ANDRÉ HELLISON OLIVEIRA VERISSIMO
(coautor)
Resumo: A constante evolução tecnológica em que vivemos é capaz de influenciar ou modificar várias áreas da sociedade contemporânea. É comum a implantação de novas tecnologias nos mais variados campos do saber e áreas da sociedade brasileira e mundial. Deste modo, tal evolução é capaz de ocasionar uma necessidade de atualização até mesmo no campo jurídico e especificamente na disciplina da responsabilidade civil. Este artigo aborda assunto referente a inteligência artificial, especificamente sobre a responsabilização pelos danos causados por máquinas ou software dotados de inteligência artificial cujas tarefas sejam executadas de forma autônoma, isto é, sem o comando ou intervenção humana. Nessa perspectiva, se analisa o conceito de inteligência artificial, breve histórico e formas de materialização na sociedade atual. Abordará a responsabilidade por eventuais danos causados a terceiros e as tendências e necessidade de atualização do sistema jurídico brasileiro relacionada a responsabilidade civil ocasionadas por uso de máquinas inteligentes.No tocante a metodologia, afirma-se que a pesquisa possui natureza bibliográfica, cujo foco foi a busca da análise da responsabilidade civil desencadeada pelo uso da inteligência artificial e qual sua repercussão e novas tendências na vida do operador do direito como um todo e seus impactos para a sociedade. Em arremate, avaliou-se e concluiu-se que a inteligência artificial é uma nova ferramenta em ascensão que requer análise conjunta de operadores do direitos, operadores dos ramos tecnológicos e a sociedade como um todo com escopo de garantir eventual reparação de dano ocasionado pelo uso destas máquinas inteligentes mas sobretudo tendo cuidado para não inviabilizar a necessária evolução tecnológica que passamos tendo em vista esta proporcionar mais fatores positivos do que dissabores pois não constitui uma ameaça de desemprego aos seres humanos, mas sim uma evolução em que a utilização desta tecnologia traz aspectos benéficos para a sociedade e a responsabilidade por hora deve ser atribuída ao homem e não máquina.
Palavras-chave: Inteligência artificial. Responsabilidade civil. Danos a terceiros. Atualização jurídica.
Abstract: The constant technological evolution in which we live is capable of influencing or modifying several areas of contemporary society. The implementation of new technologies in the most varied fields of knowledge and areas of Brazilian and world society is common. In this way, such evolution is capable of causing a need for updating even in the legal field and specifically in the discipline of civil liability. This article addresses the subject of artificial intelligence, specifically on liability for damage caused by machines or software endowed with artificial intelligence whose tasks are performed autonomously, that is, without human command or intervention. From this perspective, the concept of artificial intelligence, brief history and forms of materialization in current society are analyzed. It will address the responsibility for any damages caused to third parties and the trends and need to update the Brazilian legal system related to civil liability caused by the use of intelligent machines. Regarding the methodology, it is stated that the research has a bibliographic nature, whose focus was the search for the analysis of civil liability triggered by the use of artificial intelligence and what is its repercussion and new trends in the life of the legal operator as a whole and its impacts for the society. In conclusion, it was evaluated and concluded that artificial intelligence is a new tool on the rise that requires a joint analysis of rights operators, operators of technological branches and society as a whole with the scope to guarantee eventual repair of damage caused by its use. of these intelligent machines, but above all, taking care not to hinder the necessary technological evolution that we have gone through, with a view to providing more positive factors than drawbacks as it does not pose a threat of unemployment to human beings, but an evolution in which the use of this technology brings aspects beneficial to society and responsibility for the hour must be assigned to man and not machine.
Keywords:Artificial intelligence. Civil responsibility. Damages to third parties. Legal update.
1 Introdução
Este artigo investiga essencialmente o uso de uma importante e atual ferramenta tecnológica em ascensão na sociedade contemporânea brasileira e mundial, qual seja, a inteligência artificial e aborda como essa inovação tecnológica pode influenciar no estudo da disciplina de responsabilidade civil.
Partindo da premissa de que a inteligência artificial é tema inovador e de inevitável concretização e consolidação em breve espaço de tempo, o presente artigo visa discutir a compreensão da inteligência artificial, bem como as implicações de sua utilização, a necessidade de atualização dos operadores do Direito e, por fim, analisar eventual responsabilidade por eventual reparação de danos.
Receia-se que a utilização dessa inovação tecnológica cause eventual desemprego em massa devido à substituição de homens por máquinas. Outro temor existente consiste em o operador do Direito ou o próprio Direito não conseguir se atualizar para acompanhar ou utilizar tal ferramenta como aliada na prestação de serviço à comunidade e a questão da responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros.
Para realização deste estudo tornou-se necessário, antes de tudo, compreender o que se entende por inteligência artificial para depois identificar as implicações de sua utilização e quais tendências devem seguir aqueles que vivem em constante uso dessa fenomenal inovação. Eventual responsabilização decorrente de eventual dano ocasionado pelo uso dessa ferramenta merece ser devidamente analisada no presente estudo, simultaneamente às restrições de ordem constitucional e legal oriundas de sua utilização.
Justifica-se sua produção pela relevância e atualidade do tema, pela crescente utilização e funcionalização dessa inovadora ferramenta tecnológica, pela dúvida, insegurança e anseio dos operadores do Direito na utilização da ferramenta, bem como pela necessidade de se esclarecer sobre a responsabilização por eventuais danos causados a terceiros, quando ocasionados pelo uso da inteligência artificial.
O problema específico a ser respondido neste artigo é: Quem é o responsável por eventual dano causado a terceiro, a máquina ou o homem por trás da máquina?
Em suma, delimitando a problemática, não se analisa a inteligência artificial aplicada de forma genérica, mas sim direcionada à sua compreensão, aplicação e responsabilização no campo jurídico.
Este artigo tem como objetivo geral analisar a responsabilidade civil decorrente do uso da inteligência artificial. Com relação aos objetivos específicos, dividem-se em compreender a inteligência artificial e sua relação com o ordenamento jurídico pátrio, bem como as implicações de sua utilização; apresentar a necessidade de atualização dos operadores do Direito e do Direito aplicado; e analisar eventual responsabilidade por eventual reparação de danos.
A metodologia adotada consiste na técnica da pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira, desenvolvida a partir de material já publicado, de natureza básica, do tipo –explicativo-descritivo, com o emprego do método indutivo.
Para isso, o texto se inicia por uma panorâmica explanação e definição de inteligência artificial, compreendendo seus contornos originais, para abordar, em seguida, algumas formas de materialização do instituto e a profunda transformação que vem se ocasionando na sociedade contemporânea. Somente a partir disso abordam-se suas principais repercussões e, enfim, discutem-se os limites da responsabilização das máquinas dotadas de inteligência artificial por eventuais danos causados a terceiros.
2 Inteligência artificial
A inteligência artificial é uma realidade incontestável na vida do homem contemporâneo, encontrada tanto nas mais simples quanto nas mais complexas atividades e interações que estabelece no cotidiano. Um dos exemplos mais populares de utilização desse tipo de tecnologia é o atendimento prestado por assistentes virtuais quando se procura entrar em contato com alguma organização.
As aplicações de inteligência artificial estão presentes em vários campos do saber, como na Economia, na Arte, na Medicina, na Computação e na Engenharia, entre outros, possibilitando a otimização dos processos, a redução do tempo gasto com a realização de tarefas e a eliminação dos erros humanos. Tais exemplos permitem mencionar os impactos mais evidentes da utilização dessa tecnologia.
No campo da Arte, mais especificamente no Cinema, é comum a utilização da inteligência artificial para a idealização de sociedades futurísticas nas quais objetos como máquinas do tempo, carros voadores e robôs humanizados a ponto de adquirir e produzir conhecimentos, por exemplo, integram a vida das pessoas.
No âmbito laboral, alguns autores, como Taurion (2019), presidente do Instituto de Inteligência Artificial Aplicada (I2A2), defendem que algumas profissões se tornaram desnecessárias, ficaram ultrapassadas ou simplesmente serão exercidas de forma diferente de da adotada hoje em dia, “[...] com robôs e humanos atuando em colaboração”.
Como observa Susskind (PAPO, 2016), aquilo que levou os indivíduos a se tornarem médicos, contadores ou advogados, por exemplo, está mudando por força da tecnologia, e o exercício das profissões que abraçaram agora exige um novo conjunto de habilidades, algumas ainda desconhecidas da maioria, implicando sobretudo o abandono das práticas tradicionais e a adoção de posturas que resultem na mais acessível e menos onerosa solução efetiva dos problemas daqueles que os procuram.
Os debates sobre a inteligência artificial e suas repercussões, apesar de intensificados nos últimos tempos, remontam ao ano de 1950, quando Alan Turing publicou o artigo Computer machinery and intelligence[1], no qual questiona a capacidade das máquinas de pensar (TURING; MADEIRA, 2021).
Importante salientar também que essa inovação não está ligada exclusivamente à área jurídica. Há algum tempo é comum deparar com filmes tentando antecipar muitas tecnologias futurísticas que se supunham acontecer no futuro.
Não se conhece ainda uma definição precisa de inteligência artificial. Sabe-se que se trata de ramo da Ciência da Computação ligado à alta tecnologia capaz de executar trabalhos, geralmente desenvolvidos por seres humanos. Quando os termos são tomados separadamente, concebe-se facilmente que o adjetivo artificial se aplica a tudo que é produzido pelo homem (ROSA, 2011), embora a mesma objetividade não possa ser empregada no caso de inteligência, que abrangeria atividades “[...] relacionadas com o processamento simbólico, reconhecimento de imagens e tudo o que envolva ‘aprendizado’” (p. 3).
De acordo com Cozman e Neri (2021), o que caracteriza a inteligência artificial é que o “[...] agente inteligente de forma geral deve ser capaz de representar conhecimento e incerteza; de raciocinar; de tomar decisões; de aprender com experiências e instruções; de se comunicar e interagir com pares e com o mundo” (p. 22-23).
Nesse sentido, pode-se afirmar que o aprendizado está no cerne dessa tecnologia, e o maior desafio que os pesquisadores na área da inteligência artificial enfrentam é o de descobrir como implantar nos computadores algumas das capacidades humanas no âmbito desse processo, que de acordo com Aurora ([2019]) “[...] inclui a aquisição de novas formas de conhecimento: o desenvolvimento motor e a habilidade cognitiva [...], a organização do novo conhecimento [...] e as descobertas de novos fatos e teorias através da observação e experimentação”.
Uma das aplicações substanciais da inteligência artificial consiste na formulação de previsões, desde as mais generalizadas no âmbito das mais diversas áreas do conhecimento até as mais específicas no tocante às preferências do indivíduo, possibilitando, com isso, que se fundamentem “[...] decisões sobre as suas vidas, seja no mercado, seja nas suas relações com o Estado, influenciando diretamente o seu acesso a bens, serviços e mesmo ao mercado de trabalho” (DONEDA et al., 2018, p. 4) Alimentadas por dados pessoais processados por intermédio de algoritmos, essas decisões tornam-se cada dia mais relevantes para as pessoas.
A inteligência artificial tem como sua principal fonte de conhecimento, o fornecimento de dados das mais variadas formas, dentre eles os dados pessoais, que servem para individualizar o ser humano.
Em todo caso, importante esclarecer que a qualidade da inteligência artificial e consequentemente da tomada de decisões está diretamente ligada à qualidade dos dados armazenados, aprendidos e transformados em conhecimento (BAROCAS, 2015).
Atualmente, devido a toda essa evolução da tecnologia, no que diz respeito a inteligência artificial cumpre dizer que estamos diante da Quarta Revolução Industrial (SCHAWAB, 2016).
Diante do surgimento dessa poderosa ferramenta tecnológica, bem como sua inevitável consolidação, cumpre dizer que os operadores do Direito e a sociedade em geral devem estar preparados para compreender as vantagens da inteligência artificial, bem como enfrentar os problemas oriundos de sua utilização.
3 Aplicação da inteligência artificial no Direito
Na seara jurídica não basta apenas saber que a inteligência artificial existe e compreender as vantagens que ela pode proporcionar, é necessário também utilizá-la, fazer dessa ferramenta inovador uma aliada, pretensão que não se mostra simples de concretizar.
Como foi demonstrado, as transformações sociais na sociedade contemporânea estão cada vez mais presentes e tal fato é fruto de discussões acadêmicas e sociopolíticos. No entanto, cumpre dizer que não se trata agora de mera discussão, mas de realidade a ser enfrentada por todos, implicando que em maior ou menor tempo, os indivíduos e as instituições em geral deverão ajustar seus comportamentos e processos a essa nova realidade.
A chegada da inteligência artificial no mundo jurídico, apesar das mudanças que ainda irá produzir na forma como os advogados exercem sua profissão, no entendimento de Susskind (PAPO, 2016), já desalojou os operadores do Direito da zona de conforto em que até então se encontravam, forçando-os a incorporar em sua prática o uso de ferramentas como por exemplo a busca inteligente de jurisprudências.
Outro exemplo de aplicação da inteligência artificial na área jurídica pode ser identificado nas relações envolvendo contratos, nas quais já se verifica uma utilização de ferramentas inteligentes no processo de formação dos contratos.
No ambiente dos tribunais, o Supremo Tribunal Federal (STF) utiliza um sistema de inteligência artificial denominado “Victor” no processamento dos recursos extraordinários que chegam à Corte Suprema, para identificar os temas de repercussão geral mais incidentes. A ferramenta também tem sido empregada em outras atividades, a exemplo da busca de decisões e peças no acervo do STF, da leitura, separação e ordenação das peças processuais de uso corrente no Tribunal e da conversão de imagens em textos e a localização de decisões e, mas tem potencial para desenvolver novas habilidades, contribuindo para acelerar a tramitação dos processos e aumentar a eficiência na prestação jurisdicional (BRASIL, 2018).
Apesar de o presente estudo delimitar a análise da inteligência artificial ligada à área jurídica, por óbvio que tal análise não deve ser feita de modo estanque, circunscrita ao mundo jurídico, pois a sociedade é complexa. Além do Direito, tem-se a Política, a Economia, a Arte, a Medicina, a Educação, entre outras áreas.
Nesse sentido, Rodrigues e Neves (2012, p. 24) explanam que “tais sistemas não são isolados, incomunicáveis, insensíveis, imutáveis, mas sim que as ‘partes’ ou os ‘elementos’ de tais sistemas interagem uns com os outros e somente entre si”.
Morin compreende que a sociedade é complexa. A visão complexa do escritor se origina em teoria da informação e cibernética. Segundo o autor, complexo significa tecer junto, é a união da unidade e da multiplicidade. No caso de uma sociedade complexa, é levar em conta as dimensões econômica, política, cultural, psicológica, afetiva e mitológica dessa sociedade (MORIN, 2004).
Para alguns pensadores a complexidade é sinônimo de modernidade, porquanto abrange a totalidade das possibilidades que existem no mundo (NEVES, 2012). Para Whitby (2004, p. 47), “[...] o conhecimento humano é uma coisa complexa. É frequentemente produto da experiência, em vez de simples aprendizado”.
Pode-se dizer que o estudo da sociedade envolve todas as partes relacionadas entre si, ou seja, as propriedades da sociedade como sistema social não podem ser descritas em si, sem se analisar as condições de seus elementos em separado e as relações existentes entre eles (URREA; ATEHORTÚA; VALDERRAMA, 2009).
A análise sistêmica permite que se analise o todo, não menosprezando a análise de suas partes em separado, bem como suas inter-relações comunicativas. Uma análise sistêmica da sociedade proporciona o entendimento do mundo contemporâneo em que se vive relacionando todas as suas interações que compõem o sistema social.
De modo geral, pode-se dizer que a inteligência artificial poderá auxiliar a Decisão Judicial ao funcionar como um receptor de dados fornecidos ou que circula pelo sistemas em geral. Ou até mesmo quando essa ferramenta tem uma faceta mais complexa, na qual opera e processa fluxos de dados e transforma-os em conhecimento para ser aplicado pelo Direito, enviando-os para o seu interior, auxiliando-o assim na efetivação do próprio Direito e na tomada de decisão.
Não há dúvidas de que a Inteligência Artificial está mais desenvolvida em outras áreas do conhecimento como Medicina, Marketing, Indústria e Comércio, entretanto no ramo do Direito pode-se notar algumas aplicações e forte tendência de consolidação e aperfeiçoamento a médio ou longo prazo dessa inovação, que se mostra como ferramenta facilitadora da atuação dos operadores do Direito, que já compreendem as vantagens e a necessidade de inserção nesta nova ferramenta.
Podemos inferir que estamos percorrendo um caminho, sem volta, em que um programa inteligente se consolida para atuar como um suporte à Decisão Judicial baseada na inteligência artificial, onde, entre outras habilidades, a informação é transformada em conhecimento e subsídio para decisão.
A Inteligência Artificial aplicada ao Direito não pode atuar apenas como um banco de coleta de dados (inputs) dos quais se utiliza para produzir informações (outputs) que irão subsidiar a posterior tomada de decisão. É necessário que transcenda essa mera engenharia objetiva e acompanhe as informações produzidas de julgamentos, baseados em experiências anteriores, bom senso, ética, sentimentos essencialmente humanos, portanto complexos, que somente a médio ou longo prazo a máquina será capaz de desenvolver, ainda que de modo aproximado.
Nesse sentido, tais programas de inteligência devem atuar seletivamente na captação de informações do meio ambiente, tornando-se capazes de compreender, desenvolver e criar novos conhecimentos, ou seja, extrair aprendizados das suas próprias experiências, de modo semelhante ao comportamento do homem em seu dia a dia.
Há que se ver a Inteligência Artificial como aliada na divisão de tarefas. Isso porque sempre existirão tarefas que continuarão sendo exercidas pelo homem, embora cada vez mais atividades passarão a ser executadas por máquinas.
Nesse sentido, existem tarefas que, embora menos complexas, tornam-se muito penosas para serem executadas por seres humanos, como por exemplo ler centenas de páginas em poucas horas, armazenar uma quantidade enorme de informações e mais, nunca esquecer! ou ainda realizar atividades repetitivas, pesquisar jurisprudência ou atualizar constantemente a legislação.
No entanto, existem tarefas, inclusive e principalmente no âmbito jurídico, que necessitam da cognição humana, do bom senso, do sopesamento de princípios, da ética, etc. Tais tarefas, pelo menos por hora, devem continuar sendo exercidas pelo homem, que terá mais tempo para se dedicar a essas atividades, diga-se, mais complexas, relegando o que se pode denominar de tarefas braçais às máquinas inteligentes.
É preciso maturidade para se compreender que a inteligência artificial não surge do nada, ela se forma a partir de dados que são captados ou inseridos nas máquinas dotadas dessa tecnologia, e que se esses dados forem ultrapassados, preconceituosos ou possuírem contornos políticos, essa inteligência artificial tenderá a repassar essas características que são indesejadas para um sistema como o jurídico, do qual se exige que seja atual, imparcial e ético.
Dito isso, conclui-se a análise do presente tópico arrematando que a qualidade da inteligência artificial será tão boa quanto melhor for a qualidade dos dados inseridos nas máquinas dotadas dessa tecnologia, e que a inteligência artificial, devidamente produzida, não deve representar ameaça, pois se trata de uma aliada, tendo em vista tratar-se de fato indubitável que certas atividades são mais bem desempenhadas pelas máquinas se não pelos homens.
4 A responsabilidade civil e a inteligência artificial
Em linguagem clara e direta, a responsabilidade civil tem previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro e consiste na obrigação imputada a alguém de reparar danos causados a outrem, de ordem material ou moral, em decorrência de uma conduta.
É sabido que no ordenamento jurídico pátrio apenas pessoas físicas ou jurídicas podem ser titulares de direitos e obrigações. Dito isso, levanta-se a dúvida se máquinas providas de inteligência artificial, capazes de tomar decisões independentemente da vontade humana, ou seja, sem a ciência ou previsão do proprietário ou responsável, poderiam ser responsabilizadas por eventuais danos causados na execução de suas atividades.
Não se pode responder a esse questionamento de pronto, pois envolve a análise de vários aspectos, um dos quais concernente ao fato de que embora tais máquinas e/ou programas inteligentes tenham vontade e decisões próprias, não são detentores de personalidade jurídica.
Com a implantação da inteligência artificial, surge a inquietação em saber se o atual ordenamento jurídico brasileiro seria capaz de tutelar os usuários em caso de eventuais falhas de tais sistemas inteligentes. Sendo assim, neste tópico se pretende investigar a responsabilidade pelos atos praticados por máquinas e programas com inteligência artificial, ou seja, como fica a questão da reparação de danos.
Na hipótese de o dano ter sido causado diretamente por um sistema dotado de inteligência artificial, várias questões precisam ser respondidas, como por exemplo, quem teria que pagar indenização, o adquirente do programa, quem projetou o software ou a própria máquina inteligente? O fato de essas máquinas inteligentes tomarem decisões sozinhas e de em certos casos tais decisões serem até imprevisíveis, romperia o nexo de causalidade, resultaria em isenção de responsabilidade ou ainda na incidência das causas excludentes de responsabilidade?
Outro questionamento que merece ser respondido é se de fato o ordenamento jurídico pátrio está atualizado para responsabilizar uma máquina dotada de inteligência ao invés do homem. E ainda se, com relação ao tipo de responsabilidade, seria possível imputar apenas um critério objetivo ou seria prudente e necessário se avaliar a culpa do usuário ou programador do sistema (critério subjetivo).
Independentemente de quais sejam as respostas, é incontroverso que para a doutrina se está diante de uma lacuna na disciplina da responsabilidade civil para solucionar eventuais problemas causados por essas ferramentas tecnológicas.
Segundo Matthias (2004, p. 177, tradução nossa):
Tradicionalmente, o operador/fabricante da máquina é responsável pelas consequências de seu funcionamento ou “ninguém” (nos casos onde nenhuma falha pessoal pode ser identificada). Agora pode-se mostrar que há uma classe crescente de ações de máquinas, onde as formas tradicionais de atribuição de responsabilidade não são compatíveis com nosso senso de justiça e o arcabouço moral da sociedade porque ninguém tem controle suficiente sobre as ações da máquina para poder assumir a responsabilidade por elas. Esses casos constituem o que chamaremos de lacuna de responsabilidade.
Alguns autores, como Francesco (1980), entendem que a solução para eventuais danos sofridos deve ser alcançada na legislação: “[...] os fundamentos para a tutela das vítimas de danos injustos não devem ser buscados em novos e esparsos diplomas normativos, mas sim – e sempre – no ordenamento jurídico em sua unidade e complexidade”(p. 293).
Deve-se fazer uma análise do sistema jurídico como um todo, levando em consideração toda sua complexidade, nesses termos, Ruffolo(2017) adverte que o tratamento sistemático ora propugnado deve levar em consideração o ordenamento jurídico em sua unidade e complexidade, sem incorrer na armadilha da enunciação de mais um (chamado micro) sistema próprio de valores da lex robótica.
Quando se está diante de casos mais simples, ou seja, quando as máquinas são consideradas meros objetos e ainda precisam de um comando do homem para funcionar, a indicação insistente de lacunas, sem levar em conta a unidade e a completude do ordenamento, resulta no comprometimento da efetividade da tutela prometida às vítimas de danos, como as das suas necessidades o ordenamento jurídico vigente não fosse capaz de tutelar.
Nesse sentido, Amidei (2017, p. 64) explanou: “[...] a simples percepção de ‘vazios normativos’, mesmo que inexistentes, pode comprometer as exigências de tutela dos direitos daqueles que entram em contato com os ‘novos robôs’ e que podem ser prejudicados”.
A crença de que a solução se encontra no ordenamento jurídico é reforçada nas palavras de Ruffolo (2017, p. 34-35): “Em vez de buscar – muitas vezes irrefletida – novas soluções e novos diplomas legais, melhores resultados se haverão de alcançar pelo esforço de releitura dos institutos já conhecidos pela civilística.”.
Em tais casos, o aplicador da lei poderá utilizar arcabouço jurídico existente, extraindo suas essências, princípios e diretrizes gerais para aplicar na solução do caso concreto. Desse modo, mesmo não havendo previsão expressa de solução para o caso, empregam-se as normas vigentes para preencher as lacunas existentes no que pertence a eventual responsabilização por danos causados mediante o uso da inteligência artificial.
Ao tratar da problemática levantada até aqui com relação à utilização das novas tecnologias em matéria de robótica, Amidei (2017, p. 63) afirma: “[...] Problema, esse, efetivamente inédito (mesmo que não necessariamente inéditas devam ser, como se verá, as relativas soluções)”.
Percebe-se que parte das respostas para os questionamentos elaborados no início deste tópico encontram-se nos próprios ordenamentos jurídicos existentes no Brasil, não obstante se reconheça que a solução de casos mais complexos atualmente requeira atualização legislativa e necessite de inspiração em legislações estrangeiras.
Esforça-se por conceber respostas legislativas que se possam reputar adequadas aos novos desafios suscitados pela inteligência artificial, iniciativa louvável, no entanto, apesar de muitos autores defenderem que a solução possa ser encontrada no ordenamento jurídico pátrio, quando a máquina tem autonomia, toma decisões próprias, é independente, a legislação brasileira atual não é capaz de resolver o problema satisfatoriamente, ou seja, nesses casos, há que se beber água em terras alienígenas até que seja elaborada normatização interna capaz de tutelar essas novas situações desencadeadas pelo desenvolvimento da tecnologia.
Importante dizer que para essas situações no ordenamento estrangeiro existe previsão legal, a saber na União Europeia. O Parlamento Europeu, em 2017, adotou uma Resolução com recomendações que indicam a necessidade de regular o desenvolvimento de máquinas autônomas e inteligentes. Tal regulação também sugeriu a criação de uma personalidade jurídica para tais máquinas com a previsão de seguro obrigatório. Tais soluções não encontram ainda precedentes no Brasil, mas podem ser amadurecidas e adaptadas à legislação brasileira.
Como dito anteriormente, a responsabilidade civil no Brasil atualmente é capaz de amparar apenas os casos em que a tecnologia da inteligência artificial não possibilitou às máquinas o alcance de um nível de autonomia tal que lhes permitisse tomar decisões próprias, não programadas.
Diante dessa lacuna, como a função do Direito é regular e pacificar as relações sociais, constata-se que há uma necessidade de atualização das normas referentes à responsabilidade civil que envolvem o uso de inteligência artificial.
Diante do exposto, não há dúvidas de que é necessário que o ordenamento jurídico se atualize de forma a regular a questão da responsabilidade civil por atos praticados por máquinas e ou softwares dotados de inteligência artificial, podendo utilizar como abordagem inicial a experiência da União Europeia, ou seja, analisar as recomendações da resolução da União Europeia sobre o tema.
Enquanto não há legislação que regulamente a responsabilidade das máquinas inteligentes, com relação à responsabilidade civil e à previsibilidade costumeiramente considerada para fins de reparação, cumpre dizer que os danos causados pelo uso da inteligência artificial devem ser analisados em momento anterior ao da aquisição da ferramenta, ocasião em que normalmente são analisados os riscos.
Desse modo, independentemente da previsibilidade das máquinas autônomas, o problema da reparação de danos a ser solucionado no âmbito da causalidade e da imputabilidade, dá-se a partir da alocação de riscos estabelecida pela ordem jurídica ou pela autonomia privada.
Com relação ao nexo de causalidade, entende-se que resta intacto, tendo em vista a aquisição da máquina inteligente ser condição necessária para eventual dano ocorrer. Ademais, maior parte da doutrina intitula tal responsabilização de risco do desenvolvimento, nesse sentido, Antunes (2019) sustenta uma aproximação com o risco do desenvolvimento ao tratar dos ataques cibernéticos.
A responsabilidade deve ser atribuída aos homens por trás das máquinas e não às máquinas autônomas, nesse sentido, a investigação da imputabilidade do dever de indenizar deve ser dirigida a pessoas, pois as máquinas são desprovidas de personalidade jurídica. Dito isso, a conduta da pessoa responsável pela máquina deverá ser examinada (RUFFOLO, 2017).
Há um raciocínio em que se analisa a posse da máquina provida de inteligência artificial da mesma forma que se analisa um animal que está na posse de uma pessoa. Nesse sentido, em qualquer dos casos – seja em relação a animais ou a coisas inanimadas – destaca-se a opção do legislador por imputar, independentemente de culpa (ou em regime de culpa presumida), a responsabilidade civil à pessoa sob cuja custódia estejam os animais ou as coisas. Com este raciocínio te-se o autor Antunes (2019, p. 147):
Na ausência da personificação e da atribuição das inerentes capacidades jurídicas, um regime equiparável ao dos animais julga-se configurável. Nessa hipótese, o utilizador responderia nos mesmos termos de um obrigado à vigilância de animal. Tomando como referência o direito português, o dever de indemnizar encontraria fundamento na responsabilidade subjetiva, embora beneficiando o lesado da culpa presumida do lesante (Artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil).
De outra parte, sustenta-se a possibilidade de configuração de atividade de risco pela utilização de sistemas de inteligência artificial (CERKA; GRIGIENE; SIRBIKYTÈ, 2015).
Trata-se de proposição particularmente expressiva no âmbito dos países que dispõem de cláusulas gerais de responsabilidade para atividades de risco – caso, por exemplo, dos direitos brasileiro e italiano.
De fato, é o que prevê o art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002(BRASIL, 2002): “[...] Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
O Direito brasileiro consagra um sistema dualista de responsabilidade civil, em que convivem o modelo subjetivo e o modelo objetivo. A propósito, a configuração desse sistema é comentada por Tepedino (2008). Importante salientar que também o art. 2.050 do Codice civile italiano estabelece autêntica cláusula geral de responsabilidade para as atividades de risco.
Importante que a atividade de risco seja estabelecida sob certas regras e não de qualquer jeito, sob pena de banalização. Sendo assim, deve-se lançar mão dos critérios desenvolvidos pela doutrina para a elucidação do que vem a ser atividade de risco. Há que se investigar, em cada atividade dos respectivos sistemas, a possibilidade de caracterização de atividade de risco.
Desse modo, conclui-se dizendo que, em não sendo caso de defeito da máquina autônoma, ou do programa inteligente, deve-se investigar a culpa do homem responsável pela máquina, e independente de a responsabilidade ser considerada do tipo objetiva ou subjetiva, eventual dano deve ser reparado pelo homem, que assumiu o risco de utilizar tal ferramenta tecnológica, a qual tem como escopo beneficiar, e não prejudicar o cidadão.
5 Considerações finais
A inteligência artificial, bem como as implicações de sua utilização deve ser compreendida como a capacidade que os dispositivos eletrônicos possuem para funcionar de uma forma que faz lembrar o pensamento humano.
Isso significa perceber variáveis, adotar decisões e solucionar problemas. Afinal, atua em uma lógica que remete ao raciocínio.
Com relação à necessidade de atualização dos operadores do Direito, a Inteligência artificial é benéfica como fonte de pesquisa, eauxilia nas tarefas manuais, tais como elaborar petições, contratos, procurações, bem como fazer análises dos recursos extraordinários que chegam ao tribunal, mediante algoritmos que aplicam todas as informações coletadas para adotar ou sugerir decisões, apontar riscos e expor encadeamentos ou contradições.
Diante da possibilidade do surgimento de dano provocado autonomamente pela inteligência artificial e diante da injusta responsabilização do ser humano pelos atos praticados por essas máquinas humanizadas, vem à tona a discussão acerca da personificação das máquinas dotadas de inteligência artificial ou outras tentativas de se encontrar meios alternativos de responsabilização civil nesses casos.
Verifica-se, portanto, uma tendência de se possibilitar que a inteligência artificial seja equiparada a entidades jurídicas existentes, como pessoas jurídicas, com personalidade jurídica própria.
Nesse sentido pode-se dizer que se está diante de uma evolução quando se trata de inteligência artificial e incumbirá ao Direito providenciar uma solução, que ao mesmo tempo repare o dano e regule a responsabilidade civil por atos praticados por essa inteligência artificial, mas sem prejudicar o desenvolvimento tecnológico, pois os benefícios que a sociedade obtém com a inteligência artificial são enormes e incalculáveis.
Por enquanto, essas soluções inovadoras, como ainda não podem ser aplicadas no Brasil tendo em vista a falta de regulamentação, devem ser vistas apenas como inspiração, portanto, por ora a responsabilidade deve ser atribuída ao homem e não à máquina, sob pena de o dano sofrido correr o risco de não ser reparado.
Apesar dos caminhos indicados neste artigo científico, faz-se indispensável que os estudos sobre o tema tenham prosseguimento, tendo em vista que o que se tem hoje sobre inteligência artificial x Direito e responsabilidade civil são apenas questionamentos e possibilidades remotas para pacificação doutrinária e jurisprudencial. Conclui-se, com isso, que o Direito brasileiro necessita se atualizar para estar preparado para esse novo mundo digital e tecnológico, bem como o operador jurídico deve estar atento às atualizações legislativas, de modo a se mostrar apto a exercer o seu ofício nas querelas judiciais envolvendo essa ferramenta.
Referências
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[1]Tradução retirada de Turing textos e editada pela Revista Movimento,em 23 de junho de 2021, dia e mês de nascimento deAlan Turing em 2012, do artigo publicado originalmente na Revista de Filosofia Mind em outubro de 1950.
Formado em Direito pela UFCE e pós-graduação em Tributário pelo CERS e em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Pró-Minas. Atualmente servidor público federal (PRF)
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