DIANE JÉSSICA MORAIS AMORIM
(Orientadora)[1]
RESUMO: As mudanças decorrentes nos arranjos familiares, os novos entendimentos acerca das relações das famílias, principalmente em decorrência dos reflexos sobre o direito de família, possibilitaram uma ampliação do conceito tradicional de família, que por muito tempo teve como base apenas a relação pai, mãe e filhos, baseada no patriarcalismo e essencialmente biologizada, para uma família reconhecidamente afetiva, igualitária e com novas configurações. A evolução social e cultural muitas vezes não é acompanhada pelo mundo jurídico e a multiparentalidade é um exemplo de que a realidade, no direito de família deve ser respeitada, muito mais do que em outras áreas. E nesse contexto a multiparentalidade constitui-se como principal expressão das famílias reconstituídas, em que cria-se a figura da madrasta e enteados ou padrasto e enteados, além dos filhos que podem advir da nova união, que muito embora não tenham reconhecimento expresso constitucional e nem infraconstitucional, estão mais presentes na sociedade do que se possa imaginar. Desta forma, tendo em vista ser um tema de recente abordagem, o presente artigo pretende desenvolver uma análise, ainda que breve, sobre a multiparentalidade e os consequências jurídicas do seu reconhecimento.
Palavras-Chave: Multiparentalidade. Dignidade da pessoa humana. Efeitos jurídicos.
ABSTRACT: The resulting changes in family arrangements, new understandings about family relations, mainly due to reflections on family law, allowed for an extension of the traditional concept of family, which for a long time was based only on the relation between father, mother and family. children, based on patriarchalism and essentially biologized, to an admittedly affective, egalitarian family with new configurations. Social and cultural evolution is often not accompanied by the legal world and multiparentality is an example of what reality, in family law, must be respected, much more than in other areas. And in this context, multiparentality is the main expression of reconstituted families, in which the stepmother and stepchildren or stepchildren and stepchildren are created, as well as the children who may come from the new union, although they do not have express constitutional recognition and nor infraconstitutional, are more present in society than one might imagine. In this way, with a view to being a recent topic, this article intends to develop a briefly analysis of multi-parenting and the legal consequences of its recognition.
Keywords: Multiparentality. Dignity of human person. Legal effects.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem o condão de ponderar acerca das novas formas de estruturação familiar, tendo em vista as novas aspirações jurídicas, trazendo como objetivo analisar as consequências jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade e os seus desdobramentos, buscando esclarecer questões sobre os reflexos desse reconhecimento.
A multiparentalidade, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança, tem ganhado papel de destaque nos estudos científicos e precedentes jurisprudenciais e a escolha do tema se deu em virtude da temática acerca do direito de família com o surgimento da repercussão geral nº 622 do Supremo Tribunal Federal, que assegurou a possibilidade de constar o nome dos pais biológico e socioafetivo no registro de nascimento dos filhos, sem que um excluísse o outro.
Como será visto adiante, tal fenômeno aparece com maior frequência quando são analisadas as famílias recompostas ou neoconfiguradas, através das quais, um novo vínculo familiar é constituído razão pela qual surge a presença de dois tipos de parentesco, o biológico e o afetivo.
A metodologia utilizada foi o método indutivo, que está pautado e estruturado em fundamentação teórica e bibliográfica, por meio de análise jurisprudencial e doutrinária, além de da legislação infraconstitucional e constitucional que guiará e respaldará esse objeto de pesquisa, tendo seus sustentáculos firmados nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente, onde a multiparentalidade emerge como forma de solução dos litígios judiciais, consagrando a simultaneidade dos liames biológico e afetivo, pondo fim às discussões que muitas vezes se arrastam anos a fio.
Por fim, a relevância jurídica desse artigo se dá por se tratar de uma temática ainda pouco explorada, mas que vem sendo, paulatinamente, inserida no ordenamento jurídico pelas decisões jurisprudenciais. Assim, ao longo da pesquisa serão analisados os contornos que pairam sobre o instituto da multiparentalidade, assim como as consequências jurídicas do seu reconhecimento.
1 DA FAMÍLIA
1.1 TRANSFORMAÇÕES JURÍDICAS DO CONCEITO DE FAMÍLIA
Quando se pensa em família, conforme Maria Berenice Dias (2007, p.38), sempre se pensa em “um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos”. Esta realidade se modificou com o surgimento de novos modelos de famílias. Esclarece a referida autora (2007, p.39) que o pluralismo das relações familiares ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família.
Então com pode-se observar na fala da referida autora, ao longo do tempo o conceito de família sofreu constantes mudanças, assim como o Direito de Família brasileiro, culminando no advento da Constituição Federal de 1988 que ampliou e flexibilizou o conceito de família, admitindo-se outros arranjos de famílias.
Pelo Código Civil de 1916, família era constituída tão somente pelo casamento e com o transcorrer dos anos, novas espécies de família foram sendo reconhecidas pelo legislador. Diante disso, se faz necessário que se conceitue algumas das espécies de formação familiar, iniciando com as formas mais tradicionais até as contemporâneas.
1.2 MODALIDADES DE FAMÍLIA
1.2.1 Família matrimonial
A primeira modalidade do instituto de família é a Família Matrimonial, que de acordo com o professor Dimas Messias de Carvalho (2009, p.4) é aquela família formada com base no casamento pelos cônjuges e prole natural e socioafetiva.
1.2.2. Família monoparental
As famílias monoparentais podem ser aquelas constituídas por pais viúvos, pais solteiros que criam seus próprios filhos ou filhos adotados, mulheres que utilizam de técnicas de inseminação artificial e por fim, pais separados ou divorciados. Isto porque, essas famílias podem se originar do mero acaso, como nos casos de viuvez, ou simplesmente como fruto da vontade, conforme explica o professor José Sebastião de Oliveira na seguinte passagem:
Como primeiro fator responsável pelo fenômeno monoparental pode-se citar a liberdade com que podem as pessoas se unir e se desunir, seja através de formalidades cogentemente estabelecidas, como decorre do casamento, seja de maneira absolutamente informal, como acontece na união estável. (OLIVEIRA, 2002, p. 215)
Nesse sentido Dias (2013, p.20) também salienta que família monoparental é aquela que provém da vontade e da liberdade que o ser humano possui de escolher os seus relacionamentos.
1.2.3 Familia pluriparental
Segundo Maria Berenice Dias (2007, p.47) é a entidade familiar que surge com o desfazimento de anteriores vínculos familiares e criação de novos vínculos reconstruídos por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores.
1.2.4 Família Anaparental
Segundo Vitor Frederico Kümpel em palestra ministrada em 21/01/2008 no Curso Damásio, Família Anaparental é a relação que possui vínculo de parentesco, mas não possui vínculo de ascendência e descendência e tem por principal elemento a afetividade, tendo como fundamento a valorização da socioafetividade. É a hipótese de dois irmãos que vivam juntos.
1.2.5 Família Paralela
Segundo Maria Berenice (2007, p.48), é aquela que afronta a monogamia, realizada por aquele que possui vínculo matrimonial ou de união estável. O Código Civil de 2002 denomina de concubinato as relações não-eventuais existentes entre homem e mulher impedidos de casar. O artigo 1521 do CC refere ao concubinato chamando de família paralela. Portanto, na família paralela, um dos integrantes participa como cônjuge ou companheiro em mais de uma família.
1.2.6 Família Informal
Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2008, p. 37) é a relação entre homem e mulher que não tenham impedimento para o casamento, e a grande característica é a informalidade e, em regra, ser não-registrada, embora possa obter registro.
O artigo 1723 do Código Civil reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
1.2.7 Família ou União Homoafetiva
A Família Homoafetiva é aquela decorrente da união de pessoas do mesmo sexo, as quais se unem para a constituição de um vínculo familiar. O Projeto do Estatuto das Famílias a define no artigo 68, reconhecendo como entidade familiar a união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável.
1.2.8 Família Unipessoal
A Família unipessoal segundo Euclides de Oliveira (2009, p. 35) é aquela composta por apenas uma pessoa. Recentemente, o STJ lhe conferiu a proteção do bem de família, como se infere da Súmula 364: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
1.2.9 Família Eudemonista
Eudemonismo é, conforme BLACKBURN (1997, p.132) ética baseada na noção aristotélica de “eudaimonia” ou felicidade humana. E nesse sentido Maria Berenice Dias (2007, p. 52), afirma que a família eudemonista busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros e a absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento e altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram.”
1.2.10 Família Multiparental
Segundo Pereira apud Buchmann (2013,p.51), multiparentalidade é “o parentesco constituído por múltiplos pais, ou seja, quando um filho tem reconhecido mais de um pai e/ou mais de uma mãe”.
Para Dias (2010, p. 49) a multiparentalidade “decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum”. Em outro momento a autora ainda aduz que “as famílias multiparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência”.
2. MULTIPARENTALIDADE
A proposta do instituto da multiparentalidade é fazer com que seja incluso no registro civil de nascimento o nome do pai ou da mãe socioafetivo(a), sem que seja necessário excluir o nome dos pais biológicos, pois a multiparentalidade é sinônimo de legitimação de paternidade/maternidade de uma pessoa que ama para com a outra.
Dias (2013, p.56) caracteriza essas famílias da seguinte forma:
São famílias caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de independência.
[...]
A multiplicidade de vínculos, a ambiguidade dos compromissos e a interdependência, ao caracterizarem a família-mosaico, conduzem para a melhor compreensão desta modelagem.
A multiparentalidade surge da miscigenação de novos arranjos de família e encontra-se respaldada em diversos princípios constitucionais, que reconhecem esses indivíduos como sujeito de direitos e portanto necessitam da integral proteção para o seu pleno desenvolvimento.
Aqui se faz necessário falar sobre os princípios que nortearam e garantiram o reconhecimento da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a repercurção geral da decisão 622 do Supremo Tribunal Federal, permitiu o reconhecimento da multiparentalidade.
A contribuição dos princípios que regem a multiparentalidade, na verdade é a busca da formação da base deste instituto, e a ampliação do reconhecimento normativo e vale destacar que a valorização do afeto, constitui-se novo pilar da multiparentalidade, reforçado através dos princípios que seguem.
2.1 Princípios que regem o instituto da multiparentalidade
2.1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Este é o mais universal de todos os princípios e do mesmo se irradiam todos os demais princípios, como liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos e por isso tem importância fundamental no ramo do direito.
O Sobre a dignidade da pessoa humana a autora Maria Berenice Dias diz que:
O princípio da pessoa humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O estado não tem apenas o dever de abster-sede praticar atos que atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. Esse princípio encontra na família o solo apropriado para florescer (2011, p. 63).
Nos tribunais brasileiros, diversas e recorrentes são as decisões que utilizam da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana para embasar as decisões proferidas, em especial no direito de família, como por exemplo em relação a dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, este princípio está atrelado ao fato de que os interesses da criança ou adolescente devem ser tratados com prioridade pelo Estado, pela sociedade e, ainda, pela família, cujo objetivo é fazer com que o menor deixe de ser considerado um objeto, passando a ser um sujeito de direitos.
2.1.2 Princípio do Pluralismo das Entidades Familiares
O princípio do pluralismo das entidades familiares é conhecido por assumir um caráter plural, não mais matrimonial, a que se limitava. Nos dizeres de Maria Berenice Dias (2011, p. 67) “o princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares”.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 62) reforçam que:
(...) é preciso ressaltar que o rol da previsão constitucional não é taxativo, estando protegida toda e qualquer entidade familiar, fundada no afeto, esteja ou não, contemplada expressamente na dicção legal.
Aqui vale salientar que essa pluralidade de entidades familiares, também se dá através do chamado multiculturalismo, ou seja, a aceitação de todas as características das diferentes culturas, fazendo com que surja a multiparentalidade, fenômeno resultante deste pluralismo sociocultural globalizado.
2.1.3 Princípio da Afetividade
A afetividade ganhou espaço sobre todos e quaisquer outros vínculos, com amparo no princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, renovou-se o entendimento de família, a sociedade passou a ser mais tolerante com a forma de convívio das pessoas e estas mais livres para buscar a realização dos seus sonhos, sem precisar ficarem sujeitas a permanecer em estruturas preestabelecidas.
Nas palavras de Sérgio Rezende de Barros (2003, p. 143-154):
O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, como o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.
O princípio da afetividade é prestigiado pela CF/88 e comprovadamente vem se materializando nas decisões dos magistrados por todo o território nacional. É o que constatamos neste trecho do inteiro teor de acórdão do STJ:
O que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico (STJ,2009).
O elo afetivo existente entre os integrantes da família, possui um valor inestimável, em razão do princípio da solidariedade, e deve proporcionar elementos essenciais, pautados na responsabilidade do desenvolvimento humano, a igualdade entre os filhos, e no auxílio para o seu crescimento com dignidade.
2.1.4 Principio da Solidariedade
A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o artigo 3º, I da Constituição Federal, no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária, repercutindo nas relações familiares.
O princípio da solidariedade familiar possui assento constitucional, estando consagrado nos artigos 3º, 226, 227 e 230 da Constituição Federal de 1988.
2.1.5 Princípio do Melhor Interesse do Menor
A sociedade nos últimos séculos vem passando por intensas transformações, e, neste contexto histórico, encontramos a criança inserida nas relações familiares, sendo protagonista de diversos direitos sociais e jurídicos. Isso levou o legislador a atribuir de maneira justa, condições que efetivem a proteção devida para essas crianças.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008, p. 63) ressalta a valorização deste princípio ao dizer que:
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente apresenta importante mudança de eixo nas relações paterno-filiais, em que o filho deixa de ser considerado objeto para ser alçado a sujeito de direito, ou seja, a pessoa humana merecedora de tutela do ordenamento jurídico, mas com absoluta prioridade comparativamente aos demais integrantes da família de que ele participa. Cuida-se, assim, de reparar um grave equívoco na história da civilização humana em que o menor era delegado a plano inferior, ao não titularizar ou exercer qualquer função na família e na sociedade, ao menos para o direito.
Portanto é perceptível que a criança como a parte frágil na busca de seus direitos, precisa de amparo legal, e este amparo deve vir tanto do Estado quanto da família, sendo que o poder estatal deve resguardar o menor, e sempre buscar o que for do melhor interesse da criança e do adolescente, e a família deve exercer seu papel social, na formação e desenvolvimento desta criança.
2.1.6 Princípio da Realidade Socioafetiva
Este princípio é de extrema importância no instituto da multiparentalidade, posto que trata da criança em comparação aos demais membros da família no âmbito familiar, focando em dois aspectos: referente a situação registral da criança, pois sem o registro não tem como falar em sujeito ativo de direito, já que somente com o registro é possível indicar sua existência, e a identificar diante a sociedade, e também a condição social da criança inserida em outra família.
3 Reconhecimento Social e Jurídico da Multiparentalidade.
O critério adotado no Brasil para a definição de paternidade sempre foi o biológico, baseado na ideia de relação sexual e gravidez. Outros países fundamentaram a filiação legal, associando-a ao casamento jurídico, de forma codificada. Com o avanço jurídico, científico e tecnológico, o matrimônio deixou de ser a forma principal para definição de paternidade no Brasil, o que ensejou o aparecimento da multiparentalidade.
Para a doutrina, diversas são as premissas no reconhecimento da multiparentalidade. Alguns autores utilizam das novas formas de constituição familiar para definir e analisar esse instituto, é o caso de Rodrigo Cunha, o qual reconhece a multiparentalidade como consequência dos vínculos que são construídos nas famílias recompostas, vejamos:
Nas famílias ensambladas, reconstituídas ou mosaico a relação jurídica é complexa (...), não há ainda um delineamento claro sobre a relação jurídica entre os filhos dos casamentos anteriores que, a partir do novo casamento de seus pais, convivem entre si. (...) É muito justo que os filhos-enteados, principalmente aqueles que se tornam filhos socioafetivos, tenham o direito de se sentirem pertencentes a esta nova modalidade de família (CUNHA, 2009, p. 88–94 e p. 93-94).
Assim, Lôbo (2011,p.58) , também ensina que “a filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem”.
Vale ressaltar acerca do tema que, formado o vínculo socioafetivo, o seu reconhecimento se torna irretratável, irrevogável e indisponível de forma voluntária, pois essas relações familiares envolvem-se de segurança jurídica, sob pena até mesmo de banalizar o instituto em comento. Importante destacar também, que não há previsão legal sobre o instituto da multiparentalidade, sendo apenas uma construção doutrinária e jurisprudencial. Porém, a ausência normativa não constitui empecilho para a regulamentação do reconhecimento parental, visto que o Poder Judiciário, conforme autoriza o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro tem o dever de decidir, mesmo diante da omissão legislativa.
Mesmo com toda a polêmica no âmbito geral de sua aplicação, tanto na seara registral, no campo sucessório e nos alimentos, por não haver claras definições, é relevante o estudo acerca deste tema, pois já é uma realidade, tendo em vista que a mesma vem sendo reconhecida juridicamente, com decisões judiciais e várias opiniões no campo doutrinário.
Por todo exposto, é perceptível que a multiparentalidade pode utilizar-se de diversas formas para se manifestar. Pode, por exemplo, apresentar-se através da constituição de novas formas familiares. Porém, em qualquer das situações, só haverá a múltipla filiação se houver a socioafetividade, pois “a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação” (LOBO, 2008, p. 10). E vale lembrar que inúmeros foram os tribunais, os quais enfrentaram a questão, aceitando e entendendo que o melhor interesse dos envolvidos deve ser considerado e amparado juridicamente, sob pena de contrariar o princípio da dignidade da pessoa humana.
3.1 OS EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
Com o múltiplo reconhecimento de parentalidade, surgem diversos efeitos, cujo conteúdo carece de um debate maduro com vistas à regulamentação legal do instituto em estudo. Acerca da importância desses efeitos na multiparentalidade, o professor Christiano Cassettari (2015, p. 247) destaca que:
Eu comecei a perceber que as decisões judiciais nesse sentido só se preocupavam em discutir se havia ou não havia afetividade em certas relações. Muitas sentenças começaram até a ser poéticas neste sentido, e poucas delas se preocupavam com os efeitos jurídicos disso, as consequências desta decisão. Então o propósito do meu estudo foi, partindo do pressuposto de que a parentalidade socioafetiva existe, que o afeto já foi debatido, discutir quais são os regulares efeitos disso.
Cassettari acredita que o parentesco socioafetivo deve gerar os mesmos efeitos do biológico, motivo pelo qual o Poder Judiciário, ao reconhecê-lo, deve ser mais criterioso.
3.1.1 Extensão do parentesco aos outros parentes
Uma vez criado o vínculo de filiação, todas as linhas de parentesco produzirão seus efeitos. Deste modo, o filho teria parentesco colateral e em linha reta com a família de ambos os pais, podendo então ser aplicadas as hipóteses de impedimentos matrimoniais e os efeitos sucessórios e considerando que a parentalidade é estendida aos outros filhos do pai socioafetivo, surge então a irmandade socioafetiva.
Além disso, também não pode haver casamento entre filhos e pais socioafetivos. Essa proibição também cabe para os parentes por afinidade em linha reta e aos parentes colaterais até o terceiro grau. Cumpre ainda salientar que aplicar-se-ão ao parentesco socioafetivo todas as regras do parentesco natural, pois, conforme previsto no artigo 1.593 do Código Civil, a expressão outra origem é o que baseia a paternidade socioafetiva, pois assim como ocorre nas famílias tradicionais biparentais, a vinculação multiparental deve ser da mesma forma e extensão. Todos os efeitos de filiação e parentesco devem ser concedidos, sendo a eficácia igual, não havendo diferenças.
3.1.2 Efeitos Registrais
O registro no assento de nascimento é o meio oficial e mais prático de demonstrar a filiação. Por se tratar a multiparentalidade de um instituto novo, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, para cumprir todos os efeitos, é necessário que seja dada publicidade através de modificações no assento de nascimento.
Neste sentido, Mauricio Cavallazzi Póvoas (2012, p. 88) ensina que:
[...] pela certidão extraída do registro comprova-se a filiação de forma direta, conforme dicção do art. 1.603, do Código Civil. O registro não é a única, mas é a mais fácil maneira de se provar a paternidade/maternidade, servindo de base para vários atos da vida civil, inclusive os garantidores de direitos dos menores – previdenciários, por exemplo – pois estabelece de forma incontestável por terceiros a relação paterno/materno filial.
Destaca-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu um grande passo para o avanço do Direito de Família padronizando as certidões de casamento, nascimento e óbito em todo o país, e, substituindo a expressão dos campos “pai e mãe” para “filiação”, e nos campos “avós paternos” e “avós maternos” somente para “avós”. Tal mudança foi bastante significativa, visto que ao se falar em reconhecimento socioafetivo, juridicamente não houve mais nenhum embaraço registral.
3.1.3 Efeitos quanto ao nome
No que concerne ao direito ao nome, a cumulação destes não pode ser impedida. A Lei nº 11.924/09 trata da questão registral da dupla paternidade ou maternidade, logo não pode ser óbice para a efetivação da multiparentalidade. A função do registro é assentar a verdade real. O registro deve se adaptar a essas novas situações, possuindo espaço para mais de um pai ou mais de uma mãe, para que todos os efeitos advindos da filiação sejam consignados. Neste contexto, essa lei, corroborando essas novidades, alterou o artigo 57 da Lei nº 6.015/73, dispondo o seguinte:
Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei.
[...]
§8 O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.
Não poderá ser vedada à criança e ao adolescente a utilização do nome dos pais em seu registro, visto que se trata de direito fundamental. No instituto em comento não deve ser diferente. Ao genitor é assegurado seu direito de manter ou incluir seu nome no registro de nascimento do seu filho, caso esse seja violado.
O artigo 54, itens 7º e 8º da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos, determina que no registro deverão constar os nomes e prenomes dos pais e dos avós maternos e paternos. Assim, no registro de nascimento constará os nomes dos pais biológicos, do pai ou mãe socioafetivo(a), bem como constarão como avós todos os ascendentes destes. O filho poderá usar o nome de todos os pais.
3.1.4 Efeitos quanto à Obrigação Alimentar
Para falarmos de alimentos na multiparentalidade, devemos iniciar trazendo à memória o art. 229 da Constituição: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Da mesma forma, o art. 1.696 do Código Civil assegura que a prestação de alimentos é recíproca entre pais e filhos, de modo que todos os pais poderão prestar alimentos aos filhos, bem como, estes poderão prestar alimentos a todos os pais, caso venham a necessitar.
Por óbvio, com fundamento nessas duas normas, na multiparentalidade não deve ser diferente, considerando sempre o binômio possibilidade e necessidade em respeito ao parágrafo 1º do artigo 1.694 do Código Civil, pois se através da multiparentalidade os filhos conquistam o direito de terem inserido em seus registros os nomes dos dois pais ou das duas mães, logo, por não haver distinção entre filhos, conforme previsto expressamente no artigo 227, § 6º da CF, não há outra forma de aplicação do direito dos alimentos a não ser a legal, vigente em nosso país.
Na medida em que o artigo 1.696 do Código Civil assegura que a prestação de alimentos é recíproca entre pai e filho, tanto todos os pais poderão prestar alimentos ao filho, bem como este poderá prestar alimentos a todos os pais. Tais situações deverão levar sempre em consideração o binômio possibilidade e necessidade, em respeito ao parágrafo 1º do artigo 1.694 do Código Civil.
Para Schimitt e Augusto (2013, p.213), na tripla filiação multiparental o menor necessitado poderá requerer alimentos de qualquer um dos pais, atendendo o princípio do melhor interesse da criança, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Resta claro que a possibilidade de uma tripla filiação teria muito mais condições de contribuir para o adequado desenvolvimento do menor. Nos casos onde os magistrados decidissem por reconhecer a tripla filiação, sempre haverá a prévia relação familiar de fato, restando apenas reconhecer uma regulamentação de direito.
Entende-se, então, que a multiparentalidade proporcionará ao filho o dever de ser fornecedor dos cuidados na velhice de seus pais. Poderá o filho ver-se compelido a escolher um deles para melhor atender ou, então, deverá prestar alimentos e cuidados aos dois ou três, caso necessitem? Embora, instigante, a resposta para tal questionamento está surgindo com o passar dos anos, pois, como vem sendo destacado no presente trabalho, o instituto da multiparentalidade é novo e ainda carece de maior reflexão para as respostas, que fluem da convivência do dia a dia.
Todavia arrisca-se, com base jurisprudencial, doutrinária e na analogia, considerar que o filho deverá prestar igual parcela de alimentos e questionar dos pais, que usualmente se estabelece em um limite de 1/3 (um terço) dos vencimentos líquidos. Entretanto nada impede que, de acordo com o binômio necessidade e possibilidade ocorra a fixação de valor acima ou abaixo desse critério usual. Na multiparentalidade o critério poderá ser inicialmente sempre o mesmo, nos moldes da interpretação dos juízos e tribunais.
3.1.5 Efeitos em relação ao Direito de Visitas e Guarda
A guarda, que é um dos deveres do poder familiar, será exercida de acordo com o princípio do melhor interesse da criança, bem como o direito de visitas (PÓVOAS, 2012). Poderá ser realizada tanto na modalidade unilateral, quanto compartilhada, aplicando tanto aos pais biológicos como ao socioafetivo as disposições contidas nos artigos 1.583 ao 1.590 do Código Civil.
O artigo 229 da Constituição Federal define que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Assim, a partir da inexistência de distinção de filiação, o dispositivo é plenamente aplicável aos pais e aos filhos integrantes da família multiparental.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o princípio da afetividade devem ser analisados para chegar a uma decisão sobre o direito à guarda, restando claramente que o pai ou a mãe que não ficar com a guarda terá assegurado o seu direito de visitas, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Este direito de convivência se estende aos avós tanto biológicos como socioafetivos.
Vale salientar também que tendo em vista uma possível separação entre o pai biológico e a mãe biológica, bem como dos pais socioafetivos, nesse caso será deferida a guarda compartilhada que é a regra adotada pelo Código Civil brasileiro que entende que ambos os pais sejam eles biológicos ou socioafetivos irão exercer a guarda de maneira conjunta responsável e de maneira equilibrada sempre visando atender as necessidades básicas dos filhos uma vez que não há preferência sobre o exercício de guarda.
Quanto ao direito de visita, será aplicado de forma análoga como ocorre nos modelos tradicionais de família em que as responsabilidades deverão ser acordadas entre ambos os pais. Reitere-se que nos casos em que não houver acordo quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a modalidade compartilhada.
3.1.6 Efeitos Sucessórios
Na sucessão, embora haja discussão na doutrina, sobretudo porque o tema é recente, sob o aspecto da amplitude da relação, todos os pais são herdeiros do filho, assim como o filho é herdeiro de todos os pais. A mesma relação se estabelece em relação aos ascendentes e descendentes, bem como aos parentes colaterais até o quarto grau. As sucessões dos pais não se comunicam entre si, salvo àqueles que são cônjuges ou companheiros.
Conforme princípio constitucional previsto expressamente no artigo 227, § 6º da CF, “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim sendo, independentemente da forma de reconhecimento dos filhos, sejam esses naturais, afetivos ou multiparentais, possuem os mesmos direitos, inclusive sucessórios. Esse também é o sentido jurídico da regra do art. 1.596 do Código Civil.
Portanto, pelo fato de não haver distinção jurídica sobre a relação pai/filho ser biológica ou afetiva, estando reconhecida a multiparentalidade, no momento da transmissão da herança estaria criada a linha de chamamento sucessório de cada pai ou mãe que o filho tiver. Assim o filho multiparental figura como herdeiro necessário de todos os pais que tiver.
Leciona Zeno Veloso (2003, p. 240) que:
A sucessão independe do vínculo de parentesco e sim do vínculo de amor, pois sua relevância na atual sociedade deve fazê-la seguir as mesmas normas sucessórias vigentes no Código Civil, onde os descendentes (em eventual concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente) figuram na primeira classe de chamamento, sendo que os mais próximos excluem os mais remotos. Existindo, portanto, filhos do de cujus, estes concorrem entre si em igualdade de condições, recebendo cada qual por cabeça a sua quota do quinhão hereditário.
Destaque-se que este direito de sucessão se estende aos pais, ou seja, todos os pais também são herdeiros necessários do seu filho.
Assim as consequências do direito sucessório se dão da mesma forma da obrigação de prestar alimentos, de modo que filhos com pais biológicos e afetivos teriam os mesmos direitos a herança desses dois pais e de igual modo esses dois pais teriam direitos iguais na herança desse filho caso este venha a falecer.
Como já mencionado, não há, segundo o posicionamento do STF em decisão de repercussão geral, prevalência entre múltiplos pais e mães e nesse ponto deve-se ter um olhar cuidadoso, pois o juiz, ao analisar o caso concreto, não deve focar apenas nos aspectos formais, mas também aspectos relacionados à convivência desses indivíduos, evitando que o reconhecimento da multiparentalidade sob a ótica do direito sucessório tenha cunho exclusivamente patrimonial.
3.1.7 Efeitos Previdenciários
Assim como acontece no direito aos alimentos e de sucessão, onde os filhos têm direito de herança em relação aos pais e os pais têm direito na herança em relação aos filhos, e também nos alimentos a obrigação é recíproca, de forma semelhante acontece no que tange aos direitos previdenciários, pois também existe a reciprocidade entre os pais e os filhos. É o que entende o art. 16, da Lei Federal nº.8.213/91, que determina:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou invalido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente.
Neste mesmo sentido o artigo 16, em seu inciso II, determina que os pais também são considerados beneficiários. Logo, na multiparentalidade a relação previdenciária é como em qualquer relação de filiação, os pais, biológicos ou afetivos e o filho recebem a condição de dependentes do segurado.
Portanto, havendo parentalidade socioafetiva, haverá, também, a necessidade de se reconhecer direitos previdenciários. Também será conferido esse direito aos pais e irmãos socioafetivos, estes últimos não emancipados, menores de 21 anos ou inválidos.
3.1.8 Efeitos quanto ao exercício do Poder Familiar em caso de divergência
A legislação correspondente ao poder familiar é facilmente adaptável ao modelo de família multiparental, sem a necessidade de modificação, pois basta para a sua eficácia a interpretação pautada no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
De acordo com Dias (2015, p. 409) cada um dos pais exercerá o poder familiar, trazendo para si as responsabilidades e os direitos enumerados no artigo 1.634 do Código Civil, de modo a reservar aos demais esta mesma possibilidade. Na hipótese de haver discordância é cabível o suprimento judicial objetivando a solução da controvérsia, na interpretação do parágrafo único do artigo 1.631 do Código Civil. A questão dos efeitos de divergências entre os genitores é observada quando o menor tem três ou mais filiações no seu registro de nascimento e precisa de consentimento, assistência ou representação dos pais para praticar atos da vida social, caso aconteça de um deles não concordar para que o ato aconteça, nestes casos é necessária a intervenção do Poder Judiciário para dirimir o desacordo.
Quando tratar-se de filho menor, incumbirá ao pai socioafetivo o poder familiar em conjunto com os demais. Na prática, em muitos pontos o poder familiar já é exercido pelo(a) pai/mãe socioafetivo(a), assim apenas se regularizará os demais itens.
Assim caberá ao pai socioafetivo em relação ao filho dirigir-lhe a criação e educação; tê-lo em sua companhia e guarda; conceder-lhe ou negar-lhe consentimento para casar; nomear-lhe tutor por testamento ou documento autêntico, se os outros dos pais não lhe sobreviverem, ou os sobrevivos não puderem exercerem o poder familiar; representá-lo, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte, suprindo-lhe o consentimento; reclamá-lo de quem ilegalmente o detenha e exigir que lhe preste obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, como dispõe o artigo 1.634 e incisos do Código Civil.
Ainda o artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que o poder familiar será exercido por ambos os pais, em igualdade de condições, sendo que em caso de discordância há o direito de se recorrer à autoridade judiciária. Por força do artigo 22 da mesma lei, cabe aos pais o dever de guarda, sustento e educação, além da obrigação de cumprir e fazer cumprir determinações judiciais em relação aos filhos menores.
4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Assim como a doutrina, a jurisprudência também já vem reconhecendo a multiparentalidade. Entretanto, a matéria não está pacificada e, por isso, existem tanto julgados favoráveis como desfavoráveis. Passemos a analisar algumas decisões sobre o tema.
4.1 DECISÕES que reconhecem a multiparentalidade
No estado de Rondônia foi proferida sentença pela juíza da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes, Dra. Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, reconhecendo a multiparentalidade. Isto se deu nos autos da ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de registro civil, processo nº 0012530-95.2010.8.22.0002, proposta por A.A.B. em face de E.D.S.S. e M.D.S.D.245. O caso trata de ação ajuizada pela menor A.A.B., na qual pugnou pelo reconhecimento da paternidade de E.D.S.S. e anulação da paternidade registral de M.D.S.D., alegando que o pai socioafetivo falsamente se declarou como pai e requerendo o reconhecimento da paternidade biológica de E.D.S.S.
No caso em análise, a genitora e o pai biológico tiveram um relacionamento de 1996 a 2000, durante o qual foi concebida a infante A.A.B. Ocorre que, antes de tomar ciência da gestação, a genitora se separou do pai biológico e passou a conviver com o pai socioafetivo, que registrou a paternidade da menor em seu nome e conviveu com a genitora até os quatro primeiros meses daquela.
O parecer do Ministério Público apresentado nos autos mostrou importante estudo sobre o tema. Foi reconhecida a grandiosidade da situação na qual estava envolta a criança, posto que possuía um pai socioafetivo e outro biológico. Abordou o fato de que a menor construiu estreitos laços de afeto com o pai socioafetivo, sendo isto tão importante quanto a paternidade biológica de E.D.S.S., que restou comprovada por perícia acostada aos autos. Neste contexto, a magistrada concluiu que realmente não havia vínculo consanguíneo entre a infante e o pai registral a juíza entendeu por bem levar em consideração o desejo da infante de permanecer vinculada aos dois pais, somado ao fato de que ambos os pais também desejavam tal vínculo. Por isso, aceitou o parecer do Ministério Público que pugnou pelo reconhecimento da multiparentalidade.
Aqui vale salientar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. E baseado nessa decisão do Supremo, por maioria dos ministros foi negado provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 898060, com repercussão geral reconhecida, em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo.
O relator do RE 898060, ministro Luiz Fux, considerou que tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade – socioafetiva ou biológica –, desde que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos.
4.1 DECISÕES QUE não reconhecem a multiparentalidade
Existem julgados nos quais, em caso de paternidade socioafetiva já existente e desejo de reconhecimento da paternidade biológica, os magistrados estão optando por manter a paternidade registral e socioafetiva e não acrescentar no registro a paternidade biológica, mas também há o entendimento de que, nos casos em que restar demonstrada a filiação socioafetiva, não cabe mais analisar a filiação biológica, pois aquela impera sobre esta.
A fim de ilustrar, colaciona-se um julgado sobre o tema da multiparentalidade foram no sentido de inadmiti-la, fundamentando para tanto que o pedido de paternidadematernidade plural, seria juridicamente impossível, eis que a lei não traz essa possibilidade, e no registro deve constar o nome de um pai e uma mãe. Assim em casos de conflito de paternidade, em regra realiza-se uma exclusão, onde a paternidade ´´mais importante´´ prevalece sobre a ´´menos importante´´.
APELAÇÃO CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. EFEITOS MERAMENTE PATRIMONIAIS. AUSÊNCIA DE INTERESSE DO AUTOR EM VER DESCONTITUIDA A PATERNIDADE REGISTRAL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. Considerando que o autor embora alegue a existência de paternidade socioafetiva não pretende afastar o liame parental em relação ao pai biológico. O pedido pretende afastar o liame parental em relação ao pai biológico, o pedido configura-se juridicamente impossível na medida em que ninguém poderá ser filho de dois pais. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO RECONHECIDA DE OFÍCIO.PROCESSO EXTINTO. RECURSO PREJUDICADO.
Observa-se que pora alguns o critério biológico apresenta uma vantagem sobre o socioafetivo, pois diante do exame de DNA era muito fácil resolver o problema diante da enorme probabilidade de acerto. Nesse caso em analise diante do pedido de dupla paternidade e sua negatória, o vínculo que permaneceu foi o genético.
Assim, pode-se perceber que, mesmo com todos os avanços no sentido do reconhecimento da multiparentalidade, ainda há entendimento jurisprudencial contrário. Trata-se de um tema novo que precisa ser melhor trabalhado pela doutrina e jurisprudência pátria, a fim de que possa ser passado para o plano jurídico aquilo que já acontece na realidade fático-social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os antigos paradigmas que permeavam o direito de família devem ser superados e devem dar espaço a novos dogmas, a fim de conduzir o operador do Direito a soluções que anteriormente eram rotuladas como juridicamente impossíveis, como é o exemplo da multiparentalidade, que até pouco tempo era considerada juridicamente impossível e ultimamente tem encontrado espaço sendo tratada como uma alternativa de tutela jurídica para o fenômeno da liberdade de desconstituição familiar e formação de famílias reconstituídas, devido o surgimento de novos arranjos familiares, e nesse contexto o vínculo biológico perdeu sua exclusividade e passou a coexistir com outra causa remota, o vínculo socioafetivo. A socioafetividade passa do plano puramente social para o plano jurídico.
O reconhecimento do vínculo socioafetivo com o devido registro na certidão de nascimento, sem a retirada do registro do pai ou mãe biológico, figurando os dois nomes na certidão, traz uma série de efeitos jurídicos para o filho. A partir desse reconhecimento, este passa a ter direitos de alimentos, como a pensão alimentícia, além de direitos sucessórios. Todos os efeitos que podem surgir desse reconhecimento foram analisados no decorrer deste trabalho. Necessário se impõe, portanto, que o Direito passe a reconhecer a múltipla filiação, a fim de buscar o melhor interesse da criança. Toda a formação psicológica, social e de caráter da criança está intimamente ligada àqueles que dedicaram boa parte de seu tempo investindo em sua educação. O conceito de família perante o Direito não pode se prender aos paradigmas e dogmas do passado, excluindo de seu âmbito aqueles que são perfeitamente responsáveis pela educação de uma criança, mas que não possuem vínculos de consanguinidade. Dessa forma, a filiação socioafetiva é valor que deve prevalecer sobre a verdade biológica, posto que não há como destruir o elo consolidado pela convivência, devendo ser respeitado pela justiça a vida constituída ao longo do tempo.
Em sede de investigação de paternidade, o objeto não pode se limitar ao vínculo sanguíneo, dado que aquele alberga ainda os sentimentos afetivos que estão na posse do estado de filiação. Com essa evolução constante, ganha espaço uma interpretação voltada para os princípios constitucionais, a fim de melhor resolver questões relevantes. Neste contexto, os tribunais têm feito revoluções jurídicas na área do direito de família, ao julgar as causas tendo como parâmetro os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Todavia, conforme analisado anteriormente, a jurisprudência não é pacífica no sentido do reconhecimento da multiparentalidade, existindo também julgados que não a aceitam.
Ocorre que, por todos os motivos acima explanados, deve ocorrer a juridicização daquilo que já ocorre na realidade fático-social, que é a multiparentalidade. Portanto, deve ser considerado o seu reconhecimento, com todas as suas consequências, uma vez que reconhecer a paternidade afetiva não significa apenas conceder direito ao afeto, mas sim criar uma relação jurídica baseada neste, que permita à criança ou adolescente desenvolver-se plenamente, com todos os seus direitos fundamentais assegurados.
Assim, não reconhecer esse fenômeno, denominado de multiparentalidade, fere o princípio do melhor interesse da criança, que merecendo tutela ampla pelo ordenamento jurídico. Reconhecer a multiparentalidade representa um avanço no direito de família na medida em que respeita os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade entre os envolvidos.
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[1] 2 Graduada em Direito pela Universidade do Estado da Bahia. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil na especialização lato sensu promovida pela ESA/OAB em parceria com a Faculdade Maurício de Nassau. Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), [email protected].;
Graduada em Filosofia; Especialista em Gestão Ambiental; Especialista em Educação no Campo; Especialista em Psicopedagogia.
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