Resumo: Este artigo analisa a natureza das condições da ação, que oscila entre os pressupostos processuais e o mérito, examinando o momento adequado para sua aferição, com base na doutrina nacional e estrangeira. Esta análise tem o potencial de auxiliar na gestão processual, contornando a crise de litigiosidade que aflige o sistema judicial brasileiro, e contribuir para um padrão positivo e efetivo de litigiosidade. O trabalho foi desenvolvido segundo as diretrizes do método hipotético-dedutivo e da abordagem explicativa, com elaboração de um problema a ser enfrentado e a busca de uma solução factível.
Palavras-chave: condições da ação; crise de litigiosidade; reformas processuais; litigiosidade natural e positiva.
Abstract: This article analyzes the nature of the conditions of the action, which oscillates between procedural assumptions and merit, examining the appropriate moment for its assessment, based on national and foreign doctrine. This analysis has the potential to assist in procedural management, circumventing the litigation crisis that afflicts the Brazilian judicial system, and contribute to a positive and effective standard of litigation. The work was developed according to the guidelines of the hypothetical-deductive method and the explanatory approach, with the elaboration of a problem to be faced and the search for a feasible solution.
Keywords: conditions of the action; litigation crisis; procedural reforms; natural and positive litigation.
Sumário: 1. Introdução; 2. Superação da Teoria Eclética; 3. Tratamento Constitucional e Legal; 4. Crise de Litigiosidade e Gestão Processual; 5. Enfoque Sociológico da Crise de Litigiosidade; 6. Análise Comparativa da Judicialização; 7. Reformas Processuais; 8. Conclusão. Referências.
1 - Introdução
A expressão constante do título remete a uma escolha difícil. De fato, a análise das condições da ação coloca o juiz diante de uma encruzilhada, que em regra é contornada por meio de um despacho saneador que posterga o exame das preliminares para a sentença, sob o pretexto de se confundirem com a postulação meritória posta em juízo.
A adoção implícita desse procedimento pelo juiz revela uma preferência pela concentração da atividade intelectual e cognitiva, facilitando a fluidez do raciocínio jurídico, seguindo-se a valoração das provas e o enfrentamento das questões controvertidas. No entanto, também resulta na demora no encerramento do feito, que já poderia ter sido extinto por carência da ação.
De fato, a análise das preliminares, tanto dilatórias quanto peremptórias, antecede logicamente o exame do mérito, seja na fase saneadora ou decisória. Mas nem sempre é fácil separar as condições da ação dos pressupostos processuais e do mérito. De um lado, a contestação pode arguir falsas alegações de ilegitimidade passiva ad causam e de falta de interesse processual do autor, lançando mão de argumentos nitidamente meritórios. De outro, despachos saneadores postergam o exame das preliminares para a fase sentencial sob o argumento irrefletido de que se confundem com o mérito.
Essa confusão pode ser remediada com a superação da teoria eclética, adotando-se um rito flexível. Afinal, o problema nem sempre está no procedimento, podendo haver desconexão entre as formas processuais e os casos concretos submetidos ao escrutínio judicial.
De fato, pressupõe-se que o juiz que posterga o exame das condições da ação para a sentença, após o esgotamento dos meios de prova, vislumbra a viabilidade de se chegar ao mérito da causa, sob pena de despender força e recursos em atividade inócua. Esse procedimento tem efeitos práticos evidentes, pois como mérito as condições da ação se submetem aos efeitos da coisa julgada formal e material. Esse rito coloca o juiz diante de um dilema, cabendo-lhe escolher se analisa detidamente as condições da ação no início do processo a fim de encerrar prematuramente causas temerárias, com a possibilidade de repropositura posterior, ou se posterga esse exame para a sentença, sob os efeitos da coisa julgada.
2 - Superação da Teoria Eclética
A jurisprudência firmou a compreensão de que há uma nítida diferença de tratamento das condições da ação com o avanço da cognição. O STJ entende que se o exame destas condições for exauriente, após a avaliação das provas, elas perderão a natureza de preliminares, transmudando-se em mérito e formando coisa julgada. Essa postura visa evitar a repetição de ações temerárias. De fato, segundo o Resp. n° 930.336/MG julgado em 2014, se o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações do autor, após contraditório e esgotamento dos meios probatórios, será proferido juízo de mérito. Essa tendência jurisprudencial e doutrinária indica uma superação da teoria eclética, não em sua integralidade, mas de forma a compor uma fórmula mais consentânea com o atual quadro processual, juntamente com contributos da teoria da asserção.
Historicamente, o estudo moderno das ações judiciais iniciou com os imanentistas. Essa perspectiva do direito de ação esbarrou na sentença de improcedência e na sentença de procedência nas ações declaratórias negativas. Essa visão civilista não se encaixava no interesse do autor que busca negar a existência do crédito tão alardeado pelo pretenso credor. Seguiu-se então o debate de Bernhard Windscheid e Theodor Muther, que eram romanistas, e discutiram as ações do direito romano em suas diversas fases, havendo pontos de consenso entre ambos.
A moderna ciência processual ainda teve contributos de Friedrich Carl Von Savigny, Adolf Wach, Chiovenda, John Degenkolb e o húngaro Sándor Plosz. Este último foi pioneiro na formulação da ação como direito autônomo e abstrato em 1876, iniciando uma revolução neste ramo do direito. Ele foi catedrático da Universidade de Budapeste e redigiu o Código de Processo Civil da Hungria entre 1881 e 1885.
Em solo pátrio, prevaleceu a teoria eclética de Enrico Tullio Liebman, que lecionou na USP por cinco anos. Ele entendia a ação como um direito abstrato, mas condicionado a certas condições. Essa teoria não estava imune a críticas, conforme resume Wambier e Talamini: “como teoria eclética, afirma-se que ela pretendeu conciliar o inconciliável, e que as condições da ação seriam todas perfeitamente enquadráveis entre as questões de mérito, não sendo cabível o tratamento diferenciado”.
O próprio Liebman retirou a possibilidade jurídica do pedido das condições da ação na década de 1970, restando apenas o interesse de agir e a legitimidade para a causa. Mas o CPC de 1973 manteve esse requisito dentre as condições da ação. O CPC de 2015 finalmente o excluiu, deslocando suas análise para o mérito.
A jurisprudência também busca contribuições da teoria da asserção, também chamada de “Teoria della prospettazione”. Como exemplo de sua aplicação, o STJ entendeu ser abstratamente compatível com o ordenamento pátrio o pedido de reconhecimento post mortem de parentesco socioafetivo entre irmãos.
Na doutrina nacional, José Ignácio de Botelho Mesquita entendia o direito de ação a partir de uma concepção concreta. Segundo ele, trata-se de um direito subjetivo público, dirigido contra o Estado, a quem incumbe o dever de, pela atividade de seus órgãos jurisdicionais, tornar efetiva a ordem prevista na lei. (Da Ação Civil, editora Passim, 1973, p. 117). Modernamente, Kazuo Watanabe diz que o acesso à justiça é o acesso à ordem jurídica justa, no que Marinoni complementa como o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, e não apenas como um direito à um julgamento justo.
Wambier e Talamini definem a prestação jurisdicional como o direito de receber uma proteção rápida e eficiente, que mais se aproxime daquilo que o autor receberia, caso não tivesse sido necessário recorrer ao judiciário. (Curso Avançado de Processo Civil, vol. I, 21ª edição, RT, 2022). Trata-se de uma definição mais realista que a tradicional acepção de Chiovenda.
Marinoni, Arenhart e Mitidiero advertem que nem sempre o litígio advém de uma pretensão resistida ou de uma violação ao direito. Pode ocasionalmente advir de um conflito entre diferentes visões, buscando prevalecer o melhor direito. Neste caso, o conflito se resumiria assim a um “desacordo interpretativo” a respeito do significado dos fatos e do direito envolvidos em determinado caso concreto. (Curso de Processo Civil, 4° edição, vol. I, 2024.)
A busca pela efetividade da tutela no direito de ação obriga o legislador a desenhar procedimentos e técnicas processuais adequadas às diferentes situações de direito substancial e obriga o juiz a adotar o meio executivo apto a tutelar o direito. De fato, nem a teoria da asserção nem a teoria eclética são capazes de albergar a integralidade dos casos. É preciso moldar uma teoria que reúna aspectos de ambas para otimizar a prestação jurisdicional no atual quadro de crise de litigiosidade.
3 - Tratamento Constitucional e Legal
A CF/88 garante o direito de ação no inciso XXXV do art. 5ª. No entanto, apesar de o texto constitucional afirmar que “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”, o CPC de 2015 condiciona a postulação em juízo à demonstração de interesse e legitimidade. Disso resulta um exame escalonado da causa, iniciando pelos pressupostos processuais, seguindo pelas condições da ação e finalizando com a análise do mérito, conforme decorre da disciplina legal.
De fato, a petição inicial deve identificar o autor e o réu, além de descrever os fatos e fundamentos jurídicos do pedido, segundo o art. 319, II e III, do CPC. É a partir dessa descrição que se examina o interesse de agir do autor e a legitimidade das partes. A partir daí, a carência da ação pode ser reconhecida em quatro momentos distintos: no indeferimento da petição inicial (art. 330, II e II, do CPC); na decisão de saneamento que resolve questões processuais pendentes (art. 357, I, do CPC); na sentença (art. 485, VI, do CPC); e no julgamento da apelação (art. 938 do CPC).
No primeiro caso, haverá uma análise superficial das condições da ação. Essa análise não é puramente abstrata, uma vez que a petição inicial já deve trazer as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos. Dessa decisão cabe apelação a ser interposta pelo autor em cinco dias, com base no art. 331 do CPC. No segundo caso, o exame das condições da ação será mais qualificado, pois já ofertada a contestação pelo réu, que pode reforçar a carência da ação com fundamento no art. 337, XI, do CPC. Dessa decisão também cabe apelação pelo autor, com base no art. 354 do CPC, desta feita em 15 dias. No terceiro caso, haverá uma cognição exauriente das condições da ação, que se dará após o pleno exercício do contraditório e o esgotamento dos meios de prova. O art. 485, §3º, do CPC determina que essa cognição pode ser feita de ofício e não preclui, podendo a carência da ação ser reconhecida enquanto não houver trânsito em julgado. Por sua vez, o art. 486, §1º, do CPC dispõe que, no caso de reconhecimento de carência da ação, a repropositura da demanda depende da correção do vício. Por fim, no quarto caso, o art. 1.013, §3º, I, do CPC autoriza o tribunal a julgar desde logo o mérito da causa, quando reforma sentença de carência da ação.
No aspecto prático, uma hipótese corriqueira de falta de interesse processual que acarreta carência da ação ocorre com a inadequação da via eleita pelo autor. Em alguns casos, esse aspecto pode se confundir com o próprio objeto da causa, caracterizando uma típica questão de mérito. Como exemplo, no caso de Mandado de Segurança, o art. 6º, §5º, da 12.016/2009 dispõe que será ele denegado no caso do art. 267 do CPC/1973, atual 485 do CPC/2015, que no inciso V se refere à ausência das condições da ação. No entanto, o critério diferenciador do interesse de agir e do mérito do writ pode habitar uma zona cinzenta. No caso de o direito invocado não ser líquido e certo, segundo o disposto no art. 1º da lei referida, haverá inadequação da via eleita. Essa constatação, porém, também caracteriza exame do mérito, já que diz respeito aos fundamentos jurídicos que amparam a subsunção ao caso do autor.
Diante desse dilema, o direito de ação é visto atualmente como um direito abrangente, que comporta tanto a prevenção quanto a efetivação final do provimento. O art. 5ª, XXXV, da CF fala em ameaça ao direito, albergando um direito de ação preventivo. Logo, mesmo que não haja efetiva lesão ao direito, terá o autor interesse de agir para cessar a ameaça. A doutrina atual entende que o direito de ação só se esgota com a efetiva tutela do direito, o que incluiria a execução ou medida equivalente. De fato, o art. 497 do CPC prevê o deferimento da tutela específica nas obrigações de fazer e não fazer, podendo ser substituída por resultado prático equivalente, transmudando-se em perdas e danos apenas na sua impossibilidade, segundo o art. 499 do CPC, e esgota-se na satisfação do crédito, seja pela entrega do dinheiro ou pela adjudicação de bens, conforme o art. 904, I e II, do CPC. Mas em que medida essa perspectiva afeta as condições da ação? Como aduzem José Maria Rosa Tesheiner e Rennan Faria Krüger Thamay, discorrendo sobre o acesso à justiça, “a parte, talvez maliciosamente inserida no processo como réu, por simples vontade do autor, pode só por isso vir a sofrer prejuízos consideráveis, tanto de ordem moral quanto econômica.” (Teoria Geral do Processo, editora Saraiva, 7ª edição, 2022).
Após o acionamento da jurisdição, segundo o princípio da demanda, vencendo a inércia do órgão jurisdicional, vige o impulso oficial no andamento do feito. O formalismo neste caso é contornado pelo princípio da primazia do julgamento de mérito, previsto nos arts. 488 e 282, §2º, do CPC. Essa regra comporta algumas exceções, como o processo de restauração de autos e de herança jacente, que se iniciam de ofício. Neste último caso, o art. 740, caput, e §1º, do CPC preveem a atuação de sete personagens no arrolamento e arrecadação dos bens jacentes: o oficial de justiça, acompanhado do chefe de secretaria e do curador; o juiz, que se não puder comparecer ao local, poderá ser substituído pelo delegado de polícia, acompanhado de duas testemunhas. O processo de inventário também era uma exceção ao princípio da inércia no CPC de 1973, mas foi incluído nessa regra pelo CPC de 2015.
Como afirmado, a análise das condições da ação não precluem, podendo ser examinadas na fase recursal. Essa análise é mitigada na impugnação ao cumprimento de sentença, por conta dos efeitos da coisa julgada, mas não é totalmente vedada, conforme se depreende do art. 525, §1º, II e III, do CPC. Mais difícil é vislumbrar sua análise pelo juízo rescindente, podendo em raras circunstâncias ocorrer o exame das condições da ação em ação rescisória calcada em violação manifesta de norma jurídica (art. 966, V, do CPC).
Dentre as preliminares processuais, o art. 337, X, do CPC prevê a convenção de arbitragem. O processo arbitral decorre de contrato com cláusula arbitral. Ele inicia com a aceitação do árbitro pelas partes, segundo o art. 19 da LA. A partir daí, as partes têm o prazo de 30 dias para apresentar a demanda e os documentos comprobatórios, devendo também se manifestarem sobre as questões preliminares, sob pena de preclusão, por força do art. 20 da LA. Estas questões podem dizer respeito à competência, suspeição ou impedimento do árbitro, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem. Dentre essas preliminares, o STJ alberga a chamada porta giratória, quando um mesmo profissional atua como árbitro, advogado e testemunha perita, havendo conflito de interesses. Esse entendimento é criticado em decorrência da escassez de profissionais em áreas especializadas da arbitragem.
No Brasil, a arbitragem é comum no direito da construção, direito do agronegócio, direito da energia elétrica, entre fornecedores de ramos industriais, importadores e exportadores. Também existe uma incipiente arbitragem de investimentos, que ocorre entre investidores e Estados anfitriões, decorrente da dificuldade de buscar reparação de danos no direito interno. A lei 13.129/2015 autorizou o uso da arbitragem pelo poder público. No processo arbitral, o árbitro deve buscar a verdade material, podendo decidir por equidade. Apesar disso, o art. 22°, §2º, da LA autoriza o árbitro a considerar na decisão o comportamento do revel. Também é possível um acordo na arbitragem, que tem se tornado uma tendência mundial, com a audiência Kaplan e a janela de mediação. O art. 31 da LA dispõe que a sentença arbitral faz coisa julgada no âmbito judicial. Logo, não cabe sua desconstituição com base no direito de ação, salvo casos raros de nulidade flagrante. O acordo entre as partes homologado pelo árbitro também tem força de coisa julgada. De fato, segundo a classificação do CPC, a arbitragem não se caracteriza como método de solução consensual dos conflitos, mas em método heterocompositivo extrajudicial.
O art. 485, §5ª, do CPC dispõe que, com exceção da convenção de arbitragem e da incompetência relativa, as demais hipóteses podem ser conhecidas de ofício, o que inclui as condições da ação, e não precluem, podendo ser reconhecidas em grau de recurso, com base no efeito translativo. Assim, a convenção de arbitragem resulta em extinção do processo sem julgamento do mérito, desde que alegada pelo réu. Mas tanto a sentença arbitral quanto o acordo homologado pelo árbitro devem ser conhecidos de ofício, por caracterizarem a preliminar de coisa julgada.
O art. 352 do CPC dispõe que os vícios sanáveis devem ser corrigidos em 30 dias, inclusive as condições da ação. Já o art. 357, I, do CPC indica que a primeira providência de saneamento é resolver as questões processuais pendentes. E o art. 357, §2º, do CPC autoriza as partes a apresentarem um acordo delimitando as questões de fato em que recairá a atividade probatória e as questões de direito da causa. Após a concordância judicial, esse acordo vincula a todos, inclusive o juiz. Esse dispositivo limita o alcance do art. 489, §1º, do CPC, que regula a fundamentação das decisões judiciais, em especial seu inciso IV. O inciso II deste dispositivo se reporta a conceitos jurídicos indeterminados. Dentre esses conceitos, destaca-se o interesse público, que está relacionado à legitimidade e interesse de agir do Ministério Público e da Defensoria Pública. O dispositivo determina a demonstração concreta de incidência no caso do interesse público primário, sob pena de carência da ação. Porém, se analisado na sentença com cognição exauriente, após contraditório e esgotamento das provas, irá caracterizar exame de mérito, formando coisa julgada.
O art. 1.009, §1º, do CPC dispõe que as questões resolvidas que não comportarem agravo de instrumento devem constar como preliminares da apelação ou nas contrarrazões. Já o art. 1.012, §1º, V, do CPC dispõe que a concessão de tutela provisória tem efeito imediato, não se aplicando o efeito suspensivo da apelação. O §4° excepciona essa regra no caso de restar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso ou se houver risco de dano grave.
Além das preliminares processuais e das condições da ação, é possível que também haja questões prejudiciais. Uma característica das questões prejudiciais é sua relação com o direito material, podendo ser decididas tanto no juízo cível quanto criminal. Elas podem se referir à existência da relação jurídica, prescrição, decadência ou à nulidade de ato jurídico, como uma assinatura falsa no contrato. O acolhimento ou rejeição da questão prejudicial poderá formar coisa julgada material, caso se encaixe nas hipóteses do art. 503, §1º, do CPC. O inciso II deste dispositivo exige o contraditório prévio e efetivo, não se aplicando a coisa julgada no caso de revelia. Percebe-se uma diferença com a questão principal, que faz coisa julgada material mesmo no caso de revelia. E o §2º do mesmo artigo também exige uma cognição exauriente, não se aplicando a coisa julgada em caso de cognição sumária. Assim, em caso de Mandado de Segurança, que exige prova pré-constituída e não admite dilação probatória, as questões prejudiciais não formam coisa julgada.
Após análise do direito positivo acerca das condições da ação, vamos incursionar na crise de litigiosidade que aflige o atual quadro judicial brasileiro.
4 - Crise de Litigiosidade e Gestão Processual
A CF/88 determina no inciso LXXVIII do art. 5° que o processo deve ter uma duração razoável, com meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Trata-se de uma tendência mundial. Afora as convenções internacionais, a celeridade processual já constava no art. 111 da Constituição da Itália. Diversas reformas buscaram reduzir os chamados tempos mortos, que são os períodos em que nada acontece no processo. Mas a celeridade nem sempre implica qualidade na prestação jurisdicional. Por vezes, as fórmulas positivadas não se encaixam nos fatos do mundo, necessitando do supedâneo da jurisprudência para conformá-las. Como exemplo, o référé francês, de larga aplicação desde o século XVII, não conveio à práxis brasileira, havendo parca adesão à estabilização da tutela antecipada pelos tribunais pátrios.
A despeito dessa previsão constitucional, ainda há grande demora nos processos judiciais. A quantidade de processos pendentes é chamada pela doutrina de massa de lides. Ela pode ser real ou latente. De fato, comarcas com poucos feitos estão geralmente relacionadas à ausência de Defensoria Pública e Ministério Público plenamente instalados, havendo uma enorme quantidade de litígios represados na sociedade que aguardam composição. São a massa de lides latentes. Por seu turno, a massa de lides pendentes somam 84 milhões de processos distribuídos por 91 tribunais, 80% dos quais na Justiça Estadual. Esse alto percentual não decorre apenas de uma estrutura precária, mas principalmente por este ramo ter uma competência alargada e residual. De fato, a ela afluem conflitos ligados ao dia a dia da população, como os direitos de família, descumprimento de contratos e cobranças de dívidas, litígios de contribuintes, licitações com estados e municípios, além do direito fundiário e imobiliário. Apesar de ser uma das dez maiores economias do mundo, o Brasil possui um nível de PIB per capita considerado baixo. Paradoxalmente, o país igualmente possui um padrão elevado de processos per capita, com cerca de 40 mil causas por 100 mil habitantes, mais de três vezes o observado na Alemanha.
Apesar do esforço da jurisprudência, as condições da ação não estão aferindo adequadamente a seriedade das causas. Ao invés da análise cognitiva, esse controle transmudou-se em financeiro, por meio dos honorários de sucumbência ao final do processo e, principalmente, pelas custas processuais ainda na fase de propositura da demanda.
Para contornar essa crise de litigiosidade recorreu-se ao aumento da estrutura judiciária, com mais contratações e a incorporação de meios tecnológicos. Houve a adoção de sistemas computacionais cada vez mais modernos, com ferramentas de automatização do trâmite processual, que aceleram a triagem das ações por tipo e classe. Como exemplo, o sistema Pje incorpora diariamente novas funcionalidades para agilizar as rotinas processuais, fruto do desenvolvimento de laboratórios de inovação hospedados em vários tribunais. Outro exemplo é o sistema Eproc, inicialmente adotado pela Justiça Federal, e que foi incorporado em tribunais estaduais de grande movimentação, como o TJSP. Essas ferramentas também simplificam o entendimento das decisões, com adoção da “linguagem simples” e gráficos explicativos de “visual law”. Em 2024, o CNJ também autorizou o uso de IA generativa nos expedientes forenses, como o Chat GPT.
Um avanço mais polêmico se refere ao uso de algoritmos de aprendizado de máquina para a busca em bancos de dados de jurisprudência e confecção de minutas e relatórios de sentenças e acórdãos. Diversos laboratórios judiciais buscam expandir seu uso para a automação do exame dos pressupostos processuais, das condições da ação e da prova, liberando a atividade judicante para o veredicto sobre mérito, dando ganho de causa a uma das partes. De qualquer forma, o uso dessas tecnologias deve se sujeitar à constante supervisão humana. Daí resulta a necessidade de se criar um recurso ou meio de impugnação simplificado e célere contra o parecer da IA sobre as preliminares e a prova, para exame imediato do juiz. Para tanto, pode servir de exemplo a impugnação da penhora pelo executado, cujos artigos 525, §11, e 917, §1º, do CPC autorizam-na por simples petição, sem maiores formalidades. Afinal, o exame das condições da ação pela IA pode na prática significar ganho de causa a uma partes, especialmente ao réu.
Esse avanço tecnológico deve ser conjugado com uma mudança na perspectiva sobre a própria natureza da ação, superando o paradigma do processo civil analógico. Para isso, é preciso gestar uma teoria da ação líquida, com características de fluidez e dinamicidade, segundo o conceito de Bauman, e a flexibilidade de uma ação dúctil, como referido por Zagrebelsky. Uma teoria que comporte um instrumento maleável, acomodatício do direito material invocado. De fato, a postulação em juízo traz ao autor nada além de uma expectativa qualificada de procedência.
No atual quadro é faticamente impossível dar vazão adequada a esse nível de litigiosidade. Tanto que acordos homologados judicialmente, concessão de tutela cautelar, antecipada ou da evidência, e a análise minuciosa das preliminares no saneamento servem de verdadeiras válvulas de escape para evitar o caos no sistema judicial, e conferir algum alento a quem dele se socorre.
Nos últimos anos, houveram muitos debates sobre a incorporação no sistema judicial de inteligência organizacional, soluções molecularizadas, gestão macro dos conflitos, ações coletivas, padronização decisória na gestão processual e ferramentas tecnológicas para a triagem de possíveis demandas repetitivas, visando evitar a litigância redundante e dispersa, que ocasiona a dispersão jurisprudencial e judicial. As figuras do abuso processual e do assédio processual, previstas na nova ordem processual, também confluem a uma litigiosidade natural.
Como lembrado pela Ministra Nancy Andrighi, calcada no paradigma “Califórnia Motor v. Trucking” da Suprema Corte dos EUA, de 1972: “o chicaneiro age sob o manto dos princípios mais caros, como acesso à justiça, devido processo legal e ampla defesa, por capricho, espírito emulativo ou dolo, com pretensões e defesas frívolas, em um simulacro de processo.” (Resp. n° 1.817.845/MS, publicado em 17/10/2017).
A nova ordem processual teve como escopo superar essas dificuldades, segundo consta na exposição de motivos do CPC de 2015, publicada em 2010, conforme os excertos abaixo:
“O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas…O novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo. Trata-se, portanto, de mais um passo decisivo para afastar os obstáculos para o acesso à Justiça, a que comumente se alude, isto é, a duração do processo, seu alto custo e a excessiva formalidade…Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta. No direito alemão a figura se chama Musterverfahren e gera decisão que serve de modelo (=Muster) para a resolução de uma quantidade expressiva de processos em que as partes estejam na mesma situação…Pretendeu-se converter o processo em instrumento incluído no contexto social em que produzirá efeito o seu resultado. Deu-se ênfase à possibilidade de as partes porem fim ao conflito pela via da mediação ou da conciliação. Entendeu-se que a satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz.”
Mas nem tudo são flores, havendo enorme distância entre o desejo dos integrantes da comissão de notáveis que elaboraram o novo código e a realidade prática que se seguiu. Para entendermos esse problema, é necessário investigarmos as condições culturais e sociológicas que levaram a essa crise de litigiosidade, para além das normas estruturais de processo civil e da estrutura judiciária.
5 - Enfoque Sociológico da Crise de Litigiosidade
Vige na sociedade a ideia de que as necessidades de outros indivíduos é um obstáculo à satisfação das próprias necessidades. Essa pressão aumenta com o crescimento populacional e o consumismo. Também há diferentes percepções da realidade entre as gerações, histórias de vida diversas, crenças e valores singulares, ambientes culturais variados, opções religiosas e orientações sexuais distintas, cujos atritos deságuam em grande medida no judiciário. Soma-se a esse aspecto sociológico coletivo um pendor psicológico individual, já que existem pessoas com perfis mais propensos ao ajuizamento de diversos litígios durante a vida, muitos dos quais decorrentes de impulso, que seriam dispensáveis, dada a pouca importância. Esse perfil foi imortalizado na personagem “Mr. Frankland”, do romance “O Cão dos Baskerville” de Arthur Conan Doyle.
Muito se discute acerca da cultura de judicialização no Brasil, mas a análise comparativa da litigiosidade entre diferentes países pode fornecer uma visão mais apurada da realidade, desde que leve em conta fatores que a influenciam, como níveis de desenvolvimento econômico e democrático, já que nações que conferem muitos direitos aspiracionais e que são formadas por uma população culturalmente heterogênea, tendem a apresentar grande litigiosidade. Não à toa, a garantia das liberdades democráticas cobra um alto preço com os gastos do sistema judicial. Inversamente, países autoritários possuem poucos processos pendentes, por razões óbvias: o governo não pode ser contestado, não há acesso à justiça e não há direitos aspiracionais para a população.
A pirâmide demográfica também é um fator importante. A população mais jovem tem como prioridade a busca de ocupação e do sexo oposto, enquanto a população adulta busca a aquisição de bens e a população idosa busca prioritariamente direitos ligados à saúde. A dinâmica social intergeracional e a disparidade de pressões que exercem sobre o Estado criam tensões que se transformam em litígios. O nível de desenvolvimento econômico também gera mais contendas. Afinal, onde houver mais geração de riqueza também haverá mais litígios.
Nessa análise de conflituosidade na sociedade que impacta na litigiosidade, cabe recordar a teoria de Maslow sobre as necessidades humanas, elaborada em 1962 (psicologia do ser). Segundo sua pirâmide das necessidades: a base é formada pelas necessidades fisiológicas, seguidas por segurança, necessidades sociais, autoestima e autorrealização (topo). Socialmente, o alcance das necessidades mais básicas gera motivação para avançar na satisfação das outras demandas. Neste percurso, os desafios são encontrados e surgem conflitos de interesses com os outros demandantes.
Como esses conflitos ingressam no sistema judicial? Ao procurar um advogado, a pessoa relata fatos de acordo com sua visão, levantando questões que precisam de solução. O relato contém sentimentos, crenças e valores individuais. O profissional informa que as questões subjetivas emocionais devem ser ignoradas, limitando-se a uma visão técnico-jurídica. Ele seleciona os melhores argumentos ao recontar o discurso do cliente, delimitando em fragmentos jurídicos o que pode ser objeto do pedido, de forma que o conflito possa ser vislumbrado em termos decidíveis. Em outras palavras, deve transformar o discurso emotivo em um discurso jurídico. O advogado do réu percorrerá o mesmo caminho, desta feita com base na versão dos fatos que se lhe apresenta. Ele informará ao seu cliente que sentimentos não poderão ser manifestados, cabendo-lhe desconstituir tudo o que o autor afirmou, sob pena de serem presumidas verdadeiras as questões não impugnadas.
Esse recorte sentimental também limitará o alcance do escrutínio judicial. De fato, o art. 141 do CPC dispõe que o juiz decidirá a lide nos limites apresentados pelas partes, e o art. 492 dispõe que é vedado proferir decisão de natureza diversa da pedida. Assim, o Juiz conhecerá apenas fragmentos do conflito, tecnicamente incrementados, para serem decididos objetivamente. A lide é apenas esse pequeno fragmento do conflito, retratado dentro de uma moldura jurídica, e dentro dela resolvida.
Nas relações multiplexas, de vários vínculos, o dissenso não procede propriamente de um conflito de direitos, mas têm origem em interesses emocionais, relacionais e familiares que envolvem diferentes percepções sobre uma mesma situação, autoestima e ruídos de comunicação.
O CPC de 1973 tinha foco no conflito decidível, com preferência pela solução adjudicada e ênfase na heterocomposição, valendo a máxima “o que não está no processo não está no mundo”. O âmbito do conflito resumia-se à petição inicial, contestação e réplica, onde seriam estabelecidos os pontos controvertidos em que recairia a atividade probatória. O CPC de 2015 inovou nesse ponto, ao estabelecer no art. 515, §2º a permissão para que a autocomposição judicial envolva sujeito estranho ao processo e verse sobre relação jurídica que não tenha sido deduzida em juízo, mitigando o princípio da adstrição.
O professor Morton Deutsch, da Universidade de Columbia, buscou afastar a inevitável pecha de negatividade das discussões técnico-jurídicas. Para ele, o conflito jurídico pode ter funções positivas, como prevenir a estagnação, estimular interesse e curiosidade, além de ser um veículo para ventilar ideias sobre problemas e soluções, servindo de base para a mudança pessoal e social. Com a autocomposição, tem o potencial de melhorar o relacionamento posterior entre os interessados, evitando a litigiosidade latente.
Do ponto de vista sociológico, a moderna teoria do conflito o enxerga como algo positivo, desde que encarado como um fenômeno natural. De fato, apenas a solução técnico-jurídica não é capaz de resolver conflitos, a despeito de promover a extinção de processos e incrementar estatísticas, metas e índices de produtividade. Somente o tratamento do conflito na sua integralidade é capaz de evitar novos litígios.
É de interesse de todos os sujeitos processuais desenvolver meios para uma adequada prestação jurisdicional e gestão de conflitos. Afinal, encerrar um processo também é de interesse do réu, que não fica satisfeito em ser acionado judicialmente, aspirando o quanto antes o arquivamento do feito por improcedência do pedido ou a sua extinção sem julgamento do mérito, reconhecendo-se a perempção ou o abandono da causa.
Neste tema, calha lembrar que o art. 3°, §3°, do CPC permite o acordo durante o curso do processo, o que inclui a fase de execução e sua subfase de expropriação de bens. Logo, nada impede acordos no momento da remoção de bens móveis adjudicados ou arrematados, e na imissão de posse de bens imóveis. Esses acordos são tão comuns que alguns executados reservam bens específicos para responder pela causa durante o seu transcurso até a remoção, conhecida como a execução da execução. Há inclusive empresas especializadas em leilões judiciais que visam apenas negociar os bens arrematados do executado, e não se apropriar deles. São acordos semelhantes à dação em pagamento no caso de adjudicação e compra e venda no caso de arrematação, podendo englobar todo o conflito entre as partes. Acordos deste tipo podem ocorrer até mesmo na expropriação de dinheiro, buscando evitar discussões sobre a impenhorabilidade dos valores, seja por sua origem ou por seu montante, conforme o tratamento legal. Em última instância, esses acordos conferem efetividade ao processo.
Mas também existem estímulos legais que fomentam uma cultura litigiosa. Os tribunais superiores desenvolveram uma jurisprudência buscando evitar a proliferação de litígios e recursos. Como exemplo, o STJ firmou a compreensão de que não cabe indenização por mero aborrecimento no âmbito consumerista, servindo de desestímulo à litigiosidade. Por seu turno, alterações legais e a jurisprudência dos tribunais superiores criaram requisitos específicos para a interposição de recursos excepcionais, numa postura defensiva. Esses entendimentos visam diminuir o ingresso de novos processos e a delonga desnecessária das causas pendentes.
As campanhas informativas são outro foco de litigiosidade. Elas estimulam os cidadãos a procurarem seus direitos na justiça, mas devem ter uma natureza positiva, não se prestando ao estímulo à litigiosidade frívola. A litigiosidade deve ser natural, positiva e administrável. É preciso evitar a “litigiosidade forçada”, criada por meio da aprovação de leis confusas e decisões interpretativas dos tribunais, que geram uma avalanche de demandas artificiais capitaneadas por grandes escritórios. São causas perniciosas e desnecessárias envolvendo uma grande massa de contribuintes, servidores públicos, empresários, aposentados e pensionistas, resultando em verdadeiras bombas fiscais com aplicação de índices de correção e juros.
6- Análise Comparativa da Judicialização
A crise de litigiosidade não atinge apenas o Brasil. Nos Estados Unidos, é comum os estabelecimentos comerciais distribuírem termos de isenção de responsabilidade para prestar qualquer serviço ou fornecer qualquer produto, por conta da “indústria” de indenizações por responsabilidade civil. Os planos de saúde são encarecidos por conta dos seguros que cobrem possíveis ações por erros médicos ou hospitalares. As contas médicas também são muito altas por conta dos seguros contra ações judiciais. A crise de litigiosidade pode ser explicada em parte pela teoria dos incentivos econômicos, passando os litígios a serem vistos como um negócio lucrativo, havendo propagandas massivas para o recrutamento em “class action”, tanto em outdoors quanto em comerciais de TV e mídias digitais. Existem até linhas de investimentos que fomentam litígios de terceiros, feitos por fundos de hedge. Neste caso, um investidor não envolvido no conflito banca os custos do litígio em troca de uma parte dos ganhos, buscando se beneficiar de um veredicto nuclear (condenações acima de US$ 10 milhões).
No Brasil, diversamente do ocorre nos EUA, há um insistente problema de descumprimento de contratos, que são rebatidos pela exceção de contrato não cumprido, gerando uma bola de neve que fatalmente deságua no judiciário. Disso resulta uma maior burocracia para contratar, emperrando o desenvolvimento dos negócios.
Em termos comparativos, nos EUA existe uma ação judicial contra companhias aéreas a cada grupo de 1,25 milhão de passageiros, enquanto no Brasil existe uma ação a cada grupo de 227 passageiros. Essa enorme disparidade impacta no preço das passagens aéreas para toda a população, prejudicando inclusive a parcela que não estimula a litigiosidade. Essa situação se deve à falta de fiscalização da agência reguladora e aos processos predatórios. De fato, sites estimulam a litigiosidade consumerista comprando o direito do passageiro de acionar judicialmente a companhia aérea. Contribui para esse quadro a postura do judiciário frente aos pequenos conflitos no âmbito do direito do consumidor. A alteração na perspectiva sobre as condições da ação tem o potencial de mitigar esse problema, conduzindo a uma litigiosidade positiva. Some-se a isso as diferentes visões entre as distintas gerações que compõem os tribunais, fruto das contratações da última década. Também são apontados problemas que miram o centro do poder, com alegações de que os legisladores fazem leis buscando afetar a base de seus negócios.
É preciso focar na diminuição das ações que envolvem o Estado, com maior fiscalização das agências reguladoras nos serviços públicos. A descentralização da jurisdição é uma medida premente, com o efetivo funcionamento de ouvidorias, decons e procons, além de soluções extrajudiciais, como termos de ajustamento de conduta com órgãos do Ministério Público e do Poder Executivo. Outra medida importante para mitigar a crise de litigiosidade é a simplificação da legislação. Nessa toada, a Lei 13.465/2017 promoveu a simplificação imobiliária e cartorária, prevenindo demandas de regularização fundiária rural e urbana, que costumam perdurar por décadas. A reforma tributária também buscou a simplificação para evitar litígios, que se iniciam com o julgamento de recursos pelos órgãos fazendários e fatalmente terminam no judiciário, prevenindo muitas ações tributárias. A simplificação advinda com a reforma da previdência também evitou o ingresso de muitas ações previdenciárias.
De igual modo, a reforma trabalhista simplificou a legislação do setor, diminuindo a litigiosidade em um terço. É importante frisar que robôs não têm sindicato e nem litigam. A proteção contra a automação de que fala a CF no art. 7°, XXVII e objeto da ADO 73/2022 em trâmite no STF, passa precipuamente pela simplificação das relações de trabalho, reduzindo os custos de contratação e o risco de litigiosidade. Um passo nessa direção é conferir maior autonomia aos trabalhadores, concentrando a tutela estatal nos casos concretamente necessários.
O Estado sempre figurou na lista dos maiores litigantes do país, seja como autor, réu ou interveniente. No Brasil, existem muitas ramificações do Estado ligadas ao dia a dia da população, impactando seus direitos. Pela teoria do órgão, os conflitos envolvendo essas ramificações recaem sobre o núcleo estatal. Soma-se o fato de que no Brasil há uma grande proporção na dependência de serviços públicos em comparação aos serviços privados. Além disso, é comum os serviços privados serem prestados em regime de parceria com o poder público, resultando em ações por responsabilidade civil subsidiária do Estado, seja na modalidade contratual ou extracontratual. Reforça a litigância estatal uma forte intervenção do Estado na economia e no funcionamento do mercado, afetando seus agentes, aliada a uma alta carga tributária.
A análise do direito processual comparado não é capaz de trazer alento nessa investigação. De fato, as Regras Federais do Processo Civil nos EUA possuem pontos de contato com o processo civil pátrio. A Regra 20, por exemplo, permite ao interessado juntar-se como coautor ou codefendente no processo, com um regramento semelhante ao litisconsórcio ativo e passivo do CPC de 2015. O diagnóstico preciso da crise de litigiosidade encontra-se na cultura de judicialização e na postura do sistema judicial, que são os verdadeiros vertedouros que abarrotam os tribunais.
No âmbito do direito estadunidense, convém fazer menção à percuciente advertência de Yeazell, Schwartz e Carroll:
“Alguns argumentam que nosso sistema é obcecado com a exposição adversarial de queixas. As soluções propostas variam de simplificação da adjudicação à resolução não-adjudicativa de disputas. Os defensores do sistema argumentam que os críticos exageram as patologias do litígio civil moderno e que a adjudicação provou ser uma força importante para a justiça social, crescimento econômico e estabilidade política ao longo dos últimos dois séculos.” (Civil Procedure, editora Aspen Publishing, 11ª edição, 2023, p. 02, traduzido do inglês).
Já no âmbito da doutrina francesa:
“A marcha sugerida pela etimologia latina da palavra (procedere) reflete a ideia de que certas formalidades devem ser cumpridas para obter uma sentença e executá-la, que a lei seja declarada pelo juiz (jurisdição). Não há nada de pejorativo nesta exigência, porque há algo de imponente e preciso nas formas, que obriga os juízes a respeitarem e a seguirem um rumo justo e regular. Nesse sentido, a técnica processual é garantia de paz social, pois permite que a regularidade de uma situação seja verificada por um terceiro independente e imparcial, o juiz; facilita uma resolução justa e rápida de litígios e a validação de uma situação não contenciosa…O processo civil não é apenas um conjunto de formalidades a cumprir; é também um passo à concretização da efetividade dos direitos substanciais dos cidadãos, um passo para um humanismo processual, para além da simples técnica processual…Do lado do juiz, trata-se da implementação, passo a passo, de um modelo de julgamento justo, cujos componentes foram determinados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem com base no art. 6º, n. 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e cujos princípios gerais estão ligados às grandes decisões do Conselho Constitucional.” (Serge Guinchard, Frédérique Ferrand, Cécile Chainais e Lucie Mayer, Procédure Civile, editora Lefebvre Dalloz, 8ª edição, 2023, pp. 04/06, traduzido do francês).
Por fim, na doutrina germânica, confira-se o escólio de Jens Adolphsen:
“Os processos judiciais de longa duração constituem um problema na administração da justiça. Eles não aparecem em massa na Alemanha, mas de forma singular. No entanto, processos judiciais excessivamente longos não são compatíveis com a exigência de uma proteção jurídica efetiva, tal como previsto na Constituição alemã e na CEDH. O TEDH criticou repetidamente o fato de as opções de proteção jurídica na Alemanha não cumprirem os requisitos do art. 6º, n. 1 e 13, da CEDH, e obrigou a Alemanha a introduzir uma solução legal contra processos judiciais excessivamente longos. Em resposta a isto, a lei sobre proteção jurídica em caso de processos judiciais e investigações criminais excessivamente longos entrou em vigor em 2011. Isto criou a reclamação por atraso e a ação de indenização.” (Zivilprozessrecht, editora Nomos, 8° edição, 2023, traduzido do alemão).
A esse respeito, a Convenção Americana de Direitos Humanos também prevê a celeridade dos processos judiciais no art. 8, n. 1, que vincula o Brasil desde 1992. Após a EC/45 de 2004, a jurisprudência dos tribunais superiores passou a admitir ações de indenização por responsabilidade civil extracontratural do Estado em decorrência da demora excessiva e injustificada de processos judiciais. Paradoxalmente, a maior demora reside justamente na fase dos recursos excepcionais nos tribunais superiores.
Em decorrência dessa advertência doutrinária e recomendações de órgãos multilaterais, diversos países adotaram reformas processuais buscando contornar a crise de litigiosidade.
7- Reformas Processuais
Em termos comparativos, o Projeto Justiça Mundial divulgou um Índice de Estado de Direito. Conforme o levantamento do WJP divulgado em outubro de 2023, houve uma queda na qualidade da prestação jurisdicional na média dos países, principalmente na jurisdição civil. Afora os impactos econômicos desta queda, o estudo concluiu que bilhões de pessoas no mundo estão sujeitas a restrições de direitos humanos por sistemas de justiça que não atendem às suas necessidades. Constatou-se piora na maioria dos países, havendo mais atraso na duração das causas e uma aplicação mais fraca da lei. A instituição promoveu um concurso em 2024 chamado “Desafio da Justiça Mundial”, com premiações em cinco categorias, das quais duas foram vencidas por projetos brasileiros. Apesar disso, o Brasil figura em 83 no ranking de 142 países.
A Índia, país mais populoso do mundo, figura em 79. Essa nação de mais de um bilhão e meio de habitantes possui um acervo de 50 milhões de processos pendentes, ocorrendo um grande acúmulo nos últimos anos. O país possui apenas 21 juízes por milhão de habitantes, e apesar do recente crescimento econômico e tecnológico, ainda adota práticas judiciais arcaicas, estando muito atrasado na modernização do sistema de justiça, como a digitalização de processos. Metade das causas envolve o governo indiano. Esse fato, somado às características culturais da sociedade, dividida em castas, resulta em uma crise de litigiosidade.
No Brasil, o governo central também responde por uma grande fatia das causas pendentes. Para o ano de 2025, a AGU busca implementar programas de inteligência artificial e computação em nuvem para otimizar a análise dos processos, com a adoção do Azure da Microsoft. Esse sistema oferece máquinas virtuais em nuvem, tanto para sistemas operacionais Linux quanto Windows, automatização de procedimentos e centralização do gerenciamento da rede. A incorporação dessa tecnologia acelera a triagem de milhares de processos sem trânsito em julgado, mapeando tendências e características individuais da causa, além de confeccionar resumos e manifestações processuais alinhadas com as teses da instituição. A adoção de programas tecnológicos pela AGU já remonta há alguns anos, passando por ciclos de renovação, o que não impediu o constante risco de bombas fiscais. Considerando apenas os processos transitados em julgado, são esperadas em 2025 153 mil causas de até R$ 1 milhão, no valor total de R$ 28 bilhões, somadas a R$ 30 bilhões em RPVs e R$ 42 bilhões em precatórios maiores de R$ 1 milhão, totalizando R$ 100 bilhões em processos judiciais, o equivalente a 1% do PIB. Boa parte desse valor se deve à falta de acompanhamento adequado. As ações que envolvem o Estado são ainda mais demoradas, por conta dos privilégios processuais da fazenda pública, com prazos alargados. Isso não impede de se formar uma “indústria” de ações contra o Estado. É preciso estancar esse vício, como foi feito há alguns anos no caso das indenizações por desapropriação.
Tanto o Brasil quanto a Índia abarrotam seus sistemas judiciais com ações contra o governo. Já nos EUA, o sistema é abarrotado por ações contra entes privados. Essa diferença reside na adoção de modelos econômicos diversos e nos diferentes níveis de desenvolvimento.
Já no âmbito europeu, são previstas cláusulas de revisão sistemática para o constante aperfeiçoamento do processo, como o Regulamento 2019/1111, que rege o “Bruxelas II, bis”, referente às relações matrimoniais e à responsabilidade parental, havendo pontos de contato com o Direito Internacional Privado por conta das relações entre os países na União Europeia. Essas constantes revisões trazem instabilidade, havendo uma multiplicidade de regimes de aplicação da lei ao longo do tempo, ao passo que tentam remediar rapidamente as disfunções que surgem na implementação dos textos legais.
Acerca das sucessivas reformas processuais, Mauro Cappelletti proferiu uma palestra famosa publicada no Michigan Law Review intitulada “Social and Political Aspects of Civil Procedure Reforms and Trends in Western and Eastern Europe”, onde aborda as reformas no processo civil da Europa continental desde o “jus commune” da idade média, que foi refinado pelo modelo bolonhês e adotado pelos tribunais eclesiásticos e imperiais, até as reformas do século XX, analisando seus antecedentes intelectuais e sociopolíticos.
Recentemente, foi aprovada a reforma no Chipre em 2021, com novas regras do processo civil adotadas pela Suprema Corte cipriota, a partir das diretrizes indicadas pela Comissão Europeia. Em 2022, foi aprovada a reforma do processo civil italiano, por meio do Decreto Legislativo n. 149 de 10/10/2022, regulado pela Lei 206 de 26/11/2022, com aplicação a partir de 28/02/2023.
A reforma italiana atendeu à recomendação da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, buscando reduzir o tempo de duração dos processos, de forma a aproximar a Itália da média da UE. Segundo a Comissão, a eficiência judicial é condição indispensável para o desenvolvimento econômico e o correto funcionamento do mercado. De fato, uma justiça célere e de qualidade estimula a concorrência, pois aumenta a disponibilidade de crédito e reduz seu custo, como as taxas de juros cobradas. Também promove relações de negócios com empresas mais novas, facilitando o ingresso e a permanência de novos agentes no mercado. Paralelo a isso, permite ainda uma reutilização mais rápida e menos onerosa dos recursos da economia, acelerando a saída do mercado de empresas que se tornaram improdutivas e a restauração de empresas em dificuldades temporárias. Por fim, incentiva investimentos em atividades inovadoras e de maior risco, estimulando a escolha de conformações organizacionais mais eficientes.
Muitos estudos corroboram essa visão. Como exemplo, Giacomelli, S. e Menon, C. concluíram um estudo em 2013 que apontou que a redução em 50% na duração de processos pode aumentar em 10% o tamanho médio das empresas industriais italianas. E o levantamento de González-Torres, G. e Rodano, G. em 2020 mostrou que a redução do tempo dos processos de falência de 9 para 5 anos aumenta a produtividade em 1,6%.
Essa reforma teve como foco a simplificação, celeridade e racionalização do processo civil, conferindo primazia à primeira instância, ampliando as hipóteses de competência do juiz singular, concentrando todos as atividades processuais na primeira audiência, fortalecendo o filtro de admissibilidade dos recursos e alargando a aplicação dos meios alternativos de resolução de litígios. Como exemplo, o art. 171 do CPC italiano foi alterado, antecipando-se o momento em que o juiz pode declarar a sua incompetência, podendo ser feito já no despacho após as verificações preliminares, e não mais na primeira audiência.
O CPC italiano ainda data da década de 1940. Entre 1975 e 1981, houve a tentativa de aprovar um novo Código, conhecido como Projeto Liebman, tendo esse jurista ficado a cargo da elaboração do processo de cognição na comissão do projeto. Liebman emigrou para a América do Sul em 1938, passando por Montevidéu, Rio de Janeiro, e estabelecendo-se em São Paulo entre 1940 e 1945, juntamente com Tullio Ascarelli. Neste período, o governo italiano havia aprovado as Leis de Defesa da Raça Ariana, que miravam principalmente judeus e etíopes. A Etiópia havia sido colonizada pela Itália, que estava em guerra com os imperadores etíopes, conhecidos como Negus, um termo que remonta a Salomão. Por sua vez, a perseguição aos judeus havia se intensificado após o Tratado de Latrão de 1929. O refúgio dos dois Tullios no Brasil rendeu frutos, com a criação da Escola Processual de São Paulo, tendo o principal aluno de Liebman, Alfredo Buzaid, elaborado do CPC de 1973 com forte influência da teoria eclética.
Apesar da qualidade do trabalho desenvolvido no Projeto Liebman, o parlamento italiano não o aprovou. Mas o Código passou por uma intensa reforma em 2022, seguido por alterações nos anos seguintes, até a Lei n. 56 de 29/04/2024. Uma alteração havida em 2022 no art. 163, n. 4, exige que a convocação traga a exposição clara e específica dos fatos e dos elementos jurídicos que fundamentam o pedido, com as respectivas conclusões. Essa redação deveria inspirar o legislador brasileiro.
Segundo o magistério dos processualistas italianos Crisanto Mandrioli e Antonio Carrata, ao discorrerem sobre a instrumentalidade do processo:
“Ao ditar normas substantivas, o legislador avaliou de forma abstrata os comportamentos humanos capazes de produzir consequências jurídicas e configurou assim os direitos subjetivos substantivos, que implicam uma primeira proteção de determinados interesses. Mas se esta proteção primária não se revelar suficiente, isto é, se a norma substancial for violada e o direito subjetivo prejudicado, o ordenamento jurídico recorre ao instrumento do processo, ou seja, recorre às normas instrumentais ou processuais que, ao regularem a atividade dos sujeitos do processo, preparam os meios para a implementação da proteção secundária, ou da proteção jurisdicional...Se tivermos em mente que litígio, no sentido técnico carneluttiano, nada mais é do que a posição contrastante que dois ou mais sujeitos assumem em relação a um direito, é claro que esta posição de conflito existe na medida em que um ou mais desses sujeitos postulam a violação de uma norma substancial por outros.” (Diritto Processuale Civile, I - Nozioni Introduttive e disposizioni generali, editora Giappichelli, 29° edição, 2024, pp. 05/07, traduzido do italiano).
Mas é preciso lembrar, segundo o contributo de Marinoni, que os litígios também podem ter por base um “desacordo interpretativo” entre as partes, não estando necessariamente relacionados a uma lesão ou ameaça a direito.
Os ordenamentos jurídicos de diversos países, tanto desenvolvidos quanto emergentes, passam pelo mesmo desafio de conciliar a redução do tempo de duração dos processos, mas seguindo o devido processo legal. De fato, a tramitação açodada das causas frequentemente resulta em alegações de negativa de prestação jurisdicional e no acolhimento de nulidades na fase recursal, retornando o feito para as instâncias anteriores e retardando ainda mais uma solução definitiva. No ordenamento pátrio, o art. 5ª, XXXV, da CF garante o direito de ação, enquanto o art. 5ª, LXXVII, garante a celeridade de sua tramitação. O direito à tutela efetiva de que fala Marinoni não consta expressamente na CF, mas é previsto no art. 4º do CPC de 2015, que inclui a atividade satisfativa. Por outro lado, o art. 5ª, LIV, da CF dispõe que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Este último dispositivo limita a atuação do legislador e dos tribunais na efetividade da tutela, como a apreensão do passaporte e CNH do réu ou a expropriação de bens e verbas financeiras. Para conciliar essas duas garantias, diante da pressão do mercado pela celeridade processual, é preciso repensar as teorias doutrinárias de forma a alcançar um equilíbrio nessa equação. A incorporação de inteligência artificial e o fomento à conciliação não têm sido suficientes para dar vazão ao represamento de processos. Os programas de mutirões, como as semanas nacionais de conciliação e execução, também possuem pouco efeito para diminuir a massa de lides. Afinal, acordos forçados e não espontâneos, para evitar a demora do processo, não entrega adequadamente a prestação jurisdicional. Em outras palavras, a política de “um acordo ou nada” não resolve o conflito, apenas o posterga para ações futuras.
Na doutrina nacional, confira-se o escólio de Araken de Assis, ao tratar da classificação das ações:
“todavia, ressalte-se a circunstância de a teoria das ações elevada a tema central do processo civil, realmente ensejou a radical mudança de tratamento dado ao processo, derrotando o método gasto dos antigos 'procedimentalistas'. Esse epíteto injusto e insultante foi lançado contra os estudiosos que não se curvaram ao processo 'científico'. Mas quem examina serenamente os mestres do século XIX não pode deixar de lhes reconhecer grandes méritos. Também não se deve olvidar que o festejado sistema da classificação das ações pela força e pelos efeitos enaltece, a todos põe de sobreaviso quanto a desvios e incorreções de rumo, a correspondência imprescindível do binômio direito material e processo, que governa a efetividade do controle judiciário e da realização do direito objetivo...Na medida em que o conteúdo da demanda corresponderá, inexoravelmente, ao da sentença de procedência, em virtude da regra da congruência (art. 141 c/c art. 490 do CPC) - a sentença de improcedência apresentar-se-á sempre declaratória negativa, porque declara a inexistência do direito alegado pelo autor perante o réu, e nada concede ao réu, exceto a certeza que o autor não tem o alegado direito...A sentença de improcedência é somente declaratória. E a declaração, enquanto tal, confere certeza ao vencedor (no caso, da falta de razão do autor) e prescinde de qualquer atuação prática ulterior...Autores franceses identificam sempre na sentença duplo efeito, porque o juiz deve constatar a existência da pressuposição da norma aplicável à situação de fato que lhe é submetida (qualificação) e depois aplicar o efeito (sanção), variando, todavia, a importância do elemento declaratório e do constitutivo conforme a hipótese. Fácil é decompor a sentença de despejo e comprovar, na prática, a asserção básica da multiplicidade dos efeitos. Ela comanda, preponderantemente, a restituição do bem locado (eficácia principal: executiva); desfaz o contrato (eficácia mediata: declarativa); e, estando a locação averbada no cartapácio real, manda cancelar o registro (eficácia mandamental). Mais difícil se revela em todos os casos localizar as cinco eficácias. O óbice não invalida, porém, a tese central: dentro do mesmo provimento convivem mais de uma eficácia.” (Manual da Execução, editora Revista dos Tribunais, 21° edição, 2021, pp. 84/86).
Ao discorrer sobre a tutela efetiva, com nos ensinos de Carnelutti, o mesmo doutrinador pontua:
“a efetivação prática do poder jurisdicional se relaciona com a massa de lides, ou seja, a quantidade de conflitos existentes em dado momento na sociedade, e sua repartição em grupos que considerem certas características da própria lide e do processo mediante o qual é ela apreciada pelo órgão judiciário. Tais dados são utilizados para o fito de distribuir porções de lides aos órgãos jurisdicionais pré-constituídos...reputam-se fatores determinantes dessa atribuição (a) interesse público- a maior eficiência do poder jurisdicional - e a comodidade das partes. Uma coisa não exclui outra. A conveniência dos jurisdicionados preside a tendência crescente de descentralização dos juízos e tribunais e, até mesmo, a criação de meios alternativos de resolução de litígios, a exemplo dos juizados especiais e arbitragem.” (Manual da Execução, editora Revista dos Tribunais, 21° edição, 2021, pp. 510/511).
Já na visão de Cassio Scarpinella Bueno:
“Postular, contudo, não pode ser compreendido apenas do ponto de vista do autor, aquele que rompe a inércia da jurisdição para pedir tutela jurisdicional. Também o réu postula em juízo. E o faz mesmo quando se limita a resistir à pretensão autoral sem reconvir. Os terceiros, ao pretenderem intervir no processo, também postulam...O que se põe, doravante, é saber o que há (ou o que não há) entre o plano material e o julgamento do mérito, sobretudo nos casos em que ele seja no sentido de rejeitar o pedido do autor, mesmo sendo reconhecido seu interesse e a legitimidade das partes...O interesse de agir e a legitimidade para agir são temas que devem ser analisados pelo magistrado antes do julgamento de mérito. Mesmo no ambiente do CPC de 2015, parece ser absolutamente adequado entender que os fundamentos e o substrato do interesse de agir e da legitimidade para a causa não guardam nenhuma relação com o processo, nem com sua constituição nem com seu desenvolvimento. Ambos os institutos só se justificam, no campo do mérito, na perspectiva da afirmação de direito feita por aquele que postula em juízo...Que a ausência de uma ou de outra ensejarão decisões nos moldes do art. 485, não há dúvida. Mas é possível sanear a falta de legitimidade para a causa como pretende o CPC de 2015 em diversos dispositivos com relação aos pressupostos processuais e a vícios de outra ordem (arts. 139, IX e 317, por exemplo)? A resposta correta é que com relação ao interesse de agir e à legitimidade para a causa, o que se dá não se relaciona propriamente com saneamento. O que pode ocorrer é alteração no plano material a modificar o substrato fático relativo àqueles institutos. Lamento, por tudo isso, que o CPC de 2015, com o afã de inovar, tenha pretendido colocar por terra décadas de estudo científico no direito brasileiro a respeito da 'ação' e das suas 'condições'. O ideal seria levá-las às suas últimas consequências, inclusive como técnicas de maior eficiência do processo, em atenção ao art. 5°, LXXVIII, da CF, e, em última análise, ao modelo constitucional do direito processual civil. O silêncio do Código a esse respeito, contudo, não impede de a doutrina e a jurisprudência fazê-lo...Importa, no particular, compreender as condições criadas pelo legislador não como óbices ou como obstáculos para o exercício do direito de ação, que deriva diretamente do art. 5°, XXXV, da CF. Mas, bem diferentemente, como elementos seguros da necessidade de pontos de contato entre os planos material e processual que dão à iniciativa daquele que postula em juízo seriedade mínima, representativa, em última análise, da boa-fé objetiva que deve presidir a atuação de todos os sujeitos processuais, como preceitua o art. 5° do CPC de 2015. Nada há de novo em relação a isso - é o que pregavam os ensinamentos de Degenkolb e Plósz há mais de cem anos que, quiçá, estão a merecer mais aprofundamento.” (Manual do Direito Processual Civil, editora Saraiva, 8° edição, 2022, pp. 148/150).
Por fim, no escólio de Humberto Theodoro Júnior:
“Distingue-se, portanto, a prestação jurisdicional da tutela jurisdicional, visto que esta só será prestada a quem realmente detenha o direito subjetivo invocado, e aquela independe da efetiva existência de tal direito. Por isso, não é mais suficiente- como ocorria na doutrina antiga - ver na ação apenas o direito à sentença de mérito. Ela é, em essência, o 'direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva mediante processo justo’, no dizer de Marinoni.” (Curso de Direito processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022, p. 138)
Na sequência, o mesmo autor afirma:
“A constitucionalização do processo civil teve como consequência necessária a redução do papel da ação e a valorização da figura da jurisdição, nas divagações doutrinárias no tratamento dos fundamentos e objetivos da atividade do Poder Judiciário. No enfoque da função tutelar dos direitos materiais, o moderno estudo científico do processo civil não pode restringir-se às formas idealizadas pelo direito instrumental...O que realmente constitui o problema fundamental do direito processual civil atual é, isto sim, o da efetividade da tutela.” (Curso de Direito processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022, p. 141)
Citando os processualistas Comoglio, Ferri e Taruffo, o autor aduz:
“sem dúvida, o direito de ação constitucionalizado deve ser visualizado a partir de sua função, do seu dinamismo, e não mais segundo um conceitualismo estático e legalista. E assim se justifica ver na ação o direito fundamental, assegurado a todos, de obter do Estado a tutela que proporcione adequada proteção contra qualquer lesão ou ameaça à sua esfera jurídica. O processo constitucionalizado é, sobretudo, um processo de resultado, a ser obtido no plano do direito material...É que, embora abstrata, a ação não é genérica, de modo que, para obter a tutela jurídica, é indispensável que o autor demonstre uma pretensão idônea a ser objeto da atividade jurisdicional do Estado...As condições da ação não foram instituídas para que o juiz, com base nelas, afirme ou negue o direito material que a parte pretende fazer atuar em juízo, mas apenas como uma etapa intermediária entre a propositura válida do processo e o final provimento judicial...As condições da ação são requisitos a observar depois de estabelecida regularmente a relação processual, para que o juiz possa solucionar a lide (mérito). Operam, portanto, no plano da eficácia da relação processual. Em razão disso, não se confundem com os pressupostos processuais, que são requisitos de validade, sem os quais o processo não se estabelece ou não se desenvolve validamente. Os pressupostos, em suma, põem a ação em contato com o direito processual, e as condições de procedibilidade põem-na em relação com as regras de direito material.” (Curso de Direito Processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022, p. 143).
Mais à frente, ele pontua:
“É lícito afirmar, em face da própria natureza das preliminares processuais, que a questão só permanece no terreno das condições da ação enquanto é discutida abstratamente, ou seja, mediante cotejo entre pedido e a lei, genericamente. Depois que o caso dos autos se submete à análise concreta e detalhada, e exaurida já se acha a instrução da causa, não se pode mais admitir que se mantenha, invariavelmente, como solução de preliminar processual o pronunciamento do juiz que acolha a falta de legitimidade ou de interesse. Em tal estágio, o que, na verdade, se está decidindo é se a prova colhida e o direito invocado sustentam ou não o pedido ou, em outras palavras, se in concreto o autor tem, ou não, condições de exigir a prestação que reclama do réu. A decisão que tardiamente se propõe a examinar condições de ação - principalmente quando proferida por tribunal de segundo grau para cassar sentença definitiva da instância de origem -, só pode, em regra, qualificar-se como decisão de mérito, pouco importando o rótulo ou o nomen iuris que se lhe atribua. É irrelevante, pois, que o julgador afirme ser o autor carecedor de ação, se o faz à luz de conclusão formada diante da prova e do debate exaustivo sobre o pedido e a causa petendi. Numa quadra como essa, não há diferença substancial entre declarar a parte ilegítima para a ação ou afirmar a improcedência do seu pedido.” (Curso de Direito Processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022, pp. 152/153)
Concluindo seu magistério sobre as teorias da ação, Theodoro Júnior arremata:
“Vê-se, portanto, que, na teoria eclética de Liebman, os pressupostos processuais atuam sobre o processo apenas como requisitos de direito processual, sem, entretanto, permitir, só com sua presença, o provimento do mérito. Já as condições da ação, sem ainda alcançar o mérito da causa, procedem a um cotejo preliminar entre a pretensão de direito material deduzida em juízo e o quadro jurídico enunciado pela parte na propositura da demanda...As condições da ação, nessa perspectiva, põem o processo em cotejo com o direito material em tese, sem avançar, porém, até a afirmação concreta da procedência ou improcedência do pedido, ou seja, sem compor definitivamente o conflito jurídico material...Há quem critique a teoria de Liebman, sob a consideração de que as chamadas condições da ação poderiam ser englobadas ao mérito da causa, do qual não passariam de preliminares, de sorte que seu julgamento, afinal, representaria, também, rejeição ou acolhida do pedido, tal como formulado na petição inicial...Para Leibman - em cuja teoria nosso CPC regulou o direito de ação - mérito e objeto do processo são a mesma coisa, ou seja: constitui objeto do processo não necessariamente todo o conflito existente entre as partes, mas aquela porção do conflito de interesses, a respeito do qual pediram as partes uma decisão. Em outras palavras, o elemento que delimita em concreto o mérito da causa não é, portanto, o conflito existente entre as partes fora do processo e sim o pedido feito ao juiz em relação àquele conflito.” (Curso de Direito Processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022, pp. 154/155).
8- Conclusão
O embate entre as teorias eclética e da asserção, bem como entre os momentos de análise das condições da ação, se de forma abstrata no início do processo ou de forma concreta na sentença, possui considerável efeito prático. A caracterização das condições da ação como pressupostos processuais, mérito ou um instituto autônomo impacta na facilidade de acesso à justiça na celeridade do processo.
Por outro lado, o esforço doutrinário em incluir a efetividade da tutela na composição do próprio direito de ação não resolve a crise de litigiosidade, apenas deslocando o problema para a execução. O processo devido do art. 5ª, LIV, da CF/88 não é um processo burocrático e excessivamente formalista, que resulta no “ganha, mas não leva”. Essa efetividade contém um paradoxo que lhe é intrínseco, porque a partir da cláusula constitucional do devido processo formou-se uma estrutura legal, jurisprudencial e doutrinária que limita os poderes dos tribunais sobre os réus. Em outros termos, a régua doutrinária que mede o direito de acesso à justiça célere, justa e efetiva não é a mesma que mede as garantias do devido processo legal, suscitando tensões inevitáveis que alimentam a persistente crise de litigiosidade.
De regra, a demora do feito favorece o réu. A tutela da evidência, cujo deferimento independe da urgência, foi pensada no intuito de inverter essa lógica, repassando ao réu o ônus da demora do processo, evitando artifícios protelatórios. A jurisprudência criou outras hipóteses, como o Resp. nº 1.909.276/RJ, julgado em 27/09/2022, onde se entendeu ser possível reconhecer a prescrição aquisitiva da usucapião durante o curso do processo. Esse entendimento favorece a celeridade tanto no direito material quanto processual, já que o autor não terá que esperar o escoamento de mais alguns anos para protocolar a ação de usucapião, aproveitando o tempo de tramitação para perfazer o próprio direito substancial. Neste caso, se o julgador analisar o interesse de agir no momento do recebimento da petição inicial ou no despacho saneador, poderá haver prejuízo para o autor, caso se entenda que o período aquisitivo está imbricado com o interesse processual. Neste caso, haverá indeferimento da petição inicial ou carência da ação. Já se o juiz entender que se confunde com o mérito e com ele será analisado no momento da sentença, o autor poderá se beneficiar da demora do processo.
Na busca pela efetividade do direito de ação, visando contornar a postura do réu que se esquiva em cumprir suas obrigações, foram criados novos instrumentos, como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Neste caso, para equacionar o devido processo com a busca pela concretização da atividade satisfativa foi desenvolvido um instituto na forma de incidente processual, com garantia de contraditório e decisão interlocutória passível de recurso de agravo de instrumento. Por outro lado, é possível citar também o arquivamento provisório e a prescrição intercorrente como meios de evitar a eternização das causas.
Como visto da análise no direito positivo, o CPC de 2015 permite um acordo na fase de saneamento no art. 357, §2º, limitativo da causa. Já o art. 515, §2º, permite que o acordo expanda o objeto e alcance da causa, envolvendo pessoas e matérias estranhas ao processo. Os dois dispositivos se complementam no objetivo de resolver o conflito havido entre as partes, para além do simples litígio submetido a juízo. Por fim, o art 489, §1º, do CPC regula a contrario sensu a fundamentação das decisões judiciais, aplicável tanto ao mérito quanto às preliminares. Esse dispositivo rechaça decisões que protelam indevidamente o exame da legitimidade e interesse processual, a exemplo de “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (inciso III), chamada de decisão “vestidinho preto” por Teresa Arruda Alvim, epíteto que bem se aplica ao despacho que posterga o exame das condições da ação para a decisão final, por se confundirem com o mérito da causa.
É certo que o direito não pode engessar a sociedade. Diariamente, novos modelos de negócios são acompanhados de multas e derrotas em litígios contratuais, desestimulando a inovação. Tanta que muitos acordos entre as partes são feitos de forma extraprocessual, e sequer chegam a ingressar nos autos. Em alguns casos, as partes não comparecem à audiência, resultando em extinção da causa por desinteresse das partes e gasto desnecessário da máquina judiciária.
Para contornar esse problema, além da simplificação da legislação em sucessivas reformas e da fiscalização pelos órgãos reguladores para coibir abusos, também é preciso adotar práticas que evitem o aumento da litigiosidade, como treinamentos para empresas diminuírem sua exposição a processos judiciais e adoção de soluções comunitárias.
De fato, essa demora na tramitação de processos causa prejuízos na qualidade da prestação jurisdicional, pois resulta em esvaziamento das provas, como a memória das testemunhas, tornando mais difícil alcançar uma decisão justa. Equacionar o devido processo com um direito de ação célere, justo e efetivo passa precipuamente pela natureza das condições da ação, de forma a facilitar o acesso à justiça sem alimentar a crise de litigiosidade.
Por fim, a administração judiciária deve colocar as pessoas em primeiro lugar, e não os processos. De fato, priorizar formalidades para alimentar estatísticas de “produtividade” nem sempre representa uma tutela efetiva do direito, não compõe o conflito social de forma adequada e não atinge o cerne da crise de litigiosidade.
Referências
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JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. V. I, editora Forense, 63ª edição, 2022.
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MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. e MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, Vol. II - Tutela dos Direitos Mediante Procedimento Comum, editora RT, 10ª edição, 2024.
MANDRIOLI, Crisanto. e CARRATA, Antonio. Diritto Processuale Civile, I - Nozioni Introduttive e disposizioni generali, editora Giappichelli, 29° edição, 2024.
MESQUITA, José Ignácio de Botelho. Da Ação Civil, editora Passim, 1973.
TESHEINER, José Maria Rosa. e THAMAY, Rennan Faria Krüger. Teoria Geral do Processo, editora Saraiva, 7ª edição, 2022.
YEAZELL, SCHWARTZ e CARROLL. Civil Procedure, editora Aspen Publishing, 11ª edição, 2023.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. I, editora RT, 21ª edição, 2022.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. As Condições da Ação Entre a Cruz e a Espada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3755/as-condies-da-ao-entre-a-cruz-e-a-espada. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Celso Moreira Ferro Júnior
Por: Valdinei Cordeiro Coimbra
Por: eduardo felipe furukawa
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