CAIO CÉZAR DE FIGUEIREDO PAIVA
(orientador)
RESUMO: O objetivo do presente artigo consiste em investigar as implicações da falta de legislação doméstica no Brasil de forma que proteja os direitos humanos das pessoas trans – consideradas pessoas em situação de vulnerabilidade jurídico-constitucional. Ora, se há uma constante, reiterada e incomum violação de direitos humanos das pessoas trans em situações cotidianas, quem dirá sobre essas transgressões no âmbito do sistema prisional brasileiro – o qual, ressalta-se, já foi declarado como sendo um estado de coisas inconstitucional por parte do Supremo Tribunal Federal. Sendo assim, pretende-se com o presente artigo estudar as repercussões jurídicas da inércia do legislador brasileiro sobre os direitos das pessoas trans, no âmbito do sistema carcerário, tais como o preconceito enfrentado, a opressão sexual sofrida, a violação ao direito à autodeterminação e a invisibilidade de políticas públicas voltadas para essa população. Para abordar essa questão, este estudo utiliza a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos como um referencial, considerando a competência consultiva e contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) como parâmetros para a proteção dos direitos humanos das pessoas trans no sistema prisional brasileiro, empregando, assim, a hermenêutica evolutiva para suprimir as lacunas existentes na legislação e ainda, o uso dos precedentes internacionais como forma de integrar o sistema normativo em lato sensu. No que tange aos objetivos específicos, pretende-se identificar as violações de direitos humanos enfrentadas pelas pessoas trans no sistema prisional; avaliar a eficácia das políticas públicas existentes relacionadas às pessoas trans no sistema carcerário; e, por fim, comparar os casos que chegaram à Corte IDH e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de forma a propor recomendações específicas para reformas legislativas e políticas públicas que visem alavancar a proteção dos direitos das pessoas trans. Emprega-se o método hipotético-dedutivo para a elaboração desse artigo e, no tocante à metodologia aplicada, utiliza-se artigos e livros estrangeiros e nacionais, ademais, o presente trabalho traz algumas decisões judiciais da Corte IDH que são passíveis de debates.
Palavras-chaves: Direitos Humanos. Pessoas trans. Sistema prisional brasileiro. Omissão legislativa.
ABSTRACT: The objective of this article is to investigate the implications of the lack of domestic legislation in Brazil that protects the human rights of trans people – who are considered to be in a situation of legal and constitutional vulnerability. Now, if there is a constant, repeated and unusual violation of the human rights of trans people in everyday situations, what can we say about these violations within the Brazilian prison system – which, it should be noted, has already been declared an unconstitutional state of affairs by the Supreme Federal Court. Therefore, the aim of this article is to study the legal repercussions of the inertia of the Brazilian legislator on the rights of trans people within the prison system, such as the prejudice faced, the sexual oppression suffered, the violation of the right to self-determination and the invisibility of public policies aimed at this population. To address this issue, this study uses the case law of the Inter-American Human Rights System as a reference, considering the advisory and contentious jurisdiction of the Inter-American Court of Human Rights as parameters for the protection of the human rights of trans people in the Brazilian prison system, thus employing evolutionary hermeneutics to fill existing gaps in the legislation and also using international precedents as a way of integrating the normative system in a broad sense. Regarding the specific objectives, the aim is to identify the human rights violations faced by trans people in the prison system; to evaluate the effectiveness of existing public policies related to trans people in the prison system; and, finally, to compare the cases that have reached the Inter-American Court of Human Rights in order to propose specific recommendations for legislative reforms and public policies that aim to leverage the protection of the rights of trans people. The hypothetical-deductive method is used to prepare this article and, regarding the methodology applied, foreign and national articles and books are used. Furthermore, this work presents some judicial decisions of the Inter-American Court of Human Rights that are open to debate.
Keywords: Human Rights. Trans people. Brazilian prison system. Legislative omission.
Esse estudo visa discutir a luta em prol dos direitos humanos e a imprescindibilidade destes para construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Entretanto, apesar da crescente conscientização sobre a importância desses direitos, algumas populações ainda continuam à margem, enfrentando violações sistemáticas, tais como as pessoas trans, cujos direitos são frequentemente negligenciados, especialmente no âmbito do sistema prisional brasileiro. Ora, é notório o tamanho desleixo com a população trans, de tal forma que o Congresso Nacional, até o presente momento, sequer editou legislação específica para tipificar as condutas homofóbicas e transfóbicas, tendo o Supremo Tribunal Federal que enquadrar tais condutas na tipificação da Lei do Racismo e, assim, ferindo de morte o princípio da legalidade e realizando uma consequente analogia in malam partem.
As pessoas trans, ao desafiar normas tradicionais de identidade de gênero, muitas vezes encontram-se em uma situação de vulnerabilidade jurídico-constitucional. Este grupo enfrenta barreiras discriminatórias e uma ausência notável de previsão normativa específica que proteja seus direitos fundamentais, uma realidade que se agrava, ainda mais, ao adentrarem o sistema prisional brasileiro. Portanto, percebe-se que tal população fica à mercê da arbitrariedade dos aplicadores do direito em razão da omissão legislativa – tanto do ponto de vista internacional como da legislação interna.
A importância desse estudo também se justifica pela necessidade de abordar a interseccionalidade das violações enfrentadas pelas pessoas trans no sistema prisional, considerando que muitas delas pertencem a outros grupos historicamente marginalizados, como pessoas negras e em situação de pobreza. Esses fatores agravam ainda mais a exclusão e a precariedade de suas condições de vida, gerando um ciclo de marginalização que começa antes do encarceramento e se perpetua durante e após a privação de liberdade. Assim, é necessário um olhar crítico que não apenas aborde as questões de gênero e identidade, mas também as dimensões sociais e raciais que atravessam a experiência de pessoas trans no cárcere.
Além disso, essa pesquisa visa contribuir para a formulação de políticas públicas mais inclusivas e efetivas, que garantam os direitos fundamentais das pessoas trans no sistema prisional. A análise das experiências internacionais e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos pode servir como base para a criação de estratégias que, embora ainda enfrentem resistência política e social, têm o potencial de promover mudanças estruturais. Para tanto, é essencial que se reconheça a centralidade do respeito à identidade de gênero na formulação dessas políticas, buscando a implementação de diretrizes que assegurem, por exemplo, o respeito pelo seu direito à autodeterminação, a alocação de pessoas trans em unidades compatíveis com sua identidade de gênero (respeitada sua autonomia individual), o acesso a cuidados de saúde específicos, e a proteção contra violências físicas e psicológicas. Dessa forma, a promoção dos direitos das pessoas trans no cárcere deve ser entendida como uma extensão indispensável do compromisso com os direitos humanos universais.
Para explorar essa problemática, estuda-se as decisões e recomendações, no âmbito consultivo e contencioso, do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em especial, os casos julgados e as Opiniões Consultivas emitidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que, apesar de também não possuir nenhuma norma de natureza hard law sobre o tema, dispõe de previsões classificadas como soft law – embora não sejam de jus cogens, são importantes para tutela desses direitos humanos, tais como o Protocolo de Yogyakarta, as Regras de Mandela e as Regras de Bangkok, tentando, assim, mitigar as violações enfrentadas por essa população.
Com o presente trabalho, busca-se identificar violações específicas de direitos humanos enfrentadas pelas pessoas trans no sistema prisional, avaliar a eficácia das políticas públicas existentes relacionadas a essa população carcerária, e, por meio de uma análise comparativa das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e das recomendações da Comissão Interamericana, propor recomendações específicas para reformas legislativas e políticas públicas que visem fortalecer a proteção desses direitos.
Assim, em meio à ausência de previsão normativa expressa, esse estudo busca contribuir para a discussão e promoção de medidas que assegurem a dignidade, igualdade e o pleno exercício dos direitos humanos das pessoas trans no sistema prisional brasileiro.
2.A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS TRANS: AVANÇOS HISTÓRICOS E AUSÊNCIAS LEGISLATIVAS NO BRASIL
Olhando sob uma perspectiva histórica, nota-se que as pessoas trans somente passaram a ser o centro das discussões dos direitos LGBTQIA+, no Brasil, apenas em 1992 que foi quando surgiu a Associação de Travestis e Liberados (Astral) – a qual foi a primeira ONG voltada em torno dos direitos das populações transgêneros da América Latina. Antes disso, houve apenas a instituição da Turma OK, fundada no Rio de Janeiro, durante o período da ditadura militar, que foi o primeiro grupo de que se tem registro na história do Brasil. Adentrando no século XXI, frisa-se o ano de 2004, que foi quando fora instituído o dia 29 de janeiro como sendo o Dia Nacional da Visibilidade Trans – a referida data promove a conscientização sobre os direitos das pessoas transexuais e busca a promoção da igualdade material de pessoas que não se identificam com o sexo biológico que lhes foi atribuído quando nasceram (AGÊNCIA AIDS, 2023).
Em 2006, o Sistema Único de Saúde passou a aceitar, em qualquer serviço da rede pública de saúde, a utilização do nome social – que é a designação pela qual os travestis ou transexuais querem ser chamados. Ressalta-se que a adoção do nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) se deu apenas em 2013 e, em 2016, a Presidenta Dilma Rousseff estabeleceu um decreto que permitia às pessoas transgêneras a adoção e o uso do nome social. Ocorre que apenas em 2018 o Supremo Tribunal Federal decidiu que todas as pessoas trans possuem o direito de trocar de nome perante o registro civil, procedimento este que pode ser realizado em cartório, sem a necessidade da cirurgia de redesignação sexual ou apresentação de laudos médicos para proceder a alteração (CORRÊA, 2022).
Em relação à promoção de cirurgia de redesignação sexual, o SUS criou o processo transexualizador, em 2008, pois algumas pessoas trans sofrem disforia corporal. Entretanto, atualmente, a fila de espera para realizar o referido procedimento por intermédio do SUS pode chegar a dez anos (AGÊNCIA AIDS, 2023).
No que se refere à criminalização de condutas contra a população LGBTQIA+, em 2019, o Supremo Tribunal Federal enquadrou os crimes de transfobia e homofobia na Lei do Racismo, até que o Congresso Nacional edite lei específica, evidenciando, assim, a inércia do legislador.
Sendo assim, é evidente os avanços – ainda que em passos lentos – na luta dos direitos humanos das pessoas trans no Brasil em virtude do reconhecimento da identidade de gênero e do avanço da legislação antidiscriminatória. Entretanto, apesar dos avanços, as pessoas trans ainda enfrentam altos índices de violência, discriminação e marginalização em diversos aspectos da vida, perenizando as desigualdades estruturais. Ainda, destaca-se como retrocesso a inércia legislativa que diz respeito a falta de legislação específica para aprovar medidas de proteção e formas de promoção dos direitos humanos das pessoas trans, deixando, assim, toda a comunidade em situação de vulnerabilidade legal e exposta à discriminação e violência.
A omissão legislativa cria um vácuo jurídico que pode perpetuar a marginalização e exclusão dessa comunidade, dificultando o acesso a serviços básicos, oportunidades de emprego e educação, entre outros aspectos da vida social.
Ocorre que o atual contexto político conservador no Congresso Nacional representa um obstáculo significativo para o avanço dos direitos da população trans no Brasil, visto que a predominância de parlamentares com ideologias conservadoras muitas vezes resulta na obstrução de pautas progressistas, incluindo aquelas relacionadas aos direitos LGBTQIA+.
Um exemplo claro dessa dinâmica é o tratamento de temas feministas e relacionados à diversidade de gênero. Como mencionado no estudo do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), durante a última legislatura, a Câmara dos Deputados dedicou tempo e recursos para debater propostas absurdas, como a suposta "proteção de crianças contra o ativismo LGBTQIA+". Essa abordagem revela uma tendência preocupante de priorizar agendas ideológicas conservadoras em detrimento dos direitos fundamentais e da inclusão da comunidade trans (ALMEIDA, 2023).
Além disso, a influência de grupos conservadores e religiosos dentro do Congresso Nacional muitas vezes cria um ambiente hostil para a promoção de políticas inclusivas e igualitárias, pois o discurso de ódio e a retórica discriminatória contra pessoas LGBTQIA+ frequentemente são tolerados ou até mesmo incentivados por certos setores políticos haja vista que o trânsito entre os gêneros não é aceito na sociedade contemporânea ocidental e, especialmente, nas sociedades patriarcais. Dessa forma, tal situação contribui, ainda mais, para a perpetuação da exclusão e marginalização da população trans.
Diante desse cenário, torna-se evidente a necessidade urgente de enfrentar os obstáculos impostos pelo conservadorismo político e de mobilizar esforços para promover mudanças legislativas e sociais que garantam os direitos e a dignidade das pessoas trans no Brasil. Percebe-se que, para melhorar o atual cenário, é imprescindível o engajamento contínuo de ativistas, organizações da sociedade civil e defensores dos direitos humanos, visando construir uma sociedade mais justa e inclusiva para todos, pois não há possibilidade de vencer as amarras de uma estrutura tão profunda de opressão sem luta coletiva.
Diante da inércia legislativa e dos desafios enfrentados pelas pessoas trans, destaca-se o papel do Supremo Tribunal Federal na promoção de direitos dessa população, eis que, o Poder Judiciário tem assumido um importante papel na fomentação da cultura e conscientização de direitos. Percebe-se que, desde 2011, o Tribunal Superior vem julgando ações (com força catalizadora na transformação de legislações e políticas públicas) em prol da proteção dos direitos humanos das pessoas trans, nesse sentido, frisa-se a ADPF nº 132 que versa sobre a união estável homoafetiva; a ADPF nº 291 que descriminaliza a homossexualidade no âmbito militar; o RExt nº 646.721 que versa sobre a equiparação dos cônjuges e companheiros na união homoafetiva no âmbito do direito sucessório; a ADI nº 4.275 e o RExt nº 670.422 que reconhece aos transgêneros a alteração do nome e do sexo no registro civil, independentemente de cirurgia de transgenitalização ou de tratamento com hormônios; o MI nº 4.733 e a ADO nº 26 que criminaliza condutas homotransfóbicas; a ADI nº 5.543 que trata sobre a discriminação da doação de sangue em razão da orientação sexual e, por fim, a ADPF nº 457 e ADPF nº 461 que versa sobre a proibição, nas escolas, de material sobre “ideologia de gênero”, assim, vedando o ensino sobre gênero e orientação sexual (BRASIL SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2022).
Por fim, destaca-se como perspectiva sobre o futuro dos direitos das pessoas trans, a adoção de ações afirmativas que, segundo André de Carvalho Ramos (2014, p. 471), consiste em políticas adotadas para assegurar a não-discriminação; ou seja, são medidas adotadas, de forma temporária e com foco determinado, para compensar uma situação de discriminação. Com base no que foi dito, evidencia-se a adoção, por exemplo, de cotas para pessoas trans em alguns concursos públicos, tais como na Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul e na Defensoria Pública de São Paulo, tudo isso com o intuito de inserir na sociedade civil as pessoas trans e tentar, minimamente, reparar os abusos enfrentados por este grupo historicamente marginalizado. Sendo assim, veja-se o levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) o qual evidencia a não contratação dessas pessoas no mercado de trabalho:
Isso que nos leva a crer que se mantém atual a estimativa de que apenas 4% da população Trans feminina se encontra em empregos formais, com possibilidade de promoção e progressão de carreira de acordo com dados levantados pela ANTRA. De igual modo, vemos que apenas 6% estão em atividades informais e subempregos. Mantém-se aquele que é o dado mais preocupante: 90% da população de Travestis e Mulheres Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda. (BENEVIDES, NOGUEIRA, 2020 p. 33).
Portanto, é imperativo implementar ações afirmativas para promover a inclusão das pessoas trans no mercado de trabalho, uma vez que essas enfrentam desafios significativos ao buscar oportunidades de emprego. A discriminação e a transfobia ainda são prevalentes e representam barreiras substanciais, impactando negativamente a capacidade dessas pessoas de conseguir e manter empregos. Além dos preconceitos explícitos, as pessoas trans frequentemente enfrentam dificuldades relacionadas à adequação dos documentos de identificação com seu gênero autopercebido, o que pode resultar em processos de contratação mais complicados e constrangedores.
As ações afirmativas, como a implementação de cotas para pessoas trans em concursos públicos, o desenvolvimento de programas de treinamento para empregadores sobre diversidade e inclusão, e a criação de políticas internas que garantam o uso adequado de nome social e a adaptação de espaços e uniformes, são passos cruciais para enfrentar essas barreiras. Além disso, é fundamental que as empresas e instituições públicas promovam campanhas de conscientização e educação para combater o preconceito e criar um ambiente mais acolhedor e respeitoso para todos os funcionários.
Essas iniciativas não apenas ajudam a combater a marginalização histórica e estrutural das pessoas trans, mas também promovem um mercado de trabalho mais inclusivo e equitativo, permitindo que essas pessoas contribuam plenamente para a sociedade e se beneficiem das oportunidades que ela oferece. Em última análise, as ações afirmativas são essenciais para garantir que todos tenham acesso a oportunidades justas e dignas, promovendo a igualdade de direitos e a inclusão plena das pessoas trans no mercado de trabalho.
3.O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A VIOLAÇÃO (AINDA MAIS SEVERA) DE DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS TRANS
Em 2016, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas elaborou um relatório sobre o Brasil, destacando que o racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, a tortura e outros tratamentos degradantes e desumanos estruturam a política de encarceramento no país. Nesse sentido, é relevante mencionar a ADPF nº 347, na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, caracterizado pelas mais cruentas e infindas violações de direitos e garantias fundamentais, resultando, assim, em uma afronta aos direitos humanos.
Como se não bastassem os problemas estruturais do próprio sistema carcerário, a população LGBTQIA+ enfrenta desafios adicionais, como o androcentrismo e o terrorismo de gênero. O encarceramento, que por si só já é bastante violento – seja por parte dos policiais penais ou por outros detentos – é agravado por diversas tentativas de aniquilação e reenquadramento à norma cis-heteronormativa, devido à diversidade sexual e à identidade de gênero da população LGBTQIA+. Nesse sentido, o dossiê elaborado pela ANTRA destaca a falta de acesso a cuidados específicos de saúde para pessoas transgêneras, a descontinuidade dos tratamentos para aquelas pessoas vivendo com HIV, a deficiência no processo de hormonização e a falta de medicações contínuas para cuidados em saúde mental como alguns dos desafios enfrentados dentro do sistema prisional (BENEVIDES, 2022).
As demandas da população LGBTQIA+ são frequentemente tratadas com indiferença ou negligência. Embora tenha sido expedida a Resolução Conjunta nº 1/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, prevendo um tratamento humanizado para essa população, é comum a falta de distribuição de preservativos em cadeias, propiciando a abstinência ou relações sexuais com possíveis infecções.
O relatório da ONU de 2016 já destacava o difícil acesso e a indisponibilidade de dados referentes às pessoas privadas de liberdade da população LGBTQIA+, gerando, assim, uma ausência de fiscalização das políticas públicas adotadas e o aumento da situação de vulnerabilidade e tratamentos cruéis dirigidos a essa população dentro dos presídios. Diante da impossibilidade de averiguar essas violações de direitos, diversas atrocidades são cometidas sem chegar ao conhecimento da sociedade civil, impedindo a responsabilização dos autores de tais ações e omissões.
Um exemplo disso é a história de Raica Souza, uma travesti que foi presa provisoriamente em 2017 e passou por tratamento humilhante logo na entrada do sistema carcerário, sendo submetida a inspeção nua ao lado de presos do sexo masculino e tratada de forma vexatória pelos agentes penitenciários, que a chamavam de termos depreciativos como “mulher de tromba”. É notório que, além da privação de liberdade inerente à pena, as pessoas trans também são privadas do reconhecimento de sua própria identidade, afetando, assim, seu direito à autodeterminação e seu autorreconhecimento (BRASIL SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).
Nesse sentido, destaca-se as situações vexatórias enfrentadas por travestis e mulheres trans em presídios masculinos incluem humilhações, estupros, torturas, falta de compreensão dos agentes penitenciários e dos demais detentos, exposição de seus corpos durante o banho de sol, imposição do corte de cabelo masculino, interrupção dos tratamentos hormonais e outras condutas que destroem a identidade de gênero das pessoas trans (FERREIRA, 2018).
Corroborando com o que foi dito, veja-se o seguinte trecho do Dossiê elaborado pelo ANTRA acerca das dificuldades enfrentadas pela população trans durante a privação de liberdade:
Além disso, também enfrentam dificuldades na emissão de documentos, acesso ao emprego, etc, impedindo o pleno exercício de sua cidadania após terem cumprido suas penas, em um nítido processo que viola a liberdade da pessoa, muitas vezes pelo racismo e pela transfobia presente no sistema de justiça e da própria administração penitenciária. O nome social, em geral, é respeitado pelos demais internos – normalmente tratados como se fossem uma espécie de alcunha ou apelido, ou ainda como codinomes usados por narcotraficantes, mas quase nunca pelos agentes e pela administração penitenciária, em flagrante violação do direito à autodeterminação de gênero e ao respeito e uso do nome social em consonância com a identidade de gênero das pessoas trans. Percebemos que muitas delas têm mais de um nome social e até mesmo abrem mão dos nomes com os quais se identificam e passam a adotar nomes ou apelidos - muitas vezes jocosos, que lhes foi imposto, seja por outros reeducandos ou por agentes (BENEVIDES, 2022, p. 56).
Ademais, outra situação enfrentada pelas travestis e mulheres transexuais em prisões femininas diz respeito ao tratamento recebido pela polícia penal. Ocorre que as agentes penitenciárias, que são do sexo feminino e são responsáveis para executarem as revistas pessoais, muitas vezes se negam a revistar as mulheres transexuais e travestis que não passaram pelo processo cirúrgico de mudança de sexo, pois relatam que é constrangedor precisar apalpar a genitália masculina. Ao mesmo tempo, verifica-se o impasse enfrentado eis que as mulheres transexuais e travestis se negam a serem revistas por homens em razão de se sentirem violadas e constrangidas, evidenciando, assim, um “vácuo jurídico” de como se deve proceder em tais casos (CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS DO IDP; INSTITUTO PRIOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS HUMANOS, 2022).
Outro caso de extrema violência ocorreu em 2015, na Unidade Penitenciária Francisco Adalberto de Barros Leal (UPFABL), onde uma transexual relatou, durante sua audiência de custódia, ter sido estuprada por quatro detentos. A vítima apresentava marcas de espancamento, estava chorando, vomitando e afirmando que, se voltasse à prisão, iria se matar. O defensor público responsável pelo caso destacou: “Eu não consigo entender como é que, em um caso como esse, onde é visível que a pessoa precisava ter sido separada, isso não ter acontecido. Só por ser transexual, ela já corre risco de sofrer agressão” (ANADEP, 2015).
Outro exemplo é o caso de Kelly, uma travesti presa no Rio Grande do Norte. Ao adentrar no sistema prisional, foi levada para a ala masculina, teve seus cabelos cortados, foi obrigada a usar uniformes masculinos e era tratada apenas pelo seu nome civil – que era masculino (AGUIAR, 2018).
Outra forma de violência no sistema prisional é o “assédio religioso”, conforme mencionado no dossiê da ANTRA (BENEVIDES, 2022). No cárcere, a maioria das pessoas se declara cristã ou está em processo de conversão. Nesse contexto, o assédio religioso e as doutrinações compulsórias são frequentemente relatados, com facções religiosas exercendo pressão sobre os presos, inclusive negando acesso ao trabalho ou à progressão de pena, além de impor dogmas cristãos. Essas facções buscam "ressocializar" travestis e mulheres transexuais a partir da religião, muitas vezes forçando-as a um processo de “retransição” para o gênero designado ao nascimento, como condição para garantir segurança e acesso aos mesmos direitos dos demais presos. Em muitos casos, essa “retransição” forçada é utilizada como uma estratégia para esconder a identidade de gênero original, visando se proteger de ameaças constantes e de violências, incluindo estupros corretivos.
Por fim, destacam-se alguns relatos de egressos e egressas entrevistados para a elaboração do Dossiê da ANTRA, que evidenciam a gravidade da situação enfrentada por essa população. Entre os depoimentos, sobressai os seguintes: "Há um processo de reestereotipação e intensa brutalização de suas subjetividades sob o escrutínio do 'título criminal travesti/trans ex-prisioneira'", e "Programas para pessoas cis egressas dificilmente incorporam ou acolhem pessoas trans". Além disso, muitos relatam que, ao tentarem reconstruir suas vidas, precisam deixar suas origens para trás a fim de criar uma nova identidade, contudo, acabando esbarrando nas transfobias estruturais que impedem pessoas trans de terem acesso à educação, saúde, emprego e outros direitos básicos. Há ainda relatos de retransição para uma identidade diferente da original, como forma de se adaptar ao que a sociedade espera e, assim, tentar escapar dos estigmas associados a ser uma travesti egressa (BENEVIDES, 2022, p. 59-60).
Na tentativa de proteger as pessoas trans, destaca-se a importância da criação de alas LGBTQIA+ nos presídios, principalmente nos masculinos. A criação de presídios exclusivamente voltados para mulheres ocorreu após relatos de violência sexual. Diante das violências psicológicas, sexuais e físicas sofridas pela população LGBTQIA+ encarcerada junto a outros grupos, urge a necessidade de estabelecer, no sistema prisional brasileiro, uma ala especial destinada à custódia de mulheres transexuais, travestis e homens gays.
Entretanto, não se trata apenas de separar as pessoas trans dos demais, pois muitas mulheres trans optam por permanecer em presídios masculinos devido à sua orientação sexual, possibilitando relações íntimas com homens. Deve prevalecer a autonomia da população trans. De acordo com a Resolução 558/2015 da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, em respeito ao direito de autodeterminação da pessoa privada de liberdade, cabe à pessoa trans decidir se prefere ir para presídio masculino ou feminino e, existindo ala específica, se ela prefere permanecer separada dos demais, já que tal forma de segregação pode dificultar ainda mais a (re)socialização da pessoa trans. Em consonância com o que foi dito, o Superior Tribunal de Justiça, no corrente ano, decidiu que é dever do Poder Judiciário indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, se prefere ficar detida de forma a conviver com os demais ou em alas ou celas específicas, frisando, assim, a autonomia da pessoa trans.
Portanto, os estabelecimentos penais devem, na árdua tentativa de tornar o cárcere menos degradante para as pessoas trans, oferecer o devido acompanhamento psiquiátrico e médico com as especificidades que essa população exige. Isso inclui a realização de exames, como o preventivo para mulheres trans; a capacitação de todos os profissionais envolvidos, ainda que minimamente, no sistema prisional para atender com dignidade e respeito as demandas específicas dessa população; a disponibilização de terapia de reposição hormonal; o fornecimento de vestimentas e o uso de nomes e prenomes compatíveis com a autopercepção da pessoa trans; além de oferecer auxílio material para garantir os direitos dessas pessoas, como o cadastro nas filas do Sistema Único de Saúde para a realização da cirurgia de transgenitalização e o suporte para a alteração do nome em cartório.
4.AS OPINIÕES CONSULTIVAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E OS RELATÓRIOS DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS NORMATIVO BRASILEIRO
Percebe-se que os direitos das pessoas trans, quando estão inseridas dentro de um estabelecimento prisional, somente pode ser efetivamente compreendido a partir de um diálogo com a jurisprudência internacional de órgãos e tribunais de direitos humanos, promovendo, assim, a intersecção entre o direito nacional e o direito interacional dos direitos humanos. Em casos novos e complexos, o direito nacional deve recorrer ao direito comparado com o intuito de analisar o sistema jurídico, a jurisprudência e as leis de outros países em busca de referências que possam integrar o sistema normativo brasileiro.
Esse capítulo examina as principais opiniões consultivas da Corte IDH e os relatórios da Comissão Interamericana relacionadas aos direitos das pessoas trans, explorando como esses precedentes podem ser integrados ao sistema normativo brasileiro de forma a contribuir para o fortalecimento da proteção jurídica desse grupo vulnerável. Percebe-se que, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não possui, até o momento, casos específicos, no sistema contencioso, que tratem exclusivamente sobre pessoas trans privadas de liberdade, no entanto, frisa-se seu papel consultivo sobre os direitos da população LGBGTQIA+ e a efetivação desses direitos quando tal população encontra-se privada de liberdade.
Em um primeiro momento, destaca-se a Opinião Consultiva nº 24 de 2017 da Corte IDH que representa um marco jurídico no reconhecimento e na proteção dos direitos das pessoas trans e de outras pessoas com orientações sexuais diversas na América Latina. Um dos principais pontos abordados pela Corte IDH é o reconhecimento de que identidade de gênero é um direito humano autônomo e parte integrante da personalidade da pessoa, que deve ser protegida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte, na oportunidade, também apontou a necessidade de os Estados implementarem políticas públicas que assegurem a proteção e promoção dos direitos das pessoas trans e de outras minorias sexuais, de modo a combater o preconceito e a marginalização. Políticas educativas e campanhas de conscientização foram sugeridas como meios de reduzir a estigmatização e promover uma cultura de respeito à diversidade.
No Brasil, por exemplo, essa Opinião Consultiva pode ser invocada em discussões sobre a necessidade de garantir o reconhecimento da identidade de gênero de forma mais ampla e desburocratizada, e na defesa do direito ao casamento igualitário. Também serve como embasamento para argumentar em prol de políticas que protejam as pessoas trans contra a discriminação e a violência, tanto em ambientes públicos quanto privados.
No que tange aos direitos da população LGBTQIA+ quando privadas de liberdade, temos a Opinião Consultiva nº 29 de 2022 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual dispõe que:
No âmbito penitenciário, a violência sofrida pelas pessoas LGBTI se replica e se exacerba, e “pode tomar diversas formas, que poderiam incluir o assédio, a hostilidade, a violência verbal e psicológica e a exploração, bem como a violência sexual e física, inclusive o estupro”. Além disso, as pessoas trans detidas, em especial as mulheres trans, enfrentam uma exposição única à violência, especialmente de caráter sexual. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2022).
Ademais, a referida opinião também estabelece parâmetros claros para a proteção dos direitos das pessoas trans e de gênero diverso. Ao reconhecer que a identidade de gênero deve ser respeitada com base na autopercepção do indivíduo, a Corte estabelece uma base normativa sólida que pode ser utilizada na formulação de leis e políticas públicas inclusivas.
No Brasil, por exemplo, essa opinião consultiva oferece fundamento para avançar em pautas como a desburocratização do reconhecimento legal da identidade de gênero, a ampliação do acesso a serviços de saúde atendendo às demandas específicas da população trans e o combate à violência e à discriminação contra essa população vulnerável, especialmente em contextos como o sistema prisional.
Ocorre que a ausência de políticas públicas a respeito da classificação, autoidentificação, avaliação do risco e internação contribuem para que as mulheres trans, quando expostas ao deletério ambiente prisional, sejam expostas a um alto risco de violência sexual. De acordo com o Relator Especial das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, essa maior exposição das mulheres trans a situação de violência sexual se dá pelos seguintes fatores: a) a percepção de desprezo e posição de superioridade dos outros prisioneiros a respeito das pessoas LGBTQIA+; b) a custódia da população trans em condições piores do que as do restante da população carcerária; c) a incitação e omissão dos agentes penitenciários quanto aos atos violentos praticados em detrimento desse grupo hiper vulnerável. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2022, p. 84).
Corroborando com o que foi dito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio de seus relatórios temáticos, destaca a extrema vulnerabilidade das pessoas LGBTQIA+, especialmente trans, dentro dos sistemas penitenciários. O Relatório sobre Violência contra Pessoas LGBTI (2015) e o Relatório sobre Direitos Humanos das Pessoas Trans e de Gênero Diverso na América (2020) são referências importantes para entender a situação dessa população no contexto prisional. Esses documentos apontam práticas discriminatórias, a falta de acesso a cuidados de saúde específicos, e o risco elevado de violência física, sexual e psicológica enfrentado por pessoas trans privadas de liberdade.
No Relatório sobre Violência contra Pessoas LGBTI (2015) a CIDH sublinha que a violência contra pessoas trans, especialmente dentro dos presídios, é uma expressão extrema do preconceito e da transfobia enraizados na sociedade. Outro ponto crítico levantado no relatório é o uso do isolamento como uma medida de “proteção” para pessoas trans em unidades prisionais. Embora o isolamento seja apresentado como uma forma de evitar agressões, na prática, ele funciona como uma punição adicional e agrava o estigma e a exclusão social.
O Relatório sobre Direitos Humanos das Pessoas Trans e de Gênero Diverso na América (2020) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos aborda diretamente a situação das pessoas trans privadas de liberdade e expõe as graves violações de direitos que essa população enfrenta nos sistemas prisionais das Américas. A CIDH documenta casos frequentes de abusos cometidos por outros detentos e pelo próprio pessoal penitenciário, como estupros, agressões e torturas, que são formas de punição ou “correção” de sua identidade de gênero. Ademais, a Comissão também destaca que há práticas rotineiras de humilhação, como o uso forçado de nomes e pronomes incompatíveis com sua identidade de gênero, cortes de cabelo compulsórios e negação do uso de roupas que correspondam ao gênero com o qual se identificam.
Sendo assim, percebe-se que os relatórios enfatizam a necessidade de medidas concretas para garantir a segurança e a dignidade dessas pessoas, incluindo a implementação de políticas de segregação que sejam voluntárias (como alas LGBTQIA+), capacitação de agentes penitenciários para lidar com as necessidades específicas dessa população e a criação de mecanismos de denúncia e monitoramento para prevenir abusos.
Em relação à competência contenciosa da Corte IDH, frisa-se que, até o momento, a Corte não possui casos específicos que tratem exclusivamente sobre pessoas trans privadas de liberdade. No entanto, há decisões importantes que abordam a situação de pessoas LGBTQIA+ e questões relacionadas à identidade de gênero e aos direitos dessas populações em geral, incluindo aquelas privadas de liberdade, tais como Caso "Atala Riffo e Filhas vs. Chile" (2012) que embora não trate diretamente de pessoas privadas de liberdade, esse caso foi um marco na jurisprudência da Corte IDH ao reconhecer a discriminação com base na orientação sexual. Temos também o Caso "Azul Rojas Marín vs. Peru" (2020) que fala sobre a detenção arbitrária e a tortura de uma mulher trans por policiais no Peru – apesar de a situação de Azul Rojas Marín não ter ocorrido dentro de um presídio, o caso é relevante porque aborda a violência estatal e os maus-tratos contra pessoas trans em custódia, estabelecendo parâmetros para proteger os direitos dessas pessoas em contextos de privação de liberdade. Por fim, a Corte IDH também se manifestou no Caso "Vicky Hernández e Outras vs. Honduras" (2021). No referido caso, a Corte responsabilizou o Estado de Honduras pela morte da ativista Vicky Hernández, mulher trans, e por não ter adotado medidas adequadas para investigar o crime e proteger a população LGBTQIA+. A decisão da Corte reconheceu a violência e a discriminação sistêmica enfrentadas por pessoas trans, o que é relevante para a proteção dessas populações, inclusive em contextos de privação de liberdade (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012; 2020; 2021).
Em outras palavras, percebe-se que os casos acima citados ilustram uma postura progressista da Corte IDH em relação à proteção dos direitos de pessoas trans e LGBTQIA+, mesmo que não se refiram diretamente ao contexto prisional. Nesse sentido, servem como precedentes importantes para a proteção e garantia de direitos das pessoas trans privadas de liberdade, evidenciando a necessidade de um tratamento digno, sem discriminação e respeitando a identidade de gênero.
A integração das decisões da Corte IDH ao sistema normativo brasileiro encontra fundamento na aplicação da hermenêutica evolutiva e do controle de convencionalidade. A hermenêutica evolutiva permite a interpretação dinâmica dos direitos, adaptando-os às novas realidades sociais e garantindo que as normas internacionais se mantenham relevantes frente às mudanças sociais. Já o controle de convencionalidade assegura que as legislações nacionais sejam interpretadas e aplicadas em consonância com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos.
No contexto brasileiro, a adoção dessas ferramentas seria essencial para superar a inércia legislativa e judicial em relação à proteção dos direitos das pessoas trans. Decisões como as da Corte IDH, que reconhecem a necessidade de proteção específica para pessoas trans, poderiam ser incorporadas por meio de um controle de convencionalidade mais robusto, orientando a atuação do Judiciário e servindo como parâmetro para a criação de normas e políticas públicas.
5.CONCLUSÃO
Sendo assim, conclui-se que a ausência de previsão normativa específica para os direitos humanos das pessoas trans no Brasil não apenas evidencia uma lacuna jurídica, mas também reflete a falta de compromisso efetivo do Estado em proteger um grupo social historicamente marginalizado e constantemente exposto a violências sistemáticas. Essa omissão legislativa agrava a vulnerabilidade dessas pessoas no sistema prisional, que se torna um ambiente de exclusão extrema, onde as condições desumanas são frequentemente exacerbadas pela discriminação e pela negação de direitos básicos. O impacto dessa ausência de regulamentação vai além da violação de direitos individuais: ela legitima, por meio da inação do Estado, práticas abusivas que reforçam a marginalização das pessoas trans e perpetuam ciclos de violência e exclusão social.
Apesar de alguns avanços, como a adoção do nome social e a possibilidade de mudança de nome e gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia ou laudos médicos, essas medidas isoladas não são suficientes para transformar o sistema prisional em um espaço seguro e respeitoso para pessoas trans. A hostilidade institucional, combinada com a falta de políticas públicas abrangentes e específicas, cria um cenário em que direitos fundamentais, como o acesso à saúde, à segurança e à dignidade, são constantemente violados. Nesse contexto, o diálogo com a jurisprudência internacional, especialmente as Opiniões Consultivas e os Casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), torna-se fundamental, ao fornecer parâmetros claros e robustos para a proteção dos direitos das pessoas trans, incluindo as privadas de liberdade. Os precedentes da Corte evidenciam uma postura progressista no âmbito internacional e reforçam a necessidade de medidas conjuntas no direito interno que ultrapassem meras adaptações pontuais, exigindo uma reconfiguração estrutural do sistema carcerário para garantir o respeito à identidade de gênero e a proteção contra práticas degradantes.
A incorporação dessas diretrizes ao ordenamento jurídico brasileiro se mostra urgente. Integrar as recomendações da Corte Interamericana e adotar uma legislação que proteja explicitamente os direitos das pessoas trans no sistema prisional não é apenas uma obrigação internacional, mas um passo essencial para promover a justiça social e os direitos humanos em sua plenitude. Ao negligenciar essa integração, o Brasil continua a permitir a perpetuação de um sistema que, longe de ressocializar, desumaniza e marginaliza ainda mais uma população já vulnerável.
Portanto, a luta pela garantia dos direitos das pessoas trans no cárcere deve ser vista como parte de uma agenda maior de transformação do sistema de justiça, que precisa ser repensado à luz dos princípios de dignidade, igualdade e respeito à diversidade. A implementação das recomendações da Corte Interamericana não apenas criaria um ambiente prisional mais inclusivo, mas também afirmaria o compromisso do Brasil com os valores democráticos e os direitos humanos. Essa mudança estrutural, além de atender aos padrões internacionais, seria um passo decisivo para combater as desigualdades e promover a inclusão social, elementos essenciais para a construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária.
6.REFERÊNCIAS
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RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.
Pós Graduada em Direitos Humanos
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Maria Eduarda Frazão. A ausência de previsão normativa dos direitos humanos das pessoas trans no sistema prisional brasileiro: uma visão crítica e a necessidade de aplicação dos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos para preenchimento de lacunas. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 mar 2025, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/68212/a-ausncia-de-previso-normativa-dos-direitos-humanos-das-pessoas-trans-no-sistema-prisional-brasileiro-uma-viso-crtica-e-a-necessidade-de-aplicao-dos-julgados-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-para-preenchimento-de-lacunas. Acesso em: 02 abr 2025.
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