada pelos valores e pela cultura organizacional da corporação. O comprometimento com a proteção pública e o respeito à ordem estabelecidos pela Constituição Federal (art. 144) e pelo estatuto militar formam a base da identidade profissional desses servidores. Quando chega o momento da aposentadoria, muitos policiais enfrentam uma crise de identidade, pois o trabalho, que antes definia grande parte de sua existência, deixa de ser o centro de suas vidas.
1.1 Implicações jurídicas e sociais do trabalho dos policiais militares
As implicações jurídicas associadas ao trabalho dos policiais militares são diversas e profundamente diferentes das de outros servidores públicos. De acordo com a Constituição Federal no art. 42, os policiais militares estão sujeitos a um regime jurídico específico, distinto do regime civil. Isso afeta diretamente seus direitos trabalhistas, como a proibição de sindicalização e de greve (art. 142, § 3º, IV), bem como a flexibilização da jornada de trabalho, que não segue as diretrizes estabelecidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
A jornada de trabalho do policial militar é regulamentada pelo estatuto militar e pode ser entendida como uma disponibilidade contínua para o Estado, dado o caráter ininterrupto da função policial. A Lei nº 5.301/69 estabelece que o policial deve estar sempre pronto para cumprir suas funções, o que reflete a ideia de que o trabalho não se limita ao espaço físico ou ao tempo de serviço, mas se estende à vida cotidiana. Essa dedicação integral contribui para a construção de uma identidade totalmente vinculada ao trabalho, tornando a transição para a aposentadoria um processo particularmente difícil.
Do ponto de vista social, a aposentadoria ou reserva remunerada, regulada pela Emenda Constitucional nº 103/2019, mantém certas especificidades para os policiais militares, como a possibilidade de se aposentar após 30 anos de serviço, com benefícios financeiros assegurados. No entanto, o aspecto psicológico dessa transição muitas vezes é negligenciado. Como Khoury et al. (2010) apontam, a perda do status e do sentido de pertencimento à corporação pode gerar angústia e dificuldades de adaptação, motivando o retorno ao mercado de trabalho, não necessariamente por razões econômicas, mas por uma necessidade psicológica de continuar exercendo uma função ativa na sociedade.
A jurisprudência sobre o retorno de policiais militares reformados à ativa, especialmente no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), ainda é limitada quanto ao apoio que visa facilitar a transição desses profissionais. A maioria das decisões abordam amplamente a possibilidade de convocação para funções específicas, desde que verificada a capacidade física dos reformados, garantido seu direito a indenização ou remuneração proporcional. Contudo, referências que enfoquem a reintegração como um processo de reafirmação do propósito profissional dos militares são escassas, sinalizando uma lacuna na consideração de aspectos emocionais e sociais no retorno desses profissionais ao serviço ativo.
1.2 Estrutura organizacional e cultura da Polícia Militar de Minas Gerais
A estrutura organizacional da Polícia Militar de Minas Gerais é fortemente hierarquizada, refletindo a história e a evolução da corporação desde os tempos coloniais. Lima Junior (2001) observa que a PMMG, ao longo dos séculos, manteve uma rígida estrutura militar, que prioriza a disciplina e a hierarquia como pilares da organização. A cultura organizacional da PMMG é reforçada através de rituais, treinamentos e práticas diárias que solidificam o senso de pertencimento à instituição e a lealdade à corporação.
Essa cultura organizacional é tão presente no cotidiano do policial que, ao se aposentar, o profissional muitas vezes encontra dificuldades em se adaptar à vida fora da corporação.
“(...)a luz das teorias sobre ideologia estudadas, que não somente a organização impõe incessantemente ao indivíduo uma visão de mundo repleta de regras de conduta, mas este também pode agir, adaptando os pressupostos organizacionais aos seus interesses.” (MORAIS, 2007, p12)
O autor afirma que a interiorização dos valores militares, como disciplina e hierarquia, molda profundamente a identidade do policial, dificultando a desvinculação quando o agente passa para a reserva remunerada. Mesmo com o direito assegurado pela Lei nº 5.301/69, que garante a estabilidade financeira ao policial aposentado, muitos retornam ao trabalho por não conseguirem abandonar o papel que desempenharam ao longo de suas vidas.
A preparação para a aposentadoria, ainda que prevista por programas institucionais da PMMG, muitas vezes não é suficiente para lidar com as mudanças identitárias que acompanham essa transição. Tsuitsui (2009) argumenta que a transição de um ambiente institucional fortemente hierarquizado para a vida civil é uma ruptura emocional significativa. Esse processo, sem o devido suporte psicológico e social, leva muitos policiais a retornarem ao mercado de trabalho, buscando uma forma de reconstruir o senso de propósito perdido com a aposentadoria.
2.PESQUISA DE CAMPO: CONTEÚDO DAS ENTREVISTAS FEITAS COM POLICIAIS APOSENTADOS
O presente estudo adotou uma abordagem qualitativa, com foco em análises documentais e entrevistas semiestruturadas realizadas com policiais militares aposentados da PMMG. A análise documental incluiu legislações centrais, como a Constituição Federal de 1988 (art. 42), a Lei nº 5.301/69 (Estatuto dos Militares de Minas Gerais) e a Emenda Constitucional nº 103/2019, que regulam a carreira militar, os direitos e deveres dos policiais, e o regime previdenciário aplicado à categoria. Essas legislações fornecem o arcabouço jurídico necessário para compreender o processo de aposentadoria, bem como as condições que permitem o retorno ao trabalho dos policiais após a reserva remunerada.
As entrevistas foram realizadas com policiais que se aposentaram nos últimos cinco anos e buscaram capturar suas percepções sobre o processo de transição para a reserva remunerada e os motivos que os levaram a retornar ao trabalho. A análise dos dados obtidos nas entrevistas foi organizada em torno de três categorias principais, que abordam diferentes aspectos da relação dos policiais com sua profissão, a cultura organizacional da PMMG e o impacto da aposentadoria em suas vidas.
A primeira categoria focou nos reflexos da cultura institucional da PMMG, que é moldada por uma estrutura fortemente hierarquizada e marcada pela disciplina. A cultura militar influencia profundamente a maneira como os policiais vivenciam seu trabalho e suas relações interpessoais, tanto dentro quanto fora do ambiente profissional. A Lei nº 5.301/69 impõe um regime de dedicação integral, no qual o policial está sempre à disposição, independentemente de estar de serviço ou de folga. Esse senso de dever contínuo permeia a vida dos policiais, criando uma relação intrínseca entre o trabalho e a identidade pessoal. A análise buscou identificar como essa cultura afeta as percepções dos policiais sobre o seu papel na sociedade e como ela continua a influenciá-los mesmo após a aposentadoria, com muitos ainda se sentindo responsáveis pela segurança pública.
A segunda categoria tratou da construção da identidade profissional do policial militar. O trabalho policial, conforme descrito pelos entrevistados, vai além de uma ocupação; ele é visto como uma missão ou vocação, profundamente ligado à autoimagem e ao sentido de pertencimento social. A Constituição Federal de 1988, ao definir o papel militar da polícia no art. 144, reforça essa noção, ao colocar a proteção da ordem pública como um dever do Estado desempenhado por esses profissionais. A identidade do policial é moldada desde o início da carreira por símbolos poderosos, como a farda, os distintivos e os rituais de serviço, que conferem um forte significado simbólico ao trabalho. A análise explorou como essa identidade é construída ao longo do tempo e como a aposentadoria desestabiliza esse senso de propósito, levando muitos policiais a buscar formas de retornar à ativa para manter essa conexão simbólica com a corporação.
A terceira categoria examinou a experiência da aposentadoria e as motivações para o retorno ao trabalho após a reserva remunerada. Embora a Emenda Constitucional nº 103/2019 e a Lei nº 5.301/69 garantam aos policiais militares uma aposentadoria diferenciada, com condições financeiras estáveis, muitos entrevistados relataram que o período de inatividade foi marcado por sentimento de perda de propósito e de inutilidade. Khoury et al. (2010) observam que fatores psicossociais desempenham um papel significativo na decisão de retornar ao trabalho, e esse fenômeno foi confirmado pelas entrevistas. A análise se concentrou em entender as razões emocionais, sociais e financeiras que levam os policiais a retomar para as suas funções, mesmo após o cumprimento de suas obrigações legais. Muitos afirmaram que a possibilidade de continuar contribuindo para a segurança pública e o vínculo emocional com a PMMG foram fatores decisivos em sua escolha.
Essas três categorias permitiram uma análise aprofundada das dinâmicas entre a estrutura organizacional da PMMG, a identidade profissional dos policiais e o processo de aposentadoria, evidenciando como essas dimensões se entrelaçam e influenciam o retorno ao trabalho após a aposentadoria.
3.ANÁLISE DOS DADOS DOS POLICIAIS APOSENTADOS QUE VOLTARAM AO TRABALHO
A análise dos dados baseia-se em entrevistas semiestruturadas realizadas com 12 policiais militares de Minas Gerais que retornaram ao trabalho após a reserva remunerada. As entrevistas foram analisadas utilizando-se a técnica de análise de conteúdo, conforme Bardin (2005), com categorias temáticas organizadas a partir das respostas dos participantes. Essas categorias permitiram identificar as dinâmicas entre a cultura organizacional da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), a construção da identidade profissional dos policiais e as implicações jurídicas do retorno ao trabalho após a aposentadoria.
3.1 Reflexos da Cultura da PMMG na Atuação do Policial
A cultura organizacional da PMMG é profundamente marcada por princípios de hierarquia, disciplina e compromisso, moldando a identidade dos policiais desde o início de suas carreiras. Esses valores estão inscritos em normativas legais, como o Estatuto dos Militares Estaduais de Minas Gerais (Lei nº 5.301/69), que regulamenta os deveres, direitos e normas de conduta desses profissionais. A "dedicação integral" é um dos elementos centrais dessa cultura, conforme previsto no art. 28 da Lei nº 5.301/69, que impõe ao policial militar a obrigação de estar sempre disponível para o serviço.
Os entrevistados frequentemente destacaram a ideia de que o policial militar "nunca deixa de ser policial", mesmo após a aposentadoria. Isso reflete uma incorporação profunda dos valores institucionais à vida pessoal dos policiais, criando uma forte interdependência entre a identidade profissional e a identidade pessoal. Nas palavras de um dos entrevistados: "A farda é uma segunda pele". Essa percepção está em consonância com a análise de Minayo et al. (2008), que aponta que a cultura militar promove um discurso de "unicidade", no qual o policial se vê como parte indissociável da instituição.
O modelo rígido de hierarquia e disciplina da PMMG reflete-se em suas práticas diárias e no comportamento dos policiais, tanto no âmbito profissional quanto pessoal. A noção de estar "24 horas de serviço", mesmo durante o período de folga, é um reflexo claro da internalização dessas normas, o que torna o processo de aposentadoria, ou reserva remunerada, particularmente difícil para muitos policiais. A Lei nº 5.301/69, ao prever a dedicação contínua, contribui para a construção de uma identidade profissional que não se desliga facilmente da instituição, levando muitos a considerarem o retorno ao trabalho após a aposentadoria.
3.2 A Identidade do Policial Militar a Partir de Sua Profissão
A profissão de policial militar vai além da mera função de trabalho; é percebida como um "chamado" ou "missão", como revelaram os entrevistados. Essa concepção está amplamente enraizada na estrutura organizacional militar e é reforçada ao longo da carreira, através de símbolos e rituais, como o uso da farda e a repetição constante de juramentos de proteção à sociedade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 42, confirma a natureza militar da polícia, vinculando sua atuação a um regime de serviço público que exige disciplina e hierarquia, como nas forças armadas.
A identidade do policial militar é construída em torno de sua função de "garante da ordem pública", o que gera uma vinculação emocional profunda com a profissão. Sousa (2001) descreve a identidade profissional dos policiais militares como uma "armadura simbólica", onde o uso da farda e do distintivo transcende a materialidade desses objetos, assumindo um papel central na construção da autoimagem. Essa forte conexão entre identidade e trabalho explica por que a aposentadoria é muitas vezes vivenciada como uma perda significativa, não apenas de uma ocupação, mas de um propósito existencial.
A Lei nº 5.301/69, ao exigir dedicação integral e impor restrições, como a proibição do direito à greve e à sindicalização (art. 142, § 3º, IV da CF/88), reforça a ideia de que o policial militar está sempre em função do Estado. Essa estrutura normativa cria um ambiente em que a identidade do policial é constantemente reafirmada pelo serviço, mesmo fora de suas funções formais, levando a um cenário em que o policial não se desliga da corporação, mesmo após a aposentadoria. Isso foi evidenciado por vários entrevistados que relataram dificuldades em se adaptar à vida fora da PMMG, o que motivou o retorno ao trabalho.
3.3 A aposentadoria sob a perspectiva dos policiais que retornaram ao trabalho
A transição para a aposentadoria dos policiais militares, regulamentada pela Emenda Constitucional nº 103/2019, introduz desafios significativos, tanto do ponto de vista financeiro quanto identitário. Embora a legislação garanta a reserva remunerada após o cumprimento de certos requisitos, como 30 anos de serviço, muitos policiais entrevistados indicaram que a motivação para retornar ao trabalho não se restringe a questões financeiras. Como Khoury et al. (2010) apontam, fatores psicossociais, como a necessidade de manter um propósito ou uma função ativa na sociedade, desempenham um papel crucial nessa decisão.
A Lei nº 5.301/69 prevê a possibilidade de retorno ao trabalho em funções administrativas ou operacionais limitadas. No entanto, essa prática levanta questões jurídicas importantes, pois o policial que retorna ao serviço, mesmo na reserva, permanece sujeito às regras de disciplina e hierarquia impostas pelo estatuto militar. Isso significa que, na prática, a aposentadoria não representa uma completa desvinculação da corporação, mas uma continuidade do vínculo, embora em outras funções.
Os entrevistados relataram uma dificuldade substancial em se adaptar à vida de aposentado. Muitos descreveram o período de reserva como "angustiante", "depressivo" ou "inútil", reforçando a noção de que o trabalho é fundamental para a manutenção de sua identidade e bem-estar psicológico. Essa experiência está de acordo com a teoria de Santos (1990), que afirma que a aposentadoria pode desencadear uma crise identitária ao remover do indivíduo o papel que ocupava no sistema produtivo e na sociedade. O retorno ao trabalho, nesse contexto, é uma tentativa de recuperar esse papel e reestabelecer o equilíbrio emocional e social.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo analisou os fatores que influenciam o retorno de policiais militares aposentados ao trabalho, com foco nos reflexos da cultura organizacional da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e na construção de sua identidade profissional. O vínculo forte com os valores de hierarquia, disciplina e dedicação contínua, que são estruturantes da carreira na PMMG, dificulta a desvinculação completa dos policiais após a aposentadoria. Isso se reflete no fenômeno do retorno ao trabalho, visto que muitos enfrentam uma crise de identidade ao se afastarem formalmente de suas funções.
Do ponto de vista jurídico, os policiais militares estão sujeitos a um regime especial, conforme previsto na Constituição Federal (art. 42) e na Lei nº 5.301/69, que impõe regras como a dedicação exclusiva ao serviço e a proibição de sindicalização e greve. Além dessas normas, existe um programa específico voltado à transição para a aposentadoria, regulamentado pela Resolução 3842/06, que estabelece o Programa de Preparação para a Reserva (PPR). Este programa tem como objetivo preparar os policiais para a transição à reserva remunerada, abordando aspectos financeiros, sociais e emocionais, visando minimizar os impactos causados pela mudança de rotina e a perda do vínculo formal com a corporação.
O Programa de Preparação para a Reserva - PPR, instituído pela Resolução 3842/06, oferece uma série de atividades voltadas ao desenvolvimento de competências que permitam ao policial lidar melhor com a fase de aposentadoria. Entre os temas abordados estão planejamento financeiro, orientação sobre saúde e qualidade de vida, além de palestras que incentivam o envolvimento em atividades comunitárias e profissionais fora da PMMG. No entanto, conforme identificado no presente estudo, apesar da existência do programa, muitos policiais não se sentem plenamente preparados para enfrentar o impacto emocional e identitário que essa transição representa.
As entrevistas realizadas demonstraram que, embora o PPR trate de questões práticas e financeiras, ele ainda deixa lacunas no que tange ao suporte psicológico e à adaptação emocional dos policiais. A frase recorrente "não me vejo fora da polícia", mencionada pelos entrevistados, indica que a preparação fornecida pelo programa não é suficiente para lidar com o forte vínculo identitário criado ao longo da carreira. A cultura organizacional da PMMG, com seu foco na disciplina e hierarquia, constrói uma identidade profissional tão profunda que muitos policiais têm dificuldade em se adaptar à vida fora da corporação, mesmo após passarem pelo PPR.
Do ponto de vista jurídico, a Resolução 3842/06 representa um avanço ao reconhecer a necessidade de preparar os policiais para a reserva. Entretanto, o regime jurídico dos policiais militares, centrado em garantias financeiras, ainda carece de um enfoque mais robusto nas dimensões psicológicas e sociais da aposentadoria. A transição para a reserva deve ser abordada de forma mais completa, com um suporte emocional mais consistente, considerando que a aposentadoria é vista por muitos policiais como uma perda de propósito e de identidade.
Portanto, conclui-se que, além das garantias previdenciárias asseguradas pela legislação e do PPR, é necessário um aprimoramento do programa para que ele vá além do planejamento financeiro e ofereça um suporte psicológico mais profundo. Esse aprimoramento pode reduzir o impacto emocional da aposentadoria e diminuir o número de policiais que retornam ao trabalho após a reserva remunerada, ajudando- os a reestruturar suas vidas com uma identidade que transcenda o papel de policial militar.
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Acadêmica do curso de Direito da Faculdade da Saúde e Ecologia Humano (FASEH).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Izabella Carvalho. A identidade do policial militar e os reflexos da cultura organizacional: perspectivas jurídicas e sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2024, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67005/a-identidade-do-policial-militar-e-os-reflexos-da-cultura-organizacional-perspectivas-jurdicas-e-sociais. Acesso em: 21 dez 2024.
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