Com o intuito de tornar expressa a responsabilidade de membros do Ministério Público que ingressam com “ações temerárias”, ou com “manifesta intenção de promoção pessoal” ou “visando perseguição política”, o Projeto de Lei n. 265/2007, apelidado de “Lei da Mordaça”, de autoria do deputado Paulo Maluf, propôs algumas modificações nas Leis n. 4.717, de 29 de junho de 1965; 7347, de 24 de julho de 1985 e 8.429, de 2 junho de 1992.
Chama-nos especial a atenção a alteração sugerida no art. 19 da Lei de Improbidade, ao prever a configuração de crime no oferecimento de representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária, cuja pena é de detenção de seis a dez meses e multa.
Muito embora a Lei 8.429/92 já contemplasse aludida penalidade, houve ampliação do dispositivo legal, de molde a considerar também criminosa a propositura de ação ou representação, pelo Promotor ou Procurador, quando reputada temerária.
Tal expressão equívoca e genérica compactuar-se-ia com o perfil do Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição da República, do qual emana o princípio da reserva legal?
Indubitavelmente, estamos diante de uma estarrecedora violação ao sobredito princípio, uma vez que este impõe que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com típicos genéricos, demasiadamente abrangentes. O deletério processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade. De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na Lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos. A garantia, nesses casos, seria meramente formal, pois, como tudo pode ser enquadrado na definição legal, a insegurança jurídica e social seria tão grande como se lei nenhuma existisse.
É o que ocorre com o emprego da expressão “de maneira temerária”. Trata-se de verdadeira carta branca conferida aos processados por ato de improbidade visando à punição dos Promotores e Procuradores, sob o vago argumento da temeridade da ação, quando, na realidade, sabemos que o Parquet está autorizado a propô-la, mesmo não havendo um juízo de certeza, em decorrência do velho brocardo jurídico, in dubio pro societate.
Por força dessa vagueza conceitual, que abarca uma série infindável de condutas, sem nenhum limite material, o preceito legal deve ser considerado inconstitucional.
No entanto, a grave violação à ordem jurídica não pára por aí.
A situação gera, ainda, um maior estarrecimento quando se constata que o alvo da Lei é atingir e engessar a atuação de uma instituição que tem como missão constitucional precípua zelar pela ordem democrática.
Com efeito. O art. 1º da CF consagrou o perfil político-constitucional do Estado brasileiro como o de um Estado Democrático de Direito, no qual há um compromisso normativo com a igualdade social, material, real e não apenas formal, como no positivismo que dominou todo o século XIX. Dentre os objetivos fundamentais da Carta Magna está o da eliminação das desigualdades sociais, erradicação da pobreza e da marginalização (CF, art. 3º, III). No art. 37, caput, o Texto Magno garante a todos o direito a uma administração pública proba, assegurando os princípios da eficiência, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, dentre outros, dado que o rol não é taxativo. Esse mesmo artigo, em seu § 4º, determina o rigoroso combate à improbidade administrativa, a qual, não raro, vem acompanhada de crimes contra o patrimônio público.
Dentro desse cenário, o Ministério Público surge como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127). O caráter permanente e a natureza de suas funções levam à conclusão de que se trata de um dos pilares do Estado Democrático de Direito, em cuja atuação independente repousam as esperanças de uma sociedade justa e igualitária.
Desse modo, toda e qualquer interpretação relacionada ao exercício da atividade ministerial deve ter como premissa a necessidade de que tal instituição possa cumprir seu papel da maneira mais abrangente possível.
Não é por outra razão que seus membros podem ser classificados como agentes políticos e têm plena liberdade funcional para atuar, desempenhando suas funções com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais (leis orgânicas). Encontra-se, portanto, o Parquet num regime jurídico distinto de responsabilidade, dado o importante papel que lhe foi conferido pela própria Constituição da República.
Nesse contexto, punir criminalmente aquilo que se considera genérica e subjetivamente como a propositura de ações temerárias constitui grave inibição ao dever constitucional do Ministério Público de zelar pela ordem democrática. Sendo os olhos e o longa manus da sociedade, suas ações não podem ser arbitrariamente engessadas, sob pena de se estar cerceando e cegando a própria coletividade, situação esta só compactuada pelos regimes ditatoriais.
Um Ministério Público acuado e constrangido, em sua atuação, representa a ruptura de uma das vigas mestras na qual se escora o Estado Democrático de Direito, pois somente instituições independentes podem validamente cumprir a sua missão constitucional de zelar pelo bem comum.
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