A jurisprudência espelha a dificuldade em lidar com a conduta única do agente que gera resultados diversos ou atinge bens jurídicos distintos. Esse tema envolve o enquadramento da parte final dos arts. 70, 73 e 74 do CP, que se referem ao concurso formal imperfeito, à aberratio ictus com resultado duplo e à aberratio criminis com unidade complexa.
Apesar dos exemplos doutrinários serem de difícil ocorrência, o tema ganhou relevo em casos de acidentes automobilísticos com múltiplas vítimas, grandes eventos artísticos ou catástrofes ambientais, como os casos de Mariana, Sobradinho e da boate Kiss, com inúmeras vítimas.
Recentemente, o STJ se debruçou sobre o tema ao negar provimento ao Agravo Regimental interposto pelo réu no Agravo em Recurso Especial n° 2.521.343/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado por unanimidade pela 5ª Turma em 17/09/2024. Referido acórdão seguiu o entendimento proferido no Habeas Corpus n° 191.490/RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado pela 6° Turma do STJ em 27/09/2012. Com isso, as duas turmas criminais do STJ encamparam a posição de que o concurso formal imperfeito pode se configurar com dolo eventual, contrariando o entendimento doutrinário majoritário.
O caso mais recente se refere a um réu que causou um acidente com dolo eventual, resultando na morte da ocupante do veículo em que ele trafegava e em lesões corporais em uma mulher que trafegava em outro veículo. O Júri condenou o réu por homicídio doloso consumado e homicídio doloso tentado, amos com dolo eventual. A defesa pugnou pela nulidade da quesitação, tendo em vista não ter havido votação pela desclassificação para homicídio culposo. Entendeu o STJ, no entanto, que uma vez acolhida pelos jurados a tentativa de homicídio, não há falar em quesito desclassificatório, por incompatibilidade.
Já o julgado de 2012 diz respeito ao homicídio de uma mulher grávida, estando o autor ciente dessa condição, resultando também na morte do feto. No caso concreto, o réu desferiu um golpe de faca na nuca da vítima, aceitando também o aborto como resultado previsível, que tem pena de três a dez anos de reclusão. Nesta assentada, o STJ entendeu que os desígnios autônomos abrangem qualquer espécie de dolo, seja direto ou eventual. O concurso formal perfeito, que visa beneficiar o agente, não pode, por óbvio, resultar em uma pena maior que o cúmulo material, segundo o parágrafo único do art. 70 do CP. Considerando o caso narrado, o concurso formal perfeito resultaria numa pena mínima de quatorze anos, se aplicada a pena mínima do homicídio qualificado aumentada pela fração mínima de um sexto. Já o cúmulo material resultaria numa pena de quinze anos, com a soma da pena mínima do aborto. No entanto, como o STJ reconheceu o concurso formal imperfeito, não se aplica a regra do parágrafo único do art. 70 do CP, incidindo a soma das penas dos arts. 121 e 125 do CP, sem a dobra da forma qualificada prevista na parte final do art. 127 do CP, o que caracterizaria bis in idem com o crime de homicídio.
No âmbito do STF, o precedente estabelecido no Habeas Corpus n° 73448, julgado em 1996, em caso de aberratio ictus, também estende a regra do cúmulo material ao dolo eventual, desde que haja previsibilidade de risco a terceiros.
No concurso formal perfeito, o agente tem em mente uma só conduta, não importando quantos delitos vai praticar. Por conta disso, ele recebe a pena do crime mais grave com aumento. No concurso formal imperfeito, o agente tem em mente dois ou mais bens jurídicos, como no exemplo clássico de Basileu Garcia, em que o agente dispara um só tiro potente contra várias vítimas enfileiradas, visando matar todas elas.
Doutrinariamente, Heleno Fragoso exclui o dolo eventual para a caracterização dos desígnios autônomos. Para ele, só o dolo direto aos vários crimes praticados com uma única ação pode perfazer o concurso formal imperfeito. Da mesma forma, Ney Moura Teles defende que só o dolo direto justifica o cúmulo material de penas.
Guilherme Nucci resume o entendimento doutrinário, seguindo as lições de Nelson Hungria, enquadrando no concurso formal perfeito, com exasperação da pena, o dolo direto seguido de culpa, bem como o dolo direto seguido de dolo eventual. Somente se enquadraria no concurso formal imperfeito, com soma das penas, o dolo direto seguido de dolo direto. (Manual de Direito Penal, 10° edição, editora Forense, 2014).
O dolo direto aludido pela doutrina pode ser de 1º ou 2º graus. Assim, se o agente planta uma bomba no interior de um veículo visando ceifar a vida de um desafeto, mas pela potência do artefato tem como certa a morte dos demais ocupantes, agirá quanto a estes com dolo direto de 2º grau, e não dolo indireto, aplicando-se o concurso formal imperfeito com a soma das penas.
O dolo indireto pode ser eventual ou alternativo. No primeiro, o agente não quer o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. No segundo, o agente deseja, indistintamente, um ou outro resultado possível de acontecer, havendo uma maior proximidade com o concurso formal imperfeito, apesar da contrariedade doutrinária. No julgado mais recente, o STJ foi além, considerando a possibilidade de desígnios autônomos até mesmo em caso de dolo eventual seguido de dolo eventual. Em seu parecer, o MPF reforçou esse argumento ao indicar que as vítimas estavam em veículos distintos.
A distinção entre o dolo direto de 2º grau e o dolo indireto eventual está no nível de certeza dos resultados colaterais, já que a indiferença do agente é a mesma. Esse tema ganha relevância com crimes de explosão de aparelhos eletrônicos, como pagers, celulares, notebooks e televisores. Essas explosões já são usadas na guerra eletrônica em território libanês, e não tardará para ser adotado por grupos criminosos. A depender da potência e precisão da explosão, será possível inferir se os resultados colaterais advieram de dolo direto de 2º grau, dolo indireto eventual ou dolo indireto alternativo, buscando caracterizar ou não o concurso formal imperfeito, com cúmulo material das penas.
De fato, a maioria da doutrina trata o concurso formal perfeito como uma exceção que beneficia o agente, aplicável apenas quando os crimes em concurso forem todos culposos ou quando um for doloso e o outro culposo. Há outros que afirmam que a previsibilidade não se confunde com a previsão. Ou seja, a possibilidade de prever o resultado não é o mesmo que efetivamente prevê-lo.
Basileu Garcia adota uma via intermediária. Para ele, há insuficiência de critérios legais para esse enquadramento, devendo o juiz se guiar pela equidade em cada caso. Assim, um agente que se dirige a uma sacada e brada para a multidão “Patifes!” deve responder por concurso formal perfeito de crimes, com exasperação, já que não faria sentido somar as penas de 30 crimes de injúria. Isso porque sua conduta única visou um grupo indeterminado de pessoas, e não vítimas determinadas. Esse raciocínio também se aplica aos crimes virtuais praticados na internet, em especial aos crimes contra a honra por meio de redes sociais.
No exemplo oposto, Basileu Garcia cita o caso da cozinheira que coloca veneno no jantar da patroa visando matá-lá. Mas sabe que também pode matar o esposo e os filhos, que costumam jantar com ela. A cozinheira prevê esse resultado múltiplo como possível, e com ele anui. Neste caso, a previsibilidade do resultado atrai o somatório das penas.
Já para o STJ, se o agente pretendeu mais de um resultado ou anuiu com tal possibilidade, após tê-lo previsto, estarão caracterizados os desígnios autônomos. O acórdão mais recente se baseou no escólio de Paulo César Busato, para quem os desígnios autônomos podem advir tanto por desprezo, anuência ou desejo de ocorrência do resultado. Referido autor é adepto do dolo normativo, tido por ele como a escala mais grave de desvaloração da conduta, e identificado por indicadores objetivos externos à conduta. Não se trata de um dolo ontológico, vinculado a uma vontade real e psicológica, mas de provas circunstanciais de um compromisso com o resultado. Para esse autor, o concurso formal imperfeito se perfaz com a simples antevisão de um resultado plúrimo como possível.
Busato cita o exemplo do controlador de trilhos de trem, em que a conduta leviana pode resultar na morte de uma dúzia de passageiros no vagão. Sua indiferença com o resultado, anuindo com a possibilidade de sua ocorrência, é o que basta para o concurso formal imperfeito. Afinal, sua conduta única não pode ter uma pena menor que a de quem mata duas pessoas em ações independentes.
Esse entendimento ganha relevância em crimes hediondos, como homicídio qualificado, cujo cúmulo material projeta a pena a patamares elevados, e altos percentuais de cumprimento para a progressão de regime, em especial diante do acolhimento pretoriano da compatibilidade entre o homicídio qualificado e o dolo eventual.
Com isso, é preciso ampliar o que pode ser objeto de questionamento no Tribunal do Júri. Se a desclassificação para crime culposo pode ser deliberada pelos jurados, segundo o art. 483, §4º, do CPP, os desígnios autônomos também o podem. Como regra, após a reforma operada pela Lei 11.689/2008, o art. 483, incisos I a V, do CPP não alude ao quesito sobre o concurso de crimes. O STJ entende se tratar de tema afeto ao juiz presidente, por ser matéria técnica relacionada à dosimetria da pena.
Em sentido diverso, quanto à continuidade delitiva, Guilherme Nucci pontua: Essa causa de aumento, que, na realidade, atua em benefício do acusado, pois evita a soma das penas, como ocorreria se fosse aplicado o concurso material, pode ser tese de defesa, merecendo, pois, ser questionada pelo juiz presidente aos jurados. Não se concebe a teoria de que é pura matéria de aplicação da pena, devendo ficar inteiramente ao critério do magistrado, uma vez que, no Tribunal do Júri, impera a soberania dos veredictos, bem como a plenitude de defesa, e todas as teses admissíveis em direito podem ser invocadas pelas partes. Note-se que o crime continuado é um fato a merecer a avaliação dos jurados: houve ou não uma continuação na prática dos vários homicídios? Ora, em respeito à soberania dos veredictos e à plenitude de defesa, somos da opinião de que o juiz deve incluir o quesito pertinente à continuidade delitiva quando expressamente requerido por qualquer das partes. (Curso de Direito Processual Penal, editora Forense, 17° edição, 2020).
O concurso formal perfeito é instituto contíguo à continuidade delitiva, apesar de opostos. Naquele há uma só conduta e vários crimes, enquanto neste há várias condutas e um só crime. De fato, no crime continuado, os crimes subsequentes são tidos como a continuação do crime anterior. A fração mínima de aumento em ambos os casos é a mesma, de um sexto, podendo variar até um meio no primeiro caso, e dois terços no segundo, conforme a quantidade de crimes praticados. Em caso de crimes dolosos, com vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça, a lei permite ao juiz aumentar a pena até o triplo.
Apesar das diferenças, possuem a mesma natureza, tidos como ficções legais em benefício do réu, e seus efeitos terminantes não podem ser relegados à simples dosimetria da pena, subtraindo-os à apreciação do Conselho de Sentença.
Reforça esse entendimento a adoção pelo STJ, quanto ao crime continuado, da teoria mista ou objetiva-subjetiva, que exige, para além dos requisitos objetivos, a unidade de desígnios ou o vínculo subjetivo havido entre os eventos delituosos.
Tanto a unidade de desígnios na continuidade delitiva quanto a autonomia de desígnios no concurso formal possuem estreita relação com o elemento subjetivo, cuja apreciação cabe ao Conselho de Sentença. O primeiro para beneficiar o réu, enquanto o segundo age em seu prejuízo, resultando no somatório das penas.
Em conclusão, para coadunar o entendimento pretoriano emanado das duas turmas do STJ com a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos, necessário se faz que esta corte acolha o concurso formal perfeito como tese defensiva a ser indagada aos jurados, ao lado da continuidade delitiva, com fundamento nos arts. 483, IV, §3º, I, e 492, I, “c”, do CPP, que aludem à indagação das minorantes.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A Amplitude Subjetiva dos Desígnios Autônomos no Concurso de Crimes e sua Submissão ao Conselho de Sentença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2024, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3772/a-amplitude-subjetiva-dos-desgnios-autnomos-no-concurso-de-crimes-e-sua-submisso-ao-conselho-de-sentena. Acesso em: 04 dez 2024.
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