INTRODUÇÃO
A vida em sociedade exige que sejam impostas regras que determinem uma convivência pacífica, daí vê-se a necessidade de sistemas jurídicos que possam contemplar essa necessidade. O sistema jurídico deve possuir mecanismos que criem essas regras e da mesma forma determinem o seu cumprimento, de modo que, não havendo a observância por alguém, possa ser restabelecida a ordem.
Os sistemas ocidentais, em sua grande maioria, adotaram a tripartição dos poderes: legislativo, executivo e judiciário. Cada um exercendo uma fatia do poder estatal, para que haja a convivência harmônica e pacífica e, não sendo obedecido por quem quer que seja, retorne através dos atos estatais.
No Brasil, estamos convivendo com uma importação de mecanismos do sistema da common law para o sistema da civil law. Quando falamos em importação de mecanismos, utilizamos essa expressão para determinar que não é uma transição de sistema. Nossa percepção é a alteração com a inclusão de novos institutos que buscam o aprimoramento do sistema de forma mais efetiva.
O sistema da civil law dá única e exclusiva força aos termos da lei, em que há o império do que é legislado. Já o sistema do common law, vê nos costumes demonstrados nas decisões judiciais a criação do direito.
A importação de alguns mecanismos pode ser uma solução interessante para a evolução e criação de um sistema mais forte e com a diminuição dos problemas. Apesar dessa perspectiva positiva, pode-se questionar: será que os novos institutos são eficientes e estão sendo bem utilizados? Talvez seja esse o grande ponto a ser analisado.
Há uma evolução que se iniciou nos anos 90 e que teve o seu divisor de águas no ano de 2004 com a Emenda Constitucional 45. Isso alterou o sistema, dando maior força às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal[1].
O Brasil adota em parte o sistema norte americano, cujo Poder de revisão dos atos legais está vinculado ao Judiciário, lá denominado judicial review e, na esteira do que dissemos acima, há uma importação de como são tratados os elementos da decisão judicial.
Aqui temos uma utilização de termos alienígenas sem a devida compreensão deles, de modo que causam decisões não compreendidas e, muitas vezes, tem a atuação do Poder Judiciário como ente legislador.
Importante consignar que temos como método e elemento de análise para a compreensão do sistema jurídico o Constructivismo Lógico-Semântico, que tem na linguagem o elemento criador de realidade.
Daí é que mesmo os Tribunais criando o conteúdo da norma jurídica não podem exercer o papel de legislador, pois um não se confunde com o outro. Tal fato será melhor elucidado no desenvolvimento.
Já para o desenvolvimento do trabalho, apresentaremos os conceitos necessários para a compreensão da nossa exposição, de modo a detalhar os elementos que determinam a compreensão do Constructivismo Lógico-Semântico, para após destacar os elementos que determinam a formação e utilização do precedente como material necessário para as decisões judiciais. Por fim, iremos apresentar o desenvolvimento dos conceitos e a sua utilização no Acórdão objeto de análise.
1. O CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO
O direito como objeto cultural pode ser analisado por meio de vários métodos e filosofias, haja vista que o cientista, como ser dotado de valores, apresenta sua escolha e desenvolve o seu raciocínio em razão da forma que melhor entende. Ainda, utilizando critérios objetivos, sempre terá o elemento volitivo interno e seletor que demandará subjetividade à sua escolha.
Como método de análise do fenômeno jurídico, observamos que o Constructivismo Lógico-Semântico traz elementos às balizas necessárias para a melhora do discurso jurídico, por consequência, o enriquecimento do debate.
Em lição conferida por Aurora Tomazini de Carvalho[2], vemos o detalhamento e a precisão acerca da metodologia, que assim assevera:
A expressão “Constructivismo Lógico-Semântico” é empregada em dois sentidos: (i) para se reportar à Escola Epistemológica do Direito da qual sou adepta, fundada nas lições dos professores Paulo de Barros Carvalho e Lourival Vilanova e que vem, a cada dia, ganhando mais e mais seguidores no âmbito jurídico. (ii) e ao método utilizado por esta Escola, que pode ser empregado no conhecimento de qualquer objeto.
A proposta metodológica da Escola do Constructivismo Lógico-Semântico é estudar o direito dentro de uma concepção epistemológica bem demarcada, a Filosofia da Linguagem (uma das vertentes da Filosofia do Conhecimento) e a partir deste referencial, amarrar lógica e semanticamente suas proposições, para a construção de seu objeto (que constitui em umas das infinitas possibilidades de se enxergar o direito).
Por isso, o nome: Constructivismo Lógico-Semântico – “Constructivismo”, porque o sujeito cognoscente não descreve o seu objeto, o constrói mentalmente em nome de uma descrição. E assim o faz, amparado num forte referencial metodológico, que justifica e fundamenta todas as proposições construídas, desde que estas estejam estruturalmente e significativamente a tais referenciais, o que justifica o “Lógico-Semântico” do nome. O cientista constrói o seu objeto (como realidade que sua teoria descreve) a partir da ordenação lógica-semântica de conceitos.
O rigor metodológico e o caminho na busca precisam da criação de sentido da norma jurídica, pois é o que determina a predileção na escolha do método. O que se passa a fazer a partir do desenvolvimento dos conceitos e definições necessárias para o desenvolvimento da análise ao problema posto.
2. CONCEITOS E DEFINIÇÕES
Trazer os conceitos e definições colaboram com o avanço na construção e no desenvolvimento do trabalho, notadamente porque envolve temas que estão afetos, tanto ao direito material, quanto ao direito processual.
O primeiro passo é determinar o que é o precedente. O sistema jurídico tem como finalidade a produção de comandos expedidos pelos três órgãos que compõem o Estado. Não sendo o objeto desse trabalho, atentaremos apenas aos comandos emitidos pelo poder judiciário.
O poder judiciário tem como finalidade a pacificação social, notadamente para resolução dos casos que lhe são entregues, ao passo que vigora a regra da inércia da jurisdição[3], do que se extrai do artigo 2.º do Código de Processo Civil.
Chegando ao judiciário, muda-se a questão em que necessariamente serão emitidos comandos que determinarão a solução do caso levado a julgamento, ainda que não se julgue efetivamente o mérito do caso posto.
Então, como sistema racional, há uma busca permanente para que as decisões tenham configuração modelar e sejam, na medida do possível, aplicadas a todos da mesma forma. Com a intenção de melhor racionalizar o sistema e determinar segurança jurídica, ao passo que as decisões serão, dentro do possível, expedidas da mesma forma, aconteceram alterações legislativas nas quais foram adotadas técnicas e, por meio delas, os tribunais de sobreposição, ao julgarem um caso, afetarão os tribunais hierarquicamente inferiores.
É nesse contexto que importante elemento, como o precedente, surge. O precedente é o julgamento expedido por meio dos tribunais de sobreposição e que, em razão da matéria, emitirão decisões e determinarão, a princípio, o modo como os casos supervenientes serão tratados.
De modo inicial, o conceito de precedente está ligado ao julgamento que primeiro analisou o caso e que, em razão de sua análise, determinará o efeito sobre os demais casos que tratam da mesma matéria.
A importância é sobremaneira evidenciada quando, no inciso VI, do parágrafo 1.º do artigo 489 do Código de Processo Civil, determina nulidade da sentença que deixar de utilizar o precedente invocado pela parte.
Além de determinar a nulidade, ou seja, a forma pela qual a sentença deverá ser lançada, verificamos que o precedente é elemento importante no processo de formação das súmulas pelos tribunais, porquanto deverão ser apontados no referido processo de formação. Nele deverá ser levado em conta os fatos relevantes tratados no precedente.
O precedente (a redundância do termo, neste caso, faz-se necessária) precede a criação da jurisprudência e súmulas. Tal fato leva à conclusão de que o precedente é a decisão judicial que inaugura o julgamento acerca de determinada matéria jurídica. A partir dela devem ser analisados os fatos postos a julgamento e os critérios jurídicos determinados para a solução, havendo uma condição hierárquica para que possa ter essa conotação empregada pela lei. Como leciona Luiz Guilherme Marinoni[4]:
Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não se confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e magistrados.
Ainda analisando a questão, para melhor delinear o que seria o precedente, o Ilustre Professor Paranaense, esclarece que: “Nesta dimensão, é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que, ao menos por maioria, decide a questão de direito ou é a decisão que, igualmente ao menos por maioria, definitivamente a delineia deixando-a cristalina[5]”.
Importante ponto a destacar é que a decisão judicial como um todo está passando por um processo de evolução, cuja visão do processualista tradicional está sendo superada, não apenas pela ciência, mas pelo legislador.
Antes, o que tínhamos como preponderante na sentença judicial era a parte dispositiva, em que ela fazia coisa julgada e, em razão disso, todas as conclusões eram voltadas para esse ponto. Com a alteração do sistema, ocasionada pelo Código de Processo Civil, que se deu em 2015, a parte dispositiva não deixa de compor elemento central, mas tem, tanto como os outros capítulos da sentença, igual valor.
Esse fato é muito bem observado por MARINONI, quando verificar que o julgamento não fica adstrito ao pedido, mas também às questões elaboradas do processo. A racionalização dessa questão determina maior higidez ao sistema, porquanto o julgamento de questões anteriormente analisadas pode determinar conflitos e decisões contraditórias. Quando realizada a análise da questão, o grande mestre verifica que isso acontece em razão da retirada do ordenamento da ação declaratória incidental, cujo ponto alto de sua análise reside: “Ora, como o sistema não pode estimular decisões contraditórias sobre situações iguais, especialmente entre as mesmas partes, não é adequado limitar a coisa julgada ao pedido[6]”.
Delineado o que é precedente, necessário que sejam ponderadas mais duas situações: a) os elementos constantes do precedente (ratio decidendi e obiter dictum); b) aplicação, manutenção, alteração e superação do precedente.
O elemento central do precedente é a ratio decidendi e várias são as propostas de conceituação, dentre as quais tomamos as linhas apresentadas por José Renato Camilotti[7] como ponto de partida:
Ratio decidendi, holding ou mesmo principle of a case são diferentes expressões para um conceito que é, de fato, indeterminado. Dotado de vaguidade ampla, há inúmeras propostas de conceituação da ratio decidendi expostas vastamente pela doutrinária jurídica pátria e internacional. Seus usos, em que pesem diferentes em cada uma das propostas, parecem indicar uma mesma intenção, que é a identificação de qual foi a razão fundamental para que a decisão tenha sido tomada no sentido que fora.
Ao dissertar sobre o referido instituto e ao analisar outros autores, Camilotti constrói cinco possíveis sentidos acerca do que é a ratio decidendi, assim apresentando sua consideração:
De todas as considerações acima, temos, pelo menos, identificados cinco sentidos para a definição da razão de decidir de uma decisão: (i) norma, no sentido de regra; (ii) norma, no sentido de princípio, (iii) fatos ou circunstâncias materiais; (iv) fundamento, argumentação ou tese jurídica; (v) motivação determinante da decisão[8].
Dos sentidos apresentados, temos como aquele que é importante para definir a relação entre o caso julgado e sua utilização para os casos futuros, estar consignado no liame entre os fatos e fundamentos utilizados e possuir potencial de utilização universal.
A norma, como sentido de regra, interessa ao caso que está sendo julgado e que possuirá a natureza de precedente. No sentido de princípio, é o que será utilizado. A norma como motivação da decisão interessa ao caso que está sendo julgado. Já os fatos e circunstâncias materiais e o fundamento, argumentação ou tese jurídica, serão elementos importantes para a utilização nos casos futuros, de modo que serão cotejados e, assim, verificada a utilização do precedente.
Há outro ponto muito discutido na doutrina acerca da ratio decidendi que reside se ela está contida na solução necessária ou na solução suficiente para o julgamento. Nesse ponto, como retratado por Luiz Guilherme Marinoni[9], é pertinente considerar as palavras de Neil MacCormick:
Admite que uma resolução, para configurar ratio, precisa ser suficiente para a resolução da questão, mas que a questão jurídica deve exigir uma solução em particular para justificar a decisão do caso.
Em razão disso, temos que a ratio decidendi está ligada à decisão exarada com fundamento na tese jurídica e no fato, mas que os argumentos e pontos analisados devem ser suficientes para determinar a solução aplicada e não que sejam apenas necessários. Assim, podemos verificar várias ratio decidendi.
O obiter dictum é o julgamento realizado na decisão que não se apresenta como suficiente para determinar o acatamento da tese, a solução do caso e a procedência dos argumentos lançados pela parte. É decisão que orbita dentro do julgado e que não possui relevância, nem o potencial de determinar a sua aplicação aos casos futuros.
Para a verificação do que seriam os argumentos obiter dicta, interessante é a posição apresentada por CAMILOTTI, que apresenta uma visão pragmática de como elaborarmos a decisão:
A melhora (sic) técnica para a identificação dos argumentos obiter dictum é a interpretação residual. Com essa expressão queremos evidenciar que a identificação dos argumentos da razão de decidir deve ser o primeiro intento. O exame dos fatos e teses jurídicas, na constância da dinâmica de subordinação e coordenação das normas, permitirão ao intérprete identificar com grau aceitável de segurança a razão de decidir da decisão judicial; o obiter dictum são os argumentos que restaram periféricos após esse intento[10].
A técnica para que possamos aferir os argumentos obiter dicta é pautada na pragmática e poderá demandar, de um para outro intérprete, diferença na colocação do que seriam os argumentos que determinaram a razão de decidir, daqueles outros considerados apenas periféricos.
Melhor é dizer que os argumentos que determinam a razão de decidir o caso posto e julgamento, que sozinhos ou unidos, possam ser motivadores da decisão posta a julgamento e determinam a ratio decidendi. Já os demais, que não julgam a questão central do objeto, devem ser considerados periféricos.
Nisso, temos uma valoração que será realizada pelo julgador quando está criando o precedente. Essa valoração deve estar alinhada como os propósitos gerais do referido sistema, tema que nos é muito caro, mas não comporta sua análise aqui.
A aplicação do precedente, em nosso entendimento, está ligada ao ato lógico de inclusão de classes, normalmente verificado no processo de construção da norma jurídica. A doutrina americana possui maior ligação com a utilização dos precedentes e traz alguns conceitos/fenômenos que, se analisados com maior acuidade, mostram-nos que não passam de processos/produto que utilizamos na nossa cultura há muito tempo.
O distiguishing é a análise dos fatos e da tese jurídica criada no precedente julgado pela corte de superposição. Ao falar sobre o referido fenômeno, CAMILOTTI ensina que:
O distinguishing é mais comumente conhecido e assinalado na doutrina como uma técnica de não aplicação do precedente, por uma distinção das circunstâncias que levaram à decisão, ou seja, uma construção argumentativa de que a ratio do precedente não pode ser aplicada ao caso em julgamento, porquanto há elementos que diferem, circunstâncias elementares das razões de decidir que impedem o reconhecimento de similaridade necessária para a aplicação do precedente[11].
Quanto aos argumentos utilizados, que constituem o precedente e o confronto entre o novo caso, devem ser analisados os argumentos trazidos, os fatos e as normas aplicáveis. A inclusão das classes ou a verificação de sua não pertinencialidade teria diferença frente à subsunção? O processo não seria idêntico? Ou no mínimo parecido?
Ao entendermos que o precedente é uma norma, não podemos diferençar essa aplicação, em que o distinguishing está ligado à análise de subsunção normativa e posterior implicação, o que nos leva a identificar o mesmo procedimento lógico primário.
O processo de aplicação e formação do precedente não é estático. Ao ser superada a tese criada no precedente, estaremos diante de outro fenômeno que, da mesma forma, possui importância, o overruling.
O referido termo é utilizado para determinar a alteração de entendimento dado pelo tribunal, seja por qual motivo for. Há na doutrina a diferenciação entre o overruling expresso ou tácito, todavia, não vemos razão lógica de ser a partir do método objeto do Constructivismo Lógico-Semântico.
Inexiste a figura da linguagem tácita, se analisarmos o fenômeno com maior precisão. Se o tribunal, ao julgar, diz, o faz de forma expressa, posto que aquilo não é expresso não foi dito, sendo elemento reflexivo, ou seja, pode até não ser tão flagrante sua indicação, mas não foi tácita, no sentido usual da palavra. Para que a figura tácita seja possível, devemos fazer uma alteração de sentido, ao ponto de dizer que tácito é algo expressado, mas não com o vigor que a linguagem usualmente faz.
Ao lado do overrruling temos o overriding, que tem a mesma potencialidade do fenômeno já tratado, apenas alterando quanto à sua extensão, ao passo que o primeiro determina a alteração total do entendimento, e esse apenas uma parte.
Propositalmente deixado por último, mas não menos importante, temos a técnica do stare decisis definida como a força obrigatória dos precedentes. Nascida na Inglaterra e adotada pelos Estados Unidos, a referida técnica não pode ser confundida com os elementos necessários para a constituição da common law.
Como restou bem observado por MARINONI[12] e CAMILOTTI[13], o stare decisis está ligado ao respeito dos precedentes e não ao sistema da common law, não sendo elemento identificador, muito menos elemento necessário para o referido sistema. O stare decisis é visto nos dois grandes sistemas ocidentais. Uma distinção lógica na ponderação dos referidos autores é a verificação de um stare decisis horizontal e vertical.
Aqui verificamos a existência dos dois fenômenos. No que se refere ao vertical é facilmente verificado, porquanto determinará a observância dos tribunais de piso hierárquico menor ao que foi decidido no tribunal superior hierárquico. Já a observância das decisões de tribunal de mesma posição, ou seja, juízes no mesmo tribunal, observamos quando existem decisões do pleno que vinculam os órgãos fracionários.
Ao analisar esse elemento importante para o necessário vigor do sistema de precedentes, observamos que o stare decisis está ligado intimamente à força para o cumprimento e a higidez de um sistema pautado por segurança jurídica e pela estabilidade das relações com a não alternância de julgamentos de forma demasiada.
Os conceitos brevemente mencionados darão suporte para determinar a análise da decisão lançada pelo Supremo Tribunal Federal e para a evolução de conceitos operados na ADI 5869.
3. A ADI 5869 E A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS
Delimitar o campo do julgado é necessário para determinar a construção e o recorte que estamos operando no presente caso, de modo que se possa realizar uma análise da evolução do conceito ligado à prestação de serviços.
A requerente na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 5869 buscou afastar a incidência normativa do tipo tributário estabelecido pela alteração inserida no Anexo da Lei Complementar 116/2003, inserida pela Lei Complementar 157/2016, no tocante ao seguinte item “25.05 – Cessão de uso de espaços em cemitérios para sepultamento”.
A argumentação trazida como elemento de convencimento junto ao STF, que tinha como substrato as decisões anteriormente proferidas pela corte constitucional, foi criada a partir do entendimento de que a referida atividade não estava contida na atividade ligada a uma prestação de fazer, dicotomia sempre utilizada para determinar a obrigação de fazer como elemento norteador do ISS e a de entregar como elemento determinante do ICMS.
Com argumentação contrária, foi apresentado argumento pela Presidência da República que detalhou a prestação não somente como a cessão do espaço, mas também os cuidados realizados com os corpos inumados, o que podemos conferir no argumento trazido no julgamento:
O Presidente da República, por sua vez, defendeu a constitucionalidade do subitem 25.05 da Lista de Serviços, uma vez que o conteúdo do subitem impugnado não se limita à cessão de uso de espaços em cemitérios para sepultamento, mas abarca a prestação de serviço de guarda ou custódia de cadáveres em terreno cedido pela empresa de cemitério. Ademais, ressaltou que a Constituição Federal não conceitua expressamente o termo “serviços”, assim como não impõe, como critério para a incidência do ISS, a predominância ou exclusividade da obrigação de fazer em determinada atividade (eDOC 14).
No voto condutor, lançado pelo Ministro Gilmar Mendes, é apresentada uma digressão das três teorias acerca da diferença e da possibilidade da tributação pelo ISS, que assim foram tratadas:
Pode-se afirmar que são três as linhas principais de pensamento em relação à solução de conflitos entre ISS e ICMS. A primeira se fundamenta na teoria civilista e defende que o ISS apenas poderá incidir sobre obrigações de fazer, sendo as obrigações de dar reservadas à tributação estadual. A segunda, a da primazia da lista de serviços, tem por fundamento a literalidade da Constituição, a qual atribuiria a competência para dirimir tais conflitos à lei complementar. Por fim, a terceira classificação divide os bens em tangíveis e intangíveis, sendo os primeiros passíveis de tributação pelo ICMS e os segundos pelo ISS.
Apresentadas as linhas principais pelo STF no julgamento realizado na ADI, verificamos que ainda assim não foi essa a razão de decidir utilizado no voto condutor que determinou o julgamento do caso. Outra foi a ratio decidendi e, ao que parece, há uma evolução no conceito de prestação de serviços.
Antes de trazer a razão que determinou a solução apresentada na ADI 5869, é importante mencionar a evolução dos conceitos apresentados no referido voto e no deslizamento de sentido realizado pelo Supremo Tribunal Federal.
Começamos com as razões que determinaram o julgamento no Recurso Extraordinário 116.121/SP. Nele a discussão se deu acerca da possibilidade de cobrança do imposto sobre serviços na locação de guindastes. Ao julgar o caso, o STF utilizou da primeira linha de pensamento, apresentada pela corrente civilista, cuja diferenciação se dá entre a obrigação de dar e obrigação de fazer. Nessa linha, o Ministro Gilmar Mendes traz a razão de decidir lançada pelo Ministro Marco Aurélio, redator do acórdão: “somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
Passada essa linha de raciocínio, o STF construiu o entendimento que superou a corrente civilista. Na oportunidade, foi lançado o argumento pelo Ministro Luiz Fux no Recurso Extraordinário 651.703/PR, fazendo uso da corrente que diferencia a prestação de serviços da venda. Utiliza a qualidade do que está sendo ofertado, ou seja, analisa se a utilidade é um bem tangível ou intangível, e a sua disponibilização leva em conta essa característica.
Para demonstrar, traz excerto do julgado no Recurso Extraordinário 651.703/PR, que julga a possibilidade da tributação dos planos de saúde, momento no qual evidencia essa diferença, assim tratando do assunto: “oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades imateriais, prestados com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador”. Partindo dessa premissa, a ADI 1945 utilizou a mesma razão de decidir para julgar o caso que envolvia a discussão sobre a tributação dos softwares, e restou decidida pela utilidade ofertada em imaterial, consignada na licença dos produtos.
A outra teoria utilizada, sempre em conjunto com as demais, porquanto além dos referidos elementos a serem observados, é necessário que a prestação de serviços tenha previsão expressa na tabela anexa, o que traz grande segurança ao contribuinte.
No julgamento da ADI 5869, verificamos que a evolução do conceito mistura outros elementos não apresentados anteriormente, e, que há uma mutação do conceito de prestação de serviços, visando ao aperfeiçoamento dos expedientes ligados à tributação.
As razões de decidir que determinaram a aceitação da tributação da cessão de jazigos está assim consignado:
Vale dizer, a previsão de incidência do ISS sobre “cessão de uso de espaços em cemitérios para sepultamento” não pode ser reduzida a uma mera obrigação de dar, no sentido de locação do espaço físico pura e simples, a atrair a ratio decidendi da Súmula Vinculante no. 31. Isso porque tal atividade abarca também a custódia e a conservação dos restos mortais, as quais indubitavelmente se enquadram no conceito tradicional de serviços.
Nesse diapasão, conquanto fosse possível defender a inconstitucionalidade de incidência do ISS sobre a cessão de espaço para inumação, considerada de forma isolada e pura, nos termos da tradicional jurisprudência desta Corte, tal argumentação ignora o fato de que a atividade prevista no subitem “25.05” abarca também o serviço consistente na custódia de restos mortais humanos, o qual não é revestido de imunidade tributária.
Parece-nos que a evolução no conceito de prestação de serviços se deu com a finalidade de abarcar todas as situações ocorridas, porquanto entender dessa forma está determinando uma solução simplesmente arrecadatória que não analisa o fenômeno em si.
A cessão de espaço não é concedida quando há a inumação do corpo, ao contrário, nos cemitérios particulares, temos uma situação totalmente diversa, em que a família ou aquele que busca a “aquisição”[14] de um jazigo, o faz em vida e antes de que tenha ocorrido qualquer evento morte, que determine a guarda.
Não há a correlação apresentada no julgado, porquanto a custódia dos restos mortais não está ligada à cessão do jazigo, havendo outros momentos dispostos no anexo que determinam e se amoldam mais a esse fenômeno. Vislumbramos que está ligada à manutenção e à conservação dos jazigos.
O cuidado e a custódia com os restos mortais não estão ligados à cessão do local, que é ato simplesmente realizado no momento da cessão e que envolve um valor pela concessão do lugar, pura e simplesmente. Para o cuidado do jazigo e dos restos mortais, se é que cuidado efetivo existe, está ligado à taxa de manutenção criada para esse fim.
Realizado o ato de inumação, os cuidados e serviços realizados não se vinculam ao local, e a disponibilização do espaço em nada tem a ver com o cuidado e a manutenção do local, por meio de pessoas. Esses atos que determinam a cautela e o cuidado dos jazigos são feitos em razão da manutenção do local e não da cessão, que se deu em um momento único, ainda que eventualmente possa ser objeto de parcelamento.
O fenômeno relacionado à cessão de uso de jazigo não foi visualizado do modo que ele se dá, foi criada uma presunção de que há uma ligação direta e intrínseca ao ato de cuidar dos restos mortais.
Vemos uma criação de sentido para a prestação de serviços ligada a uma utilidade fornecida em abstrato, porque poderá haver situação em que não existirá a inumação de algum corpo e, ainda assim, terá sido levada em consideração essa condição inexistente.
CONCLUSÃO
O sistema jurídico brasileiro adotou a força dos precedentes (stare decisis), o que traz grandes avanços para a formação de decisões coerentes, além de segurança jurídica.
Como mencionamos no início, nosso sistema realiza a importação de ferramentas utilizadas pelo common law, em que a stare decisis possui papel fundamental no nosso sistema, notadamente porque realiza a harmonização e a pacificação social, em razão da formação de decisões com a mesma razão.
Ocorre que os fundamentos utilizados para a criação, superação ou ainda melhor amoldamento de um determinado tema, tem sido objeto de julgamentos que buscam maior efetividade na tributação e não o julgamento realizado de forma enviesada.
O julgamento realizado na ADI 5869 não se pautou nos fenômenos ocorridos na relação que envolve o texto da lei e a criação do sentido utilizado para delimitar a prestação de serviços. Isso nos revela que o conceito normativo foi extrapolado para determinar eficiência na tributação.
A cessão de uso, enquanto fenômeno jurídico, tem elementos constituidores que não foram observados, e a interpretação criada para determinar a tributação e a manutenção por meio da improcedência na ADI não se limitaram a realizar a interpretação do fenômeno em si. Nisso vemos uma ampliação do conceito para determinar algo que não se coaduna com a realidade.
Ceder espaço não é o mesmo que realizar o cuidado e a manutenção dos restos mortais, tanto é que o espaço pode ficar vazio por grande tempo, tanto porque o cessionário no processo de cessão assim o fez por cautela, ou porque eventual resto mortal pode ter sido objeto de exumação, deixando o espaço livre.
Os cuidados e custódia de cadáveres não estão ligados à cessão de uso de jazigos, estando mais ligado a outro elemento do anexo, a manutenção e a conservação de jazigos.
A definição utilizada para determinar a constitucionalidade da cessão de uso de jazigos não se baseou na situação fenomênica e, mais do que isso, ampliou um conceito para a prestação de serviços ligados à eficiência tributária. Resta claro que há uma tendência de ampliar a tributação.
A inserção no anexo da lei de ISS não possui o condão de determinar a tributação e a transfiguração de um fenômeno em outro, o que já foi ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal, mas no caso sob comento, observamos que isso não foi considerado. Não se trata nem mesmo de uma ficção, em que a verificação de uma ocorrência determina a aceitação de determinado resultado. Aqui há um deslizamento de sentido para abarcar a disponibilização de espaço.
Ao analisar os conceitos ligados aos precedentes, notadamente naqueles que determinam a superação dos precedentes, observamos que não há uma superação dos elementos julgados anteriormente, mas sim uma nova figura que determina alargamento nos conceitos e nas razões de decidir anteriormente utilizadas.
As teorias anteriormente utilizadas para delimitar a incidência do ISS não foram superadas, mas houve um alargamento do conceito de prestação de serviços, que determina a possibilidade de uma cessão que, por sua suposta finalidade, determinaria uma prestação de serviço.
Nosso entendimento é de que a cessão de uso não se confunde com uma prestação de serviços, não sendo nem mesmo elemento necessário e vinculativo à inumação e aos cuidados com os cadáveres e restos mortais. Vemos que estes cuidados estão ligados à manutenção do jazigo e não a simples concessão de uso.
Nossas premissas são ligadas ao fenômeno da cessão e suas nuances, cuja maior ligação ao que foi ponderado no voto do Supremo Tribunal Federal está ligada à manutenção do jazigo e não a simples concessão.
Por fim, vemos que a força dos precedentes é mecanismo importante para determinar unidade e coerência ao sistema, mesmo quando o resultado não se verifica da forma esperada. Tudo porque o importante é que fiquem evidenciados os pontos necessários para a determinação de sentido e para o alcance da norma, de modo que o sistema seja beneficiado com decisões no mesmo sentido.
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[1] Vide a inserção do § 2º do artigo 102 da Constituição Federal.
[2] CARVALHO, Aurora Tomazini. O Constructivismo Lógico-Semântico como método de trabalho na elaboração jurídica. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.), CARVALHO, Aurora Tomazini de (Org.). Constructivismo Lógico-Semântico. Vol I. 2.ª ed. São Paulo: Noeses, 2020, p. 14 e 15
[3] Art. 2.º O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei. Código de Processo Civil.
[4] MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 7ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2022. p. 153.
[5] Idem. p. 155.
[6] Ibidem, p. 157.
[7] CAMILOTTI, José Renato. Precedentes judiciais em matéria tributária no STF: pragmática da aplicação das súmulas vinculantes e os critérios de verificação para aplicação e distinção (distinguishing). 1ª ed. – São Paulo: Noeses, 2018. p. 100
[8] Idem. p.105
[9] MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 7ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2022. p. 164.
[10] CAMILOTTI, José Renato. Precedentes judiciais em matéria tributária no STF: pragmática da aplicação das súmulas vinculantes e os critérios de verificação para aplicação e distinção (distinguishing). 1ª ed. – São Paulo: Noeses, 2018. p. 110
[11] Idem. p.111.
[12] MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 7ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2022.
[13] CAMILOTTI, José Renato. Precedentes judiciais em matéria tributária no STF: pragmática da aplicação das súmulas vinculantes e os critérios de verificação para aplicação e distinção (distinguishing). 1ª ed. – São Paulo: Noeses, 2018.
[14] O termo está inserido entre aspas porque não se trata de aquisição no sentido de transferência de titularidade do espaço, mas sim de adquirir os direitos de utilização por meio de cessão de espaço.
Mestrando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-graduado em Processo Civil pela PUCSP/COAGEAE. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Heitor Barros da. O precedente como criação do Direito e a evolução dos conceitos a partir da análise da ADI 5869 do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2023, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63626/o-precedente-como-criao-do-direito-e-a-evoluo-dos-conceitos-a-partir-da-anlise-da-adi-5869-do-stf. Acesso em: 29 dez 2024.
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