GABRIELA CASAGRANDE GAZZONE[1]
(coautora)
Resumo: o presente estudo tem como escopo analisar a problemática envolvendo a discricionariedade judicial e a liberdade interpretativa dos aplicadores do direito sob o aspecto filosófico, levando em consideração, notadamente, as questões aventadas por Hart e Dworkin. A reflexão é necessária ante o indiscutível crescimento do protagonismo do Poder Judiciário, eis que, não raras vezes, a sociedade conta com ele para resolver questões de ordem política e social, o que tem feito com que a interpretação judicial prevaleça sobre a lei. Pretende-se, pois, tratar da visão dos dois mencionados pensadores a respeito do tema a fim de esmiuçar o fundamento da discricionariedade judicial e assim analisar sua aplicação.
Palavras-chave: Discricionariedade. Teoria da decisão judicial. Alocação das regras e Princípios. Liberdade interpretativa.
Abstract: The present study has as its theme the reflection of the judicial discretion and the interpretive freedom of the appliers of law under the philosophical aspect, taking into consideration, notably, the issues raised by Hart and Dworkin. The reflection is necessary due to the unquestionable growth of the Judicial Power's protagonism, since society relies on it to solve political and social issues, which has caused judicial interpretation to prevail over the law. It is intended, therefore, to deal with the vision of the two mentioned thinkers on the subject in order to scrutinize the foundation of judicial discretion and thus analyze its application.
Keywords: Discretion. Judicial discretion theory. Allocation of Rules and Principles. Interpretive freedom.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 – ANÁLISE DO PÓS-ESCRITO DE HEBERT HART; 2 – A DISCRICIONARIEDADE EM SI; 3 – A LEGITIMIDADE DAS DECISÕES DISCRICIONÁRIAS; 4 – CONCLUSÃO; 5 – BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O estudo sobre a discricionariedade das decisões em muito se relaciona ao debate travado entre Hebert Hart e Ronald Dworkin, o qual, apesar de ter abordado questões diversas acerca do conteúdo do Direito, acabou por analisar, de forma minuciosa, as particularidades que rodeiam a efetiva discricionariedade do julgador e os seus limites, bem como a própria teoria da decisão judicial.
O citado debate teve início com a publicação do artigo “O Modelo de Regras I”, de Ronald Dworkin, que elaborou consideráveis críticas à obra “O Conceito de Direito” de Hart. Hart havia sido professor de Dworkin e, em uma publicação póstuma (“O Conceito de Direito, Pós-escrito”) rebateu as críticas de seu antigo aluno, reconhecendo algumas omissões em sua teoria, mas também esclarecendo alguns pontos que, na sua visão, foram interpretados de forma equivocada por Dworkin. É de se ressaltar, contudo, que, apesar de toda a polêmica histórica formada ao redor do debate desses dois juristas, muitos autores - inclusive Hart, apontam que o desacordo entre os pensadores sequer existiu.
De toda forma, essa dialética de argumentos criada a partir das críticas formuladas por Dworkin ao trabalho de Hart permitiu a discussão, além de temas relativos à hermenêutica jurídica, dos conceitos relativos às regras e princípios, notadamente como fundamentação para a atividade decisória. Ainda, o embate inaugurou a expressão ‘discricionariedade’ no que atine à liberdade que dispõe o julgador diante dos litígios que lhe são postos, levantando questões importantes acerca da legitimidade de decisões judiciais dessa natureza, seus limites e respaldo jurídico.
1 – ANÁLISE DO PÓS-ESCRITO DE HEBERT HART
Para que se compreenda melhor o entrave mencionado, de rigor que se proceda a análise do pós-escrito da obra “O Conceito de Direito” de Hebert Hart, fazendo um panorama das justificativas do autor acerca das críticas dirigidas a sua obra original, publicada trinta e dois anos antes. Quando de sua publicação, em 1961, a obra “O Conceito de Direito” teve um alcance bem maior do que o esperado pelo autor e, por conseguinte, deu origem a diversas críticas, bem como serviu como ponto de partida para que alguns desses críticos elaborassem e expusessem suas próprias teorias jurídicas sobre o tema.
Essa onda de críticas deu-se, em grande parte, porque a obra principal de Hart inaugurou uma nova etapa no pensamento jurídico, inserindo a filosofia da linguagem como metodologia de interpretação do Direito.
O pós-escrito, por sua vez, cinge-se, especialmente, em rebater os argumentos dos críticos de Hart, dentre eles, destacando-se Dworkin, seu pupilo na Faculdade de Oxford. Hart, professor titular da disciplina de Teoria do Direito, condensou, em sua obra, preceitos de suas experiências práticas com os fundamentos da filosofia, ao que Dworkin refutou, sustentando que não só todas as teses distintivas do Conceito de Direito estavam radicalmente erradas, mas também pôs em questão toda a concepção do Conceito de Direito e do que o Direito deveria fazer, ao que Hart rebate em seu pós-escrito que tais concepções estariam implícitas em sua obra.
Hart reconhece em Lon Fuller e Dworkin os seus principais críticos, mas busca deixar claro que seu pós-escrito não se constitui numa resposta completa a nenhum deles, ainda que tente, ao longo de todo o texto, refutar a algumas críticas de longo alcance elaboradas por Dworkin nas obras “Levando os Direitos a Sério”, “Uma questão de Direito” e “Império do Direito”.
No primeiro capítulo do pós-escrito, Hart analisa os argumentos de Dworkin, rebatendo, no segundo capítulo, as alegações de outros críticos que dizem que nas teses de Hart há não só pontos obscuros e inexatidões, mas em determinados temas, efetiva incoerência e contradição. Muito embora o autor expressamente assevere nessa obra posterior, que reservará o capítulo primeiro a considerar e rebater as críticas de Dworkin, há um registro dos editores que Hart não chegou a completar o segundo capítulo da obra em razão do seu falecimento.
O autor, de forma consciente e valorosa, aproveita o pós-escrito para tornar claro o apontado como obscuro e ainda, rever o que originariamente escreveu no que foi acusado de incoerente ou contraditório, revelando uma visão humilde e sábia de um jurista que deixou marcas na Teoria Geral do Direito.
Pois bem. No primeiro capítulo intitulado “A natureza da teoria jurídica”, Hart afirma que seu objetivo na obra ‘O conceito de Direito’ foi de fornecer uma teoria sobre o que é o Direito e essa teoria deveria ser ao mesmo tempo geral e descritiva. Geral, no sentido de que não estaria ligada a nenhum sistema ou cultura jurídica concretos, mas que procuraria dar uma definição explicativa e clara do direito como instituição social e política complexa e normativa, isto é, regida por regras. Explica ele que o Direito, embora tenha tido algumas variações em diferentes culturas e tempos, tomou a mesma forma básica e estrutura geral no decorrer do tempo.
O relato de Hart é descritivo, na medida em que é moralmente neutro e não tem o propósito de justificar ou recomendar as formas e estruturas de sua exposição do direito. Para esse fim, Hart usa repetidamente os conceitos ‘regras que impõem poderes, regras que conferem poderes, regras de reconhecimento, regras de alteração, aceitação de regras, pontos de vista interno e externo, afirmações internas e externas e validade jurídica’.
A teoria jurídica, como concebida por Hart, sendo ao mesmo tempo descritiva e geral é entendida por ele como radicalmente diferente da concepção de Dworkin. Na visão de Hart, Dworkin concebe a teoria jurídica como teoria de avaliação e justificação, dirigida a uma cultura jurídica concreta, que é a própria cultura do teorizador, no caso dele, a do direito anglo-americano. Para Hart, em sentido diverso, uma descrição pode continuar sendo uma descrição, mesmo quando o que é descrito constitui uma avaliação.
Especificamente no que diz respeito à natureza do positivismo jurídico, Hart busca refutar os ataques de Dworkin quando este afirma que sua teoria é uma versão semântica do positivismo meramente factual. Dworkin considera a teoria de Hart como uma representação do moderno positivismo jurídico, em especial por rejeitar as teorias imperativas do direito, bem como pela afirmativa de que todo direito emanaria de uma pessoa ou corpo legislativo soberano, juridicamente limitados.
Dworkin destaca que o maior erro de Hart teria sido afirmar que a verdade das proposições de direito, tais como que descrevem direitos e deveres jurídicos depende apenas de questões de mera factualidade histórica, incluindo fatos relativos a crenças individuais e atitudes sociais. Dworkin acrescenta que só poderia existir desacordos, no que se refere ao direito à existência e inexistência de fato histórico, excluindo-se qualquer desacordo teórico ou controvérsias relativamente a fundamento de direito, notadamente os incluem juízos morais de valores controvertidos.
Prossegue acusando a teoria semântica de Hart de vazia e enganadora, enquanto considera que sua teoria - longe de ser semântica - é um relato descritivo dos aspectos do direito como fenômeno social e complexo.
Hart, por sua vez, ao se defender dos argumentos de Dworkin, acredita que seu pupilo não compreendeu corretamente seus argumentos desenvolvidos em ‘O Conceito de Direito’, tendo em vista que sua teoria contém a afirmação e o reconhecimento de que em muitos sistemas de direito, os critérios úteis de validade jurídica poderiam incorporar preceitos de justiça ou valores morais substantivos.
À crítica de Dworkin de que sua teoria seria uma disfarçada teoria interpretativa, Hart se opõe, afirmando que a versão apresentada por seu crítico de que sua teoria como ‘convencionalismo’, não é plausível. Hart reafirma que sua teoria não é uma teoria meramente factual do positivismo, pois admite valores entre os critérios de direito, e não somente os meros fatos. Ainda, diz que sua teoria não tem a menor pretensão de identificar a finalidade do direito, tampouco identificá-la como a justificação do uso da coerção, como o faz Dworkin.
Hart prossegue refutando Dworkin, ao mesmo tempo que categoriza seu positivismo como Moderado, indicando que, em nenhum momento em sua obra, disse que os critérios meramente factuais fornecidos pela regra de reconhecimento devam ser unicamente questões de Pedigree; em sentido contrário, assevera que podem ser constrangimentos morais sobre o conteúdo da legislação.
Por fim, observa que alguns teorizadores sustentam que sempre que o Direito exigir que os juízes apliquem padrões morais para determinar o Direito, ele confere o poder discricionário a esses juízes de criar um direito novo, sem que isso represente uma conversão da Moral em Direito.
Seguindo, Hart trata dos princípios e das regras de reconhecimento. Segundo ele, Dworkin tem sustentado que os princípios jurídicos não podem identificar-se por critérios atribuídos por uma regra de reconhecimento manifestada na prática dos tribunais e que uma vez que os princípios são elementos essenciais do direito deve-se abandonar a doutrina da regra de reconhecimento.
Para Hart, os princípios jurídicos só podem ser identificados através de uma interpretação construtiva, como membros de um conjunto único de princípios - que não só se ajusta melhor a toda a história institucional do direito estabelecido de um sistema jurídico -, como também melhor a justifica.
Interpretação construtiva significa, na terminologia jurídica anglo americana e nas palavras de Hart, o processo de determinação do sentido de um documento escrito, nomeadamente de um texto de direito legislado, em regra, prescindindo da averiguação da intenção ou vontade histórica do autor. A interpretação construtiva, assim, abrange a integração de lacunas por recurso à analogia.
A crítica de Hart ao entendimento de Dworkin, reside em que a preocupação com a interpretação construtiva tem levado Dworkin a ignorar o fato de que muitos princípios jurídicos devem o seu estatuto não ao conteúdo que serve com interpretação do direito estabelecido, mas antes àquilo a que ele chama de o seu pedigree, tal é o modo da sua criação ou adoção por uma fonte dotada de autoridade reconhecida.
Hart entende que essa preocupação levou do Dworkin a um duplo erro: em primeiro lugar à crença de que os princípios jurídicos não podem identificar-se pelo seu Pedigree e, em segundo lugar, à crença de que a regra de reconhecimento só pode fornecer critérios de pedigree.
Ainda, Hart entende que ambas as crenças estão erradas: a primeira porque não há nada no caráter não conclusivo dos princípios, nem dos seus outros aspectos que impeça sua identificação por critérios de pedigree, entendendo Hart que a inclusão de princípios como parte do direito não acarreta o abandono da doutrina de uma regra de reconhecimento.
Acrescenta ele, Hart, que, na terminologia da obra ‘Império do Direito’, de Dworkin, as regras e práticas jurídicas que constituem os pontos de partida para tarefa interpretativa de identificação de princípios subjacentes ou juridicamente implícitos, constituem ‘direito pré interpretativo’ e, muito do que Dworkin diz acerca desta matéria, parece apoiar o ponto de vista de que, para sua identificação, é necessário algo muito semelhante a uma regra de reconhecimento que identifique as fontes de Direito de forma autorizada, como Hart diz ter descrito em sua obra.
O entendimento do ilustre professor de Oxford é que a principal diferença nessa matéria entre o ponto de vista dele e o de Dworkin reside em que, enquanto Hart atribui o acordo geral existente entre os juízes quanto aos critérios de identificação das fontes do direito e a sua aceitação partilhada das regras que atribuem tais critérios, Dworkin prefere falar não de regras, mas de ‘consensos’, de ‘paradigmas’ e de ‘pré-compreensões’ que os membros da mesma comunidade interpretativa partilham.
No que se refere ao Direito e à Moral, Hart estabelece que a diferença mais fundamental na relação entre tais conceitos e, por sua vez, entre a teoria desenvolvida por ele em ‘O conceito de direito’ e Dworkin diz respeito à identificação do Direito.
Segundo Hart, a existência e o conteúdo do Direito podem ser identificados por referência às fontes sociais (legislação, decisões judiciais e costumes sociais), sem referência à Moral. Já na teoria interpretativa de Dworkin, por outro lado, todas as proposições de direito envolvem necessariamente um juízo moral.
A teoria interpretativa de Dworkin, globalmente holística, tem uma dupla função: não só identifica o direito, como também lhe confere justificação moral.
A crítica que Hart faz à Teoria de Dworkin é que a fim de adequar sua teoria a sistemas jurídicos que possuem por base, princípios de moral iníqua, Dworkin readequou sua teoria na introdução da obra ‘Império do Direito’ para inserir a distinção entre Direito Interpretativo e Direito Pré interpretativo.
Segundo essa distinção, os sistemas jurídicos perversos ou com fontes sociais moralmente iníquas seriam direitos apenas num sentido pré interpretativo, pois do Direito Interpretativo o seriam apenas os sistemas jurídicos que possuíssem a melhor justificação moral.
Hart afirma, em seu pós-escrito, que esse apelo à flexibilidade da nossa linguagem e a introdução dessa distinção entre direito interpretativo e pré interpretativo só dão mais razão à posição dos positivistas ao invés de enfraquecê-la. Dessa forma, Hart não discorda em nada dessa distinção feita por Dworkin nesse segundo momento. Isso porque nada mais faz Dworkin que passar a mensagem de que na Teoria geral do direito descritiva, o Direito pode ser identificado sem referência à Moral; no entanto, para uma teoria geral do direito interpretativa e justificativa, a identificação do Direito envolve sempre um juízo moral acerca do que melhor justifica o direito estabelecido.
2 – A DISCRICIONARIEDADE EM SI
Feita esta menção aos principais argumentos dos protagonistas do embate, notadamente às explicações trazidas por Hart em seu pós-escrito, passemos a analisar a questão da discricionariedade em si.
De início, cabe mencionar o que comumente se entende pelo termo “discricionariedade”:
Utiliza-se o termo discricionariedade quando a decisão última sobre o justo no caso concreto é deferida à concepção individual da personalidade chamada a decidir (...), notadamente nos casos imprecisos de vagueza e ambiguidade da linguagem jurídica[2].
Tal modalidade é entendida como discricionariedade fraca, eis que cabe ao juiz apontar a melhor solução nos casos em que o texto normativo não é absolutamente claro. Também se entende por discricionariedade fraca aquela utilizada pelo juiz para proceder a análise do fato em si, vez que nem sempre é possível distinguir com facilidade o que corresponde ou não à realidade.
Noutro giro, se diz a discricionariedade “forte” quando relacionada à possibilidade de o magistrado eleger, dentre diferentes opções igualmente válidas e admissíveis, um determinado caminho. A discricionariedade nesse caso é forte, pois, dentre algumas vias juridicamente possíveis, o aplicador do direito deverá escolher uma.
Hart e Dworkin, por enxergarem o sistema jurídico de forma diversa, como já demonstrado, acabaram por alocar a discricionariedade em pontos distintos e conceder a ela maior ou menor intensidade.
Em suma, temos que Hart, positivista clássico, entende que o direito é um sistema que tem nas regras jurídicas seu ponto central. Loiane Prado Vericarbo, no artigo intitulado “A discricionariedade judicial e as condições de verdade das proposições jurídicas à luz do debate Hart e Dworkin”, menciona que é bem possível que ao falar de “regras” Hart estava incluindo as normas e os princípios. A autora assinala que:
Hart parte da premissa de autonomia da filosofia jurídica em relação às controvérsias morais e políticas, defendendo a tese segundo a qual a existência do direito, em sua autonomia, não suscita acudir-se de nenhum outro critério de filosofia política, uma vez que seu propósito não é justificativo, mas descritivo e moralmente neutral. Isso significa que o autor distingue o direito que é do direito que deveria ser e defende ser possível um estudo que se limite a descrever o direito que é[3].
Ao entender de Hart existem regras primárias e secundárias, sendo aquelas as que regulam condutas, impondo deveres e obrigações, e estas as que resolvem os problemas de aplicação das primeiras. Em outras palavras, são as normas ditas secundárias que regulam as primárias, possibilitando que indivíduos ou grupos de indivíduos as apliquem, as modifiquem ou até mesmo as tornem sem vigência. Nesse contexto Hart insere as chamadas “regras de reconhecimento”, que, para ele, são o verdadeiro fundamento de um sistema jurídico, eis que instrumento de identificação das normas primárias.
Nos dizeres de Lênio Streck no artigo “Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos”: “Em Hart, os deveres jurídicos são criados por regras sociais, que ganham normatividade por meio de seu reconhecimento social, da seriedade da pressão social que as apoie”[4]
E é nesse contexto que Hart insere a discricionariedade judicial. Ao seu entender, justamente por ser impossível as regras preverem todos os acontecimentos, seja pela imprecisão da linguagem, como será visto adiante, seja pela incompletude das regras, caberia aos juízes, principalmente nos ditos “hard cases”, proceder com discricionariedade (ainda que limitada) a fim de encontrar nas regras primárias a resposta adequada para o caso posto.
Dworkin, por sua vez, adepto ao interpretativismo, faz contundentes críticas ao entendimento de Hart, trazendo à tona, como mencionado por Loiane Verbicaro[5], a importância da análise dos princípios e dos valores em conjunto com as regras jurídicas. Para ele, além das regras jurídicas (as quais possuem alto grau de concretude), o ordenamento também é formado por princípios (que por óbvio possuem alto grau de abstração), os quais também devem ser analisados o pelo aplicador do direito.
Dworkin, assim, “defende uma interpretação construtiva e não discricionária dos juízes” (VERICARBO, P. 136), eis que o aplicador do direito deve se valer de questões que estão dentro do próprio ordenamento para proferir a decisão (e não fora dele). Dito de outra forma, a resposta para casos fáceis ou difíceis estaria sempre inserida no próprio direito, eis que aquela constitucionalmente adequada com vistas às regras jurídicas e aos princípios vigentes em um dado ordenamento jurídico.
Em resumo, para Dworkin sequer haveríamos que falar em discricionariedade judicial no seu sentido forte, posto que a resposta para toda e qualquer questão estaria dentro do direito.
Para o positivismo hartiano, quando a aplicação das regras é duvidosa, ou quando o caso simplesmente não é contemplado por elas, a decisão judicial discricionária cria, de certa forma, novo elemento de legislação. Ou seja, não há direitos institucionais a preservarem-se quando as regras são vagas ou indeterminadas. Já para Dworkin, mesmo nesses casos o juiz tem o dever de articular, com os princípios, argumentação que favoreça o direito das partes[6].
Ou seja, ao que se nota, quanto mais se entende que o direito é constituído apenas de regras jurídicas, mais se permite a discricionariedade dos juízes, ao passo que quanto mais se aceitam critérios morais na identificação das normas, ampliando-se o conceito de direito, menos discricionariedade se confere aos juízes.
Imperioso também mencionar a discussão acerca da intensidade da discricionariedade para o debate Hart/Dworkin. Nesse sentido, temos que para Hart os “hard cases”, em relação aos quais há incerteza acerca da aplicação da norma jurídica, tornam de rigor a aplicação da discricionariedade em seu sentido forte, eis que o juiz passa a escolher entre uma das alternativas possíveis. Em outras palavras, para o mencionado autor há casos em que a linguagem das regras não fornece uma orientação precisa, o que gera incertezas acerca de sua aplicação, de modo que a própria linguagem jurídica acaba por conferir a discricionariedade forte ao aplicador do direito.
Dworkin, ao contrário, por entender que existe apenas uma resposta correta (leia-se: a resposta mais acertada com vistas à democracia constitucional e à consagração de direitos), dada a integração das regras jurídicas e dos princípios, acredita que a discricionariedade é sempre fraca. Seja o caso fácil ou difícil, cabe ao juiz integrar todo o sistema jurídico e encontrar a única resposta constitucionalmente adequada.
E tais afirmativas, tanto de Hart quanto de Dworkin, estão intimamente ligadas à problemática envolvendo o grau de liberdade interpretativa dos juízes e à teoria da decisão judicial.
3 – A LEGITIMIDADE DAS DECISÕES DISCRICIONÁRIAS
Importante que se destaque outra questão bastante interessante atinente ao tema, qual seja, a da legitimidade (ou não) das decisões discricionárias.
Ao proferir uma decisão fundada na discricionariedade, notadamente em seu sentido forte, estaria o magistrado ferindo os princípios da legalidade, da anterioridade e da segurança jurídica? Estaria, ainda, havendo desrespeito à separação de poderes? Tais questionamentos em muito se relacionam ao que se viu até então acerca da (in)determinabilidade do direito e de como se enxerga o ordenamento jurídico.
O tema ganhou bastante repercussão e foi ponto central daqueles que pretendiam criticar os escritos de Hart. Contudo, para este pensador, a decisão discricionária seria autêntica em razão da regra secundária de reconhecimento, que confere ao juiz legitimidade para assim agir.
De acordo com o já citado artigo de Streck:
para Hart os casos duvidosos ou difíceis devem resolver-se segundo a discrição judicial. Isso não quer dizer que a decisão seja necessariamente arbitrária ou irracional, mas apenas que será o resultado de uma escolha. Noutras palavras, como o juiz possui a autoridade, conferida por norma de reconhecimento proveniente da comunidade, para decidir, ele pode legitimamente dar a decisão que achar a melhor. Seja a decisão judicial boa ou má, justa ou injusta, não importa: “no quadro do campo da discricionariedade, a [...] decisão está sempre certa[7].
Aliás, para os adeptos do uso da discricionariedade, a abertura do ordenamento nesse sentido pode afastar o engessamento do direito e possibilitar decisões mais justas com vistas às peculiaridades do caso concreto. Podem ser mencionados como alguns dos argumentos favoráveis e que buscam legitimar as decisões discricionárias:
(...) instrumento adequado para reconhecer direitos individuais implícitos, evitar a rigidez do direito ou sua incapacidade de adaptação imediata às mudanças sociais e obter resultados mais justos à luz das especificidades do caso concreto.[8]
Noutro giro, Georges Abboud, no artigo intitulado “Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line” tece severas (e fundamentadas) críticas às decisões discricionárias. Para ele, direito e discricionariedade não podem coexistir, já que excludentes. O autor aponta que a dita discricionariedade foi criada justamente para resolver os casos em que o direito era excetuado, de modo que no momento em que a discricionariedade surge, o direito desaparece.
Diferentemente do que preceitua grande parcela de nossa doutrina, discricionariedade e direito não coabitam o mesmo espaço - tal qual não ocupam dois corpos, na Física -, afinal, quando admitimos o uso da decisão discricionária, automaticamente, afirmamos que essa decisão poderá ser pautada por critérios não jurídicos. (...) O risco da utilização da discricionariedade no âmbito judicial dispensa análise dos resultados das decisões, bastando a admissão do juízo discricionário para se tornar preocupante a questão. Isso porque, quando permitimos que o juiz socorra-se da discricionariedade para julgar uma lide, em verdade, estamos conferindo-lhe a possibilidade de utilização de critérios não jurídicos para solucionar o processo.[9]
Como se vê, ABBOUD rechaça as decisões discricionárias, afastando por completo sua legitimidade e atestando a incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito:
Em um modelo decisório discricionário, faz sentido se perscrutar belo bom ou mau humor do julgador, seu senso de justiça e outros critérios de índole subjetiva, afinal o resultado da decisão depende daquilo que lhe for conveniente, oportuno ou justo. No paradigma democrático, por sua vez, a discricionariedade é eliminada. A decisão não depende de critérios subjetivos, mas sim dos parâmetros e amarras próprios da democracia constitucional, ou seja, Constituição, lei, precedentes, doutrina, jurisprudência etc. No segundo modelo, não deve interessar o humor do julgador, mas sim sua correta interpretação dos diversos elementos jurídicos que detêm normatividade em face das peculiaridades do caso concreto. Desse modo, de nada adianta a Constituição e o processo democrático se admitirmos que as questões jurídicas possam ser julgadas por parâmetros extrajurídicos, em regra, correspondentes à consciência e à vontade do julgador. Nesse contexto, o círculo democrático não fecha. A ponta da decisão judicial, na qual o jurisdicionado deve(ria) ter seu direito tutelado e reparado, continua aberta, porque admite o uso da discricionariedade. Quando a questão jurídica do cidadão é examinada por um juízo discricionário, na realidade, está sendo-lhe conferida uma resposta não jurídica[10].
4 – CONCLUSÃO
Tendo em vista o já mencionado protagonismo judicial em ascensão, o artigo posposto foi de grande valia ao proceder cuidadosa análise acerca da discricionariedade judicial nas visões de Hart e Dworkin e sintetizar o célebre debate travado entre eles.
Como podemos ver, a forma pela qual um e outro enxergam o ordenamento jurídico como um todo (ainda que Hart não tenha concordado com o modo pelo qual Dworkin interpretou seu estudo) influi em muito no que se vem a conceber como discricionariedade judicial (em seu sentido forte ou fraco), bem como na existência (ou não) de respostas corretas notadamente nos chamados “hard cases”.
De forma bastante abreviada podemos concluir que Hart entende que os casos difíceis por vezes não são abrangidos tão somente pelas regras jurídicas, as quais inclusive podem conter imprecisões de linguagem, o que conduz à indeterminação do direito e a necessidade de aplicação da discricionariedade judicial em sem sentido forte (o que não acontece em casos fáceis, nos quais as regras jurídicas são claras e suficientes). Nos casos difíceis, portanto, não há como fugir de certa atividade legislativa por parte do juiz e da decisão judicial fundada na discricionariedade.
Dworkin, por sua vez, ao inserir os princípios e valores morais juntamente das regras no ordenamento jurídico, insiste na tese de que, seja o caso fácil ou difícil, sempre haverá uma resposta correta (no sentido da melhor resposta para concretizar direitos e privilegiar a democracia constitucional). Deve o juiz, fazendo uso da integração norma/princípios/valores, encontrar a resposta constitucionalmente adequada ao ordenamento em questão, de modo que a sua discricionariedade se mostra sempre fraca.
A verdade é que os estudos relacionados ao tema não pretendem anunciar o “vencedor” do debate (mesmo porque, como já mencionado, muitos sequer acreditam na diferenciação entre as teorias de ambos), mas sim analisar as situações postas e fazer uso delas para desenvolver o tema em questão, seja a fim de rechaçar o uso da discricionariedade, como acima exposto, seja para legitimá-la.
5 – BIBLIOGRAFIA
ABBOUD, Georges. ONDE A DISCRICIONARIEDADE COMEÇA, O DIREITO TERMINA: COMENTÁRIO AO VOTO PROFERIDO POR ALEXANDRE FREITAS CÂMARA SOBRE PENHORA ON-LINE. Revista de Processo | vol. 251/2016 | Jan / 2016 DTR\2016\59. Disponível em: http://www.bvr.com.br/abdpro/wp-content/uploads/2016/03/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-penhora.pdf. Acesso em 27/08/2021.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 54-87, abr. 2018. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2451. Acesso em: 26/08/2021. https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i1.2451.
VERBICARO, Loiane Prado. A discricionariedade judicial e as condições de verdade das proposições jurídicas à luz do debate Hart e Dworkin. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 13, n. 1, p. 133-158, abr. 2018. ISSN 1981-3694. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/28192 >. Acesso em: 12/08/2021.
[1] Mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Analista jurídica do Ministério Público do Estado de São Paulo.
[2] VERBICARO, Loiane Prado. A discricionariedade judicial e as condições de verdade das proposições jurídicas à luz do debate Hart e Dworkin. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, p. 138. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/28192 >. Acesso em: 12/08/2021.
[3] VERBICARO, Loiane Prado. A discricionariedade judicial e as condições de verdade das proposições jurídicas à luz do debate Hart e Dworkin. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, p. 140. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/28192 >. Acesso em: 12/08/2021.
[4] STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 54-87, abr. 2018. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2451. Acesso em: 26/08/2021. https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i1.2451.
[5] VERBICARO, Loiane Prado. A discricionariedade judicial e as condições de verdade das proposições jurídicas à luz do debate Hart e Dworkin. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, p. 140. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/28192 >. Acesso em: 12/08/2021.
[6] STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 54-87, abr. 2018. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2451. Acesso em: 26/08/2021. https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i1.2451.
[7] STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Op. cit., p. 54-87.
[8] VERBICARO, Loiane Prado. Op. cit., p. 137.
[9] ABBOUD, GEORGES. ONDE A DISCRICIONARIEDADE COMEÇA, O DIREITO TERMINA: COMENTÁRIO AO VOTO PROFERIDO POR ALEXANDRE FREITAS CÂMARA SOBRE PENHORA ON-LINE. Revista de Processo | vol. 251/2016 | Jan / 2016 DTR\2016\59.
[10] ABBOUD, GEORGES. Op. cit.
Mestranda em Direito Penal na PUC/SP e Promotora de Justiça do RN
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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