A eclosão do maior movimento social dos últimos tempos no Brasil nos faz recordar de um artigo de Nicholas D. Kristof (O Estado de S. Paulo de 04.01.11, p. A12), que bem sintetizou o quanto a desigualdade afeta o espírito humano, ou seja, a alma, gerando uma série interminável de malefícios (econômicos, físicos, mentais, emocionais etc.). “Uma alma triste pode matá-lo mais rápido, muito mais rápido do que uma bactéria” (John Steinbeck).
O citado artigo gira em torno do livro The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger – “O nível espiritual: porque uma maior igualdade torna as sociedades mais fortes”, de autoria de dois epidemiologistas britânicos, Richard Wilkinson e Kate Picket. A sua principal conclusão é a seguinte: a desigualdade intensa (étnica, social, racial, existencial, moral, política e econômica), que é percebida como fortemente desarrazoada, contribui para o aumento dos crimes, para o uso de drogas, para o aumento de adolescentes grávidas, para as doenças cardíacas, doenças mentais, mortalidade infantil, obesidade, evasão escolar, aumento dos homicídios, dos policiais, das prisões etc.
A onda veio das profundezas, tal como um tsunami
A esse rol enorme de consequências nefastas geradas pela desigualdade cabe agregar um efeito emocional inesperado (para a tradição brasileira), qual seja, a desigualdade pode também servir de estopim para a eclosão de protestos sociais massivos, porque ela representa humilhação e indignação (muitas vezes perenes).
Nicholas D. Kristof (no artigo citado) enfocou a desigualdade econômica brutal hoje existente nos EUA: 1% dos americanos mais ricos possuem, ao todo, mais do que a riqueza total de 90% da população do país. Os números da sociedade brasileira não são significativamente diferentes. Nossa desigualdade na distribuição de renda também é chocante. Consoante a Veja de 29.12.10, p. 47: (a) Coeficiente Gini, que mede a desigualdade na distribuição de renda, era o seguinte (em 2010): Brasil 56,7, um dos mais desiguais do planeta; (b) essa desigualdade guarda simetria com nosso escabroso IDH, que revela o índice de desenvolvimento humano com base na expectativa de vida, a educação e o PIB per capita: Brasil, 0,699, um dos países menos desenvolvidos do planeta; (c) PIB per capita (em dólares): Brasil, 10.470 (frente aos EUA 47.131).
Essa desigualdade acachapante não afeta somente o aspecto econômico e social, sim, também a alma das pessoas (como demonstraram os dois epidemiologistas acima citados, com base em uma infinidade de dados e números). A desigualdade afeta a psique humana, criando ansiedades, desconfiança e uma série de enfermidades físicas e mentais. A base da argumentação dos dois autores é que os seres humanos são animais sociais que sofrem muito com as desigualdades excessivamente gigantes.
Se tudo isso parece fazer todo sentido para a realidade britânica, imagine o quanto que os integrantes das camadas inferiores sofrem aqui no Brasil, visto que são vitimizados por várias desigualdades (étnica, racial, social, econômica, cultural, emocional etc;) e, ademais, por torpes preconceitos e aberrantes discriminações.
A irracionalidade da discriminação étnica, social e econômica no Brasil chega a ponto (nos mais radicais) de não considerar os integrantes das camadas de baixo como humanos plenos. Seriam semi-humanos ou sub-humanos, com distinta capacidade para sentir a dor (nesse ponto esses sub-humanos seriam como os animais). “Os de ascendência europeia, geralmente, não aceitavam que a dor sentida por eles próprios fosse igualmente tão intensa e sofrida quando sentida pelos africanos” (cf. Luís Mir, Guerra civil).
Este último autor conclui: “Os seres humanos possuem aptidões mentais que os levarão, em certas circunstâncias, a sofrer mais do que os animais nas mesmas circunstâncias. Enquanto não aceitarmos que o modelo escravagista foi um processo de animalização do nosso semelhante, não distinguiremos entre uma chicotada num escravo e num cavalo”. As desigualdades gritantes vividas, sobretudo, na América Latina não passam de chicotadas diárias na população mais humilde, carente de transporte público, de hospitais e escolas públicas de qualidade, as quais, para além de não serem sentidas pelas classes dominantes, são sub-valoradas (chicotear um trabalhador humilde ou um estudante seria a mesma coisa que bater ou chutar um inseto).
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