1 INTRODUÇÃO
O texto intenta esmiuçar alguns aspectos relevantes acerca da Federação, explicando as particularidades que a distinguem de outras formas de composição do Estado.
Objetiva-se, em paralelo, analisar a natureza dos Municípios e sua posição no âmbito do Federalismo brasileiro após a promulgação da Constituição da República de 1988.
2 DESENVOLVIMENTO
Consagrado no ordenamento maior brasileiro desde a Constituição republicana de 1891, de clara inspiração norte-americana, o modelo federativo de Estado, a despeito de ter assumido, ao longo do tempo, configurações distintas em diversos lugares, possui alguns atributos que o diferenciam de outras modulações.
De forma diversa do que ocorre com outras formas compostas de Estado, como a Confederação, no federalismo, a soberania é característica tão somente do Estado Federal, de modo que os Estados-membros dele integrantes são imbuídos de autonomia, conceito inconfundível com o outro termo delineado.
Já adentrando as características básicas do Estado Federal, diga-se que a ideia de autonomia implica descentralização administrativa e política do poder. Emerge, portanto, uma dupla esfera de poder normativo sobre um mesmo território: a federal, representada pela União, e a federada, representada pelos Estados-membros, sendo a competência destes últimos delimitada mediante critérios de repartição constitucionalmente estabelecidos. Como afirma Sarlet [1] (2014, p. 774):
O Estado Federal, portanto, é formado por duas ordens jurídicas parciais, a da União e a dos Estados-membros, que, articuladas e conjugadas, constituem a ordem jurídica total, ou seja, o próprio Estado Federal. Dito de outro modo, o princípio federativo (e o Estado Federal a ele correspondente) tem por elemento informador – e aqui valemo-nos das palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha – “a pluralidade consorciada e coordenada de mais de uma ordem jurídica incidente sobre um mesmo território estatal, posta cada qual no âmbito de competências previamente definidas”. Cuida-se, nesse sentido, de um pluralismo do tipo territorial levado a efeito mediante um sistema de distribuição do exercício de poder entre as unidades territoriais.
Nessa linha, a autonomia consigna os poderes de auto-organização (incluída a autolegislação) e autogoverno, os quais abarcam a execução das atividades cotidianas do poder público nos limites de cada entidade federada autônoma, de maneira independente dos órgãos federais, e a existência de um poder constituinte de natureza decorrente, dada a capacidade de os Estados-membros desenvolverem típica atividade constituinte.
A existência de uma Constituição Federal rígida que sirva como fundamento de validade das ordens jurídicas mencionadas é outro elemento do Estado Federal, devendo tal texto descrever um modelo de repartição de tarefas a fim de que se garanta a realidade da autonomia dos Estados, impondo-se ao mesmo documento que atribua a uma Corte nacional a incumbência de solucionar os conflitos que irrompam entre quaisquer dos departamentos federativos.
Contemplam-se aqui a sistemática de repartição de competências e o regulamento da capacidade tributária das pessoas políticas, do que decorrem, ainda, as estruturas constitucionais de repartição de receitas e de participação dos entes federativos no produto da arrecadação de outras pessoas jurídicas (artigos 157 a 159 da Constituição). Nessa ótica, diz Paulo Gustavo Gonet Branco[2]:
Como no Estado Federal há mais de uma ordem jurídica incidente sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas, impõe-se a adoção de mecanismo que favoreça a eficácia da ação estatal, evitando conflitos e desperdício de esforços e recursos. A repartição de competências entre as esferas do federalismo é o instrumento concebido para esse fim. A repartição de competências consiste na atribuição, pela Constituição Federal, a cada ordenamento de uma matéria que lhe seja própria. As constituições federais preveem, ainda, uma repartição de rendas, que vivifica a autonomia dos Estados-membros e os habilita a desempenhar as suas competências. Para garantir a realidade da autonomia dos Estados – e o mesmo vale para o Distrito Federal e para os Municípios – a Constituição regula, no capítulo sobre o sistema tributário nacional, a capacidade tributária das pessoas políticas e descreve um modelo de repartição de receitas entre elas (2012, p. 857).
A participação dos Estados-membros na vontade federal constitui também uma salutar peculiaridade da forma federativa estatal. Para que tais entes possam ter contundente assento na formação da vontade geral, concebeu-se o Senado da República, bem consignado no art. 46 do texto fundamental, com representação paritária, em virtude da imprescindibilidade do respeito ao princípio da igualdade jurídica entre os Estados-membros.
A indissolubilidade do pacto federativo representa, outrossim, importante característica do modelo estudado, porquanto, uma vez composta a Federação, desta não podem as unidades federadas retirar-se, em virtude do óbice à secessão, previsto no art. 1º, caput, da Constituição Federal – CF.
Ressalte-se, por oportuno, que, além da proibição de secessão, tem relação umbilical com o caráter indissolúvel da Federação o prestígio normativo que o constituinte de 1988 conferiu à necessidade de manter a integridade nacional e de repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra, contingências materiais, em tese, aptas a legitimar pedido de intervenção federal, nos termos do art. 34, I e II, da Carta Magna.
Expendidas as considerações anteriores, insta sublinhar, neste ponto, que a vigente Constituição Brasileira inovou ao erguer os Municípios à condição de unidade federativa autônoma, ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal, concedendo a esses entes locais o poder de auto-organização, mediante a elaboração de uma Lei Orgânica, na linha do art. 29 da Lei Fundamental.
Em que pese a leitura literal do texto constitucional, sobretudo dos artigos 1º e 18 da CF, sugira, de maneira inelutável, a condição dos Municípios de autênticos membros da Federação, não se pode desprezar o notório entendimento de respeitados doutrinadores constitucionalistas adeptos da tese de que aqueles seriam divisões dos Estados e não integrariam, de modo independente, o Estado federativo, como é o caso de José Afonso da Silva.
A compreensão deriva de algumas constatações sobre as quais já se falou neste artigo. De fato, revela-se ínsito ao Estado Federal a participação das entidades autônomas na formação da vontade federal, daí a criação do Senado, o qual, sabe-se, não abarca representantes dos Municípios brasileiros.
Os Municípios, ademais, sequer possuem um Poder Judiciário, o que o diferencia substancialmente dos demais entes da Federação no que concerne à definição de autonomia política e administrativa.
Por fim, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para solucionar pendências entre entidades federativas não inclui as hipóteses em que o Município compõe um dos polos da lide, como se extrai do art. 102, I, “f”, da Constituição, que remete à Corte Maior tal competência.
Sem embargo, a despeito dos contundentes argumentos apresentados, a opção pela natureza autônoma dos Municípios como membro legítimo da Federação cuida-se de explícita intenção do constituinte originário, consignada nos sobreditos artigos 1º e 18 do texto fundamental.
A circunstância de a CF optar por conferir maior amplitude de proteção aos conflitos envolvendo os Estados-Membros, por exemplo, não infirma a qualificação que ela própria concedeu a tão relevantes entes. Como assevera Dirley da Cunha Júnior[3]:
Em razão dessa autonomia, delimitada por uma completa partilha de competências que conferiu a todas as entidades autônomas capacidade de auto-organização, autogoverno, auto-administração e autolegislação, pode-se sustentar que todos esses entes políticos, sem exceção, integram a Federação brasileira, dispondo, todos, de dignidade federativa. Entre essas pessoas políticas integrantes da Federação figuram os Municípios. De feito, é inegável a ampla autonomia que a atual Carta Magna concedeu aos Municípios. Sem embargo disso, alguns renomados autores, como José Afonso da Silva e Roque Carazza, entendem que os Municípios, inobstante autônomos, não integram a Federação, em razão de os mesmos não participarem da formação da vontade jurídica nacional. Ouso, contudo, divergir destes eminentes doutrinadores, com base na própria Carta Magna, que deu claras amostras de que pretendeu incluir os Municípios, assim como o Distrito Federal, no pacto federativo. Assim, não só no seu art. 1º, mas também no seu art. 18, foi incisiva a Constituição quando afirmou que os Municípios também compõem a República Federativa do Brasil. O fato de estas entidades políticas não participarem das decisões do Estado Federal não obnubila aqueloutras características da Federação presentes nos Municípios (2015, p. 737).
De igual forma, considerar a ausência de integrantes municipais no Senado da República, bem como a inexistência de Poder Judiciário nas esferas locais da Federação, como fator que legitima o argumento contrário apresentado parece indicar só existir um único modelo de Federação, cujas características peculiares de todos os entes seriam as mesmas, assertiva com a qual não se pode concordar, principalmente, convém mencionar, quando se interpreta sistematicamente a Constituição.
E, como lembrou o Ministro Sepúlveda Pertence em julgamento que analisou a temática da forma federativa de Estado e de sua aderência como cláusula pétrea, aquela “não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou, e como adotou” (ADI 2.024-2, liminar, DJ de 1º-12-2000).
A concepção do termo Federação deve refletir a formulação desenvolvida pela Constituição Brasileira, texto que, além de prestigiar o caráter autônomo e preponderante dos Municípios, desenhou um modelo federativo de cooperação entre todos os entes federativos, como se extrai do parágrafo único de seu art. 23.
Não se revela razoável, bem se vê, concluir que o constituinte originário desprezaria o caráter qualificado dos Municípios quando, em relevantes dispositivos, erigiu-os a uma posição de evidente horizontalidade junto à União, aos Estados e ao Distrito Federal, consubstanciando delimitações constitucionalmente impositivas no regime de competências que endossam a inexistência de hierarquia entre os entes da Federação.
O status atribuído ao poder municipal derivou de um agasalho constitucional cujo núcleo essencial soa intocável frente aos operadores jurídicos, os quais estão impedidos de vilipendiar a esfera de autonomia ínsita aos entes aludidos, sob pena de desvirtuar os objetivos plasmados na Constituição da República. Sobre esse poder do Município, apregoa Paulo Bonavides[4]:
Aufere ele, sem dúvida, relevância nova e decisiva a partir da Constituição de 5 de outubro de 1988, a qual o elevou a um grau qualitativo muito acima daquele a que juridicamente esteve cingido em quase cem anos de constitucionalismo republicano. Se a nova Constituição do Brasil, compendiando a autonomia municipal ainda não classifica o poder do município como um poder estatal (pré-estatal ele já o é doravante fora de toda a dúvida), é evidente, contudo, que ao emprestar àquele ente uma natureza federativa incontrastável, o fez peça constitutiva do próprio sistema nacional de comunhão política do ordenamento (2014, p. 360).
Importante destacar que a defesa e a valorização desses departamentos autônomos locais propiciam uma maior chance de participação política do cidadão e, consequentemente, elevam o nível democrático da sociedade, em virtude da fórmula de descentralização administrativa do Estado que os Municípios logram desenhar. Nesses termos, diz André Ramos Tavares[5]:
O reconhecimento da importância dos Municípios deve-se, sobretudo, à circunstância de que se trata de um agrupamento de sólidas bases, porque o relacionamento dos interessados se dá de maneira mais aberta e intensa. Aliás, não por outro motivo é que o Município, entendido como agrupamento territorial restrito, precede ao próprio Estado. E, modernamente, não se pode deixar de conceder ao Município boa parcela da responsabilidade pela democracia. É por isso que se tem, por outro lado, de lhe deferir os poderes que a ele devem competir (2007, p. 986).
Sem necessidade de maior digressão, entende-se que as interpretações doutrinárias acima refutadas, por mais louváveis e robustos que sejam seus fundamentos, padecem de um vício incontrastável: ao negar a autonomia dos entes locais, desrespeitam a vontade constitucional.
3 CONCLUSÃO
No federalismo, a soberania é característica tão somente do Estado Federal, de modo que os Estados-membros dele integrantes são imbuídos de autonomia, conceito inconfundível com o outro termo delineado.
A autonomia consigna os poderes de auto-organização (incluída a autolegislação) e autogoverno, os quais abarcam a execução das atividades cotidianas do poder público nos limites de cada entidade federada autônoma, de maneira independente dos órgãos federais, e a existência de um poder constituinte de natureza decorrente.
A existência de uma Constituição Federal rígida que sirva como fundamento de validade das ordens jurídicas mencionadas é outro elemento do Estado Federal, assentado na sistemática de repartição de competências e no regulamento da capacidade tributária das pessoas políticas.
A participação dos Estados-membros na vontade federal constitui também uma salutar peculiaridade da forma federativa estatal, assim como a indissolubilidade do pacto federativo.
A concepção do termo Federação deve refletir a formulação desenvolvida pela Constituição Brasileira, texto que, além de prestigiar o caráter autônomo e preponderante dos Municípios, desenhou um modelo federativo de cooperação entre todos os entes federativos, como se extrai do parágrafo único de seu art. 23.
O status atribuído ao poder municipal derivou de um agasalho constitucional cujo núcleo essencial soa intocável frente aos operadores jurídicos, os quais estão impedidos de vilipendiar a esfera de autonomia ínsita aos entes aludidos, sob pena de desvirtuar os objetivos plasmados na Constituição da República.
[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET; Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[2] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[3] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
[5] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Ex-Advogado da União. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (CE). Pós-Graduado em Processo Civil pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Autor do livro: Constitucionalismo, direitos sociais e atuação do Poder Judiciário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Lucas Sales da. Os Municípios são entes autônomos e integram o Federalismo brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /44926/os-municipios-sao-entes-autonomos-e-integram-o-federalismo-brasileiro. Acesso em: 27 dez 2024.
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