Coautor - ALESSANDRO MARQUES DE SIQUEIRA - Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça Fluminense.
Nos dias de hoje é freqüente vermos posta em causa a idéia de Soberania. Esta discussão se faz grande em razão da integração cada vez mais acentuada que se tem visto mundo afora. Um processo de integração iniciado com as grandes navegações, ainda na Idade Média, e cada vez mais acentuado, vide os Blocos Econômicos, em especial o europeu, que evoluiu para uma Comunidade.
Na Europa a discussão tem ganhado notoriedade à proporção que se avança o processo de integração da União Européia, cujo marco embrionário foi o Tratado de Maastricht. A instituição desta comunidade tem trazido efeitos vários, em especial uma releitura das estruturas federais, antes fechadas em si, para serem estruturas sistêmicas, tal como aponta Luhman[1]: autônomas, mas auto-referidas.
Entender a Soberania na nova perspectiva é fundamental. Diz-se isto porque não podemos ignorar as mudanças que estão a atritar o que se tinha por nuclear no conceito. As grandes guerras, que permitiram a virada copernicana[2] ao direito, levaram a se repensar a estrutura de Estado Nacional como sendo absoluta. A noção de Estado, consolidada no alvorecer da Idade Moderna, passa a ser pensada em uma perspectiva nova, agora pautada por questões diversas, caso da telecomunicação. O individualismo, possibilitado pela idéia de Estado Nacional, cede a um regime de maior inter-relação. Deixam de fazer sentido, por exemplo, as práticas protecionistas não fundamentadas. Tal como uma decisão precisa ser motivada na esfera jurídica, a posição do Estado frente a ordem internacional começa a carecer de fundamentação.
SOBERANIA: REFERÊNCIAS HISTÓRIAS
“A soberania é una e indivisível, não se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpetua, a soberania é um poder supremo, ei os principais pontos de caracterização com que Bodin fez da soberania no século XVII um elemento essencial do Estado”[3]
Pensar no tema Soberania é pensar a própria dinâmica do Estado Moderno, no exato sentido do Estado que emergiu da Idade Moderna.
A Idade Moderna foi um momento de grande transformação do mundo. Eventos como a chegada de Colombo à América[4], a conquista de Granada pelos espanhóis e o conseqüente fim do domínio mouro, a Reforma Religiosa[5], a consolidação da Inglaterra como potência naval (decorrência do modelo de mercantilismo adotado, o comercial), a Revolução Gloriosa[6], o Tratado de Paris[7] e a Declaração de Independência das treze colônias inglesas da América do Norte são eventos dos mais importantes nesta fase histórica e configuram a base para a grande mudança paradigmática que se viu na entrada do mundo Contemporâneo.
Aos fatos aduzidos no parágrafo anterior, diretamente relacionados à estruturação dos Estados Nacionais, e, por conseguinte, à idéia de Soberania, é de se acrescer que ao tema interessa diretamente as proposições que se afirmou no chamado Tratado de Westfalia[8].
Com o Tratado de Westfalia se restabeleceu a paz na Europa após a Guerra dos 30 anos no século XVII. Com isto se inaugura uma nova fase na história política européia, onde se vivencia a chamada igualdade jurídica dos Estados. Esta noção de igualdade foi importante por ser a base para a chamada regulamentação internacional positiva.
A proposição acerca da igualdade entre os Estados foi importante por elevá-los à condição de atores das políticas internacionais. Este é um dado relevante e surge em um momento onde a laicização começa a ganhar corpo. A Reforma, começada por Lutero em 1517, começa a surtir efeitos em relação à noção de Estado Nacional, importando na retirada da Igreja Católica do papel supra-nação[9]. Com isto é entregue aos Estados Nacionais a prerrogativa de escolher seu caminho econômico, político ou religioso. Consagra-se, então, um modelo de soberania externa absoluta, iniciando-se uma ordem internacional protagonizada por nações com poder supremo dentro de suas fronteiras territoriais.
AS CONTRIBUIÇÕES DA REVOLUÇÃO FRANCESA
A Revolução Francesa, cujo marco é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, trouxe algumas características essenciais à noção de soberania, as quais foram adotadas por muitas constituições na contemporaneidade: unidade, indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.
A Soberania, enquanto una, não pode ser múltipla. Assim, “dentro de uma ordem só pode haver uma soberania”[10]. Esta questão, na realidade brasileira, nos leva a uma reflexão: como dizer que o Estado é soberano se ele próprio reconhece que há locais dentro de seu território que não pode acessar? É claro que se trata de uma situação de excepcionalidade, mas a reflexão precisa ser feita de forma séria, já que a consideração clássica do tema aponta no sentido de que, se há soberanias diversas, não há soberania alguma.
Em relação à indivisibilidade, também presente entre os ideais consagrados na passagem para a Idade Contemporânea, é de se ter que esta é uma característica essencial à noção de Soberania. Como una a Soberania não se multiplica nem se divide.
Dentro das características afetas à soberania tem-se ainda a inalienabilidade, que significa a impossibilidade de transferência, renúncia ou prescritibilidade. Assim, não há que se falar em decadência ou caducidade da Soberania.
DE BODIN A KELSEN: O TRATAMENTO DOUTRINÁRIO DO TEMA
O conceito de Soberania sempre causou polêmica, que parece aumentar ainda mais diante da globalização.
Numerosos foram os autores que se detiveram sobre o tema, podendo ser destacados Jean Bodin, Thomas Hobbes, Georg Jellinek, Leon Duguit, Hermann Heller e Hans Kelsen.
Jean Bodin[11], no seu “Os Seis Livros da República” aponta a Soberania como sendo um poder perpétuo e ilimitado. Um poder que tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. É, portanto, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis. Dentro desta perspectiva o príncipe (soberano) se vê limitado pelos contratos que celebra, seja com seus súditos, seja com estrangeiros, devendo respeitar tais acordos. Um sucedâneo da lei natural.
A idéia de poder absoluto em Bodin está associada à crença na necessidade da concentração do poder nas mãos do governante. O povo deve obediência ao seu soberano, motivo pelo qual deve transferir para este o seu poder.
Hobbes acredita se o Estado o elemento que permite a convivência pacífica dos homens. A Soberania do Estado decorreria, nesta análise, do fato de o Estado ter permitido a continuidade da espécie humana na celebração do contrato social, pressuposto para a saída do estado de natureza, onde a guerra de todos contra todos era o lugar comum.
Em Hobbes a criação do Estado, que permite a instauração da segurança, parte da renúncia do poder individual através do pacto de união. Este pacto, que é celebrado entre os súditos, e não entre estes e o soberano, traz implicações essenciais. Este “confere ao soberano um poder mais absoluto ainda do que aquele conferido por Bodin, pois a soberania não residiu jamais no povo, ela surge da união do poder que anteriormente se encontrava fragmentado em cada súdito."[12] Por isto Hobbes acredita ser a Soberania absoluta. Para ele teria havido uma total transferência dos poderes dos súditos para o soberano. Nesta medida esta seria ilimitada e irrevogável.
Jellinek, em outra medida, vê na soberania a propriedade de Estado se autodeterminar e se auto-obrigar. Esta teoria é relevante porque permite a justificação da submissão estatal ao Direito. Neste ponto ela se associa ao que se tem de mais importante em matéria de Direitos Humanos, cuja base é a convivência dos valores da maioria (democracia) e contra-majoritários.
Neste ponto Jellinek contribui de forma notória para a discussão que engloba o chamado Estado Democrático de Direito. Um Estado, que soberano, tem limitações ínsitas em si próprio[13]. Um Estado onde se pode dizer que há um núcleo duro de direitos, nas chamadas cláusulas pétreas, que nem mesmo a maioria da população poderia, em uma perspectiva garantista, dizer que tais regras não mais se aplicam.
Enquanto Jellinek avança a discussão de Soberania para questões como o próprio Estado Democrático de Direito, temos Leon Duguit a negar a existência da Soberania. Várias são suas críticas. Com relação aos seus limites, por exemplo, entende que há um dilema irresistível: ou o Estado é soberano e só se determina por sua vontade, não havendo regra que o limite, nem mesmo a possibilidade de esmagamento do indivíduo, ou está submetido a uma regra imperativa que o limita, e, então, não é soberano.
Parece-nos producente uma crítica a idéia de Duguit. Não nos parece razoável dizer que o respeito aos direitos e garantias fundamentais possam caracterizar não-soberania. Pelo contrário. Vemos no respeito aos direitos individuais o pressuposto de existência do Estado, afinal a pessoa o precede. Assim, conquanto Hobbes coloque na conta da continuidade da espécie humana o suposto do Estado, não se pode negar que o Estado só se justifica para garantir a paz entre pessoas. Se é assim (e assim nos parece), não há como se imaginar um Estado que não tenha a pessoa na sua conta fundamental.
Hermann Heller, em outra linhagem, aponta que a Soberania é "fenômeno jurídico decorrente do fato de o Estado possuir a última palavra dentro de seu território; assim, o Estado, ao estabelecer o que é de sua competência e aquilo que não lhe cabe decidir, estará em verdade manifestando sua soberania."[14]
Partindo desta noção se tem que jurisdição e Soberania são fenômenos associados. Assim o monopólio que o Estado possui da coerção física e do poder decisório explicaria o fenômeno Soberania. Nesta quadra deveria existir em cada território uma unidade decisória, sob pena de (destruída a unidade) se destruir o próprio Estado.
Heller avança a discussão e se atém à questão do Direito Internacional. Isto é importante porque a grande discussão de nossos dias em relação à Soberania diz com a mudança do tema em uma quadra de direitos onde a dinâmica é diferente de tudo que já se viu e imaginou. Nada obstante as modificações na esfera fática, aponta Heller que o caráter absoluto da soberania não é abalado pelo direito internacional e pela interdependência entre Estados. Diz isto porque esta interdependência ocorre em razão de tratados, nos quais o elemento volitivo[15] sobeja.
Na continuidade da construção doutrinária do tema Soberania, deparamo-nos com Kelsen e sua doutrina do Ordenamento Jurídico. Nisto faz-se producente a colação da idéia para que possamos compreender o conceito de sua chamada norma fundamental:
“o que faz uma norma superior é o fato de ela ser a fonte na qual as demais se fundam. Assim, se o sistema jurídico é o conjunto de normas, uma norma será soberana, quando ela for a fonte primordial de valor deste sistema. Mas se há vários Estados e há igualdade entre eles, poderia subsistir a idéia de soberania? Poderia a soberania pertencer a vários sujeitos?”[16]
Para solucionar a questão proposta, Kelsen busca identidade entre os diferentes sistemas, utilizando-se dos conceitos de monismo e dualismo. Nesta linha aponta ser o ordenamento jurídico uno. Não há, portanto, que se falar em primazia do direito internacional sobre o direito interno. Caso ocorresse, não se poderia falar em soberania.
Desta consideração surge outro problema. Um deles consiste no fato de que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só será soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes.
Desta quadra é que Kelsen defende o monismo. Defende que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas. Desta forma, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, prevalecem estas últimas. Nesse sentido a igualdade entre os Estados se traduz pelo princípio da sua autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais[17].
REPENSANDO O TEMA À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO.
O conceito de soberania sempre causou divergências. As definições elaboradas no século XIX traziam com freqüência o idéia de não-limitação[18] [19] associada ao termo.
Na atualidade há os que afirmem que o significado moderno de soberania diz respeito a um "poder independente, supremo, analienável e exclusivo."[20] Em outro sentir, há os que afirmam ser a soberania um "poder originário, exclusivo, incondicionado e coativo."[21]
Na linha tracejada se mostra producente se colacionar a definição do Black’s Law Dictionary, para quem soberania é:
“the supreme, absolute and uncontrollable power by which any independent state is governed; supreme political authority; the supreme will; paramount control of the constitution and frame of government and its administration; the self-sufficient source of political power, from which all specific political powers are derived; the international independence of a state, combined with the right and power of regulating its internal affairs without foreign dictation; also a political society, or state, which is sovereign and independent”[22]. (destacou-se)
As noções que se pode depreender da referência colacionada apontam no sentido de ser a soberania “o poder supremo, absoluto e incontrolável, através da qual são governados os Estados independentes”.
A definição dicionarizada é importante e precisa ser repensada em alguns pontos, sobretudo em relação à aludida auto-suficiência (self-sufficient), já que vivemos uma era de integração histórica sem precedentes, a partir da qual a soberania passa a ser cada vez mais compartilhada, vide a enormidade de mecanismos internacionais que visam a facilitar a convivência entre os Estados independentes. Esta vivência compartida é um dado da contemporaneidade que não pode ser ignorado.
Justamente pelo fato de o conceito de soberania se mostrar valorado nos dias de hoje, a definição de Celso Bastos se mostra colacionável neste momento. A noção de poder máximo “dentro da ordem interna” ganha força, como se pode perceber. Também ganha força a noção de que na ordem externa só se sentam à mesa os Estados de igual poder:
“soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. [...] indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. [...] a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios”[23].
Do que se consignou, resta assente que há a necessidade de se repensar o conceito de soberania no afã de adaptá-lo à realidade atual. É de se moldar o conceito a fim de se ver nele as características necessárias à soberania nos dias atuais. Não podemos perder de vista que vivemos a era da informação e esta consideração é essencial para que se possa compreender o novo papel da Soberania estatal.
Desde os tempos mais remotos o poder tem suas bases no saber. A difusão deste, a um número cada vez maior de pessoas, impõe a que se repense as estruturas de poder existentes. Da mesma forma que a difusão de conhecimentos médicos retirou o poder do feiticeiro tribal, a difusão de informações sobre outros países ameaça as referências outrora absolutas[24]. Esta afirmação parece muito apropriada para o momento atual e para a questão da determinação do conceito de soberania, pois a globalização (e o conseqüente desenvolvimento dos transportes e comunicações) tem, a um só tempo, (re)unido o mundo em uma economia global única, provocando a difusão de todo tipo de informação. Tudo isto com uma velocidade impensável há duas décadas. Muito desta informação é conhecimento. Assim os produtos industriais, que são palpáveis, cedem espaço para o imaterial. Nisto o mundo do trabalho se vê diante de produtos e processos que consistem mais em mente do que em matéria:
“São produtos e processos mais rápidos e mais móveis, têm menos necessidade de suporte centralizado e são menos dependentes de recursos naturais, de instalações físicas ou de mão-de-obra humana do que os do passado recente e, dessa forma, estão se tornando mais difíceis de serem regulados ou controlados”[25].
O capital intelectual constitui um mercado importante que tem se mostrado cada vez mais intolerante com as restrições nacionalistas. Mais do que qualquer outra forma de capital, “irá para onde for desejado, permanecerá onde for bem tratado e se multiplicará onde for permitido que ganhe os maiores retornos."[26] Assim a soberania, que sempre esteve associada á noção de territorialidade (já o território é um dos elementos formadores do Estado) se vê a mercê de uma nova dinâmica. Uma dinâmica em que o controle territorial se torna mais difícil em muitos aspectos. Enquanto antes era preciso se desmontar a fábrica em São Paulo e se levar o maquinário para outro país, agora o capital aplicado na bolsa é retirado em um piscar de olhos, sem que o Estado Nacional tenha, sequer, a chance de se imiscuir no movimento.
Trazendo a discussão para a questão da guerra, por exemplo, é de se dizer que os governos soberanos têm, ao longo da história, assumido como prerrogativa fundamental a defesa de seus interesses nacionais através deste método. Nisto é de se dizer que a informação traz uma nova leitura sobre o tema.
Durante a guerra do Vietnã os EUA sofreram grande impacto com a informação advinda dos meios de comunicação. Pode-se dizer, inclusive, que a telecomunicação foi decisiva para o insucesso da incursão americana no sudeste asiático. Todos sabem que a guerra produz carnificina. Isto é fato. Contudo, mais doloroso que se saber disto, é ver o resultado da barbárie estampado em nossas salas através dos meios de comunicação. É neste ponto que a comunicação produz uma nova leitura sobre o tema.
A questão da guerra precisa ser compreendida, porque a comunicação gera uma leitura crítica sobre esta. A guerra como meio de conquista, deste modo, é rechaçada ideologicamente, não mais se justificando. Além do mais, a conquista e o controle de território, que antes pareciam um modo confiável de aumentar o poder nacional, raramente compensam o custo para a nação. A guerra, e os longos anos de pacificação e repressão que esta demanda, invariavelmente, “destrói e dispersa o capital intelectual, e os recursos materiais que poderiam ser obtidos pela conquista estão declinando em seu valor em todos os lugares."[27] Por tudo isto, a guerra passa a ter mais ônus do que bônus. Impõe uma perda humana sempre considerável e, nem sempre, traz bônus pecuniários que justificam as perdas.
A informação tem o poder de fortalecer e enfraquecer governos. A globalização, verdadeira democratização da informação, cria para os governos um dilema: se se mantiver o monopólio da informação será mantido o controle sobre a população (perspectiva interna), mas se produzirá um alijamento no cenário internacional; em outra medida, a se permitir que a população tenha acesso à informação, perder-se-á um de seus mais poderosos instrumentos de controle.
Esta discussão aponta em um sentido. No mundo atual tem ficado cada vez mais difícil impor a Soberania, como prerrogativa de fechamento interno em nome da autonomia, sobre a informação. O soberano até pode – a um custo enorme, diga-se – fechar seus circuitos telefônicos, como temos visto na China, por exemplo, em que a internet, por definição livre, é cerceada. Nada obstante, nenhum fechamento será total. Ocorrerão brechas e a lógica do sistema, em algum momento, se imporá. Diz-se isto porque a lógica cada vez mais recorrente é a da integração, e não da inclusão. Por isto mesmo, deixa de fazer sentido o exercício da Soberania em sua porção autonomia se esta não tiver uma razão de justificação, uma vez que a globalização provoca uma releitura do mundo. “Uma releitura onde o fechamento gratuito não parece poder subsistir” [28].
O ESPAÇO TERRITORIAL E A NOÇÃO DE ESTADO-NAÇÃO
A intensificação da interdependência entre Estados, em escala mundial, acaba por retirar a noção territorial das relações sociais. A multiplicação de reivindicações por direitos de natureza supranacional relativiza o papel do Estado-Nação[29].
Há algum tempo restava evidente que um Estado deixava de ser soberano quando tinha seu território invadido. A invasão denotava uma situação de subjulgamento que só podia ser feito na esfera territorial, fato que não mais se consubstancia necessariamente. Diz-se isto porque hoje em dia se pode controlar a economia de um país e modificar, inclusive valores culturais, através dos meios de comunicação. Por isto, a possibilidade do fechamento, antes associada à noção de Soberania, não mais se manifesta. O mercado globalizado tende a fazer com que as necessidades econômicas impulsionem os sistemas políticos a se organizarem em direção a formas globalizadas ou, no mínimo, “em macroformas estatais”[30].
Essas associações entre Estados, caso da União Européia, têm forçado os Estados a uma compartilhação das soberanias dos Estados-membros:
“Isto implicou, no momento considerado oportuno, na cessão de parcelas de soberania dos estados aos órgãos comunitários supranacionais. A soberania compartilhada exprime um desejo e um anseio dos próprios Estados-membros e a parcela desta cedida ao órgão supranacional refletiu as vontades soberanas das nações”[31].
Como se percebe, o conceito de soberania vem se transformando pelo fato de estes serem Estados interdependentes. Nisto a idéia antes "absoluta, ilimitada e indivisível”, mostra-se hoje estritamente dependente da ordem jurídica internacional[32].
No ponto tracejado, resta evidente a necessidade da (re)interpretação do conceito de Soberania. Em nosso sentir este deve ser flexibilizado a fim de viabilizar o movimento integracionista atual. Ademais, as definições clássicas de soberania já não prevalecem no Estado de Direito imposto pela nova ordem mundial. A noção de Estado-Nação pode permanecer, mas não mais como um substrato necessário de um território. Isto é atual, mas também é antigo, vide o caso do povo Judeu, que, por anos, não teve território e nem por isto perdeu a condição de nação.
As proposições que colacionamos acerca da mudança do conceito de Estado-Nação, para além do território, ressoam na doutrina de Ives Gandra, para quem:
“do Estado Clássico surgido do constitucionalismo moderno, após as Revoluções Americana e Francesa, para o Estado Plurinacional, que adentrará o século XXI, há um abismo profundo. [...] em outras palavras, o Estado Moderno está, em sua formulação clássica de soberania absoluta, falido, devendo ceder campo a um Estado diferente no futuro. [...] n a União Européia, o Direito comunitário prevalece sobre o Direito local e os poderes comunitários (Tribunal de Luxemburgo, Parlamento Europeu) têm mais força que os poderes locais. Embora no exercício da soberania, as nações aderiram a tal espaço plurinacional, mas, ao fazê-lo, abriram mão de sua soberania ampla para submeterem-se a regras e comandos normativos da comunidade. Perderam, de rigor, sua soberania para manter uma autonomia maior do que nas Federações clássicas, criando uma autêntica Federação de países. [...] nada obstante as dificuldades, é o primeiro passo para a universalização do Estado, que deve ser "Mínimo e Universal". [...] a universalização do Estado, em nível de poderes decisórios, seria compatível com a autonomia dos Estados locais, aceitando-se a Federação Universal de países e eliminando-se a Federação de cada país, que cria um poder intermediário que, muitas vezes, se torna pesado e inútil” [33].
Na mesma linha aponta Ferreira Filho, em citação de Ives Gandra, que a idéia de Estado-Nação, atrelada a um espaço físico, precisa ser repensada. Verbis:
“ainda prevalece, nos dias que correm, o modelo de Estado-nação, juridicamente e politicamente construído com base na idéia de soberania. Sem embargo da denúncia dos juristas mais alertas, [...] os Estados contemporâneos ainda se pretendem soberanos. É o caso do Brasil, do qual um dos fundamentos, o primeiro, segundo a Constituição de 1988, art. 1º, I, é a "soberania". Este modelo, surgido no final da Idade Média, está, certamente, com seus dias contados”[34].
A integração parece ser uma saída. Na prática, pelo que percebemos, tem tudo para fomentar as políticas dos Estados. Juntos estes terão mais poder econômico, militar, político etc. Resta-nos assente que para se associarem terão de abrir mão de uma parte de sua Soberania, ou melhor, do suposto fechamento que a antiga visão desta resguardava.
A proposição no sentido da integração aponta para uma superação do "monismo jurídico", asseverado por Kelsen, em nome do "pluralismo normativo". Nesta perspectiva seria possível se conciliar duas ordens jurídicas autônomas em um mesmo espaço geopolítico.
Celso Bastos vê nessa possibilidade de integração, que consagraria o chamado "pluralismo normativo", uma forma de mitigação do princípio da Soberania, que restaria corroído com o evento. Isto não nos parece.
Em nosso sentir o Estado sucede a pessoa. Portanto este deve aparelhar para melhor resguardar os valores associados à Dignidade da Pessoa Humana. Neste ponto, se é preciso se superar o Supremo Tribunal Federal como corte máxima dos direitos humanos no Brasil em nome da preservação do Ser Humano, não nos parece estar havendo supressão de valores afetos à Soberania. Dizemos isto porque, conquanto a Soberania, mesmo na visão mais primária, seja importante, ela é importante para preservar a Dignidade Humana. Esta não se justifica de per si.
Embora não nos pareça haver supressão de soberania, cabe se trazer à colação a lição de Celso Bastos antes referida. Vejamos:
“o princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será termo atual se com ele estivermos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Nesta sentido, ela – a ordem interna – ainda é soberana, porque, embora exercida com limitações, não foi igualdade por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa”[35].
Embora o princípio de não-interferência seja próprio da Soberania, há questões que se nos apresentam como meta-nacionais. São desta estirpe as que envolvem direitos humanos e ambientais.
Direitos desta ordem, ainda que se defenda o multi-culturalismo[36], precisam ser visto em uma perspectiva para além da questão territorial. Não nos parece razoável se desconstruir tudo o que já se disse sobre Soberania, mas, em um mundo globalizado, onde todas as questões se resolvem na esfera integrativa, não nos parece defensável se dizer que certos assuntos, que ressoam em outros paises, sejam interna corporis[37]. Sendo as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, há hoje em dia a necessidade de se enfrentar os desafios decorrentes desse fato e seus reflexos no direito[38].
As reflexões aqui consignadas vão na direção do que aponta Paupério[39]. Soberania se resolve, como regra, dentro de um espaço físico e é "suprema". É suprema, mas não ilimitada. Nisto é de se dizer que o conceito de Bodin se mostra incompatível com o direito público atual e com o caráter jurídico do Estado moderno. É de se ter que o Estado não é o criador do direito e que o direito não surfe dele e para ele. O que o Estado faz é percebê-lo, determina-lo e aplicá-lo. Este é um instrumento de revelação das normas jurídicas. Neste ponto nos parece ponderável se dizer que a soberania nasce condicionada. O Estado e a Soberania devem existir em prol do bem comum e para a realização da Dignidade da Pessoa Humana.
Embora não se possa chegar a conceito unânime de soberania, resta unânime que mudanças vêm ocorrendo no que diz respeito às características desta no mundo fático.
Uma mudança que pode ser observada diz com os limites da soberania. Esta alteração aponta no seguinte sentido. Enquanto antes havia autores a sustentar o caráter ilimitado da soberania, hoje a tendência é a interdependência, sobretudo econômica.
Além das questões econômicas, mais facilmente percebidas, vemos que nas questões envolvendo Direito Humanos e Direitos Ambientais a tendência é a superação do dogmatismo no trato do tema.
A modificação aventada no parágrafo anterior é influenciada, e muito, pelos meios de comunicação. Por ser assim os derramamentos de petróleo são cada vez mais reclamados pela comunidade internacional. Da mesma forma são reclamados os atentados contra os Direitos Humanos.
No sentido percorrido, parece-nos que a Soberania perde uma parcela de suas características, na perspectiva descritiva, e se mostra mais forte na perspectiva valorativa. Soberania deve ser instrumento de realização do bem-comum e da Dignidade da Pessoa Humana. Sendo assim, se saúde e educação são viabilizadas pelo Estado “a” no Estado “b”, não nos parece restar esvaziada a Soberania do Estado “b”. Não nos parece razoável se falar em mitigação porque saúde e educação dizem com os Direitos Humanos, e a realização destes é valor meta-nacional.
Enquanto saúde e educação, por exemplo, dizem com valores que suplantam as fronteiras nacionais, há questões que não poderiam ser exercidas por outros países sem que se comprometesse a idéia de soberania. Aliás, a regra é que o Estado Nacional realize as políticas eleitas e que, apenas em regime excepcional, seja possível a realização destas por outros membros da comunidade internacional.
A perda de parte da soberania, tal como consagrada na doutrina clássica, é um dado da contemporaneidade. É um fato que se consubstancia independente dos chamados blocos, como o Mercosul. Isto ocorre em razão do fortalecimento de alguns mecanismos internacionais, em especial os bancos de fomento, e das próprias empresas. É preciso consideramos que muitas destas têm faturamentos superiores a de alguns países.
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[2] A partir de Copérnico se sedimentou que o sol – e não a terra – era o centro do sistema solar. As grandes guerras (especialmente a segunda) trouxeram para a comunidade jurídica a constatação de que o direito existe em razão das pessoas, que, portanto, são seu centro. Sendo assim, fica claro que mesmo a noção de Soberania resta influenciada.
[3] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 126.
[4] Cristóvão Colombo chega à América e a declarou colônia da Espanha em 1492.
[5] Lutero encabeça a Reforma Religiosa na Alemanha de 1517.
[6] Com a Revolução Gloriosa depôs Jaime II da Inglaterra em 1688.
[7] O Tratado de Paris coloca fim à Guerra dos Sete Anos na Europa e a guerra entre franceses e índios na América do Norte no ano de 1763.
[8] Este tratado foi assinado em 1648 quando da derrota do Império Romano-Germânico – governado pelos Habsburgos austríacos – após a Guerra dos Trinta Anos.
[9] Não se pode negar o papel temporal ainda exercido pela Igreja nos dias de hoje, sobretudo porque o Vaticano é um Estado Nacional reconhecido pelas leis internacionais e que mantém relações jurídico-diplomáticas com a quase totalidade dos países. Nada obstante, não se pode negar que o papel do Papa de Chefe de Estado se limita ao Vaticano.
[10] Risco de vida dos Oficiais de Justiça no Rio de Janeiro. A que ponto chegou a sociedade brasileira. O judiciário está proibido de ir e vir em vários lugares do país. Jornal O Globo de 06 e 07 de agosto de 2006
[11] Bodin é francês e viveu entre os anos de 1529 e 1596.
[12] Jean Bodin. Apud., BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito? Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 26-29, jul./set. 2002.
[13] É uma vontade que encontra em si própria um caráter exclusivo de não ser acionada senão por si mesma, uma vontade, portanto, que se autodetermina, estabelecendo, ela própria, a amplitude de sua ação. Tal vontade soberana não pode ser, jamais, comprometida por quaisquer deveres diante de outras vontades. Se tem direito, não tem obrigações. Se as tivesse, estaria subordinada a outra vontade e deixaria de ser soberana. [...] A soberania significa, assim, um poder ilimitado e ilimitável, que tenderia ao absolutismo, já que ninguém o poderia limitar, nem mesmo ele próprio. Jellinek. Apud., PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. 3. ed., v. 2. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 97.
[14] Hermann Heller. Apud. BERARDO, Telma. Op. cit., p. 32.
[15] Ibidem.
[16] Hans. Kelsen. Apud., BERARDO, Telma. Op. cit., p. 33.
[17] Idem, p.34.
[18] Blackstone definiu soberania como "a autoridade suprema, irresistível, absoluta, ilimitada". Blackstone. Apud. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op. cit., p. 6. (destacou-se)
[19] Burgess a identifica com "o poder originário, absoluto, ilimitado e universal sobre os súditos individualmente e sobre as associações de súditos". Burgess. Apud. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op. cit., p. 6. (destacou-se)
[20] FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 17.
[21] PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op. cit., p. 17.
[22] BLACK’S LAW DICTIONARY. Abridged Sixth Edition, West Publishing CO, 1991, p. 971.
[23] MATINS, Ives Gandra (coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 165.
[24] WRISTON, Walter B. O Crepúsculo da Soberania: como a revolução da informação está transformando o nosso mundo. São Paulo: Makron Books, 1994, p. 3.
[25] Idem., p. 6.
[26] Idem., p. 71.
[27] Idem., p. 33.
[28] O desenvolvimento da tecnologia e a expansão das comunicações e o aperfeiçoamento do sistema de transportes têm “permitido a integração de mercados em velocidade avassaladora e têm propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária". Isso provoca a “desconcentração, descentralização e fragmentação do poder". FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 7.
[29] Isto se faz importante, ainda mais, quando pensamos em Direitos Humanos, já que o tema não mais se limita às instâncias nacionais.
[30] SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Direito Constitucional no Mercosul. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 23.
[31] FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. Tese de Doutorado em Direito das Relações Econômicas Internacionais. PUC/SP, 2000, p. 64-72.
[32] Friede. Apud. FINKELSTEIN, Cláudio. Op. cit., p. 71.
[33] MARTINS, Ives Gandra (Coord.). Op. cit., p. 13-28.
[34] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Apud. MARTINS, Ives Gandra (Coord.). Op. cit. p. 105.
[35] Idem., p. 165.
[36] A grande discussão acerca dos Direitos Humanos nos dias de hoje se relaciona ao multi-culturalismo e ao essencialismo. Entre os multi-culturalistas é de se respeitar as mais diversas manifestações culturais, mesmo que estas contrariem direitos que na cultura ocidental sejam ditos essenciais, já que a essencialidade decorreria de um processo de sedimentação cultural. Entre os essencialistas, todavia, há questões que não são relativizáveis. Exemplo disto seria a integridade física, a partir da qual rechaçam qualquer possibilidade de ablação, como ocorre com as mulheres em certas regiões da África.
[37] Tem-se questionado o conceito do que seriam "assuntos internos" e se construído um argumento no sentido de que a comunidade internacional tem a "obrigação" de intervir em defesa dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo.
[38] BERARDO, Telma. Op. cit., p. 40.
[39] PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op. cit., p. 145-147.
Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.<br>
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