Epistemologia jurídica. É o seguimento da Filosofia do Direito voltado ao estudo das fontes jurídicas.[1]
1. FINALIDADE
O presente artigo tem a preocupação com o Direito enquanto ciência, visando a delimitar o seu objeto e o seu método de estudo. Para tanto, faremos uma relação do Direito com a moral discorreremos rapidamente sobre a teoria do conhecimento.
Neste segundo artigo de Introdução ao Estudo do Direito o enfoque central será filosófico porque a Filosofia se ocupa, dentre outras questões, da teoria do conhecimento e da teoria da conduta, buscando alcançar uma explicação geral do universo e da vida, o que nos conduz à metafísica.
A gnoseologia, que é uma parte da ontogseologia que trata da validade do conhecimento em função do sujeito cognoscente. Sua origem é atribuída a Kant, mas Miguel Reale entende que suas raízes estão no período clássico e no medieval, precedendo a kantiana teoria do conhecimento.[2]
Por incrível que pareça, a afirmação em epígrafe é suscetível de críticas, parecendo mais adequada a afirmação de Aurélio Buarque de Holanda: “Epistemologia. [Do gr. epistéme, ‘cência’, + -o- + -log(o)- + ia] S. f. Filos. Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo delas; teoria da ciência”.[3] Com efeito, a fontes materiais (de produção) e formais (de conhecimento) são insuficiente à epistemologia, que desenvolve estudo muito mais complexo.
As primeiras concepções do Direito estavam vinculadas à religião e à vida privada, inexistindo conhecimento sobre o Direito como algo diverso do seu conteúdo, “O conhecimento do direito, como algo diferenciado dele, é, pois, uma conquista tardia da cultura humana”.[4]
2. O DIREITO E O CONHECIMENTO DO DIREITO
O conhecimento do Direito como ciência exige maior grau de abstração do que o conhecimento do objeto de estudo do Direito, até porque estar-se-á diante de ciência social aplicada, com forte aspecto pragmático.
Conforme ensina Radbruch, o conceito do Direito é independente da ideia de direito e somente à primeira vista o conceito do Direito parece pertencer à ciência jurídica.[5]
A perspectiva do Direito como ciência tem suas bases no positivismo, especialmente na teoria do conhecimento de Kant. Porém, Larenz critica a perspectiva positivista para dizer que ele constitui uma espécie de “naturalismo”, visto que, tal como a ciência da natureza, se fundamentará sobre fatos indubitáveis.[6]
Paulo Nader afirma:
Em lato sensu, a Ciência do Direito corresponde ao setor do conhecimento humano que investiga e sintetiza os conhecimentos jurídicos. Em stricto sensu, é a particularização do saber jurídico, que toma por objeto de estudo o teor normativo de um determinado sistema jurídico.[7]
A perspectiva de Paulo Nader tende ao exposto anteriormente, quando afirmamos, citando Tércio Sampaio, que o conhecimento da Ciência do Direito é diverso do conhecimento do seu conteúdo.
O fato é que o conceito de uma ciência não deve ser feito pelo cientista, mas pelo filósofo, sendo que se pretende, na Alemanha, abandonar o positivismo desde a primeira metade do Século XX.
Considero oportuna a lição de Kant, a saber:
O conjunto das leis suscetíveis de uma legislação exterior se chama teoria do Direito, ou simplesmente Direito (jus). Quando essa legislação existe, forma a ciência do Direito positivo. O homem versado nesta ciência ou que conhece Direito, é chamado de jurisconsulto (jurisperitus), se, além disso, conhece as leis anteriores de um modo exterior, isto é, em sua aplicação aos diferentes casos apresentados pela experiência, e nesse casoa ciência do Direito recebe o nome de jurisprudência (jurisprudentia). Porém se faltam essas duas condições indispensáveis para que haja jurisprudência, a ciência do justo é tão-somente a simples ciência do Direito (juris scientia). Esta última denominação convém ao conhecimento sistemático do Direito Natural (jus naturae), por mais que o jurisconsulto deva tornar dessa última os princípios imutáveis de toda legislação positiva.[8]
Em meio às inúmeras críticas pejorativas ao positivismo, ficamos confusos sobre qual seria a melhor opção, visto que as posições sistêmicas (da ação comunicativa e biológica) me parecem, também, insuficientes, sendo oportuno expor:
Os sistemas complexos são mais capazes de se adaptar às mudanças ambientais. Daí a expressão sistemas complexos adaptativos. Inversamente, os sistemas menos complexos são complicados e tendentes à entropia. Os sistemas complexos adaptativos lidam bem melhor com a diversidade, a incerteza e as mudanças: produzem diferença. Os sistemas complicados não conseguem lidar bem com a diversidade, a incerteza e as mudanças: produzem repetição em vez de diferença, dada a sua pouca flexibilidade.[9]
Essa lição, em favor do pensamento sistêmico, se aproxima da posição sistêmica de Talcott Parsons, para quem a diferença entre os (sub)sistemas da sociedade global devem ser diferentes, senão a reflexividade entre eles será impossível, De qualquer modo, o pensamento complexo não anula os indivíduos como o praticamente o faz a filosofia sistêmica. Talvez por isso sejam crescentes, na Psicologia, aqueles que se dizem sistêmicos, mas que no fundo adotam o pensamento complexo.
O pensamento psicológico sistêmico também critica a revolução científica que nasceu no Século XVII. Sem negar a racionalidade científica, crê ser ela insuficiente, propondo conjugá-la com a subjetividade da arte e das tradições espirituais. Dentre as perspectivas psicológicas sistêmicas, podemos citar a análise transacional, sendo oportuno transcrever:
A unidade das relações sociais é chamada de transação. Se duas ou mais pessoas se encontram... mais cedo ou mais tarde uma delas ira falar, ou dar qualquer indicação de ter-se inteirado na presença das outras. Isto é chamado estímulo transacional. Outra pessoa então irá dizer ou fazer qualquer coisa relacionada de algum modo com aquele estímulo, e isto é chamado de resposta transacional.[10]
Nesse contexto da busca de consenso, surge a necessidade do psicoterapeuta padronizar a linguagem e o comportamento humano, nos remetendo à ação comunicativa em que se pretende o consenso, este proposto como sendo pressuposto. Ocorre que toda construção sistêmica tende à metafísica sendo o Direito percebido ainda como o setor do conhecimento destinado à pacificação social.
3. O CONCEITO DA CIÊNCIA DO DIREITO
A partir da filosofia, prefiro dizer que o conceito da Ciência do Direito é: “o setor do conhecimento que se ocupa das normas e dos fatos de status jurídicos, consolidados em determinada época ou região”.
No seu Dicionário Filosófico, Voltaire afirma que o Direito é moral e é, também, justiça.[11] No entanto, não concebemos valores como pertencentes às ciências. Com isso, afastamos parcialmente todas concepções valorativas, percebendo o Direito como um conhecimento fragmentário e não de toda complexidade social.
“O Direito não cabe no plano da natureza. É obra de cultura e, portanto, criação visando a valores”.[12] Perceba-se, no entanto, que objetivar a valores e, dentre eles a justiça, não tornará o Direito uma parte do conhecimento valorativo. Em sentido contrário, muitos partidários do Direito Natural e até o positivista Miguel Reale, este por sua teoria tridimensional do Direito, entendem que os valores pertencem ao Direito, sendo frequentes as defesas de teorias axiológicas dos direitos fundamentais e a apresentação de princípios como valores orientadores do Direito.[13]
A posição kelsiana que adoto, no sentido de afastar valores do conhecimento científico do Direito,[14] é diversa da ação comunicativa de Habermas, que ali insere valores, e esta é a posição que tem repercutido no âmbito do STF.[15]
4. DIREITO E JUSTIÇA
Justiça é uma palavra muito mal percebida na língua portuguesa, visto que está vinculada ao Direito e à “arte de dar a cada um o que é seu”. Todavia, a palavra justiça transcende a essas concepções, sendo ela relativa, assim como o bem, o mal, o certo e o errado. Por isso, a discussão acerca da justiça remonta a antiguidade e nos aflige até hoje.
A justiça é objeto de preocupação desde a antiguidade. Ela passou por Platão, Aristóteles e muitos outros que se seguiram. Porém, concluímos com Kelsen, no sentido de que a justiça é relativa. Onde muitos falharam, ele também falhou, pois buscou um conceito geral de justiça, o qual será impossível.[16]
No próximo artigo deveremos voltar a discutir a justiça, razão pela qual abandonaremos o assunto neste momento, esperando que o leitor nos perdoe por, momentaneamente, deixarmos o assunto sem razoável exposição.
5. DIREITO E MORAL
Já afirmamos que Direito é ciência. Podemos afirmar, por outro lado, que a moral é costume, de fundamentação metafísica,[17] e que é objeto de estudo da ética. Lamento que o ensino jurídico se apresente alheio a isso e que a moral se transforme em algo interno e a ética como padrão moral de determinada categoria.
Uma construção que teve lugar na jusfilosofia e de grande prestígio é a que informa ser a moral interna (interioridade) e o Direito externo (exterioridade). No entanto, conforme destacou Radbruch, a “experiência jurídica mostra-nos, contudo, que há inúmeras formas de conduta ou de atitude interior que não deixam de ser juridicamente relevantes”, exemplificando com as diferentes formas de culpa e a análise da boa-fé.[18]
A teoria do mínimo ético (teoria dos círculos concêntricos)[19] preconiza que as normas jurídicas constituem o mínimo ético à coexistência social. Sobre ela, escrevi alhures:
Procurando distinguir o direito da moral, construiu-se a teoria do mínimo ético, para a qual as normas jurídicas situam-se, todas, dentro da moral, ou seja, as normas jurídicas são as regras morais mínimas, essenciais para a vida em sociedade. Partindo dessa noção, as normas penais seriam o mínimo do mínimo ético, eis que tratam dos aspectos mais sérios, dos valores mais relevantes, da sociedade.[20]
Não pretendo resgatar a teoria do mínimo ético porque é sabido que nem todas normas jurídicas tem conteúdo moral. Assim, negadas as teorias da interioridade e da exterioridade, parece mais adequada a teoria dos círculos secantes (ainda dominante), pela qual há uma coexistência dos mundos jurídico e moral. Por tal teoria, existem normas jurídicas que não são morais e vice-versa, mas existe uma área em que os dois mundos (jurídico e moral) se comunicam.[21]
Parece oportuna a seguinte lição:
... só se pode afirmar que o Direito se alimenta da moral, tem seu surgimento a partir da moral, tem seu surgimento a partir da moral, e convive com a moral continuamente, enviando-lhe novos conceitos e normas, e recebendo novos conceitos e normas. A moral é, e deve sempre ser, o fim do Direito. Com isso, pode-se chegar à conclusão de que o Direito sem moral, ou Direito contrário às aspirações morais de uma comunidade, é puro arbítrio, e não Direito.[22]
A ciência do Direito é cultural e, portanto, necessita de informações consuetudinárias (baseadas nos costumes) para ser eficaz. Sua construção não pode ser alheia à moral, nem deixar de buscar a justiça.
5. CONCLUSÃO
A epistemologia jurídica é o estudo da Ciência do Direito em sua plenitude, não apenas das fontes do Direito. Outrossim, só se justificará falar de epistemologia jurídica quando o Direito for concebido como ciência, o que afastará dos seus objetos de estudo a justiça, a qual deverá ser estudada no artigo que versará sobre a axiologia jurídica.
A moral deve ser admitida como costume, a qual influenciará o Direito, até porque este constitui ciência cultural, dependendo dos costumes consolidados pela tradição de determinada coletividade em determinados tempo e região.
[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 311.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 44.
[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 542.
[4] FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 55.
[5] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 85-86.
[6] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 47.
[7] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 79.
[8] KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1993. p. 44.
[9] MARIOTTI, Humberto. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2007. p. 89.
[10] BERNE, Eric. Games People Play. Apud HARRIS, Thomas. Eu estou OK, você está OK. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 30.
[11] VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Matin Claret, 202. p. 160-164.
[12] SOUZA, Daniel Coelho de. Introdução à ciência do direito. 5. ed. São Paulo: Saravia, 1988. p. 13.
[13] No sentido do exposto: MOTA, Marcel Moraes. Uma teoria axiológica dos direitos fundamentais constitucionalmente adequada. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/ marcel_moraes_mota2.pdf>. Acesso em: 10.2.2015, às 12h09.
[14] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[15] CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria geral dos direitos fundamentais. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br/repositorio/cms/portaltvjustica/portaltvjusticanoticia/anexo/joao_trindadade__teoria_geral_dos_direitos_fundamentais.pdf>. Acesso em: 20.2.2015, às 15h58.
[16] LOSANO, Mario G. Apresentação. In KELSEN, Hans. O problema da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XXXI.
[17] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2.003.
[18] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 98.
[19] Há quem busca distinguir as duas teorias (do mínimo ético e dos círculos concêntricos), mas entendemos que não existe razão para tal porque todas levam à inclusão do Direito ao mundo moral, visto que ambas incluem o Direito no campo moral.
[20] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 24.
[21] REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 43.
[22] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 427.
Procurador Federal; Concluiu o Curso de Formação de Oficiais (APMG) e Graduou-se em Direito (UniCEUB); Especialista em Direito Penal e Criminologia (UniCEUB); e em Metodologia do Ensino Superior (UniCEUB); Mestre (UFPE) e Doutor em Direito (UNZL); Professor, Procurador Federal e Advogado; Autor dos livros "Prescrição Penal", "Execução Criminal: Teoria e Prática" e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (Editora Atlas); e de vários artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIDIO ROSA DE MESQUITA JúNIOR, . Epistemologia Jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 fev 2015, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2035/epistemologia-juridica. Acesso em: 26 dez 2024.
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