Coautor: Marcius Tadeu Maciel Nahur -Professor de Filosofia do Direito na Unisal e Membro do grupo de Pesquisa em Bioética e Biodireito da Unisal.
O tema do aborto é um dos mais polêmicos e certamente continuará produzindo os mais acirrados debates sob diversos aspectos (v.g. religioso, jurídico – penal, ético etc.).
O presente trabalho não pretende repisar os argumentos antagônicos com que se digladiam feministas, religiosos, juristas e todos aqueles que manifestam interesse quanto à solução desse dilema. Pretende-se tão somente analisar a coerência lógica de um dos argumentos que sugere a não intervenção no processo de desenvolvimento da vida humana manifestado pela gravidez. Esse argumento sugere que há, pelo menos, sérias dúvidas acerca da existência de uma vida humana a ser tutelada a partir da concepção e tal dúvida seria o bastante para indicar a vedação ética às práticas abortivas.
Essa linha de pensamento é exposta pelo estudioso de antropologia jurídica e história do Direito, Norbert Rouland, que destaca o fato de que a grande questão não é saber se após a concepção há uma vida, mas sim se tal vida, indubitavelmente presente, pode já ser considerada uma vida humana. Se for certo que o aborto dá fim a uma vida, pode haver sérias dúvidas quanto a poder ser essa vida já considerada humana. No entanto, a presença da dúvida deveria militar em favor da vida humana e contra as práticas abortivas. [1] Afinal quem defenderia a tese de que na dúvida de haver uma pessoa dentro de um prédio poder-se-ia optar por implodi-lo sem qualquer culpa?
O autor defende a ficção, presunção (ou se preferir, a cautela ou cuidado) estabelecida em prol da vida humana que passa a ser tutelada com a proibição do aborto pela legislação e até sua criminalização. Havendo a dúvida quanto à humanidade do concepto, a possibilidade ainda que remota de lesão a uma vida humana não permitiria a assunção do risco, de forma que a “transformação do aborto num direito subjetivo, sua possível banalização” seria um extremo lamentável. Ao suposto direito subjetivo das gestantes de optarem pela interrupção da gravidez opor-se-ia o fim de “proteger a pessoa, se necessário limitando os direitos subjetivos, operação que nada tem de escandalosa, tamanha é sua freqüência em todas as áreas do direito (a propriedade privada pode ser expropriada; a teoria do abuso de direito veda ao titular de um direito usá-lo para prejudicar o próximo)”. [2]
A intenção deste texto não é questionar a validade da defesa da vida humana, mas apenas lapidar, sob o aspecto lógico, sua argumentação. Quando se apresenta a questão da presença ou não de uma vida humana tutelável desde a concepção para em seguida afirmar-se que na dúvida deve-se optar pela vida (“in dúbio pro vita”), é preciso analisar criticamente tal tomada de posição, a fim de não permitir que seja desarticulada pela demonstração de que, longe de assimilar a dúvida e fazer dela um forte argumento de precaução quanto a uma possível lesão, trata-se de uma espécie de descaminho do pensamento que o faz retornar ao ponto de partida, qual seja a alegação inicial da presença da vida humana no concepto, o que produz apenas um andar em círculos entre os pensamentos antagônicos de que inicialmente se partia.
A questão que se põe agora é como formular de maneira mais coerente e segura um argumento em prol da abstenção das práticas abortivas, tendo como base um termo médio que, sem optar pela presença ou não de vida humana no concepto, firme raízes exatamente na dúvida resultante do debate entre os opostos, para daí retirar seu fundamento?
A “tópica” de Aristóteles era uma das seis obras que compunham o “Organon”. [3] Nela o filósofo estagirita propôs uma caracterização dos argumentos dialéticos, os quais estavam direcionados para a discussão do provável ou do verossímil. No estudo desses argumentos, há busca de descoberta de premissas, identificação do sentido das palavras, revelação de gêneros e espécies.
Mais tarde, Marco Túlio Cícero também cuidou da “tópica” [4], considerando-a como uma espécie de argumentação voltada, agora, para o campo da invenção, da obtenção de argumentos. Para o eclético pensador romano, um argumento seria uma razão que serve para convencer de uma coisa duvidosa. Considerava que os argumentos estariam contidos nos lugares ou “loci” – os “topoi” gregos -, que se tornaram, assim, as sedes deles. A tópica consistiria, em síntese, na arte de encontrar os argumentos.
Já nos tempos modernos, Theodor Viehweg[5] caracterizou a tópica por três elementos que estariam ligados entre si: primeiro uma técnica de pensamento problemático; segundo, um instrumento de tornar central a noção de “topos”, ou seja, “lugar – comum”; e, terceiro, uma busca e um exame cuidadoso de premissas.
A questão ora sob análise deve-se voltar, pois, para o concepto, enquanto um ser dotado ou não de vida. Simplesmente dizer que, na dúvida, caberia optar-se pela sua vida seria, em última instância, sustentar a premissa afirmativa por si mesma. Contudo, é preciso ir um pouco além disso e tentar encontrar argumentos que sirvam de orientação em situações duvidosas. Trata-se de ir do contexto da descoberta para o da justificação. Quando a situação é de incerteza, não se sabe bem o que pensar, o que dizer e como agir. Tem-se instalada a dúvida. Vem o risco de um juízo precipitado. E é isso que serve de melhor fundamento para a não – intervenção, uma espécie de cuidado ou cautela que evita o “mergulho direto em águas escuras”. Talvez por isso que, em havendo dúvida se há ou não vida humana no concepto, melhor deixar que naturalmente siga seu curso aquilo que não se sabe o que é. Não se trata de mera reafirmação, por via não explícita, da premissa de que há vida humana. Cuida-se de justificar que a não – intervenção é algo que se descobre, diante da problemática instalada, como orientação mais luminosa para algo que ainda se possa considerar obscuro.
Portanto, a posição de Norbert Rouland de que há, no caso do concepto, uma presunção estabelecida em prol da vida, poderia ser melhor reinterpretada: trata-se de buscar uma justificação razoável para a não – intervenção naquelas hipóteses de risco, em vez de adotar intervenções precipitadas em situações em que a irreversibilidade do resultado não pode ser descartada. Essa não – intervenção, como espécie de boa cautela, é o que se descobre como algo mais razoável do que uma aventura perigosa no “oceano do risco”, ainda mais quando o assunto envolve uma discussão sobre o princípio da vida e a vida como princípio.
Aliás, a formulação teórica da bioética já diagnosticou a relevância da cautela perante situações que envolvem um risco iminente de dano a valores e/ou interesses de que não se pode abrir mão, sob pena da própria desestruturação de todo seu sistema axiológico e o perigo concreto de conseqüências materiais e éticas catastróficas, ao que tem denominado de “Princípio da Precaução”. [6]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Volume 1. 5ª. ed Trad. Antônio Borges Coelho, Franco de Souza e Manuel Patrício. Lisboa: Presença, 1991.
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. Teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2002.
MORIN, Edgar, TERENA, Marcos. Saberes Globais e Saberes Locais. Trad. Paula Yone Stroh. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[1] ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 343.
[2] Ibid., p. 346.
[3] As obras acromáticas de Aristóteles, levadas para Roma, foram ordenadas e publicadas por Andrónico de Rodes em meados do século I a.C. Entre elas estavam os escritos de lógica, conhecidos geralmente sob o nome de “Organon” ou “Instrumentos de Investigação” e Nicola Abbagnano esclarece que em um de seus livros – “Tópicos” – Aristóteles tratou do “raciocínio dialético” e da “arte da refutação fundada em premissas prováveis”. ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Volume 1. 5ª. ed. Lisboa: Presença, 1991, p. 198.
[4] A “tópica” de Marco Túlio Cícero distingue-se pelo fato de, como disse Manuel Atienza, “tentar formular e aplicar um inventário de tópicos (quer dizer, de lugares – comuns, de pontos de vista que têm aceitação generalizada e são aplicáveis seja universalmente, seja num determinado ramo do saber”. E acrescentou: “Em Cícero (...) surge uma distinção que tem origem estóica (...) entre a invenção e a formação do juízo”. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. Teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 64.
[5] Miguel Reale assinala que o direito romano é um dos exemplos históricos invocados por Theodor Viehweg a favor de sua tese sobre o caráter tópico, ou seja, problemático, em uma dialética do razoável em que Theodor Viehweg assinalou a preferência por “esquemas e diretrizes de compreensão do Direito de caráter problemático ou tópico, ao invés de deduções lógicas e sistêmicas”. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 635.
[6] MORIN, Edgar, TERENA, Marcos. Saberes Globais e Saberes Locais. Trad. Paula Yone Stroh. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p. 40.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
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