1. FINALIDADE
Este é o terceiro artigo tendente a expor o conteúdo da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito, sendo que ela está dividida em oito Unidades de Ensino e que poderão ensejar cerca de 11 artigos.
A abordagem será sobre a axiologia jurídica, especialmente sobre a justiça, a qual será concebida como valor não pertencente ao Direito, mas como um fim, um objetivo do sistema jurídico.
O estudo dos valores é um assunto de certa complexidade para a sua compreensão porque há uma velha discussão na filosofia, tentando responder à pergunta:
- O valor está na coisa e ela o exala ou nós atribuímos à coisa o seu valor?
Saber se o valor é algo concreto ou abstrato, se é apenas produto da nossa imaginação é uma das preocupações que já assolou muitos grandes pensadores, assunto que será abordado neste texto.
2. A FILOSOFIA DO DIREITO COMO CONTEMPLAÇÃO VALORATIVA DO DIREITO
A construção desta seção tomará por base Gustav Radbruch (1878-1949),[1] mas isso não implicará em nos orientarmos unicamente pelo nosso referencial teórico, até porque muito do que se fala na filosofia contemporânea tem sua origem posterior à edição do livro, o que exigirá uma complementação, a partir de outros jusfilosófos.
Inicialmente devemos dizer que adotaremos as duas acepções de Radbruch para exposição do tema, as quais são consideradas essenciais por ele, a saber: dualismo metodológico e relativismo.
2.1 Dualismo metodológico
Esse assunto, relativo ao dualismo metodológico, é iniciado por Radbruch com a seguinte afirmação:
A Filosofia de Kant já nos ensinou que era impossível extrair daquilo que é aquilo que deve ser, o valor, a legitimidade. Jamais alguma coisa será justa só porque é ou foi, ou mesmo só porque será. Daqui se conclui que são de rejeitar o positivismo, o historicismo e o evolucionismo; o primeiro porque infere o dever-ser do ser; o segundo, porque infere o dever-ser daquilo que já foi; e finalmente o terceiro, porque infere o dever-ser daquilo que será ou tende a ser.[2]
O Dualismo metodológico parte do pressuposto de que não podemos aceitar indutivamente os juízos de valor. Estes devem decorrer dedutivamente, estando ao lado dos juízos de existência. Por isso, na maioria das vezes, a pretensão jurídica é fazer derivar a legitimidade da natureza das coisas.
Para Radbruch há um certo condicionamento material da ideia, porque a ideia estará condicionada à matéria e destinada a esta, o que teria encontrado suporte em sociólogos importantes, inclusive, François Gény, podendo surpreender e contemplar a ideia através da matéria. Isso acontece com jurista que pensa decidir segundo a natureza das coisas, mas evidenciará a falta de método para a aquisição do conhecimento. Por isso, “preceitos normativos do dever-ser só de outros preceitos de idêntica natureza poderão dedutivamente extrair-se, sem que jamais possam fundar-se por indução sobre quaisquer ‘seres’ ou juízos de existência”.[3]
O dualismo metodológico leva a um processus causal, em que as valorações sejam produto causal de fatores do ser, especialmente, do meio em que vivemos, mas propõe que a relação, ao contrário de causal, entre o ser e o juízo de valor, seja lógica. “Ninguém afirma que as valorações sejam independentes dos fatos, mas que os fatos não podem servir de fundamentos às valorações”.[4] Nesse contexto, pode-se criar uma objeção e sustentar que a jusfilosofia nada mais seria do que a idealização da realidade.
Embora eu seja contrário aos processos de hipostasiação (vejo muitas pessoas tratando animais domésticos como integrantes das suas famílias), ou seja, como uma realidade absurda que só poderá estar na nossa mente, sustento que o existente é o que guardamos em nossa memória, mediante processo de racionalização. Com isso, entendo que a Filosofia do Direito não pode ser unicamente abstração.
2.2 Relativismo
Radbruch afirma que “preceitos normativos últimos, aqueles de que todos os outros dependem, são indemonstráveis, axiomáticos, não suscetíveis de serem objeto de conhecimento teórico, mas de adesão espontânea”.[5]
Segundo o autor, razões científicas não nos permitirão decidir sobre concepções opostas do mundo e dos valores. Elas poderão nos trazer ilustrações daquilo podemos e do que pretendemos, mas não do que axiologicamente devemos. De qualquer modo, Radbruch nos informa que a ciência do Direito pode nos auxiliar triplamente no domínio do dever-ser, especialmente: (a) ensinar-nos os meios indispensáveis para consecução dos fins que devemos procurar. Não será uma abordagem da Filosofia do Direito, mas uma Política do Direito, a ser estabelecida pela ciência; (b) fornecer elementos para encontrar a raiz ou de determinar ou seu subsolo filosófico; (c) propiciar o desenvolvimento sistemático de todos os pressupostos últimos pensáveis e todos os imagináveis pontos de partidas das valorações jurídicas, possibilitando todos sistemas apreciáveis pela filosofia do Direito.[6]
O relativismo é explicado a partir da posição de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) que dizia ser impossível estabelecermos a verdade plena, uma vez que diversidade dos homens impede a criação de convicções uniformes, sendo que se conseguirmos chegar a saber de que lado estamos, já teremos conseguido muito.
2.3 As grandes correntes da filosofia do direito
2.3.1 Direito natural
Pode-se afirmar que, desde os primórdios, até o início do Século XIX, a Filosofia do Direito foi a doutrina do direito natural (jusnaturalismo). O direito natural da antiguidade girava em torno da antítese natureza-normas, já o da Idade Médio da direito divino-direito humano e o direito moderno, em torno da antítese direito positivo-razão individual.[7]
Esclareço inicialmente ter dificuldades para aceitar a existência física de Sócrates (470/469-399), parecendo-me mais crível a tese daqueles que a negam. Todavia, reconheço ser dominante dizer que o Sócrates histórico existiu e que ele participou de três campanhas militares. O fato é que se existiu não registrou sua história em livros, bem como tem sua notoriedade filosófica questionada, parecendo ser um personagem que Platão utilizava para expor seus pensamentos.[8]
A justiça é objeto de estudo da filosofia, não do Direito. Em Platão (427-347 a.C.), ela não pode ser tratada unicamente sob a perspectiva humana, que é um terreno transitório; é “questão metafísica, e possui raízes no Hades (além-vida), onde a doutrina da paga (pena pelo; recompensa pelo bem) vige como forma de justiça universal”.[9]
Para Platão, a justiça é boa, é sabedoria e é virtude.[10] Assim, o homem justo é bom, sábio e virtuoso. No entanto, Aristótes (384-322 a.C.) dizia que na justiça estão compreendidas todas as virtudes, sendo justo aquele homem respeitador da lei.[11] Com efeito, o filósofo estagirita afirma que o “justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto” e “na justiça se resume toda excelência”.[12]
Aristóteles afirmou que o “justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e iníquo”.[13] Ele dizia existir uma justiça total ou universal em que as pessoas cumpririam a lei (nómos). Tais pessoas seriam justas e atuariam para o bem comum, uma vez que as leis se dirigem ao mesmo fim. Por isso, “o justo total é a observância do que é a regra social de caráter vinculativo”.[14]
Em oposição à justiça total emerge o justo particular, que é uma espécie do gênero justo total e que se refere singularmente no relacionamento direto entre as partes. Com isso, a justiça total envolve o todo, a legislação e toda comunidade por ela protegida, enquanto a justiça particular refere-se à relação entre particulares.
O justo particular pode ser distributivo, que tem referência à relação público-privado e à ação do governante, dirigida aos governados (atribuição de honraria, de cargo, responsabilidades etc.), indicará a justiça ou injustiça do ato. É no “dar a cada um o que é seu” que residirá o ato de justiça particular distributiva, sempre sendo necessária a observação da proporcionalidade e do respeito às igualdades entre os particulares beneficiados ou obrigados, em face dos demais integrantes da coletividade. O princípio da justiça distributiva “é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio-termo, e o justo é o proporcional”.[15] Também, a justiça particular será corretiva, feita segundo dados aritméticos, em que a justiça corretiva será o meio-termo entre perda e ganho. O igual é o meio-termo entre a linha maior e a linha menor de acordo com a proporção aritmética. E, conclui que o “justo, portanto, é em certo sentido um meio-termo entre o ganho e a perda nas ações que não se incluem entre as voluntárias, e consiste em ter um quinhão igual antes e depois da ação”.[16]
Aristóteles ensina, no entanto, que a reciprocidade nem sempre leva a justiça corretiva. Ela pode ser justa, mas não a é de maneira irrestrita. Ele informa que para Radamanto[17] a justiça significa: “se alguém sofrer o mesmo que infligiu, então teremos a justiça feita”.[18] Porém, temos que distinguir os atos voluntários dos involuntários senão geraremos reciprocidade desproporcional.
Quem se incumbirá de aplicar a justiça corretiva será o Juiz. Este será a personificação da justiça, será a justiça viva, em alguns lugares eles serão denominados de “mediadores” e, colocando-se em posições equidistantes, aplicarão o meio-termo e, portanto, o justo.
Para Aristóteles, há maior autenticidade nas relações entre marido e mulher do que nas relações entre pai e filho e entre senhor e escravo, pois a justiça entre marido e mulher é a justiça doméstica, que é diferente da política.[19] Assim, enquanto a justiça doméstica é a que se dá no âmbito da casa (com os filhos, escravos e esposa), a política tem referência às coisas que em todos os lugares tem a mesma força e não dependem de aceitarmos ou não.
A justiça política tem referência à autossuficiência da vida comunitária, vigorando em um espaço de convivência em comum. Difere da justiça legal, pois esta pode determinada indiferentemente de uma maneira ou de outra. Desse modo, justiça política é uma parte natural, imutável por ser assim pela própria natureza, e outra legal, eis que esta é justa por convenção e conveniência, é como se fosse instrumento para medição.[20]
Devemos destacar ainda que a equidade se apresenta em Aristóteles como um meio corretivo da lei. Diante de uma situação fática, o Juiz poderá ponderar adequadamente para produzir uma correta justiça legal.
Epicuro de Samos (341-270 a.C.) propunha o prazer como sendo a expressão de inexistência de perturbações, o que marcaria a justiça, construída com serenidade e sem perturbar as outras pessoas.[21] O epicurismo encontrou muitos aliados na Grécia e em Roma, o mesmo que se deu com o estoicismo, fundado por Zenão de Cítio (335-263 a.C.), que preconizava existir um Direito Natural em total harmonia com a razão que governa o universo, propiciando a criação do Estado único, sem leis, porque elas não mais seriam necessárias.[22]
A aproximação de Roma com a religião, especialmente com o cristianismo foi se intensificando até chegarmos ao ápice da Idade Média, considerado um período de trevas ha história do ocidente e, com isso, o conhecimento ficou reservado à igreja. Daí o destaque de Santo Agostinho (354-430) e Tomás de Aquino (1225-1274).
Santo Agostinho, iniciado em seitas maniqueistas, evidencia que abandou a doutrina do bem e do mal para adotar o cristianismo e chegar a toda origem de retidão e justiça divina.[23] A base da justiça está em atribuir a cada um o que é seu segundo o livre-arbítrio.[24]
Tomás de Aquino buscou conjugar as doutrinas bíblicas com o pensamento aristotélico, desenvolvendo a filosofia tomista, que vinculou a justiça à razão prática. Esta é o instrumento de que se vale o homem para eleger meios para o alcance de fins, estes livremente por si escolhidos. Aqui ganha destaque a sinderese (sinderesis), que é o conjunto de conhecimentos extraídos a partir da experiência habitual, de onde se pode cunhar os principais conceitos acerca do bem e do mal, do justo e do injusto.[25]
As experiências sinderéticas, hauridas pela prática da ação, são capazes de formar um grupo de princípios, de conceitos... que permitem a decisão por hábitos (bons, maus; justos, injustos...). Assim, os hábitos não são inatos, mas conquistados a partir da experiência, base das operações da razão prática. O primeiro princípio da razão prática, dirigida em sua finalidade, será fazer o bem e evitar o mal, o qual governará, como pano de fundo, a teoria tomista da justiça. Assim, a “justiça é uma vontade perene de dar a cada um o que é seu, segundo uma razão geométrica”.[26]
A filosofia Aquinatense informa que o Direito tem a ver com a justiça. Esta, sendo exterior, dada por hábitos, experiências etc. afina-se com o Direito. Este não é a justiça, a maior das virtudes, mas busca a realização dela. E, ao exemplo de Aristóteles, vê diversas justiças: (a) natural, que é eterna e universal; (b) das gentes, decorrentes dos equívocos das percepções humanas, surgem diversas, sendo legais, ou seja, frutos de convenções; (c) legal, que diz respeito ao bem comum; (d) outras...
O direito positivo (ius positum), em Tomás de Aquino, é derivado do justo natural, mas somente o direito natural propicia justiça eterna e universal, mas as decorrentes dos homens podem ser várias, sendo oportuna a lição de Bittar e Assis de Almeida:
As acepções do termo justiça, reconhece Tomás de Aquino, são tão diversas, que é possível dizer que existem várias justiças, como por exemplo, uma justiça militar, uma justiça dos magistrados..., mas isso não por defeito do conceito geral, mas em função da especificidade do que é devido a cada um.
A influência de Aristóteles se faz visível porque Tomás de Aquino percebe a existência de justiças particulares e até domésticas, de ambientes distintos, mas todas vinculadas às leis.
Verifica-se que o direito natural se caracterizou por alguns traços fundamentais, quais sejam:
(1º) Todas essas concepções do Direito natural nos fornecem certos ‘juízos de valor’ jurídico com um determinado conteúdo; (2º) esses ‘juízos de valor’ jurídico têm sempre como fonte, ou a natureza, ou a revelação ou a razão, universais e imutáveis; (3º) tais juízos são acessíveis ao conhecimento; (4º) tais juízos, uma vez fixados, devem preferir às leis positivas que lhes forem contrárias; o direito natural dever prevalecer sempre sobre o direito positivo.[27]
A pretensão do jusnaturalismo é estabelecer preceitos jurídicos universais e imutáveis que não poderão ser refutados empiricamente, como normalmente se crê, só em face da consideração de existirem inúmeras concepções jurídicas que variam em relação aos diferentes povos e às diferentes épocas. Uma verdade una, da só poderia decorrer uma concepção, sendo que as variações jurídicas decorreriam de uma multiplicidade de erros. Ocorre que tal perspectiva encontrou forte óbice na teoria do conhecimento, advinda de Kant.
2.3.2 Positivismo
O nosso referencial teórico é Gustav Radbruch, o qual, abriu as seguintes seções para discorrer sobre o tema das “grandes correntes da filosofia do direito”: 1. Direito natural. 2. A escola histórica. 3. Hegel. 4. A concepção materialista da história. 5. A “teoria geral do direito”. 6. Jhering. 7. Stammler. 8. O relativismo. 9. A filosofia da cultura. 10. Outras correntes.
Já discorremos rapidamente sobre o Direito Natural. No entanto, optamos por tratar dos temas das demais seções mencionadas no parágrafo anterior nesta que aqui se inicia, até porque o sentido mais adequado de positivismo é aquele que expressa a ideia de conhecimento advindo do homem e por meio da razão.
Lamentavelmente, as pessoas confundem as raízes do conhecimento positivo, que decorrem do racionalismo e nos chegam pincipalmente por meio da teoria do conhecimento kantiano, com o conhecimento apodíctico (aquele que é demonstrável, sendo evidente e não admitindo contradição), especialmente com o desenvolvido por Comte. De qualquer modo, iniciaremos nossa explicação a partir do nosso referencial teórico para depois emendá-lo com algumas contribuições pessoais.
Foi por meio do criticismo kantiano que se pode perceber que conhecimentos teoréticos prontos, construídos, dados por normas de moral ou estética suscetíveis de aplicação imediata não existem. O nosso conhecimento a priori é apenas uma força capaz de propiciar os conhecimentos e normas aplicáveis.
Os dados da natureza não nos apresentam respostas, mas perguntas pontos de vista pelos quais avançamos para os dados empíricos. São “formas” e “categorias” que dependeram de determinada “matéria” como conteúdo dentro de si que poderão ser aplicados a certos dados empíricos e que nos permitirão, a partir disso formular juízos ou apreciações de conteúdo positivo e preciso.
Os conhecimentos, juízos ou valorações não poderão decorrer da “razão pura”, pois decorrerão da aplicação desta, da experiência, que permitirá atribuir determinada “validade”, não geral e universal, mas limitada aos dados que servirão de base ao conhecimento.
Um direito justo universal é complicado, sendo que há, dentro do próprio jusnaturalismo, a defesa de um direito natural de conteúdo variável, atribuído a Rudolf Stammler (1856-1938). Porém, nesse embate entre jusnaturalismo e positivismo, pode-se assegurar que qualquer validade do positivismo jurídico estará fundamentada na incognoscibilidade do Direito justo.
Deixamos desde já a nossa objeção à posição de Radbruch, construída no sentido que o Direito positivo será sempre absorvido pelo Direito natural, a realidade pelo valor e a ciência jurídica pela filosofia jurídica,[28] isso porque entendemos que são setores do conhecimento distintos a que construção teórica não pode ser tão simplista.
Radbruch parte do historicismo para tratar do positivismo, posição que me parece merecer algumas contraposições, mas que foi assim exposta:
Em frente da doutrina jusnaturalista ergue-se a da Escola Histórica como seu polo oposto. Esta significa, ao contrário da primeira, a absorção do direito justo pelo direito positivo, dos valores jurídicos pelas realidades jurídicas, da filosofia do direito pela ciência do Direito. Pelo menos, é esta a primeira impressão que nos deixa o programa da Escola histórica, como se ela rejeitasse com o Direito natural toda e qualquer valoração jurídica, toda e qualquer filosofia do direito, e como se representasse uma autolimitação positivista da ciência, cingindo-se à investigação empírica das realidades históricas.[29]
Esse historicismo é duramente criticado por Radbruch porque induz à negação da evolução e das transformações históricas. Ele cita basicamente Friedrich Carl Von Savigny (1779-1861), até porque ele foi um dos mais respeitados e influentes juristas alemães do Século XIX e o maior nome da Escola Histórica do Direito, para a qual os fatos históricos devem ser observados muito posteriormente à sua produção para se transformarem em fontes das normas, em fonte de um dever ser, obrigando os homens a se considerarem historicamente vinculados ao passado, equivalendo a parar os movimentos da própria história. Com isso, há de se concordar com Radbruch, no sentido de que o “erro do historicismo consiste em transmudar num critério normativo de ação política o que é apenas uma ‘categoria’ do conhecimento histórico”.[30]
Considero equivocada a posição de Radbruch ao inverter a história e ao colocar Immanuel Kant (1724-1804) dentre “outras correntes”, pois a sua teoria do conhecimento precede as de outros autores citados por Radbruch e, também, merece maior prestígio, fazendo com que muitos sucessores sejam considerados neokantianos.
O grande problema que se pode extrair da teoria kantiana é que a razão pura, conforme ele próprio declara, é transcendental.[31] Aliás, Hans Kelsen (1881-1973) afirmou ser a posição de Kant jusnaturalista.[32]
Radbruch aliou a posição de Kant à de um dos criadores do idealismo alemão, Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), que, a partir da filosofia kantiana, fez uma ponte entre aquele e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Hegel tem em comum com o historicismo a oposição ao Direito Natural. O grande lema de Hegel e de toda filosofia da identidade é: “tudo que é racional é real e tudo que é real é racional”. Daí a sua divergência com o historicismo, eis que para este há equivalência entre realidade e valor, entre ser e dever-ser, consolidando-se na crença de que a história se encontra penetrada por um “insondável desígnio da providência divina”. Diversamente, para o hegelianismo a equivalência tem outro fundamento, e este se situa na reconstrução dialética do próprio devir da razão que se desenvolve no próprio processus da história – aquilo que é real é racional.[33]
Quanto à justiça, tanto Kant quanto Hegel, defendiam a lei de talião, que é anterior a escrita e foi aplicada pelo Juiz mitológico Radamento (mencionado por Aristóteles), levando à regra do “olho por olho, dente por dente, braços por braços, pernas por pernas etc.”.
Não podemos negar aqui a importância da Teoria Pura do Direito, do austríaco Hans Kelsen (1881-1973), mencionado por Hadbruch como continuador de Feuerbach, para afastar o Direito de todo aspecto axiológico. Desse modo, a ciência do Direito é diferente da Filosofia dos valores jurídicos.[34]
A legitimidade das normas é preocupação da Política, da Sociologia e outros setores do conhecimento, anteriores ao Direito, interessando ao jurista a legalidade, desde a produção das normas. No entanto, Hans Kelsen não reduziu as normas jurídicas às leis escritas, admitindo com válido o common law (uma espécie de direito consuetudinário firmado pelos juízes).
2.3.3 Funcionalismo
Movimentos sociológicos atingiram a Europa e os Estados Unidos da América. Radbruch não ficou isento a esses pensamentos, citando Kar Heinrich Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), para desenvolver a análise de uma corrente que denominou “concepção materialista da história”, para a qual a Filosofia do Direito seria uma parte da Filosofia Social.
Grandes pensadores da Sociologia, embora alguns sequer tivessem sido graduados em Sociologia, a partir dos franceses Vilfredo Pareto (1848-1923), Emile Durkheim (1858-1917) e François Gény (1861-1959), do Alemão Karl Emil Maximilian Weber (1864-1920) e dos estadunidenses Talcott Parsons (1902-1979) e Robert King Merton (1910-2003), é que chegamos a muito do que conhecemos dos funcionalismos da atualidade.
Os alemães Niklas Luhmann (1927-1998) e Jürgen Habermas (nascido em 18.6.1929) foram influenciados pelo, também, sociólogo alemão, Theodor Adorno (1903-1969), sendo que ambos foram alunos de Parsons e adotaram o pensamento sistêmico deste. No entanto, enquanto, sem abandonarem as bases da teoria de sistemas de Parsons, Habermas caminhou para a ação comunicativa, Luhmann migrou para a tese biológica da autopoieses, dos chilenos Humberto Maturana (nascido em 14.9.1928) e Franscico Varela (1946-2001).
Tanto Habermas como Luhmann afirmam que Direito é comunicação e ela só é possível na sociedade complexa. No entanto, enquanto para o primeiro há transmissão de valores na comunicação, o segundo adotou a ideia de que os (sub)sistemas sociais são estruturalmente fechados e cognitivamente abertos, ocorrendo a auto(re)produção do Direito como na biologia.
Tratar dos pensamentos sistêmicos de Luhmann e Habermas exigiria aqui uma exposição muito longa e até cansativa, a partir da complexidade do pensamento de ambos, que têm suas origens na Sociologia. De qualquer modo, enquanto Habermas se aproxima da “concepção materialista da história”, uma vez que integra a Escola de Frankfurt (que é marxista), Luhmann transfere a legitimidade, semelhantemente a Kelsen, para antes do Direito e o que é interessante é que a norma se auto(re)produza por um procedimento autopoiético, ficando as abstrações valorativas fora das suas discussões.
3. CONCLUSÃO
Todo Direito Natural, que ocupou a maior parte da nossa história jurídica registrada pela escrita, tende a admitir a existência de leis justas, universais e eternas (divinas), enquanto que as construções positivistas tendem a pretender afastar o Direito da justiça.
Acerca da abstração dos mundos dos valores, é melhor o acadêmico buscar uma leitura complementar, como por exemplo, a posição de Miguel Reale,[35] visto que o nosso objetivo era informar que a axiologia jurídica, antes de pertencer ao mundo do Direito, ocupa o da Filosofia do Direito.
Diante de tantas justiças particulares, podemos concluir conforme Kelsen apud Mário G. Losano:
Abri este ensaio com a pergunta ‘o que a justiça?’. Agora, chegando ao fim, percebo nitidamente que não respondi. Minha única desculpa é que, nesse aspecto, estou em ótima companhia: teria sido muita pretensão levar o leitor a crer que eu poderia ter êxito onde falharam os pensadores mais ilustres. Por conseguinte, não sei, nem posso dizer o que é justiça, a justiça absoluta que a humanidade está buscando. Devo contentar-me com uma justiça relativa e só posso dizer que é a justiça para mim. Uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante da minha vida, a justiça, para mim, é a ordenação social sob cuja proteção pode prosperar a busca da verdade. A ‘minha’ justiça, portanto, é a justiça da liberdade, a justiça da democracia: em suma, a justiça da tolerância.[36]
Observe-se que esse pronunciamento foi feito pelo “velho Kelsen”, em 17.5.1952, depois que ele publicou sua obra Teoria Pura do Direito com o apêndice, no Brasil publicado como um novo livro intitulado “O Problema da Justiça”. Evoluiu para outro livro intitulado “O que é a Justiça?”, além de diversos artigos sobre a justiça e, finalmente, após a sua morte foi publicado o seu livro “A Ilusão da Justiça”. Com isso, ante os problemas pessoais que enfrentou e pelo quanto se dedicou ao assunto, estava legitimado para descrer na justiça.
O problema dos valores é complicado, sendo que a ideia de proporcionalidade, advinda de Aristóteles é um bom meio para buscarmos “dar a cada o que é seu”, mas uma sentença tenderá a ser, ao mesmo tempo, justa (ao vencedor) e injusta (ao sucumbente). Assim, onde muitos grandes pensadores falharam, caso dirijam-se às abstrações valorativas, os Juízes (a maioria sem formação filosófica) errarão mais profundamente.
[1] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 47-83.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem. p. 49.
[4] Ibidem p. 51.
[5] Ibidem. p. 52.
[6] Ibidem. p. 52-58.
[7] Ibidem. p. 61-62.
[8] MACEDO Jr., Ronaldo Porto (Coord.). Curso de filosofia política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008. p. 91-99.
[9] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 80.
[10] PLATÃO. A república. São Paulo: Hemus, 1970. p. 31-32.
[11] NADER, Paulo. Filosofia do direito. ed. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 110.
[12] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural [Os pensadores], 1996. p. 194-195.
[13] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural [Os pensadores], 1996. Livro V, Cap. 1, p. 194.
[14] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso Op. cit. p. 91.
[15] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural [Os pensadores], 1996. Livro V, Cap. 3, p. 199.
[16] Ibidem. Livro V, Cap. 4, p. 201.
[17] Na mitologia grega, um dos juízes dos mortos.
[18] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural [Os pensadores], 1996. Livro V, Cap. 5, p. 201.
[19] Ibidem. Cap. 6, p. 206.
[20] Ibidem. Cap.7, p. 206.
[21] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 127.
[22] NADER, Paulo. Filosofia do direito. ed. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 112-113.
[23] SANTO AGOSTINHO. Confissões. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
[24] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso... p. 180-189.
[25] Ibidem. p. 192-194.
[26] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 196.
[27] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 62.
[28] Ibidem. p. 64.
[29] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 64.
[30] Ibidem. p. 69.
[31] KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1993. p. 596.
[32] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 636.
[33] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 68.
[34] Ibidem. p. 82.
[35] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 175-216.
[36] LOSANO, Mario G. Apresentação. In KELSEN, Hans. O problema da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XXXI.
Procurador Federal; Concluiu o Curso de Formação de Oficiais (APMG) e Graduou-se em Direito (UniCEUB); Especialista em Direito Penal e Criminologia (UniCEUB); e em Metodologia do Ensino Superior (UniCEUB); Mestre (UFPE) e Doutor em Direito (UNZL); Professor, Procurador Federal e Advogado; Autor dos livros "Prescrição Penal", "Execução Criminal: Teoria e Prática" e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (Editora Atlas); e de vários artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIDIO ROSA DE MESQUITA JúNIOR, . Axiologia Jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2066/axiologia-juridica. Acesso em: 26 dez 2024.
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