Resumo: Analisa o projeto federal do Documento Único, contendo dados do Registro Geral do cidadão e outras informações, discutindo, à luz do Direito Constitucional e Administrativo, os ganhos e os possíveis riscos que o processo centralizado poderá acarretar.
Palavras-chave: RIC – Documento Único – Carteira de Identidade – CPF – Título de Eleitor – Identificação – Investimento – Parque Tecnológico - Biometria – Imagem – Impressões Digitais – Segurança – Fraude – Representatividade – Desequilíbrio – Intervenção - Pacto Federativo.
Desde 1997, através da Lei nº 9.454, o Governo Federal criou o Registro Único de Identidade Civil, em termos sumários, tendo estabelecido prazos e metas, seguidamente desatendidos, para que o assunto fosse regulamentado através de decreto e implementado em todos os Estados, dentro de cinco anos[1].
Trata-se, de fato, de tema muito importante para se criar um documento único, sob gerenciamento nacional, mais seguro, que possa substituir a tradicional Carteira de Identidade e, além disso, nele agreguem as informações sobre Cadastro de Pessoa Física (CPF), Título de Eleitor, Carteira Nacional de Habilitação, entre outras[2].
A idéia é a de impedir que o cidadão de um Estado possa, como hoje se permite, tirar documento de identidade em todas as Unidades da Federação, com numeração diferente em cada uma delas e, provavelmente, com dados falsos, já que os bancos de dados estaduais são estanques e não se comunicam com seus congêneres, criando largo acesso à fraude.
A proposta da União é de estabelecer gerenciamento centralizado desses acervos de informações, integrando-os através de um processamento federal, expedindo-se numeração única e sequencial para todo o Brasil, garantindo maior segurança ao documento e afastando a probabilidade de adulteração criminosa dos chamados Registros Gerais (RGs).
Para isso, cada Estado deverá modernizar o seu lastro de informações de identificação civil e criminal, transformando-o em um banco de dados biométricos, com a captura, por meios eletrônicos, da imagem do identificado, da coleta digital de suas impressões decadactilares e integrá-los ao processamento central, assegurando, assim, a individualização induvidosa de cada brasileiro, reduzindo exponencialmente a confusão acidental ou propositadamente delituosa entre inúmeras pessoas, como tem acontecido.
O novo documento será feito através de superposição de camadas de policarbonato, nos moldes de um cartão bancário, contendo chip eletrônico que armazena, de maneira codificada, as informações nele expressas, podendo facilmente ser checado por Órgãos Policiais ou Judiciais, com os atributos indiscutíveis de maior segurança e durabilidade.
Os benefícios da Nova Carteira de Identidade não vão se restringir ao seu titular ou portador, por ser menos susceptível à fraude e impedir que escroques se apropriem de seus dados para o cometimento de crimes, abertura fraudulenta de empresas ou mesmo a constituição indevida de débitos financeiros em nome de outrem.
As atividades comerciais poderão ficar imunes ao falsário. As instituições bancárias deverão sofrer menos prejuízos em pagamentos equivocados a pessoas físicas ou jurídicas. Ao sistema previdenciário e de seguridade social se deverão garantir menos desvios criminosos de benefícios como pensões e aposentadorias pleiteados por pessoas ilegítimas e inescrupulosas. O serviço eleitoral estará seguro de estar tratando com eleitores de fato existentes e detentores dos requisitos legais para o exercício de direitos e obrigações pertinentes.
É imprescindível, entrementes, para realização desse feito, investimento federal no sistema e aporte de recursos do Tesouro Nacional junto aos Estados para auxílio nas tarefas de modernização de parque tecnológico adequado, digitalização de seus arquivos físicos, aquisição de ferramentas eletrônicas adequadas para coleta das digitais em formato e padrão compatível e aparato instrumental para captura de imagens, além de outros detalhes complementares.
Através de reuniões periódicas e reiteradas com os Institutos de Identificação dos Estados, o Governo Federal se dispôs a encarar o desafio e, para isso, editou em 5 Mar 2010, o Decreto de nº 7.166, criando o Sistema Nacional de Registro de Identificação Civil, com a finalidade de implementar o número único do Registro de Identidade Civil, o RIC.
A matéria prima de todo o projeto são os bancos de dados dos Estados, competentes legal e originariamente para os serviços de Identificação Civil de sua população[3].
Foi criado para isso, através da norma referida, um Comitê Gestor[4] do Sistema Nacional, dentro do Ministério da Justiça, para cuidar de suas propostas e administrar as funções inerentes aos serviços referenciados, entre eles o de disciplinar procedimentos para sua operacionalização, definir especificações documentais e tecnológicas, estabelecer níveis de acesso às informações, passando a existir, enfim, como absoluto administrador de toda a sistemática funcional do RIC.
O Comitê, todavia, foi composto por representações da União e dos Entes Federados, já que o trabalho envolve interesses recíprocos. Acontece que o decreto federal, ao determinar a composição de seus integrantes, não observou, por motivos desconhecidos, proporcionalidade necessária entre a União e suas Unidades Federativas.
De fato, integram o Colegiado em discussão os seguintes Órgãos Federais[5]: Ministério da Justiça, Ministério da Defesa, Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento, Ministério do Trabalho, Ministério da Previdência, Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, Ministério das Cidades, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Casa Civil da Presidência da República, Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e o Instituto Nacional de Identificação da Polícia Federal, em número inicial de quatorze representações, enquanto que para os Estados, em parágrafo residual do artigo 3º do dispositivo em comento, fica aberta a possibilidade de admissão de um representante dos Órgãos de Identificação Civil por Região Geográfica, o que significa, dentro desse contexto, participação inexpressiva em número máximo de cinco pessoas.
Diante dessa acintosa desproporção, os Estados não conseguirão, nunca, exercer influência na decisão dos seus interesses, por se constituírem em flagrante minoria. A postura federal, por isso, a par da desproporcionalidade da formatação gestora entre seus componentes, de insofismável iniqüidade, se configura, também, salvo entendimento diverso, inaceitável e ilegal intervenção em tarefas e funções de competência originária dos Estados, ferindo gravemente os princípios que devem orientar o Pacto Federativo.
Ao invés de se posicionar como parceiro e facilitador do processo, de interesse multilateral, o Governo Federal passa a se apropriar de um serviço que constitucionalmente não lhe incumbe.
Os financiamentos, totais ou parciais, de obras e serviços patrocinados pela União junto aos Estados e Municípios, não devem significar, por parte dos beneficiários, renúncia aos direitos assegurados pela Magna Carta no que tange à divisão de poderes e competências. A título de exemplo rudimentar, seria imaginar que, numa cidade, obras de arquitetura viária como um complexo de viadutos, se patrocinadas pelo Governo Central, transfiram a este o exclusivo controle sobre o fluxo de veículos a que se destina.
Alternativa plausível à postura governamental para gerenciamento do RIC, será que a integralidade dos Estados componha, com um representante por Unidade, o Comitê Gestor ou que, excetuando-se o Ministério da Justiça, que vai abrigar o Colegiado e se responsabilizar pelo processamento das informações, como ainda o Instituto Nacional de Identificação, por sua afinidade lógica e direta com o tema, as demais representações se limitem à participação de assessoria e acompanhamento técnico, sem direito de voto nas decisões. Por fim, será legítimo que os Estados, a permanecer a representatividade por Região Geográfica, tenham atribuído ao seu voto o peso do número das Unidades de que possuem mandato. Assim o voto do Sudeste teria peso quatro; peso três para o Sul; o Norte valeria peso sete; o Nordeste, peso nove e o Centro-oeste possuiria peso quatro.
Há que se advertir, por derradeiro, pelas razões e fundamentos aqui tratados, que o decreto que se discute apresenta-se arbitrário e inconstitucional, inclusive por aglutinar temerariamente poderes em área política inadequada, de forma irregular, transcendendo a questão técnica e administrativa que o caso comporta, colocando em risco, até, as garantias de privacidade das informações pessoais do cidadão.
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. A nova carteira de identidade e o projeto "RIC" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2010, 00:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/724/a-nova-carteira-de-identidade-e-o-projeto-ric. Acesso em: 26 dez 2024.
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