Não há mais discutir “se” vivemos numa ditadura, apenas resta perquirir “qual” espécie de ditadura é aquela em que vivemos.
Em sua obra “Estado de Exceção”, Giorgio Agamben apresenta a doutrina de Carl Schmitt, com foco em seus trabalhos sobre a “ditadura” e a “teologia política”. Embora o primeiro foque muito na superposição dos poderes do Executivo sobre o Legislativo, o que realmente era a característica clássica dos Estados Ditatoriais, sua exposição pode nos ajudar bastante na elucidação do tema que propomos, qual seja, descobrir em que espécie de ditadura vivemos.
O enfoque de Agamben na ditadura de prevalência do Executivo já nos dá uma primeira pista ao fazermos uma comparação com a realidade brasileira. Percebe-se claramente que não estamos diante de uma ditadura clássica, com preponderância do Executivo, mas de uma ditadura do Judiciário, que molda, remolda, desconsidera, considera, escreve e reescreve leis e Constituição a seu bel – prazer. Não são decretos – lei, estados de sítio, estados de defesa, medidas provisórias etc. os instrumentos que causam a derrocada da Democracia. Aqui vivemos o império voluntarista de uma casta não eleita que atua com sustento em teorias que lhe permitem agir e omitir como bem quiser.
Mas essa ditadura judicial poderia ser classificada nas categorias apresentadas por Carl Schmitt da “ditadura comissária” ou da “ditadura soberana”?
Na “ditadura comissária” o desiderato é “defender ou restaurar a constituição vigente”. Já na “ditadura soberana” temos uma figura típica de exceção que “alcança sua massa crítica ou seu ponto de fusão”. A “ditadura soberana” “não se limita a suspender uma constituição vigente ‘com base num direito nela contemplado e, por isso, ele mesmo constitucional’”. A ‘ditadura soberana” visa criar um ambiente ou um “estado de coisas em que se torne possível impor uma nova constituição”.
Para o observador arguto é visível que a “ditadura judiciária” que vivemos é travestida naquilo que se chamaria de uma “ditadura comissária” na acepção schmittiana, mas, na verdade, se reveste da característica de uma típica “ditadura soberana”.
Sob o pretexto e com referências vagas como “a defesa da democracia”, “o combate a atos antidemocráticos”, “o cumprimento de preceitos constitucionais fundamentais”, “a defesa da dignidade humana”, “a preservação dos ‘limites’ (sic) da livre expressão”, “a máxima eficácia dos direitos constitucionais” entre outras expressões equívocas e sujeitas a um enorme elastério, o Judiciário, em especial as Cortes Superiores, autolegitimam uma ingerência eviscerante no sentido mais óbvio das leis e até da Constituição. Há uma nítida mutação da função de “guardião da Constituição e da legalidade” para o exercício de uma espécie de direito de propriedade arbitrário sob os preceitos legais e constitucionais, como se fossem de uso, gozo e disposição oportunista e conveniente do Poder Judiciário que cobre com sua sombra opressiva o Executivo, o Legislativo e, especialmente, o povo do qual supostamente todo poder deveria emanar.
É possível concluir que vivemos uma situação “sui generis”, já que tanto Agambem como Carl Schmitt pressupõem a figura de “um” ditador executivo e não de um Poder que atua como instituição de forma estrutural, diluindo responsabilidades e disfarçando arbítrio em consenso jurídico sobre o sentido e conteúdo das normas legais e constitucionais.
Vivemos, portanto, sob uma “ditadura judiciária soberana” que merece maiores estudos e cujo combate é muito mais difícil dada sua sutileza, ardil e insidiosidade, sempre apta a inverter a realidade, acusando de antidemocráticos, amantes da ditadura, do arbítrio e do autoritarismo todos aqueles que apenas e tão somente pretendem o cumprimento das leis, da Constituição e, em última análise, a preservação de uma democracia conquistada a duras penas.
REFERÊNCIAS
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porot. Constituição, Soberania e Ditadura em Carl Schmitt. Disponível em https://www.scielo.br/j/ln/a/Jhcwj5QQxR7HtYtVK5c7yBv/?lang=pt , acesso em 28.08.2023.
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