DAGNA ALVES SANTOS
(coautora)
MARCO ANTONIO DELMONDES KUMAIRA[1]
(orientador)
RESUMO: A ascensão da Internet impactou as formas de relacionamento das pessoas entre si e com as coisas, tornando necessária a revisitação de temas relativos aos conceitos de bens e direito sucessório, adequando-os ao mundo digital. Para tanto, a pesquisa se inicia tratando dos institutos do Direito Civil e dos Direitos Fundamentais Constitucionalizados, delimitando os direitos disponíveis e indisponíveis à dignidade humana. Posteriormente, é feita a análise do conceito de bens e desenvolvido o tema do presente artigo: o estudo dos bens digitais e sua suma necessidade de adequação ao ordenamento jurídico, no qual já estão, de certa forma, positivados. O trabalho se baseou na legislação vigente e em pesquisas bibliográficas, como doutrinas, artigos científicos e estudos de caso. Partimos do pressuposto de que, embora a legislação não tenha o respaldo da chamada herança digital, a vida real em sociedade passou a exigir a proteção a tal direito. Analisando as necessidades reais da vida cotidiana, buscou-se, ainda, soluções que trouxessem resultados efetivos. E, apesar de o tema ainda não ter previsão legal, foram criados Projetos de Lei que tem por objetivo amparar as garantias disponíveis do direito sucessório dos bens digitais e suas bases legais para proteção dos usuários.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Bens Digitais. Direito Sucessório. Herança Digital. Patrimônio Digital.
ABSTRACT: The new space of the Internet impacted the forms of relationship between people and between people and things, making it necessary to revisit themes, such as goods and inheritance law, adapting them to the digital world. With this in mind, the research begins analyzing the Civil Law institutes and the Constitutionalized Fundamental Rights, delimiting the available and unavailable rights to human dignity. Subsequently, the objective of this article is to study the digital goods, their concept, their classifications and their supreme need for regulation in the legal system, in which they are already mentioned. The study was based on the legislation in force and through bibliographic research, such as doctrines, scientific articles and case studies. Even though the legislation is not supported by the so-called digital inheritance, real life in society started to demand protection of this right. By analyzing the real needs of everyday life, solutions were also sought, and, although the topic still has no legal provision, Draft Laws were created which aims to support the available guarantees of the right of succession of digital assets and their legal bases for the protection of users.
Key words: Fundamental Rights. Digital Goods. Succession Law. Digital Inheritance. Digital Heritage.
Sumário: Introdução. 1.Da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. 1.1. Da função social da propriedade. 2.Direitos e princípios fundamentais no texto constitucional e infraconstitucional 2.1. Direitos sociais. 2.2. Direito da personalidade. 2.3. Autonomia privada e a não intervenção do Estado 3. O tratamento de bens no ordenamento jurídico brasileiro. 3.1 Conceito. 3.2. Bens corpóreos e incorpóreos. 4. Bens digitais e seu tratamento legal. 4.1 Conceito e natureza jurídica. 4.2 Classificação dos bens digitais. 5. Fundamento do direito das sucessões. 5.1. Vocação hereditária. 5.2. Testamento digital. 5.3 Herança digital. 5.4. Tutela jurídica da herança digital no direito brasileiro. Conclusão. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Com as inovações e avanços tecnológicos, e com a amplitude do acesso à internet, as relações humanas se tornaram cada dia mais virtuais, mais digitais, devido não apenas à praticidade que essas mudanças trouxeram para a vida cotidiana, mas também à necessidade de se acompanhar a realidade contemporânea. Isso, consequentemente, trouxe um novo olhar para as relações sociais, para as formas de interação e os modos de vida da sociedade nos últimos anos, frente ao novo cenário.
Diante da acelerada expansão dos canais de comunicação, um volume grande de banco de dados pessoais online foi surgindo, como as redes sociais, o compartilhamento e armazenamento de dados, os acervos de fotos, vídeos, áudios, documentos, músicas, livros, games, filmes, mensagens pessoais, senhas de banco, moedas virtuais e outros patrimônios digitais.
Ao passar dos anos, esses dados se acumularam no que chamamos de “nuvens” de armazenamento, e ninguém refletiu sobre a utilização e o destino dessas informações, que devem ser tratadas como bens digitais.
Porém, a necessidade humana, vinda das constantes transformações da vida real, passou a exigir um amparo, no ordenamento jurídico, que protegesse direitos expressos na Constituição Federal.
Na Legislação Brasileira, não há previsão legal que regule os bens digitais, especificamente a herança digital. Neste artigo, argumentamos que tudo que se relaciona à dignidade é um bem e, assim sendo, deve estar regulamentado no ordenamento jurídico. Seria preciso, então, fazer uma tradução, uma interpretação dos bens digitais no direito positivo, tomando como imprescindível a inclusão dos bens digitais na herança tradicional.
Ao serem adquiridos patrimônios digitais, a herança digital reflete o interesse social no que diz respeito à proteção das redes sociais – atingindo, por exemplo, as normas de direito sucessório, como a possibilidade de transmissão, aos herdeiros do de cujus, de todo o conteúdo produzido em vida por ele.
Dessa forma, o patrimônio acumulado em vida recebe atenção no direito civil patrimonial acerca do seu destino após a morte do titular, em razão de eventuais conflitos de partilha. Sendo assim, o patrimônio digital também precisaria ser pensado e planejado, independentemente de valoração econômica ou afetiva.
No entanto, não seria a herança digital um direito de personalidade indisponível, que se sujeita apenas à autonomia privada da vontade do de cujus de dispor ou não de seu patrimônio, não havendo, portanto, a necessidade de intervenção do Estado? Ou, ainda, não seria importante a definição do que seriam direitos de personalidade e direitos de herança, para, assim, serem efetivados e garantidos os direitos fundamentais indisponíveis à dignidade humana?
Com essa indagação, buscamos compreender se a Legislação Brasileira ampara os bens digitais e, mais precisamente, se o ordenamento jurídico sucessório tutela a herança digital. Em caso afirmativo, pretendemos analisar como esses bens são protegidos, e, em caso negativo, se haveria a urgência do amadurecimento legislativo para adequação ao tema, tendo respaldo no direito positivo.
Ora, ademais, seria ou não direito de herança o patrimônio digital? É juridicamente válido e justo que alguém herde as moedas virtuais, como os bitcoins, de uma pessoa que se esforçou e investiu muito para tê-las? Ou, ainda, que alguém herde uma rede social que era fruto de árduo trabalho do de cujus, e lhe gerava grande lucro?
Várias empresas já possuem políticas de privacidade que abarcam a herança digital, dando abertura ao titular para optar por continuar mantendo o bem digital mesmo após a morte ou excluí-lo, apagando todas as informações e impedindo futuros acessos. Tais políticas, porém, podem estar em desconformidade com o ordenamento jurídico, o que poderá afetar a resolução de conflitos.
No presente artigo, o estudo foi desenvolvido através de pesquisas exploratórias bibliográficas, como doutrinas, artigos científicos e estudos de casos. Aqui, é importante destacar a relevância do interesse social frente aos direitos sucessórios digitais, e instigar o leitor a refletir sobre a imprescindibilidade do ordenamento jurídico em se adequar e dar previsão legal aos bens digitais, principalmente à herança digital, que ainda carece de muito estudo doutrinário e jurisprudencial.
Ao longo do desenvolvimento do trabalho, será abordada a função social da propriedade, para compreendermos o direito e a capacidade real de usar, fruir, dispor e reivindicar determinada coisa ou bem. Atenta-se, para tanto, ao interesse individual na propriedade privada, buscando sempre a igualdade social, sem privar o indivíduo de sua liberdade.
Em seguida, serão estudados os direitos sociais e da personalidade, para avaliarmos o nível de sua disponibilidade, à dignidade humana, princípio expresso na Constituição Federal. Além disso, analisar-se-á a Autonomia Privada e a não intervenção do Estado, para entendermos quais são os direitos, deveres e limites que ambos os institutos possuem em relação ao indivíduo.
Dando sequência ao estudo, serão abordados o conceito e a classificação jurídica dos bens, para definirmos quais deles são amparados pelo ordenamento jurídico, e qual tratamento recebem.
De mesmo modo, para adentrarmos no foco deste trabalho, abordar-se-á a importância do patrimônio e dos bens digitais, seu conceito, natureza jurídica e classificação, definindo quais são os bens digitais, e como estes recebem tratamento pela Legislação Brasileira.
Por fim, explicar-se-á a relevância do direito sucessório através de seus fundamentos, abarcando a vocação hereditária, as espécies de sucessão (no que diz respeito à sucessão legítima e testamentária), a natureza jurídica do testamento, o testamento digital. Também será feita uma análise sobre a herança digital, e um estudo sobre o acervo digital quanto à sua valoração econômica, afetiva e comunicacional, tratando, ainda, da tutela jurídica da herança digital do direito Brasileiro sobre a incidência da sucessão legítima e testamentária dos bens digitais.
2 DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
2.1 Da função social da propriedade
O início do século XIX foi marcado por um sistema liberal, especialmente na Europa, no qual defendia-se o livre comércio e a mínima intervenção estatal. A política de trocas de bens e serviços, por exemplo, era baseada em linhas individualistas entre as empresas e os indivíduos, afastando, assim, o poder de atuação do Estado e de organizações coletivas.
A propriedade privada passa a ter, então, uma visão liberal-individualista, tornando-se regra, e se sobrepondo, assim, à coletividade. Buscou-se, com isso, o crescimento e o desenvolvimento econômico, uma vez que a soma desses interesses particulares promoveria uma evolução universal, trazendo inúmeros benefícios a toda sociedade.
Entretanto, ao passar dos anos, não se alcançou o que buscavam os primeiros liberais. Ao mesmo tempo, a ideia de liberdade individualista difundiu-se, gerando um enriquecimento desigual, injusto, pois as pessoas que detinham uma condição de vida alta, com situação econômica sólida, como aquelas inseridas no meio político, acabavam reprimindo os que detinham uma condição de vida econômica baixa.
Consequentemente, isso gerou um absolutismo de direitos, como os de caráter patrimonial, pois os anseios e ambições individuais faziam com que todos passassem por cima de todos, sem o mínimo de apreço pelo outro, provocando um desequilíbrio desmedido.
Já no fim do século XIX, na Europa, o modelo liberal-individualista começa a se enfraquecer diante de várias manifestações sociais, que questionavam tal modelo e a participação do Estado. O direito de propriedade, então, passa a ser avaliado e regulado juridicamente sob uma exterioridade mais coletiva.
No Brasil, esse modelo liberal-individualista se encerra com a Constituição Federal de 1934, que cria um limite para o direito de exercício da propriedade. Em seu artigo 113, a Constituição dispõe: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar.” (BRASIL, 1934).
O Código Civil de 2002, ao adotar também essa teoria constitucional, estabelece, em seu diploma legal, limites ao uso e gozo do direito à propriedade. Para que ele se cumpra, torna-se fundamental o cumprimento da função social. Assim, qualquer interesse será amparado pelo ordenamento jurídico, se atender aos direitos individuais e coletivos.
O Código Civil, em seu artigo 1.228, caput e § 1º, traz o dever de cumprir a função social:
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2002).
Ou seja, o titular da propriedade que comprovadamente der a ela função social, terá direito à tutela jurisdicional, e isso condicionará a autonomia privada, evidenciando a coletividade.
Acerca desse assunto, Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco lecionam que:
De uma visão liberal-individualista, passou-se para uma concepção social humanista de propriedade, que deixou de ser um direito do exclusivo e ilimitado. Embora o exercício do direito de propriedade seja limitado pelas disposições dos § § 2º e 3º, as disposições do § 1ºnão tratam somente do exercício, mas do próprio direito, que tem sua existência condicionada à função social e econômica, com relevante destaque para a preservação dos valores centrais do ordenamento, ligados à dignidade da pessoa e à preservação do valor ecologia. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p. 67).
Em virtude dos fatos mencionados acima, ressalta-se que caberá ao Estado a efetivação dos direitos fundamentais frente às necessidades humanas, como o direito de propriedade. Ainda assim, também caberá ao indivíduo, como contraprestação, dar função social aos direitos que lhe são conferidos. Ora, se é garantido ao indivíduo o direito à propriedade, sob a concepção social-humanista, a ele deverá ser dado a função social dela.
A propriedade é ampla em se tratando de bens jurídicos, corpóreos ou incorpóreos. A função social, portanto, recairá sobre qualquer tipo de bem. No foco deste artigo, recai, também, sobre a propriedade dos bens digitais, que ficará submetida também à função social, imposta pelo ordenamento jurídico – cabendo a este, em especial ao magistrado, comprovar a utilidade que certo bem poderá ter em cada caso concreto.
Bruno Torquato Zampier Lacerda, sobre o assunto, estabelece:
Em uma sociedade que busca garantir igualdade de acesso à propriedade, a garantia da autonomia dos bens digitais, sobremaneira com a difusão ampla dos serviços de internet, como vem ocorrendo recentemente no Brasil, é essencial para que a parcela mais carente da população, usualmente excluída das propriedades tradicionais, possa aceder a este novo modelo proprietário. Ter a proteção de ativos digitais significará, em breve tempo, para muitos, a segurança de que o Estado protege efetivamente os direitos fundamentais patrimoniais. (LACERDA, 2021, p. 89).
Portanto, a função social da propriedade é isto: uma via de mão dupla, em busca de uma sociedade igualitária, de acesso à propriedade e à autonomia dos bens.
3 DIREITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS NO TEXTO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL
3.1 Direitos sociais
A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seus trinta anos de vigência, vem sofrendo constantes alterações em sua estrutura, como, por exemplo, nas normas programáticas ainda não regulamentadas e emendas constitucionais. Com isso, uma insegurança jurídica paira sobre a sociedade.
Apesar da situação descrita, a Constituição traz princípios democratizadores fundamentais. Entre eles, a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais, que passam a se revestir de direito processual, para que sejam efetivados e garantam ao indivíduo o seu pleno exercício.
Como direito fundamental, os Direitos Sociais garantidos na Constituição Federal, em seu artigo 6º, são os “direitos sociais, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (BRASIL, 2002). Esses são direitos de segunda geração, prestacionais, para os quais se exige uma atuação positiva do Estado.
Diante dessa classificação, é necessário esclarecer o que seriam direitos de primeira e segunda geração.
Direitos de primeira geração são os direitos à liberdade em sentido amplo, como os direitos civis e políticos e o direito à vida, sobre os quais o Estado não deverá atuar, sob risco de intervir nas liberdades individuais. Objetivando a autonomia privada de cada indivíduo, de acordo com o professor Marcelo Novelino: “Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os ligados ao valor liberdade, são os direitos civis e políticos. São direitos individuais com caráter negativo por exigirem diretamente uma abstenção do Estado, seu principal destinatário.” (NOVELINO, 2009, p. 362).
Os direitos de segunda geração, por sua vez, surgem a partir do século XX e são direitos coletivos, relativos à igualdade em sentido amplo, como os direitos culturais e econômicos. Exigem uma atuação positiva do Estado, um dever do poder público para suprir as necessidades sociais. São direitos segundo os quais se objetiva a concretização da perspectiva de uma isonomia substancial e social, na busca de melhores e adequadas condições de vida (informação verbal).[2]
Como normas programáticas, os Direitos Sociais traçam princípios a serem cumpridos pelos órgãos estatais (do legislativo, do executivo e do judiciário), objetivando a efetivação dos fins sociais do Estado.
O Estado deverá garantir, pelo princípio da Reserva do Possível (possibilidade financeira do Estado cumulada com a razoabilidade de uma pretensão), e pelo princípio do mínimo existencial, os direitos fundamentais a cada indivíduo. Ainda que o Estado venha a alegar que não provém de recursos para garantir os direitos fundamentais (reserva do possível), o mínimo existencial deverá ser garantido (informação verbal).[3]
Com atenção máxima à Carta Magna, em relação à proteção dos Direitos Sociais, é necessário que seja garantida a efetivação do princípio da Proibição do Retrocesso Social. Ora, as grandes conquistas desses direitos, tão almejados e sonhados, não podem ser dispostas à mercê do Estado, para que faça o que lhe convém, como alterar, dispor ou anular direitos sociais, por mera liberalidade e conveniência.
A advogada e autora Renata Cezar, homenageada na Itália pelo seu artigo “Direitos sociais frente ao Princípio da Proibição do Retrocesso Social”, inspirado em trechos bíblicos (livro de Hebreus, capítulo 13), sustenta que:
“O princípio da proibição do retrocesso social confere aos direitos fundamentais, em especial aos sociais, estabilidade nas conquistas dispostas na Carta Política, proibindo o Estado de alterar, quer seja por mera liberalidade, ou como escusa de realização dos direitos sociais.
A estabilidade a qual nos referimos, não pretende tornar a Constituição e as normas infraconstitucionais imutáveis, mas dar segurança jurídica e assegurar que se um direito for alterado, que passe por um longo processo de análise para que venha beneficiar seus destinatários.” (CEZAR, 2011).
Ainda sobre o assunto, Canotilho ensina que:
“Neste sentido se fala também de cláusulas de proibição de evolução reaccionária ou de retrocesso social (ex. consagradas legalmente as prestações de assistência social, o legislador não pode eliminá-las posteriormente sem alternativas ou compensações “retornando sobre seus passos>>; reconhecido, através de lei, o subsídio de desemprego como dimensão do direito ao trabalho, não pode o legislador extinguir este direito, violando o núcleo essencial do direito social constitucionalmente protegido).” (CANOTILHO, 2006, p. 177).
Isso significa dizer que o Estado não pode, simplesmente, anular um direito social, como por exemplo, vedar o direito ao uso transporte público, sem ter critérios objetivos e eficazes que justifiquem tal vedação, e que beneficiem a sociedade, havendo a substituição por outro direito equivalente. Caso o Estado assim o faça sem se justificar, haverá uma violação ao princípio da Proibição do Retrocesso Social e, portanto, uma inconstitucionalidade por ação.
Sendo assim, como direitos fundamentais, os Direitos Sociais são imprescindíveis à dignidade humana.
São direitos constructos, pois, à medida que o tempo vai passando, novos direitos sociais são acrescentados, de acordo com as necessidades da sociedade. Assim, recentemente foram incluídos no ordenamento jurídico, por emenda constitucional, o direito à alimentação EC 64/10, o direito ao transporte EC 90/15 e o direito à moradia EC 26/00.
São direitos que vieram de conquistas árduas ao longo do tempo, implementadas a cada dia, no âmbito jurídico a partir de novas necessidades humanas. Merecem, portanto, atenção, auxílio e efetivação do ordenamento jurídico, sempre objetivando o cumprimento da Constituição Federal, e promovendo, assim, o crescimento pátrio.
3.2 Direito da personalidade
Com o passar dos anos, novas exigências se formam em torno do ordenamento jurídico, decorrentes das necessidades humanas surgidas diariamente.
A essência do Direito é exatamente essa. Sua existência se baseia em servir às pessoas, regular as relações existenciais entre elas, imputando-lhes direitos. Um exemplo é o direito da personalidade, o qual será alvo de estudo a seguir. Às pessoas não se imputam apenas direitos, mas também deveres, suprindo suas necessidades e garantindo o mínimo para que possam viver.
Segundo o artigo 2º do Código Civil, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção, os direitos do nascituro.” Em seu artigo 6º, o Código diz que: “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se a esta quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.” (BRASIL, 2002).
Como direito fundamental e inerente ao homem, está o direito da personalidade, oportunizada pela promulgação da Constituição Federal de 1988. Ele se expressa em seu artigo 5º, que tutela direitos personalíssimos, tais como a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade e, ainda, em seu inciso X, relativo ao direito à intimidade da vida privada, à honra e à imagem.
Não obstante, a Constituição Federal ainda menciona, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado democrático de Direito.
Maria de Fátima Freire e Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2015) assim conceituam o direito da personalidade:
“Direitos da personalidade são aqueles que têm por objeto os diversos aspectos da pessoa humana, caracterizando-a em sua individualidade e servindo de base para o exercício de uma vida digna. São direitos de personalidade a vida, a intimidade, a integridade física, a integridade psíquica, o nome, a honra, a imagem, os dados genéticos e todos os demais aspectos que projetam a sua personalidade no mundo.” (SÁ NAVES, 2015, p. 53).
Ainda, para Farias e Rosenvald, direitos da personalidade seriam
“Aquelas situações jurídicas reconhecidas à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais. Isto é, são direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica.” (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 177).
Ou seja, são direitos da personalidade resguardados pelo ordenamento jurídico, que tem o dever de proteger a integridade destes direitos personalíssimos, sendo eles físicos, psíquicos, morais ou inerentes ao ser humano.
Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 184) definem direitos de personalidade como “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”.
Para alguns autores, como Carlos Alberto Bittar (1991), alguns direitos da personalidade poderiam ser chamados de liberdades públicas, partindo da ideia de um relacionamento com o Estado, e constantes no ordenamento jurídico. Para o autor, seriam direitos idênticos, porém observados sob dimensões distintas.
Os direitos da personalidade estariam numa dimensão na qual há uma relação de pessoa frente a outra pessoa, nas relações privadas. Já as liberdades públicas estariam em uma dimensão na qual há uma relação de uma pessoa perante o Estado, com vários outros atributos sociais, políticos e econômicos. (BITTAR, 1991).
Com relação a isso, Bruno Torquato Zampier Lacerda leciona:
“Compreendidos como uma faceta dos Direitos do Homem e de sua especial dignidade, tão em voga, como dito nos itens anteriores, após a segunda guerra mundial, os direitos da personalidade foram estruturados concomitantemente com os direitos fundamentais. Com a consolidação desta categoria, alçadas em nosso ordenamento a verdadeira cláusula pétrea, vários dos direitos inerentes à condição de ser humano, como direito à vida, à imagem, à honra e à privacidade foram inseridos exatamente no título dos direitos e garantias fundamentais. Enquanto estes se projetam especialmente para as relações verticais, ou seja, a relação de direito público que vincula o Estado e os cidadãos que o compõem, os direitos da personalidade teriam natureza horizontal, típicas das relações de direito privado.” (LACERDA, 2021, p. 104-105).
Ou seja, os direitos da personalidade estariam diretamente relacionados às relações de direito privado, como, por exemplo, uma editora de jornal que publica fotografias e depoimentos falsos de um terceiro, sem seu conhecimento e prévia autorização – ferindo assim, direitos tutelados pela Constituição, como o direito à imagem e à honra.
O Código Civil de 2002, do artigo 11 ao 21, tutela o direito da personalidade como uma cláusula geral, sem designar quais seriam esses direitos. O Código visa sempre a proteção e a dignidade humana, e, caso essa proteção seja ameaçada ou violada, poderá um terceiro prejudicado reclamar perdas e danos, sem prejuízos de outras sanções previstas em Lei, como menciona o artigo 12. Isso porque o Legislativo não consegue prever e acompanhar as situações fáticas, que surgem frequentemente.
O autor Bruno Torquato Zampier Lacerda mostra que:
“Abandonando também a tradicional técnica legislativa regulamentar, tão cara à Escola da Exegese, o Código atual, ao traçar o direito geral de personalidade, optou por se valer, uma vez mais, de uma grande cláusula geral de proteção à pessoa humana. Em vez de tentar abarcar na prévia inserção legal todas as manifestações da personalidade, o legislador preferiu dizer que qualquer que seja a ameaça ou lesão a direitos da personalidade (genericamente) devem ser objeto de proteção pelo Poder Judiciário. O Legislativo reconhece sua incapacidade de prever todas as situações faticamente passíveis de ocorrência, para estabelecer uma norma aberta que deverá ser concretizada pelo julgador casuisticamente.” (LACERDA, 2021, p. 107-108).
Sendo assim, o juiz poderá buscar e fundamentar suas decisões na Constituição Federal, na lei e em jurisprudências, objetivando preencher lacunas normativas que o legislador não consegue prever.
Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco pontuam que as cláusulas gerais, previstas no código, permitem visões intrassistemáticas (entre as normas do próprio Código), intersistemáticas (referentes, por exemplo, à relação entre o Código e a Constituição Federal) e, ainda, extrassistêmicas (permitindo ao intérprete buscar, fora do ordenamento jurídico, a concretização de valores). Tais disposições proporcionam uma segurança jurídica maior quanto à proteção da pessoa humana. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p.99).
Os direitos da personalidade estão, portanto, amparados pelo Código Civil, bem como pela Constituição Federal. Esse amparo fortalece a tutela preventiva ou repressiva, garantindo uma maior proteção à vida humana, caso o indivíduo venha a sofrer ameaça ou lesão ao seu direito adquirido no ordenamento jurídico. Além disso, promove a eficácia dos direitos fundamentais, como privacidade, honra, livre manifestação de vontade, e vida.
Com a técnica das cláusulas gerais de proteção dos direitos da personalidade, já é possível enxergar a existência de bens da personalidade jurídica imersos no mundo digital, como o direito à imagem, à honra e à privacidade. A perspectiva é de que, com o passar dos anos, esses bens ganhem ainda mais espaço, assumindo uma enorme proporção em meio social.
Os direitos de personalidade se estendem até depois da morte do indivíduo, e, sendo assim, exigem uma atenção especial em sua tutela.
A doutrina faz menção à “tutela post mortem dos direitos da personalidade”. Uma vez que a morte põe fim à existência da pessoa natural e, consequentemente, à sua personalidade jurídica, o falecido fica impossibilitado de ser o titular de qualquer direito. Presume-se, assim, que o direito seja exercido por ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva, como estabelecido pelo artigo 6º do Código Civil. (BRASIL, 2002).
O Código Civil, em seu artigo 12, parágrafo único, trata mais uma vez da técnica da cláusula geral que tutela os direitos da personalidade, postulando que: “Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” (BRASIL, 2002).
Já no artigo 20, parágrafo único, o Código indica que: “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.” (BRASIL, 2002).
O autor e advogado Gustavo Santos Gomes Pereira expõe:
“Toda essa verificada amplitude da defesa conferida aos direitos da personalidade, inclusive após a morte, só atesta mais ainda a importância do respeito aos direitos dessa natureza, já que integram a própria existência da pessoa, bem como a efetiva mudança ideológica promovida pelos novos parâmetros trazidos pela Constituição Federal de 1988, na seara civil, tanto colaborou para o seu processo de despatrimonialização.” (PEREIRA, 2020, p. 86).
Portanto, essa gama de direitos da personalidade faz com que os olhos do ordenamento jurídico estejam voltados, com muita atenção e respeito, à existência da vida humana e dos direitos fundamentais a ela conferidos, objetivando, assim, suprir as necessidades humanas e os anseios da sociedade.
3.3 Autonomia privada e a não intervenção do Estado
O mundo, atualmente, vive a era digital. Nas últimas décadas, a vida dos cidadãos se tornou mais virtual, com a amplitude do acesso à internet por meio do uso de computadores, tablets, celulares. Através deles, criam-se identidades eletrônicas, como perfis em redes sociais, contas em bancos virtuais e moedas virtuais (um exemplo são os biticoins): bens incorpóreos, protegidos por senhas e códigos de acesso.
Daí surge a problemática relativa à segurança de que dispomos para resguardar esses bens. A partir do momento em que as informações dos usuários ficam expostas, como é feito o regramento da forma de uso desses bens? Quais são os limites da autonomia privada e da intervenção do Estado na questão supracitada?
A autonomia privada seria a própria manifestação de vontade do indivíduo, em criar e propor suas próprias leis, regras, normas e regimentos. Ela seria pautada em uma autonomia da vontade, por parte do indivíduo, de estabelecer suas atuações e seus limites, não cabendo qualquer intervenção estatal.
Bruno Torquato Zampier Lacerda entende que: “Quando se tem exercício de autonomia, a norma partirá do próprio sujeito, que definirá para si regras de conduta.” (LACERDA, 2021, p. 161).
No entanto, atualmente, a autonomia privada está pautada e em conformidade com o ordenamento jurídico, sobressaindo-se sobre a autonomia da vontade, que parte de uma ideologia liberal e individualista sem preceitos legais, proveniente do Estado Liberal Clássico. A autonomia privada não busca somente resguardar a liberdade individual, mas também a coletiva. O ser humano só poderá, portanto, agir de acordo com o que acredita, se, com isso, não vier a prejudicar terceiros.
Sobre o assunto, Maria de Fátima Freire de Sá e Maíla Mello Campolina Pontes (2009) lecionam que:
“A adoção de uma concepção de autonomia integradora dos espaços público e privado é a única que, diante de uma pluralidade, propicia a preservação da variável individual dentro de uma realidade intersubjetivamente compartilhada na qual cada um possa se preservar, mas, ao mesmo tempo, reconhecer o outro e participar da construção desse universo comungado sem que, para tal, excluam-se as diferenças.” (SÁ; PONTES, 2009, p. 45).
Tendo o poder estatal a gestão dos interesses individuais, os sujeitos públicos deverão agir conforme a lei determina, observando princípios cruciais como a legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade (PERLINGIERI, 2008, p. 336).
A autonomia privada pode ser vista como um gênero, possuindo três espécies: a autonomia contratual, a autonomia negocial unilateral, e a autonomia existencial. Assim, a autonomia privada passa a estar presente em situações tanto de cunho patrimonial como existencial do indivíduo (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p.148). Os autores ensinam que:
“A autonomia privada transcende o perímetro dos negócios jurídicos patrimoniais, pois, em uma ordem pós-positivista, afirma-se como exercício de liberdade e instrumento de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Quer dizer, a autonomia privada não se reduz ao espaço normativo em que o sujeito realiza a atividade econômica (art. 170, CF), sendo também localizada sempre que o ser humano manifesta situações jurídicas da personalidade, concretizando os seus projetos espirituais (art. 1º, III, CF). Aqui, afirma-se a “autonomia existencial”. (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 148).
No entanto, estamos imersos em uma sociedade digital, atualizada a cada instante, na qual novas informações são liberadas pela internet e se constituem em verdadeiros bens jurídicos, dotados de funções sociais e renovados a todo momento. Isso faz com que a autonomia privada se torne inapropriada para o novo cenário social, pois, como visto neste artigo, o ordenamento jurídico não consegue prever e tutelar todas as atualizações avassaladoras da vida digital. Elas surgem das necessidades humanas e o ordenamento deve, portanto, acompanhá-las e adaptar-se a elas.
Assim, depreende-se que a autonomia privada vem sendo exercida no mundo eletrônico, por meios de declarações unilaterais de vontade, da oferta de serviços públicos e dos contratos online (LACERDA, 2021, p.166). Lacerda postula, ainda, que:
“Essas novas fronteiras de autonomia privada permitem considerar que o ordenamento jurídico autoriza a titularidade dos bens digitais, quer tenham caráter patrimonial ou existencial. E se a titularidade é resguardada, igualmente deve ser possível o exercício deste direito por parte do sujeito, regrando a forma como se dará o uso, bem como o destino em caso de uma fatalidade no futuro.” (LACERDA, 2021, p. 166).
A Intervenção do Estado se limitaria neste momento, pois o Estado, como ente hierárquico, é quem organiza as relações entre os indivíduos, através de várias leis que, assim, guiam a conduta humana. Caso o Estado não tenha, em seu ordenamento jurídico, uma legislação capaz de regulamentar os bens jurídicos digitais, prevalecerá a vontade individual do ser humano, como fonte normativa que regulará esses interesses em cada caso concreto.
Já existem contratos que fornecem serviços de internet, como, por exemplo, os contratos de adesão, que, mesmo sem uma legislação regulamentadora desses bens digitais, fazem-se presentes a todo momento no mundo virtual.
Sobre o assunto, Bruno Torquato Zampier Lacerda afirma:
“Recorde-se, por fim, que, mesmo ante a presente ausência legislativa, vários ativos digitais tem sua disciplina regrada a partir de contratos de adesão celebrados junto aos provedores que ofertam os serviços na Internet, como já destacado neste estudo. Entretanto, como sói acontecer com aqueles que detêm o poder de estipular unilateralmente cláusulas contratuais, abusos são claramente percebidos. E a velocidade das relações virtuais colabora ainda mais para que os aderentes sequer procedam à leitura dessas normas, que irão regular suas relações com os prestadores.” (LACERDA, 2021, p. 167).
O Facebook, dono da rede social WhatsApp, foi notificado pelo Procon-SP, no dia de 14 de janeiro de 2021, a se explicar sobre sua nova política de privacidade, que prevê o compartilhamento de dados do usuário com as empresas parceiras da mídia. De acordo com a nova política da rede, seriam compartilhadas, em detalhes, informações como fotografias, tempo e permanência no aplicativo, e modelo de celular. Tal compartilhamento dos dados pessoais do usuário precisa ser justificado segundo um fundamento legal, enquadrando a política de privacidade à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e ao CDC (Código de Defesa do Consumidor) (MIGALHAS, 2021).
O intuito seria reprimir a prática abusiva, pressupondo a proteção e a manifestação livre dos usuários, sem vício de coação, a aderirem ou não a tais políticas de privacidade estabelecidas na relação contratual.
Sendo assim, é preciso uma reforma na legislação atual, para que haja a regulação normativa da titularidade dos bens digitais, expressa no ordenamento jurídico. Essa mudança conduzirá a forma como cada indivíduo dará uso e o destino a esses bens, havendo também a efetiva proteção dos dados pessoais dos usuários.
4 O TRATAMENTO DE BENS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
4.1 Conceito
O Direito existe para servir às pessoas, atender às suas necessidades, que, a cada dia, surgem demandando uma ação e um posicionamento do Estado. Necessidades que, suprimidas, alcançam a realização existencial do indivíduo e, revestidas de utilidades, tornam-se uma categoria de bens jurídicos, devendo, portanto, ser amparadas pelo ordenamento jurídico.
Previamente, destaca-se que, para alguns autores, é importante a diferenciação entre bens e coisas. Diante disso, Cezar Fiúza define que “bem é tudo aquilo que é útil às pessoas”, “sendo suscetível de apropriação”, e “coisa” é “todo o bem suscetível de avaliação econômica e apropriação pela pessoa”. Para o autor, os bens, se comparados com as coisas, não poderiam ser mensurados igualmente, pois referem-se a noções como vida, saúde, liberdade e privacidade, que não têm valoração econômica alguma (FIÚZA, 2004, p. 171).
Tem-se, por definição de Bens, valores materiais ou imateriais que regulam uma relação de direito. Sendo objeto de direito positivo a conduta humana, e objeto de direito subjetivo bens que não possuem valor pecuniário (RIBEIRO, 2006).
Ao tratar do conceito de bens, Alexandre Cortez Fernandes aponta:
“Nessa linha, veja-se a tradicional lição de que bem, em sentido amplo, é tudo o que satisfaz o interesse de um sujeito de direito - como um automóvel, um quadro, o luar – enquanto em sentido jurídico, é todo interesse disciplinado pelo ordenamento jurídico, seja ele corpóreo ou incorpóreo, patrimonial ou extrapatrimonial.” (FERNANDES, 2012, p. 266).
Ou seja, bens são objetos jurídicos dotados de valor pecuniário. Assim seriam os livros, os celulares, a informação, a máquina fotográfica, a tecnologia, um apartamento e o direito à integridade física e moral de um indivíduo.
Ainda, para Alexandre Cortez Fernandes, temos uma categoria de bens quando nos apropriamos de algo e o utilizamos, conferindo valor à coisa. “O bem para o direito supõe uma valoração e pressupõe alguma qualificação.” (FERNANDES, 2012, p. 265).
Com relação aos bens jurídicos, podemos defini-los como tudo o que é valioso e precioso para o ser humano. Segundo o advogado e professor Ney Moura Teles, “são bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade” (TELLES, 2004, p. 46).
No entanto, nem todos os bens são bens jurídicos, sendo bens jurídicos aqueles considerados preciosos, que possuem utilidade e suprem as necessidades e os anseios da sociedade. Surgirá, a partir deles, a imprescindibilidade de serem normatizados. O amparo pela legalidade passa a caracterizar, portanto, um bem jurídico.
Sendo assim, juridicamente, os bens podem ter ou não valor econômico. Podem ser materiais, como um aparelho celular ou uma TV, ou apenas existenciais, como a vida e a liberdade. Podemos dizer, então, que os bens digitais, estudados mais adiante neste trabalho, caracterizam-se como bens jurídicos, devendo ser respaldados pelo ordenamento jurídico.
4.2 Bens corpóreos e incorpóreos
No Direito, a classificação de bens em uma determinada categoria, busca atrair princípios que fixam de forma abrangente os institutos que o regulam e as relações que o fomentam (PEREIRA, 1982).
A doutrina jurídica adere à classificação vinda do Direito Romano, que divide os bens em dois grandes grupos: o das coisas corpóreas e o das coisas incorpóreas. A distinção entre bens corpóreos e bens incorpóreos se dá na tangibilidade, sendo corpóreo aquilo que pode ser tocado, e incorpóreo o que não pode, existindo somente no campo intelectual. A distinção serve para distinguir coisas-coisas e coisas-direitos, sendo estes últimos incorpóreos, mas dotados de direitos (GAIUS, 1967).
Esse foi um conceito clássico, adotado para diferenciar bens corpóreos e incorpóreos. No entanto, a Lei Civil Brasileira, em seu Livro II da Parte Geral do Código Civil sobre “Bens”, optou por não os distinguir, pois, em sua concepção, ambos teriam o mesmo significado posto sob ângulos opostos (LACERDA, 2021, p. 53).
É o que diz Caio Mario da Silva Pereira:
“Não é a tangibilidade, em si, que oferece o elemento diferenciador, pois há coisas corpóreas naturalmente intangíveis, e há coisas incorpóreas que abrangem bens tangíveis, como é o caso da herança ou do fundo de comércio, considerados em seu conjunto como bens incorpóreos, apesar de se poderem integrar de coisas corpóreas [...]” (PEREIRA, 2009a, v.1., p. 348).
Os bens corpóreos seriam aqueles que possuem existência física, são palpáveis. Para Pablo Stolze, corpóreos são aqueles bens existenciais, móveis ou imóveis, que podemos sentir ou tocar, como um carro ou um prédio residencial. Já os bens incorpóreos são aqueles que não possuem existência, que não são palpáveis, como o direito à imagem, à intimidade, à honra e à manifestação de vontade do indivíduo (STOLZE, 2014).
Já para o professor Antônio Lopes de Sá, os bens corpóreos possuem uma forma identificável. São concretos, possuem uma substância material. Os bens incorpóreos, por outro lado, não podem ser tocados, por não possuírem aspecto material para sua significação– é o caso de marcas, patentes, ações financeiras, slogans. Por terem caráter físico, não podem ser tocados, mas podem ser comprovados (SÁ, 1995, p. 57).
Para Caio Maria da Silva Pereira, a noção seria a de que os bens corpóreos estariam em uma relação jurídica, assumindo a função de objetos de compra e venda, ao passo que os bens incorpóreos seriam objetos de cessão, com os quais ocorre a transmissão de direitos sobre determinado bem (PEREIRA, 2009).
Há que se falar ainda que, em sentido amplo, os bens corpóreos e incorpóreos integram o patrimônio da pessoa, sendo um conjunto de bens, de qualquer ordem, pertencentes ao indivíduo. (SILVA, 2008).
Alexandre Cortez Fernandes define, a respeito do tema:
“Os bens corpóreos e incorpóreos integram o patrimônio da pessoa. A ideia de patrimônio pode ser tomada em sentido amplo - que é o conjunto de todos os bens e de qualquer ordem de um titular - e, em sentido estrito, “abrange apenas as relações jurídicas ativas e passivas de que a pessoa é titular, aferíveis economicamente”.” (GONÇALVES apud FERNANDES, 2012, p. 268).
E ainda afirma que:
“Assim, no bem jurídico pode-se falar em patrimonialidade - como no caso de uma casa - ou em extrapatrimonialidade, como no direito à intimidade.” (MONTEIRO apud FERNANDES, 2012, p. 268).
Por fim, os conceitos explicitados acima são regulados pelo ordenamento jurídico e, portanto, aplicam-se também aos bens digitais, pois, sendo bens incorpóreos e dotados de utilidade, com ou sem caráter econômico, emocional e informacional, deverão ser regulamentados juridicamente. Discutiremos mais sobre o assunto no próximo capítulo.
5 BENS DIGITAIS E SEU TRATAMENTO LEGAL
5.1 Conceito e natureza jurídica
O progresso tecnológico é bastante perceptível e avança, a cada dia, em uma velocidade surpreendente. Com isso, o cenário da vida em sociedade se transforma, imerso cada vez mais no mundo digital.
O compartilhamento em redes de fotos e vídeos, a adesão de contratos virtuais, a aquisição de bens (corpóreos ou incorpóreos) aderidos através do uso de diversos aparelhos eletrônicos – proporcionado pela infinitude de possibilidades que a tecnologia traz –, são algumas vantagens que justificam esse novo estilo de vida.
Acerca desse assunto, Bruno Torquato Zampier Lacerda expõe:
“Naturalmente, esse passar dos anos fará com que sejam depositadas na rede inúmeras informações, manifestações da personalidade e arquivos com conteúdo econômico, todos esses ligados a um determinado sujeito. Cada internauta terá seu patrimônio digital que necessitará ser protegido, porque em algum momento ele irá falecer, manifestar alguma causa de incapacidade ou mesmo sofrer violações a este legado deixado em rede.” (LACERDA, 2021, p. 61).
A Constituição Federal, bem como o Código Civil Brasileiro, não traz, em seu texto legal, menção aos ativos digitais, reconhecidos como bens imóveis, móveis ou mesmo equiparados a móveis. Porém, há doutrinas e jurisprudências que já se acercam sobre eles, definindo-os como bens incorpóreos devido à sua natureza intangível e virtual. (BARBOSA, 2017, p. 36).
Adelmo da Silva Emerenciano define:
“Os bens digitais, conceituados, constituem conjuntos organizados de instruções, na forma de linguagem de sobre nível (O computador opera com as instruções transmitidas em linguagem de baixo nível, que é a linguagem capaz de ser interpretada pela máquina. As linguagens são de alto ou baixo nível conforme sua maior ou menor proximidade com a linguagem humana), armazenados em forma digital, podendo ser interpretados por computadores e por outros dispositivos assemelhados que produzam funcionalidades predeterminadas. Possuem diferenças específicas tais como sua existência não-tangível de forma direta pelos sentidos humanos e seu trânsito, por ambientes de rede teleinformática, uma vez que não se encontram aderidos a suporte físico.” (EMERENCIANO, 2003, p. 83).
A partir dessa definição, Érica Elisa Dani Wilkens e Luiz Felipe Ferreira sintetizam:
“Todos os bens digitais fornecidos pela rede imitam o objeto físico, real, material ou produzem os mesmos efeitos em nossos sentidos. Dentro dos mais diversos programas de computador (grifo nosso), que cumprem este papel, pode-se enumerar: as fotografias digitais, a música transferida por meio digital, os livros eletrônicos, as enciclopédias multimídias, os jogos, os desenhos técnicos, os mapas eletrônicos, as pinturas em museus virtuais, entre outros.” (EMERENCIANO, 2003 apud WILKENS; FERREIRA, 2008, p. 77).
Segundo Bruno Torquato Zampier Lacerda, bens digitais são:
“[...] bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe trazem alguma utilidade, tenham ou não conteúdo econômico.” (LACERDA, 2017, p. 74).
Portanto, bens incorpóreos são aqueles abstratos que não possuem existência física e, por isso, não são palpáveis, como redes sociais, blogs, fotos digitais, músicas, vídeos.
Podemos considerar que os bens digitais, assim como os bens materiais deixados pelo de cujus ou o usuário das mídias digitais, podem ou não possuir caráter econômico, podendo, então, ser passíveis de serem herdados.
A questão é que, com caráter econômico ou não, os arquivos e conteúdos produzidos virtualmente e deixados pelo falecido possuem valor sentimental para os familiares do usuário. Torna-se, assim, necessária a análise de cada caso.
Nesse sentido, segundo Orlando Gomes,
“A noção jurídica de bem é mais ampla do que a econômica. Compreende toda utilidade, física ou ideal, que possa incidir na faculdade de agir do sujeito. Abrange as coisas propriamente ditas, suscetíveis de apreciação pecuniária, e as que não comportam essa avaliação, as que são materiais ou não.” (GOMES, 2008, p. 179).
Consideramos, então, não apenas a existência dos objetos palpáveis, mas também a de uma categoria de bens intangíveis, que, mesmo diante do fato de não existirem fisicamente, permanecem no rol de objetos de direitos.
A importância é que, diferentemente do que ocorre com os bens corpóreos que, na sua maioria, têm valorização econômica, os bens incorpóreos podem, ou não, ter valor pecuniário.
Essa possibilidade de valorar economicamente é que vai definir a qual regime jurídico será submetido o direito que tem como objeto um bem intangível.
5.2 Classificação dos bens digitais
Os bens digitais são o patrimônio virtual que o indivíduo conquistou, dentro das redes, ao longo dos anos. Os bens digitais incorporam os mais variados conteúdos, como vídeos, músicas, mensagens e dados pessoais postados e compartilhados em um ambiente virtual. Sendo assim, podemos classificar os bens digitais como de caráter patrimonial, com ou sem valor econômico, ou apenas caráter existencial, ligados aos direitos da personalidade, como, por exemplo, o direito à imagem e à liberdade.
Sendo assim, segundo Lara,
“Bens digitais são instruções trazidas em linguagem binária que podem ser processadas em dispositivos eletrônicos, tais como fotos, músicas, filmes, etc., ou seja, quaisquer informações que podem ser armazenadas em bytes nos diversos aparelhos como computadores, celulares, tablets.” (LARA, 2016, p. 22).
Para Bruno Torquato Zampier Lacerda, bens digitais são:
“Bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe trazem alguma utilidade, tenham ou não conteúdo econômico.” (LACERDA, 2017, p. 74).
Fato é que, tendo ou não valor patrimonial revestido de utilidade, esses bens passam a integrar o patrimônio virtual de um indivíduo, e, após sua morte, serão deixados como herança para seus sucessores.
Os bens digitais que possuírem utilidade patrimonial serão passíveis de apreciação econômica. São conquistados pelo autor da herança virtual e podem gerar lucro mesmo após sua morte. Já os bens que não possuem valor econômico destinam-se aos direitos de personalidade do de cujus, como o direito à privacidade, à honra, à liberdade.
Podemos citar aqui os influenciadores digitais, formadores de opinião que influenciam milhares de seguidores por meio do conteúdo publicado em redes sociais – uma estratégia que ocorre por meio de plataformas digitais, como Instagram e Youtube. Os influenciadores fecham grandes contratos com marcas reconhecidas, divulgam as marcas e criam conteúdos exclusivos, alavancando o engajamento e os rendimentos para as empresas e, consequentemente, auferindo seu próprio lucro.
No entanto, se o usuário somente posta suas fotos, vídeos e mensagens com a família e amigos, em redes sociais, por exemplo, não dispõe de valor econômico, e sim de fins pessoais, íntimos e privativos do indivíduo, ligados, portanto, ao direito de personalidade. (OLIVEIRA, 2020, p. 21).
Em virtude dos fatos acima mencionados, Moisés de Oliveira assevera:
“Então, se se comportam como práticas de consumo ou se enquadram produções autorais, merecem amparo da lei, no que se refere aos direitos de herdar, pois é nítido o caráter de valorização patrimonial.” (OLIVEIRA, 2020, p. 21).
Sendo assim, é imprescindível que a Lei Civil Brasileira acolha e introduza uma legislação específica aos bens digitais frente a cada caso concreto. Isso alcançará não só a satisfação das necessidades humanas, bem como a efetivação aos princípios fundamentais e, consequentemente, o progresso pátrio.
6. FUNDAMENTOS DO DIREITO DAS SUCESSÕES
6.1 Vocação hereditária
A pessoa que falece deixa seu patrimônio, a ser transmitido para os seus sucessores. Ao deixar relações jurídicas patrimoniais, importará ao Direito das Sucessões ampará-las. Isso porque somente as relações jurídicas patrimoniais são transmissíveis e de interesse do Direito Sucessório (FARIAS; ROSENVALD, 2017. p. 56).
No Brasil, a sucessão mortis causa se dá pela ope legis (legítima) ou através de testamento. Segundo o Art. 1.786 do Código Civil, “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.” Ou seja, não havendo inexistência, ineficácia ou caducidade do ato de última vontade, o chamado testamento, restará a sucessão legítima por força normativa (BRASIL, 2002).
Caso ocorra a sucessão da legítima, com a morte, transfere-se todo o patrimônio do de cujus aos seus herdeiros, como título universal. Já a sucessão testamentária poderá, portanto, ser a título universal, pela transmissão do patrimônio, ou a título singular, quando há a transmissão de coisa ou quantia certa a um legatário (PEREIRA, 2015 apud ALMEIDA, 2017, p. 55).
A sucessão legítima se divide em sucessão legítima necessária e sucessão legítima facultativa. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald lecionam:
“Assim, a sucessão legítima se divide em sucessão legítima necessária e sucessão legítima não necessária (também dita facultativa). Aquela (necessária) impõe a participação de determinados herdeiros obrigatoriamente, retirando do titular do patrimônio a liberdade de excluí-los da sucessão. Esta (facultativa) preserva o direito do autor hereditatis de livremente dispor do seu patrimônio, inclusive eliminando a participação dos herdeiros não necessários.” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 58).
O artigo 1.845 do Código Civil prescreve que os herdeiros necessários são os descendentes, ascendentes, cônjuge, e companheiro em união estável, nos casos previstos no artigo 1.790 do Código Civil (BRASIL, 2002).
A sucessão legítima decorre da Lei, independentemente de declaração de manifestação de vontade. Havendo herdeiros necessários, a metade da herança do de cujus ficará alheia à sua vontade. A sucessão legítima irá impor ao autor da herança a disposição, em seu testamento, de somente metade do seu patrimônio líquido (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 378).
A sucessão testamentária decorre de um ato de última vontade, de uma autonomia privada ou declaração expressa do autor da herança, cabendo a ele escolher quem serão seus futuros herdeiros, e quanto deixará para cada um, caso não haja herdeiros necessários (FARIAS; ROSENVALD, 2017. p. 378).
Na sucessão legítima, por grau de parentesco, a vocação hereditária ocorre da seguinte forma: primeiro são chamados a suceder os descendentes, concorrendo ou não com o cônjuge ou companheiro. Na falta deles, são convocados os ascendentes em concorrência com o cônjuge ou companheiros. Faltando descendentes ou ascendentes, o cônjuge ou companheiro será chamado a suceder. Não havendo cônjuge ou companheiro, serão chamados a suceder os colaterais até quarto grau (irmãos, primos, tios, sobrinhos) (PEREIRA, 2015, p. 71).
É possível, ainda, ocorrer a concomitância entre a sucessão legítima e a testamentária; caso o testador tenha herdeiros necessários, irá dispor somente a cota disponível em testamento. Não havendo herdeiros necessários, e sem a disposição, por parte do testador, da totalidade de seus bens, serão chamados os herdeiros legítimos facultativos, como, por exemplo, os colaterais até o quarto grau.
E, não havendo herdeiros legítimos facultativos, o Poder Público (Município, Distrito Federal, ou a União) irá arrecadar a cota disponível através do procedimento especial jacente e vacante, devolvendo-o à Fazenda Pública (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 378-379).
6.2 Testamento digital
Como forma de dar ou não, àqueles que estimamos, amparo necessário caso venhamos a falecer, realizamos um planejamento sucessório. Esse é um negócio jurídico unilateral, no qual o indivíduo disporá integralmente ou parcialmente do seu patrimônio.
O patrimônio de um falecido é transmitido aos seus herdeiros, por força normativa da Lei ou por uma declaração que manifesta sua última vontade – dentro, é claro, dos requisitos legais. O testador, por sua autonomia privada em dispor do seu patrimônio, poderá fazê-lo por sucessão legal ou testamentária.
O Código Civil, em seu artigo 1.862, prevê, como modelos de testamento ordinários, o testamento público, o cerrado e o particular, e, no artigo 1.886, os testamentos especiais: marítimo, aeronáutico e militar. No presente trabalho, atentemo-nos ao testamento particular, previsto no artigo 176 e seguintes, pois a nossa pretensão é a de que haja um instrumento que regule a sucessão dos bens digitais.
Sobre o testamento particular, Bruno Torquato Zampier Lacerda diz que:
“Obviamente, no caso, o testamento assumiria a forma particular, prevista no art. 1.876 e seguintes do Código Civil. O próprio caput estabelece que esta modalidade de testamento pode ser escrita de próprio punho ou mediante processo mecânico. A inserção de dados em um computador em rede pode ser considerada um processo mecânico, adequando-se assim o significado da lei à realidade atual. Os requisitos legais de validade estabelecidos para tal ato nos parágrafos deste artigo podem ser superados com certa tranquilidade, a partir da utilização de ferramentas existentes no meio digital. A exigência de assinatura do testador poderia ser suprida pela inserção de senhas, ou mesmo por métodos de certificação digital. O mesmo se diz quanto a eventuais testemunhas.” (LACERDA, 2021, p. 178).
O testamento poderá conter disposições de caráter patrimoniais ou não patrimoniais – no caso de disposições de cunho apenas existencial, como indicado no artigo 1.857, §2º, do Código Civil. Como exemplo, temos o reconhecimento de paternidade, a disposição de parte ou totalidade do corpo, e a nomeação de tutor ou curador para os filhos (LACERDA, 2021, p. 172).
Com o intuito de buscar a proteção da autonomia privada, permitindo ao testador o direcionamento de suas vontades de cunho patrimonial e existencial (e ainda, sendo o testamento uma via voluntária disposta pelo ordenamento jurídico), esse instrumento deverá regulamentar, também, a sucessão dos bens digitais.
O testamento, apresentando caráter patrimonial ou existencial, deverá ser regulado juridicamente. Juliana Evangelista de Almeida leciona:
“Desta feita, quando apresentam conteúdo patrimonial são verdadeiro patrimônio do autor da herança e transmitem-se aos herdeiros com a morte seja pela sucessão legítima, seja pela sucessão testamentária. Contudo, aos bens digitais que contenham somente conteúdo existencial não haverá transmissão, mas pode haver, através de testamento, regulação em relação a sua destinação, ou ainda, a possibilidade de legitimação processual para o seu exercício.” (EVANGELISTA, 2019, p. 61).
No atual ordenamento jurídico, não se reconhece a existência do testamento digital, mesmo diante das necessidades humanas advindas da democratização da internet, e das várias tentativas de adicionar à legislação o conceito da herança digital.
O testamento digital seria um documento que testaria a última vontade de uma pessoa, tratando, especificamente, dos bens digitais deixados pelo de cujus – o patrimônio virtual conquistado ao longo do tempo.
Sobre assunto, Moisés Fagundes Lara assevera:
“Podemos deixar instruções claras sobre o destino de nossos bens digitais: nossas senhas de acesso aos sites, e-mails, e redes sociais; um inventário prévio de nosso patrimônio digital; e até mesmo os contatos que os sucessores devam realizar para acessar a essa património, tais como os endereços eletrônicos, telefones de contato de alguma empresa contratada previamente para inventariar todo o nosso acervo digital.
Esse modo de disposição patrimonial tende a mudar, ou seja, o testamento deverá ser mais empregado em nosso país, devido ao avanço substancial dos bens digitais que se encontram na nuvem, pois uma forma prática e segura de transmissão dos ativos digitais aos seus sucessores é realizar um testamento de bens digitais, evitando-se assim o perecimento dos bens digitais depositados na rede, bem como demandas jurídicas envolvendo sucessores e empresas que administram os diversos sites e redes sociais.” (LARA, 2016, p. 92).
Com a universalidade que a tecnologia propicia, alguns serviços de internet já oferecem aos seus usuários a capacidade de determinar qual será o destino de seus bens digitais. Algumas empresas disponibilizam, em suas plataformas, formulários que se farão por testamento digital, em que os usuários poderão deixar por escrito qual será o destino de seus bens digitais, isto é, quem herdará seu patrimônio virtual, se assim for sua vontade (PEREIRA, 2020, p. 148).
Como a maioria das relações atuais se permeiam através da celebração de contratos, em que as empresas estabelecem a melhor forma pela qual se dará o serviço dentro dos limites legais, os contatos dos bens digitais muitas vezes são celebrados com os provedores. Com isso, o ideal seria que cada provedor oferecesse, em caso de morte do usuário titular da conta, múltiplas opções de destinação de seus bens digitais, constando, por exemplo, termos de condições e serviços (LACERDA, 2021, p. 179).
Três grandes empresas se destacam por possibilitar aos usuários a destinação de seus bens digitais.
A primeira empresa é o Google, que dispõe da ferramenta “gerenciador de contas inativas”, permitindo ao usuário gerenciar seus dados, no caso de morte ou incapacidade. O titular da conta poderá designar até dez pessoas à sua escolha, e essas poderão fazer o download dos dados de cada um dos serviços oferecidos pelo Google, à escolha do usuário/proprietário.
A segunda empresa é o Facebook que, desde 2015, também permite ao usuário designar seu herdeiro e administrador da conta, que, no caso de morte do proprietário, deve ser transformada em memorial ou excluída.
Bruno Torquato Zampier Lacerda, sobre a temática, diz:
“O Facebook no início de 2015, criou o que denominou de “contrato de herdeiro” (ou “contrato de legado”), que nada mais é que um testamento digital, em que a pessoa escolhida pelo titular poderá controlar parcialmente sua conta, após a eventual morte. O designado poderá alterar o nome, a foto do perfil, aprovar solicitações de novas amizades e escrever uma postagem que ficará fixa no topo da página da rede social. Acima do nome do falecido, virá a informação “em memória de”. Contudo, esse terceiro nomeado não poderá visualizar mensagens privadas trocadas pelo usuário em vida, ou fazer postagens em nome do falecido. Há, por fim, nessa mesma ferramenta, a opção do perfil ser encerrado permanentemente em caso de morte. “ (LACERDA, 2021, p. 180).
Tal instrumento de disposição de última vontade serviria, ainda, para evitar eventuais conflitos que poderiam vir a prejudicar ambas as partes (usuário e provedor), pois o objetivo sempre será a efetivação da proteção de direitos fundamentais, inerentes ao homem. Bruno Torquato Zampier Lacerda sustenta que “há que se ter muito de autonomia e pouco de intervencionismo estatal neste campo.” (LACERDA, 2021, p. 181).
Sendo assim, visto que o testamento pode ser usado em sua forma tradicional, defende-se aqui a elaboração do testamento digital, como instrumento apto à validar as disposições do autor da herança, satisfazendo a vontade do de cujus quanto à destinação de seu patrimônio digital, conquistado ao longo dos anos.
Por fim, um assunto de grande valia, que vale a pena ser discutido ainda, refere-se às Diretivas Antecipadas da Vontade, definidas como uma declaração de manifestação de vontade de uma pessoa, nas quais ela diz quais cuidados e tratamentos de saúde deseja ou não receber, em momentos em que estiver incapacitada de dizer qual a sua vontade, podendo designar, ainda, alguém para efetivar seu desejo (PORTUGAL, 2012).
Luciana Dadalto, abordando a temática das diretivas antecipadas de vontade, qualifica-as como um testamento vital, que aborda, especificamente, situações de terminalidade de um paciente: “uma declaração prévia de vontade do paciente terminal.” (DADALTO, 2013).
Dadalto, ainda, indaga:
"Todos os seres humanos estão em fim de vida, e o que cada um deseja fazer com a própria vida?” Cabe a cada indivíduo, e somente a ele, decidir como gostaria de ser cuidado, caso seja diagnosticado com uma doença crônica incurável em situação de terminalidade. É ter a gentileza de olhar para dentro de si e verificar o que realmente é importante para cada um de nós. A vida biológica não tem que ser perseguida, e sim a vida digna, e que esta, varia de pessoa para pessoa.” (informação verbal). (DADALTO, 2018)[4]
Tais diretivas antecipadas de vontade acabariam por atingir também os bens digitais, alinhando-se à autonomia privada. Acerca disso, Bruno Torquato Zampier Lacerda menciona:
“Entretanto, como traço da autonomia privada, acredita-se que as diretivas poderiam ser utilizadas, também, para conceder destino aos bens digitais existenciais. No documento elaborado, poderia haver uma cláusula dispondo expressamente que, em caso de incapacidade, o declarante deseja que seus bens de caráter existenciais, inclusive aqueles que se projetam no mundo virtual, tenham o destino que lhe aprouver.” (LACERDA, 2021, p. 187).
No Brasil, ainda não há regulamentação normativa que trata das diretivas antecipadas de vontade, tampouco Projetos de Lei que versem sobre o assunto. Portanto, não havendo uma regulamentação legal que verse sobre a temática, não haveria limites da manifestação de vontade do sujeito. Isso proporciona a ele a autonomia privada para dispor dos seus bens da maneira que lhe convenha.
6.3 Herança digital
O progresso rápido ao amplo acesso à internet transformou o modo de vida em sociedade. Mudaram-se os costumes, os hábitos, os valores, e ganhou espaço, em uma cultura impensada e ainda não amplamente discutida, o patrimônio do indivíduo, sua herança digital.
O direito à herança é um direito fundamental expresso no Art. 5º, inciso XXX da Constituição Federal de 1988, e regulamentado pelo Código Civil de 2002, a partir do seu artigo 1.784, que leciona: “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários” (BRASIL, 2002).
A herança seria um conjunto de direitos e obrigações do de cujus que, em razão da sua morte, transmite o seu patrimônio aos herdeiros legítimos ou testamentários, com exceção aos casos em que forem personalíssimos à pessoa falecida (DINIZ, 2012).
A herança digital seria como a herança tutelada pelo Código Civil, referente, porém, a um patrimônio digital do falecido, como fotos, games, documentos armazenados em nuvens virtuais e redes sociais. Para Larissa Furtado Barbosa, “a herança digital consiste em todo o patrimônio passível de armazenamento em servidores virtuais, abrangendo músicas, fotos, escritos pessoais, documentos e dados em geral” (BARBOSA, 2017, p. 48-49).
Com o amplo acesso à internet, houve uma transição do mundo físico para o mundo digital, no qual as pessoas passaram a comprar itens em lojas virtuais, e efetuar pagamentos e transferências através de aplicativos de instituições financeiras. Os usuários da internet começaram, também, a interagir socialmente através de aplicativos de mensagens instantâneas e chamadas de voz, expondo sua imagem em redes sociais com ou sem fins lucrativos. Além de armazenar, em uma nuvem virtual, suas fotos, livros, artigos, músicas, games, filmes, que antes eram guardados fisicamente em armários, estantes.
A partir daí, obtém-se, portanto, um acúmulo de riquezas que integram o patrimônio de um indivíduo. Além de arquivos digitais que são valorados economicamente, há também a possibilidade de monetização das páginas de internet, como os blogs e perfis de redes sociais como, por exemplo, o Instagram, em que o engajamento e o número de seguidores se tornam atrativos para empresas que desejam obter um crescimento acelerado e investir em uma publicidade direcionada (PEREIRA, 2020, p. 37).
Sobre o assunto, Bruno Emanuel Silva Moreira Santos aponta que:
"Estas podem conter algum interesse de mercado, principalmente no caso de figuras públicas, em que podem existir inúmeros interesses econômicos e publicitários em gerir redes deste tipo, primordialmente as que permitem divulgação da imagem do seu titular.” (SANTOS, 2016, p.79).
Com isso, muitas pessoas têm as redes sociais como seu patrimônio digital e também como sua ferramenta de trabalho. Para a área de vendas, o mundo digital pode ser próspero, pois as possibilidades de pesquisas que as redes sociais oferecem são vastas, o que possibilita uma visão ampla de mercado, captação de clientes, e concorrência (FELIX, 2017, p. 19-20).
Com o advento da pandemia mundial atualmente enfrentada, disseminada pela transmissão de um vírus conhecido como coronavírus (COVID-19), também foi alterado o estilo de vida em sociedade. As medidas restritivas impostas pelas autoridades sanitárias a fim de conter a transmissão acelerada do vírus, como o isolamento social, intensificaram, ainda mais, o uso da internet.
Surge, para o ordenamento jurídico, e em especial para o Direito das Sucessões, o grande desafio de tutelar essas novas riquezas digitais, esses patrimônios e heranças virtuais que, a cada dia, difundem-se e se fazem presentes mundialmente. E que só tendem a crescer pela sua utilidade e acessibilidade.
6.4 Tutela Jurídica da Herança Digital no Direito Brasileiro
A sociedade mudou o seu estilo de vida nessas últimas décadas, graças ao avanço da tecnologia e à democratização do amplo acesso à internet. Com a atual pandemia, o coronavírus (COVID-19) intensificou ainda mais a mudança desse estilo de vida digital. Frente a essas mudanças, o Direito também precisa mudar, alterando o seu texto legal e, dessa forma, acompanhando a realidade social.
Na legislação vigente, não existe um instituto que regulamenta juridicamente a herança no Direito Brasileiro, e já é hora de haver posicionamentos jurídicos relacionados ao tema. A cada dia, a internet avança no meio social e, decorrente dela, surgem conflitos que acabam afetando os direitos fundamentais como o direito à imagem e à privacidade. É realmente necessária a implantação de uma lei normativa que ampare a sucessão de bens digitais.
A herança digital, no entanto, vem sendo discutida desde 2012 pelo Poder Legislativo. A respeito dela, temos dois Projetos de Lei, de nº 4.099/2012 e nº 4.847/2012, de autoria dos deputados federais Jorginho Mello (PSDB/SC) e Marçal Filho (PMDB/MS), que versam sobre o assunto.
O Projeto de Lei nº 4.099/2012 pretendia acrescentar, ao artigo 1.788 do Código de Civil de 2002, o seguinte parágrafo único:
“Art. 1.788 (...) Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.” (BRASIL, 2012, p. 1).
A proposta de alteração do artigo 1.788 teve a seguinte justificativa:
“O Direito Civil precisa ajustar-se às novas realidades geradas pela tecnologia digital, que agora já é presente em grande parte dos lares. Têm sido levadas aos Tribunais situações em que as famílias de pessoas falecidas desejam obter acesso a arquivos ou contas armazenadas em serviços de internet e as soluções têm sido muito díspares, gerando tratamento diferenciado e muitas vezes injustos em situações assemelhadas. (...) É preciso que a lei civil trate do tema, como medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais. O melhor é fazer com que o direito sucessório atinja essas situações, regularizando e uniformizando o tratamento, deixando claro que os herdeiros receberão na herança o acesso e total controle dessas contas e arquivos digitais.” (BRASIL, 2012, p.1).
Já o Projeto de Lei nº 4.847/2012 pretendia acrescentar, ao artigo 1.797 do Código Civil de 2002, o capítulo II-A e os arts. 1.797-A a 1.797-C. E conduzia a seguinte justificativa:
“Tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”. O Caderno TEC da Folha de S.Paulo trouxe uma reportagem sobre herança digital a partir de dados de uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres). O estudo mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já estão incluindo em testamentos quem herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e emails. (...) No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas ao morrerem possam ter seus direitos resguardados a começar pela simples decisão de a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital. Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o presente Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já se foram.” (BRASIL 2012, p. 2).
No entanto, ambos os Projetos de Lei, que tratavam da titularidade do material constituído em vida pelo usuário da internet, foram arquivados, sendo o Projeto de Lei nº 4.847/2012 apensado ao PL nº 4.099/2012, por discutirem as mesmas matérias. (BRASIL, 2012c).
Em 13 de dezembro de 2019, o Deputado Jorginho Mello apresentou ao Congresso Nacional o projeto de Lei nº 6468/2012, em que discute novamente a proposta de transmissão aos herdeiros de todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do de cujus, reapresentando o Projeto de Lei nº 4099/2012, arquivado por conta do final da Legislatura. Aqui, é proposto, novamente, o acréscimo do parágrafo único ao artigo 1.788, do Código Civil.
“Art. 1.788 (...) Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.” (BRASIL, 2012, p. 1).
Sob a mesma justificação apresentada anteriormente (a adequação do Direito à nova realidade social tecnológica digital, frente às necessidades da sociedade), é defendida a diferenciação no tratamento de muitas situações que se assemelham aos casos concretos levados aos tribunais, em que as famílias de pessoas falecidas desejam obter acesso a arquivos ou contas armazenadas em serviços de internet. A lei civil, como ferramenta de prevenção e pacificação dos conflitos sociais, faz com o que direito sucessório uniformize o tratamento diante dessas situações. (BRASIL, 2019a).
O Projeto de Lei ainda tramita no Senado, e é o único a tratar do instituto da herança digital no Brasil.
No âmbito do judiciário, ainda são poucas as decisões sobre o tema.
Em Minas Gerais, na comarca de Pompéu (MG), o juízo, nos autos do procedimento de nº 002337592.2017.8.13.0520, tratou de causa em que uma mãe pediu para acessar os dados da filha morta, arquivados em uma conta virtual vinculada ao telefone celular da falecida. O juízo julgou improcedente o pedido, sob o fundamento análogo ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e telefônicas. Tal sigilo é garantido pela Constituição Federal, uma vez que, notadamente, a quebra de dados permitiria também o acesso aos dados de terceiros com os quais a usuária mantinha contato.
Em 2013, o juízo da 1ª Vara do Juizado Especial Central do Estado de Mato Grosso do Sul julgou procedente pedido nos autos do procedimento de nº 0001007-27.2013.8.12.0110, no qual uma mãe pediu para excluir do Facebook o perfil da filha falecida. Isso porque os amigos da jovem, na rede social, continuavam a postar mensagens, músicas e fotos para a menina. Primeiro, foi feito um pedido administrativo. Como a resposta foi a de que a mãe da menina teria de recorrer às sedes administrativas da rede social, nos Estados Unidos e na Irlanda, ela ajuizou a mencionada ação para desativar o perfil.
Depreende-se, assim, a grande relevância e imprescindibilidade do assunto, com o que as discussões não irão parar por aqui, pois se trata de um tema que possui amplas interpretações jurídicas, de teor constitucional relativo aos direitos fundamentais, como privacidade, liberdade, imagem, Além disso, em algum determinado momento deverão não só ser discutidos mas regulados, pois as necessidades humanas, quando comprovadas em cada caso concreto, é que permeiam e justificam a existência do Direito.
Em uma sociedade altamente informacional, cuja comunicação é possibilitada através de canais cada dia mais tecnológicos e inovadores, a amplitude do acesso à internet transformou a vida em sociedade. O mundo caminha, cada vez mais, rumo à digitalização. As próprias relações humanas se tornam cada dia mais virtuais.
Com isso, o modo de vida em sociedade e as relações sociais ganharam uma nova perspectiva. Surge, daí, a necessidade de se observar e tutelar a nova categoria de bens jurídicos de caráter imaterial, no presente caso, os bens digitais.
Acumular dados, imagens e músicas em “nuvens” de armazenamento tornou-se uma tendência com o passar dos anos, e ainda não houve uma reflexão sobre a destinação dessas informações caso o titular dos bens venha a falecer. Porém, constantes necessidades e transformações da vida real exigiram amparo do ordenamento jurídico, e, assim, o Direito precisou intervir.
Os bens digitais podem ter caráter patrimonial, sendo passíveis de apreciação econômica. Muitos são conquistados pelo autor da herança virtual e geram lucro mesmo após sua morte, como acervos de fotos, vídeos, áudios, documentos, músicas, livros, games, filmes e moedas virtuais. Assim, torna-se possível a transferência do legado digital do usuário aos seus sucessores, que são os descendentes, ascendentes e o cônjuge.
No entanto, tais bens podem ter apenas caráter existencial, sem valor econômico, destinando-se aos direitos de personalidade, como o direito à privacidade, à honra, à liberdade, à imagem, entre outros. São bens digitais personalíssimos, quanto ao conflito entre os direitos fundamentais, a imagem e a privacidade do falecido e o direito à herança dos sucessores. Dessa forma, faz-se necessária uma análise, pelo magistrado, sobre os conteúdos de cunho particular, no caso concreto, enquanto a lacuna da legislação acerca da herança digital não for preenchida.
Os bens digitais podem, ainda, conter caráter patrimonial e existencial ao mesmo tempo, como é o caso da liberdade de expressão ou do uso da imagem dos influenciadores digitais e seus blogs e perfis em redes sociais.
Com relação à herança digital, a preocupação com o destino dos bens digitais do falecido é recente. Vê-se a possibilidade ou não de transferência dos bens à família do falecido, aos quais cabe a pertinência desses acervos digitais. Todavia, de acordo com a doutrina, os direitos da personalidade se extinguem com a morte. Nasce, assim, a necessidade de legislar sobre os aspectos que o uso da internet interfere no indivíduo pós-morte.
A interpretação do direito, posto com suas bases tradicionais, depara-se com uma nova realidade: o direito digital. A situação evidencia as lacunas legislativas do direito, que não dispõe de previsão legal acerca de determinada matéria, permitindo o acúmulo de casos no judiciário.
Com base no direito, posto de inexistirem direitos da personalidade do falecido, constatou-se, segundo a teoria da situação jurídica subjetiva, uma relação aos bens deixados pelo de cujus aos seus herdeiros, e que merecem ser tutelados pelo ordenamento jurídico. Sendo assim, a justificativa para a continuidade da proteção dos direitos da personalidade post mortem se dá pelo direito sucessório.
O falecido pode não autorizar o acesso de familiares e amigos ao seu acervo digital, tampouco permitir que herdem tal patrimônio. Porém, aos parentes, não se pode vetar qualquer tipo de acesso, pois, observados caso a caso, e identificada uma real necessidade e justa causa, dever-se-á abrir uma exceção.
Com relação aos bens digitais que não possuem valor econômico ou que podem ser pecuniariamente avaliados, quando violadores de direitos da personalidade, como sugestão, sua transmissão se daria por um testamento digital, caso o de cujus deixe expresso a sua vontade de destinação do patrimônio digital.
Deve-se destacar, aqui, a autonomia privada de cada indivíduo em conceder sua própria manifestação de vontade, em relação à destinação de seus bens, seu patrimônio digital. Essa autonomia deverá estar pautada em conformidade com o ordenamento jurídico, que deverá agir conforme a lei determina e observando princípios cruciais como a legalidade, a igualdade, a moralidade, entre outros. O objetivo é resguardar a liberdade individual, bem como a liberdade coletiva. Ou seja, o ser humano só poderá agir, de acordo com o que acredita, se não vier a prejudicar terceiros.
Tudo que se faz à necessidade humana é um bem, e, dessa forma, deve ser tutelado juridicamente. Seria preciso, então, fazer uma tradução, uma interpretação dos bens digitais no direito positivo. Para isso, é imprescindível a inclusão dos bens digitais na herança tradicional, concretizando sua regulamentação estatal.
No entanto, não se pode dizer que, havendo a regulação dos bens digitais, seriam satisfeitos todos os desejos do de cujus, de seus familiares, e de terceiros.São nítidas os constantes interesses e necessidades humanas, vindos de variadas situações fáticas, que mudam o tempo todo.
Posto isso, é necessária a existência de uma regulamentação jurídica eficaz, que contenha normas, leis, cláusulas abertas à interpretação e argumentação acerca desses bens, observados caso a caso, e por meio de base principiológica constitucional.
Por fim, deverá haver a busca pelo respeito à dignidade individual, seja em vida ou após a morte. Afinal, é o que prevê a nossa Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana.
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[1] Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS. Mestre em Direito pela Universidade Iguaçu. Especialista em Direito de Empresa pelo Instituto de Educação Continuada – PUCMINAS. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FD/UFMG). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS. Professor de Direito Processual Civil em curso de Graduação e Pós-graduação em Direito.
[2] Referência retirada em aula dada pelo professor Cristiano Lopes, no Zero Um Concursos, em 9 de setembro de 2020, através do canal do Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RdiyQ0wfZug&t=789s. Acesso em: 11 set. 2021.
[3] Referência retirada em aula dada pelo professor Cristiano Lopes, no Zero Um Concursos, em 9 de setembro de 2020, através do canal do Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RdiyQ0wfZug&t=789s. Acesso em: 11 de abril de 2021.
[4] Notícia fornecida em aula dada pela pesquisadora Luciana Dadalto no TEDx Talks, em 11 de dezembro de 2018, através do canal do Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yol5gN4Z9nI. Acesso em: 7 abril de 2021.
Graduanda de Direito - (Centro Universitário UNA-BH)
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