VALÉRIA LINELLY VIEIRA SILVA[1]
(Coautora)
MARIA DO SOCORRO RODRIGUES COELHO[2]
ROCHELE JULIANE LIMA FIRMEZA BERNARDES[3]
(orientadores)
RESUMO: O acesso ao crédito é um importante mecanismo que possibilita às famílias brasileiras, de serem incluídas no mercado de consumo, contudo, em sendo essa oferta desregulada, pode surgir o superendividamento, que gera efeitos individuais e sociais. Diante dessa situação, em cumprimento ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial, o Estado deve intervir para buscar normalizar a situação, sob pena de grave violação aos direitos fundamentais. Ocorre que, no Brasil, essa regulamentação somente ocorreu em julho de 2021 por meio da lei 14.181/21. Esta pesquisa busca analisar como a referida lei, com base na dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, resguarda o consumidor superendividado. Chegando-se a conclusão que a respectiva legislação trouxe mecanismos de prevenção e tratamento a fim de resguardar o consumidor, de maneira eficaz. O método utilizado foi de uma pesquisa bibliográfica do tipo narrativa, de livros, artigos científicos, teses, dissertações, doutrinadores e legislação nas principais bases de dados indexadas.
Palavras chaves: Direito do Consumidor. Boa-fé. Oferta de Crédito. Mínimo existencial.
ABSTRACT: Access to credit is an important mechanism that allows Brazilian families to be included in the consumer market, however, when this offer is unregulated, over-indebtedness can arise, which generates individual and social effects. Faced with this situation, in compliance with the principle of human dignity and the existential minimum, the State must intervene to seek to normalize the situation, under penalty of serious violation of fundamental rights. It happens that, in Brazil, this regulation only took place in July 2021 through law 14.181/21. This research seeks to analyze how the aforementioned law, based on the dignity of the human person and the existential minimum, protects the over-indebted consumer. Coming to the conclusion that the respective legislation brought prevention and treatment mechanisms in order to protect the consumer, effectively. The method used was a bibliographic research of the narrative type, of books, scientific articles, theses, dissertations, scholars and legislation in the main indexed databases.
Keywords: Consumer Law. Good faith. Credit Offer. Existential minimum.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa estuda o fenômeno do superendividamento na sociedade brasileira, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, analisando seus efeitos nefastos ao consumidor e de que maneira ocorre a afronta aos direitos fundamentais, considerando que as consequências desse estado refletem diretamente no emocional do consumidor, no seio familiar e social e até mesmo em seu ambiente de trabalho.
Assim, considerando os efeitos individuais e sociais que ele gera para os consumidores, havia a imperiosa urgência de sua regulamentação, a fim de que o consumidor tivesse a oportunidade de se reerguer financeiramente, superando o superendividamento. Tal avanço legislativo ocorreu com a promulgação da lei 14.181 em julho de 2021, que disciplinou aspectos preventivos e de tratamento ao fenômeno do superendividamento, que busca fornecer ao consumidor, mecanismos para lidar com tal situação (BRASIL, 2021).
Com isso, surge o problema de pesquisa: Como a Lei 14.181/21, em obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana e resguardo ao mínimo existencial, pode tratar e prevenir o fenômeno do superendividamento, utilizando-se das ferramentas existentes, sendo uma delas a intervenção estatal, para reprimir ou evitar as diversas práticas abusivas em detrimento do consumidor (BRASIL, 2021).
Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, realizou-se através de uma revisão bibliográfica em Direito do Consumidor, analisando o fenômeno do superendividamento e seus efeitos nefastos na vida daquele que se configura como a parte mais vulnerável da relação de consumo. Tais efeitos gerados pelo fenômeno supracitado, acaba por violar princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, que serão, também, analisados minuciosamente.
Dessa forma, objetiva-se analisar suscintamente a lei 14.181/21, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, apontando como ocorre a proteção legal aos consumidores superendividados, ou seja, objetiva-se descrever como a nova lei auxilia na prevenção, assim como na tentativa de solucionar as graves consequências do superendividamento (BRASIL, 2021).
O presente estudo está organizado em três capítulos. O primeiro capítulo é responsável por conceituar o fenômeno do superendividamento, bem como as causas que o originam, as suas espécies e, por fim, os nefastos problemas ocasionados por ele. No segundo capítulo, é analisado como os princípios da dignidade da pessoa humana e o do mínimo existencial pode ser invocado para a proteção do consumidor superendividado. O terceiro, e último, há uma análise sobre a tutela do consumidor superendividado perante a lei 14.181/21, observando aspectos como: os direitos do consumidor endividado, os mecanismos de prevenção e tratamento trazidos pela nova lei (BRASIL, 2021).
Este trabalho tem como método a pesquisa bibliográfica do tipo narrativa, que se realizou por meio de pesquisas em livros, artigos científicos, teses, dissertações, jurisprudência e legislações. A relevância social da presente pesquisa revela-se pelo fato de o superendividamento ser um tema atual, que afeta indistintamente os indivíduos, independentemente da classe social, além de seus efeitos possuírem reflexos para além do consumidor que se encontra nessa situação. A relevância acadêmica é caracterizada por permitir que a presente pesquisa sirva de consulta para aqueles que desejarem buscar na seara consumerista, principalmente no que concerne ao superendividamento, o acesso a práticas mais conscientes de consumo.
Já sua relevância jurídica mostra-se por permitir aos operadores do direito uma compreensão acerca das inovações e aspectos legislativos previstos na lei 14.181/21, sobre o fenômeno do superendividamento (BRASIL, 2021).
Com isso, busca-se apresentar por meio da presente pesquisa o fenômeno do superendividamento, desde seu surgimento até suas graves consequências individuais e sociais. Bem como, analisar os aspectos protetivos dados lei 14.181/21, em especial a prevenção e o tratamento ao superendividamento (BRASIL, 2021).
2 O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO )
Com a estabilização da economia em meados de 1990, a confiança no mercado financeiro voltou influenciada principalmente pelo controle da inflação. Os fornecedores passaram a ofertar massivamente o crédito para as famílias brasileiras, que de imediato corresponderam a tal oferta, adquirindo crédito junto a essas instituições financeiras. Contudo, essa oferta de crédito, que ocorreu de maneira desregulada, trouxe graves problemas aos consumidores brasileiros, agravando-se a situação pela ausência de uma regulamentação específica para o fenômeno do superendividamento.
Segundo Bauman (2008, p. 37) “o consumo é uma condição e um aspecto permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos com todos os outros organismos”.
Nessa senda, fica claro que o consumo é um ato que sempre esteve, mesmo que implicitamente, ligado às condições básicas de sobrevivência do indivíduo, como por exemplo: água, alimento, entre outros itens essenciais à vida do ser humano.
O endividamento faz parte do cotidiano das pessoas, de modo que as relações sociais são baseadas no consumo, e como consequência diariamente se fazem dívidas a fim de adquirir produtos ou serviços essenciais ou não. Dessa maneira, o endividamento é um percalço da vida, que deve ser resolvido entre os particulares, sem a intervenção estatal, salvo quando houver violação ou abuso a direito do consumidor. Assim, quando ocorre o superendividamento, estágio mais avançado do endividamento, é necessária a intervenção estatal a fim de disciplinar a melhor solução para resolvê-lo visando resguardar a dignidade da pessoa humana e garantir o mínimo existencial não só ao consumidor superendividado, como para toda sua família. E como aponta Marques (2010), a melhor maneira de combater o superendividamento ainda é a sua prevenção.
Assim sendo, passa-se a analisar as causas, espécies e problemas ocasionados pelo fenômeno do superendividamento.
2.1. Causas do superendividamento
O surgimento do estado do superendividamento pode ser desencadeado por comportamentos atribuídos ao fornecedor, como a publicidade enganosa, a oferta de crédito desregulada, entre outros. É fato que a publicidade desempenha papel fundamental para a venda de bens e serviços, de tal maneira que os fornecedores investem milhões em publicidade a fim de alcançar o maior número possível de consumidores.
Uma publicidade bem arquitetada pode alavancar expressivamente o número de vendas do fornecedor, contudo, é necessário que as vinculações das ofertas sejam fidedignas, sob pena de configuração de publicidade enganosa, prática veementemente vedada pelo código consumerista, sendo inclusive, um direito básico do consumidor a proteção contra propagandas dessa natureza.
Nessa senda, considerando a vulnerabilidade do consumidor e o grande assédio exercido pelos fornecedores, o legislador procurou tutelar o consumidor contra publicidades excessivas e enganosas. Em seu art. 6º, o CDC proclamou como direito do consumidor a vedação a propaganda enganosa, podendo ser conceituada como aquela que apresente informação inteira ou parcialmente falsa, de qualquer modo, possa induzir ao erro o consumidor sobre as qualidades, quantidades, características do produto ou mesmo serviço (OLIVERIA, 2016). Tem-se tornado comum tal prática, em especial de determinadas instituições bancárias, que de maneira omissiva não comunicam ao consumidor as reais informações referentes aquele contrato, a exemplo das taxas de juros.
Como conduta esperada do fornecedor, ele deve oferecer de maneira pormenorizada todas as informações constantes do contrato, antes mesmo da sua celebração, em cumprimento ao princípio da boa-fé, que deve ser observado durante todas as fases do contrato, esse processo prévio é de fundamental importância para que o consumidor possa escolher de maneira clara e inequívoca, sem qualquer espécie de erro. Assim sendo, a publicidade enganosa aliada a outros fatores, tem contribuído para o surgimento e aumento do fenômeno do superendividamento.
Outro fator que muito contribui para o superendividamento é a oferta de crédito desregulada. A facilitação à obtenção de crédito junto a determinadas instituições de crédito, aliada a outros fatores como a publicidade enganosa, assédio e pressão aos consumidores, acarretam o endividamento do consumidor de tal maneira que o impossibilita de arcar com suas dívidas sem o comprometimento de sua subsistência e de sua família.
O processo de concessão de crédito consiste na análise do perfil financeiro do consumidor, levando-se em consideração o seu histórico financeiro, além do seu comportamento diante de uma instituição financeira. Tal processo decorre da configuração do ato de confiança entre as partes de uma relação de consumo.
É fato que o crédito desempenha importante função na sociedade atual, ao permitir que as famílias até então excluídas do mercado do consumo, passassem a consumir bens e serviços essenciais ou não. Dessa maneira, reconhece-se a importância fundamental do crédito aos brasileiros, considerando que nem todos possuem condições financeiras para adquirir o bem ou o serviço e pagar imediatamente, sendo necessário o financiamento ou parcelamento.
Assim, o crédito ao longo dos anos passou a ser fundamental para a vida do brasileiro, deixando de ser contratado apenas para aquelas hipóteses de empréstimos, para a aquisição de bens, pagamento de despesas médicas urgentes, entre outras hipóteses (CRUZ; SOUSA, 2020).
O consumidor, ao ter acesso a uma das formas de crédito, seja através de um empréstimo pessoal ou um cartão de crédito, adquire a responsabilidade, perante as instituições financeiras, de adimplir com o total da dívida adquirida, concomitantemente com os juros e outras taxas, as quais foram pactuadas durante a formulação do contrato de concessão de crédito.
Contudo, a oferta desse crédito nem sempre traz apenas benefícios, em especial se ocorrer de maneira desregulada e sem a devida preocupação acerca da capacidade financeira do devedor, que não raras vezes já se encontra em difícil situação financeira. Assim sendo, não se pode, na atual ordem jurídica, ignorar a situação do consumidor quando da oferta do crédito, principalmente por ser parte mais vulnerável na relação consumerista. Nesse diapasão, o consumidor necessita estar ciente de todos os riscos que envolvem a relação jurídica, pois na busca de contratar crédito para aquisição de produtos e bens, o consumidor termina realizando um mau negócio quando, por exemplo, os juros são exorbitantes, limite de cheque especial e finda comprometendo sua renda atual e futura (SONCIN, 2016).
Exemplo de prática que facilita a obtenção de crédito são os conhecidos empréstimos consignados e os financiamentos, que se revelam em longo prazo prejudiciais ao consumidor, considerando as altíssimas taxas de juros (PEREIRA; ZAGANELLI, 2019).
Conduta costumeira no mercado é a publicação por parte dos fornecedores de crédito, com os seguintes dizeres: sem consulta ao SPC ou Serasa. Condutas dessa natureza apenas demonstram a despreocupação dos fornecedores com a situação econômica dos consumidores, em uma clara intenção de apenas vender seus serviços, ainda que para consumidores em situações economicamente difíceis. Dessa maneira, com o princípio da boa-fé como corolário das relações contratuais, não se pode tolerar e permitir condutas semelhantes a estas quando da oferta de produtos ou serviços.
É louvável que o Estado permita o crédito facilitado às pessoas físicas, principalmente por fomentar o consumo, acelerando a economia. Contudo, é necessário regular, por meio de legislação específica, de que maneira deva ocorrer a oferta desse crédito, pois do contrário, consequências econômicas, jurídicas e sociais surgirão, a exemplo do superendividamento. Vale registrar que não se trata de retirar a autonomia privada das partes, o que é consagrado pelo ordenamento jurídico, mas, sim, uma tentativa de proteger o consumidor que é a parte mais vulnerável da relação consumerista.
2.2 Espécies de superendividamento
Como visto, o superendividamento afeta sobremaneira o consumidor, a ponto de comprometer sua própria subsistência e de sua família. A doutrina costuma dividir tal fenômeno em duas categorias para a melhor compreensão, considerando que se trata de um tema de elevada importância e possui suas peculiaridades. O superendividamento pode ser ativo, subdividindo-se em consciente e inconsciente e, por último, o superendividamento passivo. Vale registrar de antemão que a análise da boa-fé é fundamental para a compreensão das duas espécies, considerando tratar-se de corolário das relações consumeristas.
No superendividamento ativo consciente, o consumidor adota uma posição mais ativa, abusando do crédito que lhe é fornecido ficando em difícil posição diante de seus credores (MARQUES; BERTONCELLO; LIMA, 2010). Portanto, nessa modalidade, o consumidor, ciente que sua condição financeira não o permite honrar com aquela obrigação, ainda assim ignora totalmente esse fato e conclui a obrigação contratual. Assim sendo, não será possível o Estado intervir (PEREIRA; ZAGANELLI, 2019). Fica caracterizada uma deslealdade que não pode estar presente nas relações consumeristas, as quais devem sempre ser pautadas no princípio da boa-fé, seja quando da celebração ou mesmo na execução do contrato. Inclusive o CDC, em seu capítulo II, quando trata da Política Nacional da Relação de Consumo, prevê em seu art. 4º, inciso III, a observância da boa-fé entre os participantes da relação consumerista.
Ainda há a figura do superendividamento ativo inconsciente, quando o consumidor age de maneira impulsiva, desenfreada, sem atentar para sua condição financeira. Muito se deve pelas estratégias de marketing e publicidade desenvolvida pelas empresas. Aqui, ao contrário da situação anterior, o consumidor não age de maneira fraudulenta, pois ele acredita ser possível adimplir suas obrigações, apesar de sua difícil situação financeira.
Além das publicidades apelativas realizadas pelos fornecedores, a ação instintiva do consumidor, ocasionada pela sua própria condição de ser humano, a qual é intensificada pela imposição de padrões estéticos os quais visam apenas o bem-estar material e, principalmente, psíquico, fruto de uma cultura de consumo, imposta pela sociedade contemporânea, que modifica, constantemente, o conceito real de necessidade, contribuindo, dessa forma, para o aumento de consumidores superendividados. Vale registrar que nem sempre o consumidor irá tomar a decisão pautada na racionalidade, e sim, de forma impulsiva quase automática e sem muitas reflexões, acreditando que aquela decisão tomada foi a melhor. (PEREIRA; ZAGANELLI, 2019).
Diferente do que ocorre com o superendividamento ativo, que demanda uma atitude comissiva do consumidor, no superendividamento passivo, não é atribuída nenhuma ação ao consumidor, pois as causas que desencadeiam tal fenômeno são alheias à vontade do agente (FIRMEZA, 2015).
Essas causas, como dito, fogem do controle do consumidor, tornando-se imprevisíveis, a exemplo do divórcio, doença, desemprego e várias outras causas que se tornam suficientes para gerar o superendividamento. Nessa espécie de superendividamento verifica-se a presença da boa-fé quando da formação do contrato e durante sua execução, o que permite a possibilidade da tutela estatal ao consumidor que se encontrar em situação semelhante a esta.
2.3 Problemas ocasionados pelo superendividamento
Os problemas ocasionados pelo superendividamento atingem não só o consumidor, isoladamente, vez que a sociedade é afetada, como um todo, direta e indiretamente, por tal situação. Um dos efeitos causados pelo fenômeno é a negativação do nome do consumidor nos cadastros de proteção de crédito, a exemplo do SPC - Serviço de Proteção ao Crédito ou Serasa, dificultando sobremaneira a vida do consumidor, visto que, o impossibilita de realizar diversos negócios jurídicos. Situações como essas, sem dúvidas, afetam a dignidade da pessoa humana, pois o torna privando de bens essenciais e básicos, necessários a todos os indivíduos (FIRMEZA, 2015).
Como decorrência dessa negativação o consumidor superendividado é excluído do mercado de consumo, sendo equiparado por muitos como uma morte “civil”, considerando sua impossibilidade, quase total, de adquirir bens ou serviços. A entidade familiar também é atingida pelo superendividamento, em razão do acúmulo de dívidas e restrição ao crédito, é a mudança no estilo de vida, privando seus membros de realizarem atividades que até então podiam ser feitas, passam a não ser mais. Conforme pontua Marques (2010), até mesmo despesas consideradas essenciais a todos, como despesas médicas e educação dos filhos, passam a ser negligenciadas, provocando reflexos negativos no futuro.
Muitas dessas famílias perdem sua capacidade financeira em razão do desemprego, doença ou qualquer outro fator externo, alheio à vontade de seus membros (ALVES, 2020). Outra causa que leva ao superendividamento familiar é o mau uso do cartão de crédito, provocado por sua alta taxa de juros e ausência de cuidado quando de sua utilização (OLIVEIRA, 2016).
Nota-se, também, que o impacto do superendividamento não se restringe apenas a questões econômicas, mas, emocionais. Com isso, surgem conflitos no ambiente familiar, de modo que as despesas básicas de uma casa, como: água, luz, alimentação, entre outros elementos essenciais para ter uma vida digna, se tornem impossíveis de serem adquiridas, devido ao descontrole financeiro ocasionado pelo endividamento.
A existência de uma sociedade hiperconsumista, levada pelo prazer temporário de fazer compras, acaba sendo devastada pelos obstáculos que surgem no ambiente de consumo. Propagandas apelativas, a configuração de um padrão estético e no modo de vestir, contribuem para o aumento do consumo irresponsável e, assim, desencadeando em um problema psicológico.
O fenômeno do superendividamento atinge o consumidor em seu ambiente de trabalho, de modo que as alterações de humor no trabalho podem refletir, significativamente, na sua produtividade, reduzindo a capacidade de o indivíduo realizar as suas atividades básicas ou até a conviver com os colegas de maneira harmônica, e assim, podendo comprometer o seu emprego, agravando a sua situação financeira.
Ademais, o desemprego, aliado a sua condição de consumidor superendividado, afeta os dois princípios basilares de todo o ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Desse modo, as famílias que se encontram em estado semelhante a este, serão privadas do básico para sua subsistência, acarretando problemas como ansiedade, depressão, entre outros (ALMEIDA, 2020).
Ocorre que o consumo realizado de maneira irresponsável ou que por algum “acidente da vida” (gravidez não planejada, desemprego, morte de um familiar, entre outros), o consumidor se endivida, os obstáculos que irão surgir não se restringem apenas a sua situação financeira, mas a todo um complexo de problemas que passarão a invadir a mente do indivíduo superendividado, e com um tempo irá perder o seu bem-estar e a sua saúde.
A seguir será analisado como ocorre a proteção do consumidor superendividado com base no princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial.
3. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL COMO VETORES PARA A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO
O consumidor, conforme explica Nunes (2019), perante a relação de consumo é a parte mais vulnerável, o que demanda do Estado sua intervenção por meio de normas que busquem a tutela do consumidor em face de possíveis práticas abusivas. Nesse mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor, no capítulo que trata da Política Nacional das Relações de Consumo, em seu art. 4º, inciso II reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
É justamente em face da vulnerabilidade do consumidor e da desigualdade presente nas relações de consumo, que surge o Código de Defesa do Consumidor com o objetivo de tutelar o consumidor (MARQUES, 2010). A Constituição Federal, também possui orientação semelhante ao dispor em seu art. 5º, inciso XXXII que o Estado deverá promover a defesa do consumidor, na forma da lei (BRASIL, 1988).
Destarte, fica evidente que o consumidor deve receber a tutela estatal, face seu estado de vulnerabilidade. Com mais razão, deverá ocorrer a proteção ao consumidor que se encontra em estado de superendividamento, tendo como um de seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Vale registrar, que os referidos princípios, são dois pilares de todo o ordenamento jurídico.
Antes de adentrar em cada um desses princípios, vale uma compreensão prévia acerca deles.
Foi a partir de tragédias, fome, miséria, entre outras situações devastadoras, que a dignidade da pessoa humana passou a fazer parte dos ordenamentos jurídicos espalhados pelo mundo (SONCIN, 2016). Tanto é assim, que após o término da Segunda Guerra Mundial, face às atrocidades cometidas durante esse período, o referido princípio passou a ser mais palpável e visível (FIRMEZA, 2015). E é nessa toada que a Constituição Federal de 1988 logo em seu art. 1º prevê como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é intrínseca a toda e qualquer pessoa, de modo, que não há necessidade do indivíduo adotar nenhuma ação para a afirmação do referido princípio, pois ele decorre da simples condição de ser humano, e é a partir desse princípio que decorrem diversos direitos e garantias individuais e coletivas, asseguradas a todos (SONCIN, 2016). Desse modo, o indivíduo, sob nenhuma hipótese pode renunciá-la.
A dignidade da pessoa humana é considerada como um princípio norteador de todo o sistema jurídico. É estabelecido como fundamento da República Federativa do Brasil, o qual serve de base para todos os direitos constitucionais, de modo que todas as medidas adotadas pelo Estado deverão ser voltadas para a preservação da dignidade da pessoa humana.
Tal princípio é caracterizado, pelo ordenamento jurídico como um pilar, de modo que, sem a existência de uma vida digna, não há que se falar na efetiva concretização às demais garantias constitucionais. Foi a partir dessa alta carga valorativa conferida, corretamente, a esse princípio, que ele passou a coordenar a atuação do Estado em todas as suas funções, seja administrando, legislando ou julgando.
Em se tratando de seu aspecto jurisdicional, o Estado passa a reconhecer situações nas quais tanto a legislação Constitucional e infraconstitucional eram omissas, bem como amplia o entendimento de certos dispositivos legais. Nesse sentido, vale registrar a decisão de reconhecimento da União homoafetiva; reconhecimento do quarto de hotel como asilo inviolável, dentre outras situações reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal, tendo como base os direitos e garantias fundamentais, que são consequências do princípio da dignidade da pessoa humana.
Já em sua função legislativa, o Estado precisa ter em mente o princípio acima, de modo que as disposições resultantes das diversas espécies legislativas não podem contrariá-lo e, caso isso ocorra, a lei pode vir a ser objeto de controle de constitucionalidade.
É em razão dessa linha de pensamento que a jurisprudência, ao se deparar com casos de superendividamento tem invocado o presente princípio, conforme decisão abaixo:
DESCONTOS EM FOLHA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROPORCIONALIDADE. LIMITE MÁXIMO DE 30%. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA. HONORÁRIOS. EQUIDADE.
É possível que as instituições financeiras descontem valores na folha de pagamento dos devedores (empréstimos consignados), desde que limitado ao patamar de 30%. Dessa forma, preserva-se a dignidade da pessoa humana e aplica-se o princípio da proporcionalidade, atendendo aos interesses de ambas as partes. A origem da limitação dos descontos encontra fundada na inegável situação de superendividamento que vêm passando os consumidores, consistente na impossibilidade global de saldar suas dívidas sem prejuízo de seu sustento. Existindo vários empréstimos contratados em nome do devedor, a soma dos descontos de todos eles não pode ultrapassar o limite de 30% dos vencimentos líquidos do consumidor, sob pena de lhe causar a completa impossibilidade de subsistência. Não se pode considerar todo e qualquer melindre como sendo susceptível de gerar ofensa jurídica a ensejar a sua reparação judicial. Nessa linha de raciocínio, não há como impor a satisfação pecuniária em todo dissabor, sob pena de se premiar extravagâncias e exageros. Os honorários de sucumbência, nas causas em que não houver condenação, serão fixados equitativamente pelo julgador, somente justificando-se sua alteração caso se distancie dos critérios legais estabelecidos.
TJEMG, 14ª Câmara Cível, AC 1.0145.13.062056-3/001, Des. Rel. Estevão Lucchesi, Data de Julgamento: 23/02/2016 (publicação da súmula em 02/03/2016). (Grifos nossos)
Destarte, a limitação de 30% de desconto na folha do consumidor se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana e busca a preservação do mínimo existencial, mostrando-se medida adequada e acertada para o consumidor e o credor (MENDES, 2016).
E por último, o Estado na sua função típica de administrar, deve pautar suas decisões e ordens em consonância com a dignidade da pessoa humana, apesar de haver em muitos de seus atos, a discricionariedade, contudo, isso não afasta a obrigatoriedade de sua observância.
Dessa maneira, o Estado, em suas três funções deverá observar o princípio da dignidade da pessoa humana nas mais diferentes situações, não podendo o individual prevalecer sob o coletivo, quando isso implicar em violação dos direitos e garantias fundamentais.
Já o mínimo existencial está ligado à ideia de uma renda mínima, que deve ser preservada, necessária para o indivíduo e a sua família sobreviverem. Essa renda deve ser destinada ao pagamento de despesas como água, luz, moradia, alimentação, saúde, dentre outras despesas imprescindíveis para a sobrevivência do indivíduo (FIRMEZA, 2015).
Vale registrar que não há um conteúdo específico para ser tutelado como mínimo existencial, pois de acordo com o tempo e a necessidade humana, situações que outrora não eram assim consideradas, possam passar a ser (CARVALHO; SILVA 2018). Dessa maneira, incumbe ao Estado, em seus diferentes níveis, ficar atento ao avanço da sociedade e identificar o que é considerado essencial e imprescindível para a vida do indivíduo.
A garantia a essa renda mínima tem levado, ante sua considerável importância, os tribunais decidirem pautados na ideia de resguardar o indivíduo. Um exemplo é a obrigatoriedade imposta pela justiça ao Estado para fornecer equipamentos médicos ou medicamentos àquelas pessoas impossibilitadas financeiramente, invocando o princípio do mínimo existencial, afastando até outros princípios que regem a Administração Pública, como o da reserva do possível.
Dessa maneira, o patrimônio do consumidor deve responder por dívidas contraídas por seu titular frente a seus credores, contudo, não se pode perder de vista que o patrimônio possua única e exclusivamente essa finalidade. Além de cumprir com a referida função, deve ser utilizado como efetivador de uma vida digna e com qualidade.
Vale registrar, que a garantia a uma renda mínima não deve servir para furtar o consumidor endividado de arcar com suas obrigações, mas, sim, que seja reservado a ele um percentual mínimo para sobreviver de maneira digna.
O mínimo existencial não possui matéria expressa na Constituição Federal, chegando-se a sua existência por meio de princípios espalhados por toda a Carta Magna. A doutrina costuma apontar alguns princípios que auxiliam nessa tarefa, sendo eles: Princípio da Igualdade, Dignidade da Pessoa Humana, Estado Democrático e Social de Direito. Assim, o Estado deve atuar, com base nesses princípios e alguns outros, com o objetivo de resguardar o mínimo existencial de cada pessoa, oferecendo não apenas meios para sua sobrevivência, mas para que tenham uma vida digna (CARVALHO; SILVA 2018).
O reflexo nefasto do superendividamento na garantia ao mínimo existencial pode ser evidenciado quando o consumidor se ver pressionado por optar pelo não pagamento de suas dívidas ou retirar do mínimo para sua subsistência, para honrar com as suas obrigações (CASTRO, 2021).
Nesse sentido ensina Marques (2010), que o superendividamento por ser um problema bastante complexo, atingindo o consumidor em diversos setores de sua vida, reclama por parte do Estado uma atitude rápida e eficaz, apta a garantir a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento econômico do país, pois o fenômeno do superendividamento é uma verdadeira agressão aos direitos e garantias fundamentais.
Assim, com a inclusão do mínimo existencial no rol de direitos essenciais ao consumidor, todas as medidas de concessão de crédito até uma repactuação de dívidas, deverão ser baseadas no respeito a tal direito, tendo em vista a posição a qual o consumidor ocupa diante de um fornecedor, que é a parte mais forte de uma relação de consumo.
Como visto o superendividamento traz graves consequências financeiras, de modo que o Estado tem se inclinado para tutelar uma parcela mínima visando garantir o mínimo subsistencial ao consumidor. Geralmente, o Estado permite o desconto da renda no patamar de 30%, julgando ser suficiente os 70% que lhe restarem livres para viver dignamente, pagando dívidas essenciais como água, luz, alimentação e moradia sem que isso resulte no superendividamento (MARQUES, 2010).
Vale uma ressalva quando da análise do mínimo existencial. O consumidor não pode invoca-lo em toda e qualquer situação a fim de obter a tutela estatal, inconteste que esteja presente o comprometimento de sua subsistência, de modo que, caso o consumidor possua renda razoável livre de qualquer obrigação, o mínimo existencial não fica comprometido.
Foi nessa toada que um juiz de primeiro grau da Vara Cível da Circunscrição Judiciária de Brazilândia[4], proferiu sentença no dia 13/12/2021, negando ao autor que ajuizou ação cível buscando a renegociação de dívidas junto a algumas instituições bancárias. Ao analisar o mérito o magistrado negou o pedido da exordial alegando que o autor/consumidor possuía R$ 4.000,00 (quatro mil reais) sobrando em sua renda, de modo que o mínimo existencial não estaria comprometido no presente caso.
Destarte, visto como o princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial servem de vetores para a proteção do consumidor superendividado, passa agora a ser analisado como ocorre a tutela do consumidor perante a lei 14.181/21 que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, e dentre outras providências tratou acerca do fenômeno do superendividamento (BRASIL, 2021).
4 A TUTELA DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO NA LEI 14.181/21
4.1 Mecanismos de prevenção ao superendividamento
Até então, havia uma lacuna legislativa acerca da prevenção específica ao superendividamento, havendo apenas normas gerais contidas no Código de Defesa do Consumidor, que não eram suficientes para combatê-lo. Atento a essa ineficácia, o legislador inovou e trouxe expressamente em seu art. 54-A a disciplina acerca da prevenção ao superendividamento.
Como medida de prevenção é imputado ao fornecedor não só apenas o dever de informar, mas que a prestação das informações ocorra de maneira clara e acessível ao homem médio, ou seja, que seja de fácil compreensão e seja-lhe informado de todos os juros e demais encargos decorrentes do negócio jurídico (GAGLIANO; OLIVEIRA, 2021).
Sustenta Marques (2010) que a informação clara e inequívoca acerca dos elementos que envolvem o negócio jurídico é uma das principais ferramentas para se combater o superendividamento. Desse modo, o princípio da informação pode ser interpretado de diversas formas, contudo, todas elas devem levar à conclusão, o dever do fornecedor de informar de maneira clara o consumidor, de modo que caso ocorra ambiguidade, quando da leitura das cláusulas nos contratos de adesão, devem elas ser interpretadas da forma mais favorável ao consumidor (SONCIN, 2016).
A oferta de crédito responsável passou a ser uma das medidas contempladas e exigida dos fornecedores para evitar o superendividamento. Tais condutas podem ser compreendias no art. 54-C do CDC que dentre suas medidas determina que, quando da oferta do crédito é vedado aos fornecedores indicar que não será realizado consulta aos órgãos de proteção ao crédito, prática que era muito comum, como Sem Consulta ao SPC ou Serasa, o que indubitavelmente seduzia o consumidor, que não rara às vezes já estava endividado, a contratar junto aquele fornecedor piorando sua situação financeira. A boa-fé que deve estar sempre presente nas relações jurídicas, por vezes não é observada pelo fornecedor quando da oferta de crédito, sendo sua única preocupação em realizar o negócio jurídico ignorando totalmente a real capacidade financeira do consumidor.
Outra medida preventiva, a qual o CDC proíbe, é a prática do assédio ao consumidor, que infelizmente é corriqueira nas dependências dos estabelecimentos comerciais. Tal prática é realizada no momento em que o consumidor adentra nos estabelecimentos comerciais, especialmente em lojas que emitem cartões de crédito, sendo o mesmo, abordado por um funcionário, o qual é instruído à apresentar todas as ofertas de créditos disponíveis, e assim, dirigindo-se até o consumidor, com a finalidade de lhe pressionar a adquirir o cartão da loja, explicando os possíveis benefícios que pode obter ao contratar tal serviço ofertado. Diante disso, a situação acaba ficando ainda pior, quando o consumidor recusa a aquisição, pois o funcionário começa a pressiona-lo, com o único propósito de realizar o negócio jurídico.
Ainda como medida preventiva, o CDC, em seu art. 54-D, determina que o fornecedor ao informar o consumidor acerca das disposições presentes, deve considerar a idade deste. É sabido que idoso não possui as mesmas condições físicas e psíquicas que outrora tinha, tornando-o mais suscetível às vítimas de determinadas situações abusivas por parte dos fornecedores, sendo classificado pela doutrina consumerista como consumidor hipervulnerável (SIERADZKI; MOREIRA, 2022). Foi com essa preocupação que o legislador inovou e dispensou o devido tratamento que deve ser observado pelo fornecedor, ao considerar a idade do consumidor.
A educação financeira também está inserida dentro do capítulo que trata acerca da prevenção ao superendividamento. É de extrema importância e relevância a inserção desse ponto como medida preventiva, considerando que a ausência de educação financeira é apontada como umas das causas que levam o consumidor a gastar mais do que deve de maneira inconsciente, acreditando ter condições para adimplir futuramente, por absoluta falta de organização financeira. Inclusive já era um proclama antigo da doutrina consumerista, a exemplo de Marques (2010) que sustenta, como medida preventiva ao superendividamento, a ideia que a educação financeira deveria estar presente nas escolas de ensino fundamental e médio, formando consumidores mais conscientes.
Ainda na mesma linha de pensamento de Marques (2010), sobre a educação financeira como uma das formas de prevenção do endividamento em massa, a ideia se mostra de extrema importância, diante do cenário atual, no qual, praticamente tudo foi “globalizado”. As definições de essencialidade foram modificadas, de modo que o que era dispensável para a sobrevivência de um indivíduo passou a ser um produto ou serviço indispensável para aquele que o adquiriu. Tal mudança é fruto do imediatismo, do uso da emoção e não o da razão, onde o indivíduo adquire determinado bem, impulsionado pelos gatilhos da mente, o que é intensificado, na maioria das vezes, com as práticas abusivas por parte dos fornecedores, ou pelo simples prazer, é o que explica a teoria comportamental.
Assim, diante dos problemas que levam o consumidor ao estado de superendividamento, a educação financeira se torna, de fato, o mecanismo mais eficiente a ser utilizado como meio de prevenção do problema. Com a implementação de tal mecanismo, seja no ambiente educacional ou no âmbito familiar, o consumidor irá adquirir a capacidade de analisar, com mais importância e responsabilidade, as caraterísticas do que é ou não essencial para a sua vida.
4.2 Mecanismos de tratamento ao superendividamento
Assim como inovou ao dispor expressamente acerca da prevenção, a lei 14.181/21 tratou de disciplinar mecanismos para tratar o superendividamento, mais precisamente nos artigos 54-A e seguintes, e 104-A a 104-C. Percebe-se que, deve ser dada preferência à prevenção, e somente, caso não seja possível alcança-la, busca-se o tratamento. (BRASIL, 2021).
Uma das grandes e oportunas inovações acerca do tratamento ao superendividamento é a possibilidade da renegociação de dívidas, oportunidade que o consumidor deve apresentar um plano de pagamento para adimplir suas dívidas, que dependerá da homologação judicial.
Contudo, antes da homologação judicial, o magistrado deve verificar se os requisitos indispensáveis para a configuração do superendividamento estão presentes e analisar se existe alguma causa impeditiva, a exemplo das dívidas oriundas de serviços e bens de alto valor.
A possibilidade de apresentação de um plano por parte do consumidor, apesar da demora, veio em momento de extrema importância, considerando o momento pandêmico que o país enfrenta. Essa possibilidade já se encontrava no ordenamento pátrio, contudo, restrito ao empresário, que se encontrando em dificuldade financeira podia lançar mão da recuperação judicial.
Assim o consumidor pode apresentar um plano de renegociação das dívidas perante os credores, em audiência conciliatória. Isso permite que se evitem demandas de litigância judicial que se arrastam por anos, prologando o problema do superendividamento, havendo clara homenagem ao princípio da duração razoável do processo (SANTOS, BRINGUENTE, 2019).
Conforme preleciona Gagliano, Oliveira (2021) a nova lei buscou assegurar ao consumidor superendividado o direito ao recomeço, podendo apresentar o plano em fase conciliatória, e caso essa alternativa reste frustrada cabe ao magistrado apresentar um plano compulsório, de acordo com a capacidade atual e futura do consumidor de modo a respeitar o mínimo existencial. Para que o procedimento seja instaurado é necessária à provocação do consumidor, não tendo espaço para atuação de ofício pelo juiz.
O prazo máximo de duração para adimplir as dívidas apresentadas são de 5 (cinco) anos, sempre respeitando o mínimo existencial. Vale registrar que o não comparecimento de qualquer credor ou procurador com poderes específicos de maneira injustificada à audiência conciliatória suspende a exigibilidade do débito e a purgação da mora. Assim o é, visto que a lei busca a tutela do consumidor e isso perpassa pelo adimplemento de suas dívidas.
Algumas questões práticas que envolvem a nova lei do superendividamento podem trazer dúvidas quanto sua interpretação. Algumas delas serão tratadas a seguir.
Como antecipado, caso durante a fase conciliatória, não se consiga a auto composição entre devedor e credores, o juiz pode apresentar compulsoriamente um plano de negociação das dívidas. Nessa senda, o juiz deve considerar a renda atual e futura do consumidor a fim de evitar o comprometimento de sua subsistência respeitando o prazo máximo de 5 anos, conforme determina o diploma legal.
Em se tratando de devedor que possua uma renda fixa, o juiz deve fixar o percentual de desconto em sua folha salarial utilizando de parâmetros que a jurisprudência determina em casos semelhantes a estes, a exemplo da possibilidade de desconto de 30% decorrente de empréstimos consignados. Situação interessante se mostra quando ocorre uma mudança salarial do consumidor, seja diminuindo ou aumentando sua renda. Nesses casos, tendo como base a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, o juiz deve reconsiderar o percentual originário e o adaptar a nova realidade do consumidor.
Tarefa mais tormentosa se revela quando se tratar de consumidor autônomo, caso em que não possui uma renda fixa mensal. Deve o magistrado utilizar-se de mecanismos para avaliar a renda daquele consumidor e fixar um patamar de desconto que não seja inferior ao que ele pode pagar, e nem superior às forças de sua renda.
Situação interessante também se mostra acerca da possibilidade de os credores solicitarem ao juiz, a revisão das cláusulas fixadas originariamente acaso o consumidor melhore sua condição financeira. A doutrina já se posiciona em sentido afirmativo, aceitando tal possibilidade.
O prazo máximo para pagamento do plano apresentado pelo devedor ou pelo juiz compulsoriamente é de 5 anos, conforme o art. 104-A do CDC. Isso implica dizer que após o decurso desse prazo a dívida resta extinta, havendo ou não a quitação total dos credores, visto que o código consumerista não prevê dívidas eternas. Para exemplificar preleciona Gagliano, Oliveira (2021), o seguinte:
Basta pensar em um consumidor que tenha uma renda de R$ 2.000,00 mensais e que esteja com dívidas vencidas no valor total de R$ 100.000,00. Suponha que, diante desse contexto, o juiz aprove um plano judicial compulsório fixando parcelas mensais de R$ 700,00 (35% da remuneração). Com essa parcela mensal, após o prazo máximo de 5 anos, o consumidor pagará, ao total, apenas R$ 42.000,00. O saldo devedor remanescente seria extinto após esse quinquênio.
Destarte, havendo ou não a quitação total, é direito do consumidor em ver aquela dívida extinta após o decurso do tempo de anos.
Dito isso, percebe-se a preocupação do legislador em proteger os direitos básicos do consumidor, ao passo que possibilita mecanismos para os credores receberem seus créditos, sem desrespeitar a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial.
Assim, os aspectos de tratamento permitem ao consumidor superendividado alternativas para adimplir com suas obrigações de forma que a sua subsistência e de sua família não sejam afetadas.
5 CONCLUSÃO
Dessa forma, o fenômeno do superendividamento há tempos está presente na sociedade brasileira, tendo como uma de suas principais causas a oferta de crédito desregulada, que junto a outras, levam o consumidor a um estado de extrema dificuldade financeira, reclamando a intervenção estatal. Assim, era imperiosa a regulamentação específica do tema pelo código consumerista, que até então, possuía apenas disposições gerais, insuficientes ao combate efetivo ao superendividamento.
A regulamentação era imprescindível pelo fato do superendividamento possuir consequências que atingem o consumidor desde o seio familiar, social e até mesmo refletindo no ambiente de trabalho. Em razão desses efeitos nefastos e que transcendem a esfera individual, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial são gravemente atingidos, comprometendo a subsistência do consumidor e de sua família.
Diante desse cenário, tornou-se imprescindível a regulamentação estatal, a fim de prevenir e tratar o superendividamento por meio de legislação específica, que veio ocorrer em julho de 2021 com a promulgação da lei 14.133/21, a qual trouxe aspectos e mecanismos para combater o fenômeno do superendividamento, possibilitando a efetivação do princípio da dignidade humana nas relações consumeristas (BRASIL, 2021).
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[1] Bacharelanda do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Prof. Doutora do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail:[email protected]
[3] Prof. Mestra do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[4] BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Vara Cível da Circunscrição Judiciária de Brazilândia. Procedimento Comum Cível. 0704744-87.2021.8.07.0002. Procedimento Comum Cível. Repactuação de dívidas. Mínimo Existencial. Superendividamento. Autor: José Augusto da Silva. Réus: Banco BMG S/A; Banco Itaú S/A; Banco Bradesco S/A. Disponível em: https://pje.tjdft.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=5fa777a5cae5f70a2f417b33a15d9679c4fb70f90e3b6586. Acesso em 19 de jan. de 2022.
Bacharelando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA - Teresina-PI Estagiário na Defensoria Pública do Estado do Piauí (início em março de 2021).
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