O princípio do juiz natural – consagrado em todas as constituições brasileiras, exceto na de 1937 – constitui uma garantia de limitação dos poderes do Estado, que não pode instituir juízo ou tribunal de exceção para julgar determinadas matérias nem criar juízo ou tribunal para processar e julgar um caso específico.
A Constituição Federal de 1988 determina em seu artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. E acrescenta: "XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção"; "LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".
Na Convenção Americana de Direitos Humanos – da qual o Brasil é signatário –, o artigo 8º preceitua que todo indivíduo tem o direito de ser ouvido por um "juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente pela lei".
Segundo a doutrina, o princípio do juiz natural se refere à existência de juízo adequado para o julgamento de determinada demanda, conforme as regras de fixação de competência, e à proibição de juízos extraordinários ou tribunais de exceção constituídos após os fatos.
Assim, fica assegurado ao acusado o direito ao processo perante autoridade competente de acordo com a legislação em vigor – estando vedada, em consequência, a instituição de juízo posterior ao fato em investigação.
Basilar para a formação do processo penal, o princípio do juiz natural é motivo de uma série de questionamentos judiciais, especialmente por partes que alegam violação a esse princípio. Confira, na sequência, algumas situações em que o STJ precisou se pronunciar sobre alegações de violação ao juiz natural, notadamente na esfera penal.
Tanto para o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto para o STJ, não infringe o princípio do juiz natural o julgamento de recurso por câmara composta majoritariamente por juízes federais convocados.
Na RE 597.133, o STF firmou o entendimento de que o julgamento de recursos por órgãos fracionários de tribunais compostos majoritariamente por magistrados de primeiro grau convocados não viola o princípio constitucional do juiz natural, além de ser autorizado no âmbito da Justiça Federal pela Lei 9.788/1999.
Da mesma maneira, o STJ entende que a substituição de desembargador por juiz convocado não incorre em violação do princípio do juiz natural, desde que dentro dos parâmetros legais e com observância das disposições estabelecidas na Constituição Federal.
No julgamento de um habeas corpus pela Quinta Turma (caso que tramitou em segredo de justiça), o relator, ministro Nefi Cordeiro, explicou que a convocação de magistrados de primeiro grau para substituir desembargadores funcionalmente afastados ou ampliar extraordinariamente o número de julgadores do órgão, quando acontece, se dá no interesse objetivo da jurisdição.
Ele acrescentou que o objetivo da medida é trazer mais celeridade à prestação jurisdicional e que a distribuição dos processos é feita sempre aleatoriamente.
"Independentemente do número de juízes convocados participantes do julgamento, sua atuação dá-se nas mesmas condições dos desembargadores, válida sendo sua plena atuação jurisdicional", afirmou.
Para Nefi Cordeiro, a atribuição genérica de processos a juízes que atuam em auxílio aos tribunais não viola o devido processo legal, seja qual for o número de convocados, bem como não viola o juízo natural; é, na verdade, simples gestão do trabalho dos julgadores em órgão jurisdicional.
O STJ também entende que não há ofensa ao juiz natural nem cerceamento de defesa quando ocorre alteração da composição do órgão julgador.
Ao analisar o HC 331.881, a Quinta Turma consignou que eventuais mudanças na composição do órgão julgador não comprometem a competência para analisar embargos de declaração opostos contra suas decisões.
"Os embargos de declaração devem ser apreciados pelo órgão julgador da decisão embargada, independentemente da alteração de sua composição, o que não ofende o princípio do juiz natural e excepciona o princípio da identidade física do juiz", afirmou o relator, ministro Felix Fischer.
No julgamento do HC 449.361, a Quinta Turma fixou entendimento no sentido de que não viola o juiz natural a designação de magistrados para, em mutirão carcerário, atuar em ações criminais e execuções penais.
Para o colegiado, os mutirões de julgamento possibilitam decisões mais céleres sem que haja violação da segurança jurídica ou desrespeito ao juízo competente para a apreciação das causas.
No julgamento, a turma restabeleceu decisões concessivas de progressão de regime, proferidas em mutirão, que haviam sido anuladas pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) em razão de suposta incompetência do juiz.
"No caso concreto, não houve escolha de magistrados para julgamento deste ou daquele processo. Pelo contrário, a designação se deu de maneira ampla e indiscriminada para a atuação em período certo de tempo, de modo a conferir eficiência à prestação jurisdicional e efetividade ao princípio da duração razoável dos processos", afirmou o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
O ministro destacou ainda que o STJ vem entendendo que não ofende o princípio do juiz natural a designação de magistrados de primeiro grau para atuar em tribunais, em regime de mutirão, em processos distribuídos de forma genérica.
Segundo o relator, no caso analisado, houve a modificação do juiz, mas não do juízo competente, e a alteração não ocorreu para beneficiar pessoas determinadas, tendo em vista que os novos juízes responsáveis pelo mutirão tinham a incumbência de dar andamento a todas as ações criminais e execuções penais previstas em instrução normativa do próprio TJPR.
Igualmente, para o STJ, não viola o princípio do juiz natural a redistribuição de processos realizada em função da instalação de novas varas de igual competência, no estrito cumprimento da norma de regência e com a finalidade de nivelar por igual o acervo de feitos, especialmente nos processos que ainda estão na fase de inquérito.
O entendimento foi confirmado pela ministra Laurita Vaz durante o julgamento do HC 102.193, que questionava a redistribuição de processos entre juízos com as mesmas competências materiais e que dividiam entre si uma única base territorial.
Segundo a ministra, a redistribuição acontece dentro da estrita norma legal, com o objetivo de igualar os acervos dos juízos novos e dos já existentes, visando dar maior celeridade ao processo.
"A redistribuição do feito decorrente da criação de nova vara não viola o princípio do juiz natural, uma vez que a garantia constitucional permite posteriores alterações da organização judiciária", afirmou.
Também o STF – esclareceu a ministra – já se manifestou no sentido da inexistência de violação ao juiz natural pela redistribuição do feito em virtude de mudança na organização judiciária, uma vez que o artigo 96 da Constituição assegura aos tribunais o direito de dispor sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais.
Não subsiste a tese de violação ao princípio do juiz natural quando o magistrado competente para conduzir as investigações delega sua competência para decidir sobre as medidas cautelares relacionadas ao inquérito, decidiu a Sexta Turma no RHC 112.336.
O caso julgado envolveu o juiz corregedor da Justiça Militar de São Paulo, competente para atuar nos procedimentos administrativos instaurados para apurar responsabilidades de policiais militares suspeitos de ilícitos criminais.
Em razão da complexidade do feito, o juiz corregedor delegou ao juízo da 1ª Auditoria Militar a competência para decidir sobre medidas cautelares relacionadas ao inquérito – inclusive os decretos de prisão preventiva –, retornando os autos, após a audiência de custódia, ao órgão competente para conduzir a investigação, o qual convalidou os atos decisórios.
Os acusados alegaram violação ao princípio do juiz natural, sob o argumento de que as medidas cautelares e as conduções coercitivas foram determinadas por autoridade incompetente, uma vez que os incidentes suscitados durante o inquérito policial militar são de competência do juiz corregedor.
Ao negar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, a relatora do caso, ministra Laurita Vaz, frisou que não houve a demonstração de mácula nas decisões que deferiram a prisão preventiva e a busca e apreensão proferidas pelo juízo de primeiro grau.
Para a relatora, não foi desrespeitado o princípio do juiz natural, pois, no caso, o magistrado competente para conduzir as investigações delegou a competência para decidir sobre as medidas cautelares na forma permitida pela organização judiciária do estado de São Paulo.
Segundo a ministra Laurita, a jurisprudência é uníssona no sentido de que, tanto nos casos de nulidade relativa quanto nos casos de nulidade absoluta, o reconhecimento de vício que enseje a anulação de ato processual exige a efetiva demonstração de prejuízo, sem o qual convalida-se o ato.
Por outro lado, para o STJ, viola os princípios do juiz natural, do devido processo legal, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição a decisão do Tribunal de Justiça que condena, analisando o mérito da ação penal em apelação interposta pelo Ministério Público contra simples rejeição da denúncia.
No caso julgado pela Sexta Turma (HC 299.605), a decisão de primeira instância reconheceu que a denúncia não tinha justa causa porque, naquele momento, não havia a constituição definitiva do crédito tributário junto à Receita Federal, motivo pelo qual não poderia prosseguir a ação penal quanto ao crime de descaminho – e, por causa da cadeia delitiva, a análise dos demais crimes imputados na denúncia estaria prejudicada.
Assim, a decisão de primeiro grau, sem enfrentar o mérito da ação penal, e alinhada ao entendimento jurisprudencial que admitia o descaminho como crime material, reconheceu que a ausência da constituição do crédito tributário fulminava a ação penal por ausência de justa causa.
No entanto, a segunda instância, ao julgar o recurso do Ministério Público, considerou desnecessária a constituição definitiva do crédito tributário para configurar o crime de descaminho e condenou o acusado.
O relator do habeas corpus no STJ, ministro Nefi Cordeiro, destacou que o acórdão questionado, ao julgar a apelação contra a sentença que rejeitou a denúncia, foi além do mero recebimento da denúncia, e entrou no mérito da causa para condenar o réu. "Caberia ao tribunal local tão somente prover o recurso, para o processamento penal regular", explicou.
Após reconhecer a supressão de instância e a consequente violação ao princípio do juiz natural, a turma concedeu o habeas corpus e anulou o acórdão proferido em segunda instância, na parte que analisou o mérito da causa.
O Regimento Interno do STJ, em seu artigo 21-E, V, permite ao presidente do STJ, em decisão monocrática, não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tiver impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida – o que não ofende os princípios do juiz natural e da colegialidade.
Na análise de embargos de declaração no AREsp 1.470.972, a Quinta Turma concluiu que não houve ofensa ao juiz natural na decisão monocrática da presidência do STJ que não conheceu do agravo em recurso especial. A parte ingressou com agravo regimental contra a decisão da presidência, mas o recurso foi desprovido pelo colegiado.
Nos embargos de declaração, a parte insistiu que o relator deveria ter sido designado por sorteio, entre os ministros que integram a seção competente.
Para o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do caso na Quinta Turma, não procede a indicada ofensa ao princípio do juiz natural, pois, de acordo com o regimento interno da corte, é atribuição do presidente, antes da distribuição dos processos, não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tiver impugnado especificamente todos os fundamentos da decisão recorrida.
Outra importante questão sobre o tema foi decidida em 2018 pela Corte Especial: o ministro que não tiver acompanhado o início de um julgamento com sustentações orais não poderá participar de sua continuação.
A tese formulada pelo colegiado teve por base os princípios do juiz natural e da não surpresa nos julgamentos. A decisão foi tomada, por maioria, em questão de ordem suscitada no julgamento do EREsp 1.447.624.
Durante os debates da questão de ordem, o ministro Og Fernandes – um dos que entenderam pela impossibilidade de habilitação posterior do magistrado – afirmou que o artigo 5º da Constituição prevê, como resultado do princípio do juiz natural, que ninguém poderá ser sentenciado senão pela autoridade competente, o que representa a garantia de um julgamento técnico e isento.
Na mesma linha, o ministro Raul Araújo apontou que, no devido processo legal, as partes não podem ser surpreendidas em relação ao andamento da ação. Segundo o ministro, a não surpresa também se aplica aos juízes que participarão do julgamento após o seu início. Em consequência, afirmou, os interessados devem ter conhecimento dos integrantes do julgamento quando ele for retomado.
"Não podemos admitir a livre alteração de quórum, tanto nesta corte superior quanto em instâncias ordinárias, dando margem à violação do juiz natural. Com mais ênfase, a impossibilidade deve existir quando há sustentação oral, já que seria uma desconsideração com a advocacia e com a possibilidade de o advogado influenciar o resultado dos julgamentos", afirmou Raul Araújo.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 331881HC 449361HC 102193RHC 112336HC 299605AREsp 1470972EREsp 1447624
FONTE: STJ.