A experiência polonesa recente pode servir de exemplo para o Brasil, dado o passado de vinculação constitucional na Era Vargas, podendo o país seguir mais uma vez a Polônia, mas desta feita na direção oposta, em reforço ao estado de direito, encontrando um caminho conciliador entre os argumentos de interferência judicial na política e de interferência política no sistema judicial.
O Ministério Público da Polônia é formado pelo Procurador-Geral da República, Ministério Público Nacional, Procuradores Regionais, Distritais e de Recurso. Em 18/01/2021, o Procurador-Geral da República adjunto polonês transferiu vários membros do Ministério Público, contrários ao governo, para escritórios a 400 quilômetros de distância de suas casas. A maioria deles tinha filhos nas escolas e empréstimos hipotecários em suas antigas residências.
A título ilustrativo, a promotora Katarzyna Kwiatkowska, presidente da Associação de Promotores Lex Super Omnia, que atuava na capital Varsóvia, abriu uma investigação contra o Ministro da Justiça e seu primeiro adjunto, sendo em seguida transferida para uma cidade a 180 km de distância. O motivo oficial da sua delegação para um distrito distante foi para atuar no combate ao novo coronavírus.
Paralelamente, vários juízes poloneses foram submetidos a ações disciplinares após proferirem sentenças contrárias aos interesses do governo, em ações propostas pelo Ministério Público. Essas punições foram aplicadas pela Câmara Disciplinar, órgão criado pelo governo junto ao Supremo Tribunal do país.
Após esses fatos, 78 juízes do Supremo Tribunal da Polônia se rebelaram contra a perseguição aos juízes e promotores. Como resposta a esta manifestação o presidente do país limitou-se a declarar que os promotores descontentes podem mudar de profissão. Após pressão da União Europeia, o governo polonês resolveu rever o regime disciplinar aplicado aos juízes, a fim de garantir maior independência judicial.
Contudo, as denúncias de aparelhamento do Judiciário e do Ministério Público continuaram, havendo o ajuizamento de diversas ações penais contra manifestantes contrários ao governo, contendo acusações maliciosas e contrafactuais.
Já no Brasil, foi enviada ao plenário da Câmara dos Deputados a PEC 5/21, que promovia profundas alterações no Conselho Nacional do Ministério Público. Para ser aprovada, necessitaria de 308 votos. Dentre outras mudanças, a PEC diminui uma vaga oriunda do Ministério Público da União, determina que o Corregedor-Geral do Ministério Público seja indicado pelo Congresso Nacional e estende as atribuições fiscalizatórias do CNMP para atividades finalísticas do Ministério Público, inclusive com a revisão das decisões de seus Conselhos Superiores.
Além disso, a PEC também alterava o art. 128, § 5º, II, e, da CF, vedando de forma vaga a atuação dos membros do Ministério Público que importem interferência política. Lembre-se que a atuação do CNMP não possui natureza de controle externo, mas sim interno. O TCU, ao contrário, realiza controle externo. A proposta aumenta o prazo de prescrição para demissão de promotores, de cinco para oito anos. A Lei 8.112/90 prevê o prazo de cinco anos. Esse prazo pode ser estendido, se a infração funcional se enquadrar como crime. Pela PEC prevaleceria o maior prazo: oito anos ou o prazo do art. 109 do CP. Em dezembro de 2021, a PEC foi a plenário, mas por 11 votos não foi aprovada, atingindo 297 votos favoráveis.
Os juízes e membros do MP são proibidos de exercer atividade político-partidária. A Câmara dos Deputados aprovou uma nova restrição, consistente na quarentena de 4 anos a partir do desligamento do cargo, para que pudessem se candidatar a mandatos eletivos.
A pretexto de criar meios de fiscalização dos fiscais, o campo político tem investido contra a independência funcional de juízes e promotores, enfraquecendo a independência institucional do Judiciário e do Ministério Público. São iniciativas provindas de governos com diversos matizes ideológicos, em países como Bolívia e Venezuela até Romênia e Hungria. Faça-se menção aos casos extremos, como as juízas do Afeganistão e o juiz libanês, responsável pela investigação da explosão no porto de Beirute.
De fato, a barbárie ainda grassa em alguns lugares do mundo, e os juízes não estão a salvo. Cesare Beccaria já advertia no capítulo XXXVII de "Dos Delitos e das Penas": “Os que lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano. Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras, em que homens vivos serviam de alimento às chamas, em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes, em que cidadãos corriam, como a um espetáculo agradável, a contemplar a morte dos seus irmãos, no meio dos turbilhões de negra fumaça, em que os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas humanas”.
Contudo, o presente ensaio se resumirá à comparação entre os métodos de interferência política adotados na Polônia e no Brasil, por duas razões: a semelhança em suas estruturas institucionais e a identidade do rótulo “democrático” das medidas.
A influência jurídica da Polônia no direito brasileiro aflorou quando Francisco Campos elaborou a Constituição de 1937, com inspiração na Carta Magna polonesa de 1935. Na época, vigorava no Brasil a Constituição de 1934, de viés liberal e descentralizador. Getúlio Vargas jurou defender essa constituição em sua posse, mas no dia seguinte declarou que iria revisá-la.
O contexto histórico mundial da década de 1930 revela uma democracia liberal desacreditada, após o rescaldo da crise de 1929. O mundo se voltava para ideologias totalitárias, opondo o nazi-fascismo de um lado e o stalinismo de outro. No Brasil, essas correntes políticas eram representadas pelo Partido Comunista Brasileiro, alinhado com a União Soviética, e a Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista, a que Getúlio pertencia.
Na Polônia, a Constituição de março de 1921 havia limitado severamente os poderes da presidência. Sob as especificações do ditador Józef Piłsudski, foi elaborada a Carta Magna de abril de 1935, garantindo uma presidência centralizadora.
Em novembro de 1935, o governo brasileiro sofreu uma tentativa frustrada de golpe de estado, apoiado pela União Soviética. O Levante Comunista iniciou nos quartéis de Natal, espalhando-se pelos demais estados do país. Após o contragolpe, o governo prendeu o líder da revolta, Luís Carlos Prestes, que ficou detido por 9 anos.
Em novembro de 1937, o governo forjou um falso plano da Internacional Comunista de dar um golpe no Brasil, conhecido como plano Cohen. O plano serviu de álibi para a outorga da Constituição Polaca no mesmo mês, nos moldes da aprovada pelo ditador Józef Piłsudski, com centralização do poder nas mãos do presidente e instauração da ditadura do Estado Novo.
Na virada dos anos 1980 e 1990, Brasil e Polônia passaram por transições entre um regime de governo ditatorial para democrático. Em 1989, o Brasil realizou a primeira eleição direta para presidente, sob os auspícios da Constituição de 1988, após 21 anos de ditadura militar, encerrada quatro anos antes. Em 1989, a Polônia também realizou sua primeira eleição para presidente após décadas de ditadura comunista, instaurando a democracia na Terceira República polonesa.
A assembleia constituinte brasileira de 1987 não cuidou de destituir os juízes do Supremo Tribunal Federal nomeados durante a ditadura militar. Durante os anos 1990 e 2000, diversos juristas exortaram pela necessidade de uma reforma no judiciário brasileiro, que finalmente foi aprovada pela EC 45 em dezembro de 2004, instituindo um controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público, com a implantação do CNJ e do CNMP em 2005. O termo controle externo possui conotação política. Na verdade, esses órgãos realizam controle interno e o TCU realiza controle externo.
A Polônia aprovou uma nova constituição em 1997, liberal e democrática. Nos anos que se seguiram, muitas críticas foram feitas ao judiciário do país. Dizia-se que a eleição de 1989 promoveu mudanças no executivo e no legislativo, mas deixou engessado o judiciário, ainda apegado ao passado comunista.
O Instituto da Memória Nacional da Polônia contabilizou 50 mil mortes nos chamados crimes judiciais, praticados durante o regime comunista, que tiveram respaldo do Poder Judiciário polonês. A maioria das vítimas eram ligadas ao movimento de independência.
Como comparação, a justiça de transição na Argentina contabilizou 30 mil mortes em 7 anos de ditadura. No Chile, durante 17 anos de ditadura de Augusto Pinochet, houve 3 mil mortes, 40 mil torturados e 80 mil presos políticos. Já no Brasil, os 21 anos de ditadura militar resultaram em 434 mortes e desaparecidos políticos, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Esse número inclui cerca de 170 pessoas mortas pelos dissidentes políticos. Atribui-se ainda 126 mortes de militares nos confrontos de guerrilha da época.
Além disso, havia uma imagem negativa dos juízes e tribunais poloneses por conta da corrupção generalizada, nepotismo e clientelismo. A nova constituição de 1997 visou retirar o resquício comunista, reformando o Tribunal Constitucional, o Conselho Nacional do Poder Judiciário e a responsabilidade disciplinar dos juízes.
O governo polonês que assumiu o poder em 2015 aprofundou as reformas no sistema judicial, incluindo o Ministério Público. A razão declarada para as medidas era que ainda havia juízes e promotores comunistas na Polônia, ou que foram treinados por comunistas. Sob essa desculpa, o governo distorceu a finalidade das reformas e promoveu perseguições.
Na Polônia, o Tribunal Constitucional é o órgão encarregado de dar a última palavra sobre a constitucionalidade do direito interno e internacional, bem como julgar as ações dos órgãos de Estado. Por sua vez, o Supremo Tribunal é a mais alta corte de recursos do país, nas áreas cível e criminal.
O jurista Antônio Álvares da Silva defende que o Brasil implante um Tribunal Constitucional nos moldes europeus, para ser o guardião da constituição. Essa é uma forma de partilhar o trabalho de legislador negativo e de última instância recursal, tal como o modelo é adotado na Polônia. Lá, o Tribunal Constitucional é composto por 15 membros escolhidos pela Câmara Baixa do parlamento bicameral da Polônia. Entre 2017 e 2018, o governo aprovou uma série de leis que reduziram a idade de aposentadoria compulsória dos juízes de 70 para 65 anos, retirando de uma tacada quase metade dos integrantes da corte.
No Brasil, ocorreu um movimento inverso, quando foi aprovada em 2015 a EC nº 88, que aumentou a idade de aposentadoria compulsória de 70 para 75 anos, evitando a mudança da composição do Supremo Tribunal Federal pelo governo da época.
Em dezembro de 2015, o governo polonês aprovou a Lei do Judiciário, promovendo profundas alterações no procedimento dos casos submetidos ao Tribunal Constitucional. Dentre outras alterações, a nova lei previu o quórum de dois terços para a declaração de inconstitucionalidade das leis pelo tribunal, o julgamento dos casos na sequência em que apresentados, sem exceções, além de ter previsto a vigência imediata da lei, sem vacatio legis.
O Tribunal Constitucional declarou essa lei inconstitucional, seguindo o rito da lei anterior. O processo teve a participação como amicus curiae do Conselho Nacional de Advogados. O governo não publicou essa decisão na imprensa oficial, requisito sem o qual ela não tem validade. O argumento era de que a decisão do tribunal não seguiu o procedimento estabelecido na nova lei, que tinha vigência imediata. O caso foi comparado a uma cobra comendo o próprio rabo, segundo a imagem de ouroboros, por conter argumentos circulares.
De outro giro, em dezembro de 2016, o governo polonês se recusou a imprimir e publicar 17 decisões do Tribunal Constitucional. O Ministério Público de Varsóvia foi obrigado a investigar a recusa de impressão pelo governo, após determinação judicial. Depois da queda de braços entre o governo e o Tribunal Constitucional, foi aprovada outra Lei do Judiciário, mais amena, mas com os mesmos vícios de inconstitucionalidade, inclusive prevendo a obrigação de apreciar os casos na ordem em que apresentados, com exceção apenas dos casos indicados pelo presidente da Corte, a essa altura um juiz simpático ao governo.
No Brasil, a decisão de inconstitucionalidade é dada por maioria absoluta, conforme previsto na Lei nº 9.868/99. Excepciona-se a modulação de efeitos, que exige quórum de dois terços. Além disso, o rito dos casos submetidos ao tribunal é delegado pela CF ao regimento interno do STF. A análise dos casos segue a ordem cronológica, mas permite diversas exceções, conforme previsto no novo Código de Processo Civil.
Sob o álibi de combater privilégios e uma suposta ditadura do judiciário (chamada de “Judgeocracy”), o governo polonês instaurou uma máquina de perseguição aos membros do judiciário e do Ministério Público, por meio da infame Câmara Disciplinar do Supremo Tribunal Federal e da Procuradoria-Geral da República. Além disso, com as alterações legais na composição dos tribunais, passou a controlar o Judiciário do país.
Essas reformas judiciais renderam atritos com a Comunidade Europeia, a qual a Polônia passou a integrar após a queda da União Soviética. A saída do bloco europeu já era cogitada nos meios de comunicação, movimento conhecido como “Polexit”, em alegoria ao “Brexit” do Reino Unido.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem sede em Estrasburgo, na França, e analisa casos que descumprem a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Esse tribunal adota a teoria da margem de apreciação, que concede um espaço de atuação para os órgãos internos do país infrator, como o Legislativo, em detrimento da imposição da corte. Essa teoria se fundamenta na subsidiariedade da jurisdição internacional e comunitária, além dos princípios da soberania dos países signatários e da separação de poderes.
No sistema regional interamericano, a Corte IDH passou a adotar a teoria da Margem de apreciação em seus julgamentos, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos.
No âmbito da Comunidade Europeia, contudo, os casos que ferem seus tratados são analisados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede em Luxemburgo. Por sua vez, a União Europeia tem sede em Bruxelas, na Bélgica. O artigo 7º do Tratado da União Europeia prevê dois instrumentos de resposta no caso de descumprimento de seus termos, um com dimensões preventivas, e outro com dimensões mais severas, de caráter sancionatório.
O governo polonês enfrentou embates no bloco em virtude de suas reformas judiciais e ataques à liberdade de imprensa, sofrendo severas críticas vindas de Estrasburgo, Luxemburgo e Bruxelas. De fato, sem um judiciário independente, não é possível garantir uma imprensa livre. Além disso, o governo foi acusado de ferir direitos de imigrantes, mulheres e da comunidade LGBT. A independência judicial, a imprensa livre e os direitos das minorias são previstos no Tratado da União Europeia.
O TJUE decidiu aplicar o art. 7º do tratado, determinando à Polônia que desfaça as modificações no sistema judicial, assegurando a independência do Poder Judiciário e do Ministério Público, e garantindo o Estado de Direito e a democracia no país. Entretanto, o Tribunal Constitucional polonês, controlado politicamente, entendeu que a decisão violava a soberania do país. Além disso, o direito constitucional teria primazia em face do direito comunitário, conforme preconiza a constituição polonesa de 1997.
A decisão revela um conflito entre as noções de soberania europeia e soberania nacional polonesa. O Conselho Europeu ameaçou com o bloqueio de bilhões de dólares em ajuda financeira à Polônia, além da aplicação de multas. Já no tocante ao direito das minorias, o governo alegou que está protegendo suas sociedades tradicionais contra a influência do liberalismo ocidental, erguendo cerca para impedir a entrada de imigrantes, processou criminalmente mulheres que protestaram nas ruas, em denúncias contendo dezenas de crimes inverídicos, e proibiu materiais escolares sobre homossexualismo.
A comparação com o governo húngaro foi imediata. Mas há uma diferença crucial entre os dois países: na Hungria, as medidas possuíam forte apelo popular e eram tomadas com base na constituição, enquanto na Polônia o governo submeteu as instituições ao seu controle.
No Brasil, a criação do Conselho Nacional de Justiça foi objeto de impugnação pela ADI 3367, sob o argumento de que feria a independência do Poder Judiciário. O STF julgou a ação em 13/04/2005, entendendo pela constitucionalidade da criação do CNJ, tendo em vista que na sua composição privilegiou-se a maioria qualificada de 9 integrantes escolhidos pelo Poder Judiciário em detrimento de 6 integrantes escolhidos por órgãos externos.
Para garantir a simetria entre Judiciário e Ministério Público, o CNMP deve ter mais um integrante, oriundo do Ministério Público dos Estados, assegurando o equilíbrio e autogoverno da instituição. Essa maioria qualificada coaduna-se com o entendimento do STF concernente à composição do CNJ.
A PEC 5/21 previa movimento contrário, já que o CNMP ficaria com uma maioria apertada de 9 a 8 para integrantes do MP, contrariando o entendimento do STF quanto à maioria qualificada. Além disso, importa não apenas o órgão de origem do integrante do conselho, mas principalmente quem faz a indicação. Assim, um Corregedor Nacional integrante do Ministério Público, mas indicado pelo Congresso Nacional, levantaria sérias dúvidas sobre a interferência política na atuação do CNMP.
A PEC 37/11 visava proibir os poderes investigatórios do Ministério Público. A investigação criminal ficaria a cargo tão somente das instituições policiais, que são subordinadas politicamente. A proposta contava com o apoio de juristas como Ives Gandra, José Afonso da Silva e Guilherme Nucci. Em 2013, após manifestações de milhões de pessoas nas ruas, a PEC foi rejeitada na Câmara dos Deputados, obtendo apenas 9 votos favoráveis.
Em 2015, o STF decidiu o RE 593.727/MG conferindo o poder de investigação criminal ao Ministério Público. A Suprema Corte adotou como razão de decidir a doutrina dos poderes implícitos, com raízes nos Estados Unidos, no caso McCulloch v. Maryland, julgado em 1819. Nesse julgamento, a Suprema Corte norte-americana entendeu que, se a Constituição dos Estados Unidos conferiu atribuição à União para arrecadar impostos e aplicar os recursos arrecadados, também lhe conferiu poderes de criar um banco que lhe possibilitasse realizar essas atividades. Em suma, se a Constituição atribuiu a um órgão uma atividade-fim, deve-se compreender que também conferiu, implicitamente, todos os meios e poderes necessários para a consecução desta atribuição ou atividade.
Em outros termos, se o art. 129, I, da CF atribuiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública como atividade-fim, deve-se compreender que também conferiu-lhe poderes para investigar, já que a denúncia deve vir lastreada em justa causa, consistente em provas mínimas de autoria e materialidade.
A PEC 5/21 tinha estreita ligação com um debate mais amplo, relacionado ao controle político das instituições judiciais e ministeriais. Tanto no Brasil como na Polônia, argumenta-se que o Judiciário não passa pelo filtro das eleições, não havendo legitimidade democrática em suas decisões. Além disso, os integrantes da instituição teriam privilégios não extensíveis às demais categorias. A PEC 32/20, conhecida como Reforma Administrativa, buscou equalizar os direitos e deveres funcionais, retirando as férias de 60 dias. Levantamentos feitos por órgãos de fiscalização orçamentária entre 2017 e 2021, constataram o pagamento de indenizações milionárias para juízes, decorrentes da venda de férias não gozadas, prática que foi vedada pelo CNJ em julho de 2021.
A doutrina destaca as formas de controle das decisões do STF. O art. 84, XIV, da CF dispõe que cabe ao Presidente da República nomear os ministros do Supremo. Por sua vez, o art. 52, II, da CF prevê a competência do Senado Federal para processar e julgar os ministros da corte. Além disso, a Lei Complementar Federal nº 35, conhecida LOMAN, aplica-se aos ministros do STF, inclusive no tocante às transgressões disciplinares e penais. Exclui-se de seu âmbito apenas a função típica de julgar. Igualmente, a nova Lei de Abuso de Autoridade excluiu de seu âmbito o chamado crime de hermenêutica.
Os constitucionalistas ainda reportam o controle social do STF, realizado pela sociedade e pelos próprios integrantes do judiciário. Como exemplo dessa espécie de controle, o STF decidiu de forma vinculante a ADC 9/DF, em 2001, declarando a constitucionalidade da MP 2.152-2, que instituiu uma sobretaxa na conta de energia elétrica e autorizou o corte de energia nas residências que não reduzissem o consumo. Esse racionamento de energia ocorreu no episódio conhecido como “apagão”. Contudo, a decisão foi objeto de intensa reação popular, tendo o Ministério Público ingressado com ações civis públicas contestando as medidas, com pedidos julgados procedentes pelos juízes, que declararam a inconstitucionalidade incidental da medida provisória, contrariando a decisão vinculante da Suprema Corte.
Esse poder constituinte difuso dos juízes de primeira instância é criticado por parcela da doutrina. O controle difuso surgiu no caso Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1803. A opinião redigida pelo presidente John Marshall não cita nenhum precedente, tendo sido a primeira a aplicar a doutrina da revisão judicial na mais alta corte do país. No Brasil, esse modelo foi defendido por Rui Barbosa, desde a Constituição de 1891. Ele é deferido aos juízes por tradição hermenêutica. A CF/88 a ele faz referência apenas no tocante aos tribunais, quando dispõe sobre a cláusula de reserva de plenário. Por sua vez, o novo CPC se refere ao controle difuso apenas no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal e no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade, também a cargo dos tribunais.
O controle político também é outra modalidade de monitoramento das decisões do STF, realizado pelo Senado Federal com base no art. 52, X, da CF, por meio de uma Resolução. Nesse caso, as decisões de inconstitucionalidade tomadas pelo STF em controle difuso podem se tornar vinculantes e erga omnes, sob análise discricionária do Senado, que pode suspender leis federais, estaduais, distritais e municipais.
É preciso citar ainda o controle jurisdicional, a cargo dos tribunais internacionais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos não aceita a tese da quarta instância, que lhe daria competência para revisar as decisões das supremas cortes dos países signatários. No entanto, a Corte IDH entende que suas decisões não podem ser obstadas por decisões dos tribunais internos. Esta corte determinou que o Brasil investigasse os crimes da ditadura, declarando a Lei de Anistia inconvencional. Porém, o STF declarou a mesma lei constitucional, preponderando a soberania nacional e a Constituição Federal. A Corte IDH decidiu que o STF não podia obstar a implementação de sua decisão, já que o Brasil aderiu sem reservas à jurisdição da corte.
O caso se assemelha à decisão do Tribunal Constitucional da Polônia, referente à ordem emanada do Tribunal de Justiça da União Europeia. Contudo, para perfeita identidade, a decisão teria que ser emanada do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, que é o homólogo do TJUE. Também é possível provocar a jurisdição da Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia.
Por fim, os autores citam o autocontrole realizado pelo próprio STF, com deferência aos demais poderes. Já o controle político da constitucionalidade das leis é realizado por meio dos seguintes mecanismos: Comissão de Constituição e Justiça, uma comissão permanente das casas do Congresso Nacional, instalada na forma do art. 58 da CF; o art. 49, V, da CF, que prevê a sustação de atos do executivo que extrapolam o poder regulamentar; e o art. 62, § 5º, da CF, que dispõe sobre o exame de relevância e urgência das Medidas Provisórias pelo Congresso Nacional. A doutrina reporta também a possibilidade de o chefe do Poder Executivo descumprir leis que entenda inconstitucionais, cabendo-lhe ainda opor veto jurídico a projetos de lei por vício de inconstitucionalidade.
A questão sobre quem deve dar a última palavra sobre a constitucionalidade das leis foi realizada no parlamento brasileiro por ocasião da discussão sobre a PEC 33. Dentre outras alterações, a proposta previa a aprovação do legislativo para as Súmulas Vinculantes do STF, a consulta popular nas decisões de inconstitucionalidade do STF e o aumento do quórum para quatro quintos nas decisões de inconstitucionalidade do STF. A justificativa da proposta se apoiava no fato de que a Suprema Corte estaria abusando da função de legislador negativo e usurpando a de legislador positivo, por meio de mecanismos de evasão constitucional, tais como: a interpretação conforme à constituição, declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, mutação constitucional e sentenças aditivas.
O jurista neozelandês Jeremy Waldron defende que a última palavra sobre a constitucionalidade das leis seja dada pelo Legislativo (Derecho y desacuerdos, Madrid, Marcial Pons, 2005). Por outro lado, Carl Schmitt defendia que a última palavra fosse do Executivo. Schmitt cunhou o sentido político da constituição, tida como uma decisão política fundamental, distinguindo-a das leis constitucionais. No entanto, referido jurista possui um grave vício de origem na sua doutrina, pois era integrante do terceiro Reich, tido como o jurista da Coroa, tendo a função de justificar as execuções extrajudiciais de Hitler, o que fez regiamente por três anos. Em 1945, ao término do conflito, as forças aliadas o capturaram, e o levaram à prisão por crimes de guerra. Nos últimos anos, governos de países ditatoriais, como a China, passaram a demonstrar grande interesse por suas teorias.
O STF tem se destacado na função contramajoritária da jurisdição constitucional. As pesquisas de opinião trazem um decréscimo na aprovação popular da corte, ao passo que outras instituições se mantêm em alta, como as FFAA. No entanto, essas instituições não decidem assuntos polêmicos da sociedade com força obrigatória, como o direito ou não de a amante receber pensão por morte. Muitos assuntos que deveriam compor a pauta política, com debates no parlamento, são levados ao STF.
Dentre os assuntos mais polêmicos decididos pela corte, se destacam: ADI 4277, de 2011, sobre a constitucionalidade das uniões homoafetivas; ADPF 54, de 2013, sobre a interrupção da gravidez de feto anencéfalo; ADPF nº 187, de 2014, sobre a liberação da marcha da maconha; ADPF nº 347, de 2016, sobre o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário; ADO nº 26, de 2019, sobre a criminalização da homofobia; ADCs 43, 44 e 54, de 2019, sobre a vedação à prisão em segunda instância. Essas decisões revelam que o STF desempenha um papel crucial na democracia, como garantidor do pacto constitucional.
No entanto, persistem as tentativas do Poder Legislativo de interferir no STF e relativizar a independência dos juízes e membros do Ministério Público, contando com apoio das alas de oposição e situação. Em 2024, tanto a Câmara quanto o Senado aprovaram propostas de alteração da constituição vedando decisões monocráticas dos tribunais superiores, incluindo o STF. Além disso, a PEC 28/2024 prevê a sustação das decisões do STF pelo voto de dois terços da Câmara e do Senado, podendo o STF manter a decisão pelo voto de quatro quintos de seus membros. Logo, bastariam que três integrantes da corte concordassem com o parlamento para que a decisão dos outros nove integrantes fosse sustada. O presidente do STF comparou essa proposta à constituição polaca de 1937, da era Vargas.
Esses métodos em muito se assemelham aos adotados na Polônia. Lá, juízes e promotores foram perseguidos por se manifestarem nas ruas e nas redes sociais. Para tanto, o governo aparelhou a Câmara Disciplinar no Supremo Tribunal Federal, controlada politicamente, e a Procuradoria-Geral da República. Contudo, magistrados e promotores não se despojam de sua condição de cidadãos ao assumirem seus cargos, podendo manifestar suas opiniões sobre as medidas governamentais como qualquer integrante da sociedade. Afinal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada sob os auspícios de quatro liberdades fundamentais: a liberdade de expressão, a liberdade de culto, a liberdade contra a miséria e a liberdade contra o temor. Assim, a ninguém pode ser negado o direito de se manifestar.
A assinatura de mais de três mil membros do Ministério Público brasileiro em carta aos parlamentares contra a influência política no CNMP certamente ensejaria uma ação disciplinar na Polônia. Neste país, juízes que protestavam nas ruas carregando faixas foram demitidos. Mas em solo pátrio a Corregedoria-Geral do CNMP recomendou a demissão de 11 Procuradores da República, que atuaram em investigação contra ex-senadores na operação lava jato, por vazamento de informações.
Na época, a Procuradoria-Geral da República anunciou a descoberta de um banco de dados sigiloso contendo informações de 38 mil pessoas na operação lava jato, sem controle da corregedoria do MPF. Esses dados foram coletados com base nos poderes investigatórios do Ministério Público. O risco de utilização política dos dados ensejou a proposta de alteração no art. 128, § 5º, II, "e", da CF pela PEC 5/21. Além disso, a Lei Geral de Proteção de Dados protege dados sigilosos e sensíveis. Atualmente, um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas busca aperfeiçoar o controle e compartilhamento de dados de investigações criminais, em especial o vazamento de informações. A esse respeito, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que investigava os vazamentos teve o relatório final vazado, constando nele o indiciamento de autoridades por vazamentos de informações, na versão brasileira do ouroboros, da cobra engolindo o próprio rabo.
Após o bloqueio da União Europeia de bilhões de dólares que iriam para a Polônia, mantido por decisão do TJUE, a população polonesa escolheu um novo governo de centro em 2023, encerrando uma era de conflitos com o Judiciário e o Ministério Público. De fato, o novo governo restaurou o estado de direito em 2024, separando os papéis de Procurador-Geral e Ministro da Justiça, que haviam sido concentrados numa única figura unipessoal. Com a separação, foi restabelecida a independência funcional do Ministério Público. De igual modo, foi desmontada a estrutura de influência política e perseguição na cúpula do Judiciário, principalmente da famigerada Câmara Disciplinar.
Essa guinada pelo estado de direito e independência dos órgãos judiciais não enfraquece a fiscalização sobre o Judiciário e Ministério Público, mas antes garante uma atuação imparcial, que interessa a toda a sociedade. Os fundamentos desse debate na Polônia são o ponto de inflexão para a discussão do mesmo tema em solo pátrio.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Quem fiscaliza o fiscal? Análise comparativa entre as propostas de reforma judicial no Brasil e na Polônia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2025, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3802/quem-fiscaliza-o-fiscal-anlise-comparativa-entre-as-propostas-de-reforma-judicial-no-brasil-e-na-polnia. Acesso em: 08 mar 2025.
Por: Melissa Telles Barufi
Por: Benigno Núñez Novo
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