EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CONDENATÓRIA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DANOS A TERCEIROS. COBERTURA. NEGATIVA ADMINISTRATIVA. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. – PREJUDICIAL. JULGAMENTO CITRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. ATO JUDICIAL BASTANTE PARA A QUESTÃO DEDUZIDA. – MÉRITO. CULPA RECONHECIDA EXTRAJUDICIALMENTE PELO SEGURADO. PAGAMENTO DIRETO DO CONSERTO. PEDIDO DE REEMBOLSO. CLÁUSULA CONTRATUAL E ART. 787, § 2°, DO CC/2002 QUE VEDAM O RECONHECIMENTO DA CULPA. BOA-FÉ PRESUMIDA. MÁ-FÉ DO SEGURADO NÃO COMPROVADA. DEVER DA SEGURADORA EM REEMBOLSAR. - SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. - Não se verifica sentença citra petita se o ato compositivo da lide contém as razões determinantes da conclusão judicial, que, por lógica invencível, afasta a hipótese de inadimplemento do contratante ao determinar o reembolso. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão (STJ. EDcl-EDcl-RMS 21.742. Proc. 2006/0072718-6/ES. Primeira Turma. Rel. Min. LUIZ FUX. Julg. 16/10/2008). - A existência de cláusula contratual a respeito e o teor do § 2º do art. 787 do Código Civil de 2002 (É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador) não obstam a pretensão do segurado se, na hipótese concreta, o valor jurídico protegido pelas disposições (fraude) não se revelou violado, ônus da seguradora. Prevalece, nesse quadro, a boa-fé objetiva do consumidor.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2009.063804-0, da comarca de São José (2ª Vara Cível), em que é apelante Confiança Companhia de Seguros, e apelado Ece Empresa Catarinense de Eletrecidade Ltda.:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer do recurso e, afastada a prejudicial de nulidade da sentença, negar-lhe provimento. Custas legais.
RELATÓRIO
1. A ação
Na comarca de São José, ECE – EMPRESA CATARINENSE DE ELETRICIDADE LTDA. ajuizou ação condenatória em face de CONFIANÇA COMPANHIA DE SEGUROS. Informou que em 04 de dezembro de 2006, na cidade de Brusque, seu funcionário de nome Pedro Lucio Freire Neto dirigia na cidade de Brusque o veículo Toyota Hilux, de propriedade da empresa, quando invadiu a mão de direção do veículo VW Gol, conduzido por Lino Sergio Dela Bruno, e com este veio a colidir.
Em razão da evidente culpa de seu empregado no sinistro, acionou o seguro veicular que mantém com a ré a fim de cobrir os gastos ocasionados ao veículo VW Gol, tendo esta, contudo, se negado ao pagamento da indenização.
Dessa forma, pleiteou a condenação da seguradora ao pagamento de R$ 5.227,00 (cinco mil, duzentos e vinte e sete reais), valor correspondente ao montante que desembolsou no conserto do veículo VW Gol.
Acostou documentos às fls. 06-30.
Regularmente citada e intimada, a ré compareceu à audiência conciliátoria – a qual resultou inexistosa (fl. 40) –, momento em que apresentou resposta na forma de contestação (fls. 42-53).
Inicialmente, defendeu que o preposto da autora não agiu com culpa no sinistro – as provas dos autos não apontam para esse sentido –, não havendo, portanto, que arcar com os prejuízos ocasionados no veículo VW Gol. Ainda, fundamentou que a cobertura de danos a terceiros contratada depende de decisão judicial ou autorização da seguradora para que o valor seja pago e, na espécie, ante a recusa apresentada, teria a autora realizado o conserto do veículo a sua conta e risco, não podendo agora pleitear essa reparação.
Requereu, assim, a improcedência do pleito condenatório, juntando documentos às fls. 54-60.
Impugnação à contestação às fls. 64-67 e audiência instrutória às fls. 82-83, com razões finais remissivas.
2. A sentença
Em 30 de junho de 2009, o Juíza Iasodara Fin Nishi julgou procedente o pedido formulado na inicial e, por conseguinte, condenou a ré ao pagamento de R$ 5.227,00 (cinco mil, duzentos e vinte e sete reais) a título de reparação por danos materiais, atualizado monetariamente com incidência de juros de mora (fls. 91-94).
Despesas processuais por conta da ré, fixados os honorários advocatícios em R$ 1.000,00 (um mil reais).
3. O recurso
Inconformada com o conteúdo decisório, a ré interpôs recurso de apelação às fls. 98-108. De plano, sustentou a nulidade da sentença por julgamento citra petita, uma vez que não foi analisada pelo magistrado sua tese de que a autora descumpriu cláusula contratual e por isso a negativa de pagamento do seguro. No mérito, reiterou os termos lançados em contestação, pugnando pela improcedência do pedido condenatório formulado na inicial.
Contrarrazões recursais às fls. 115-122, com pedido de desprovimento do recurso e, por conseguinte, condenação da ré por litigância de má-fé.
É o relatório possível e necessário.
VOTO
1. A admissibilidade do recurso
Satisfeitos os pressupostos de admissibilidade, conhece-se do recurso.
2. Da nulidade da sentença por julgamento citra petita
Sustenta a apelante que a sentença é nula, por julgamento citra petita, uma vez que o ponto levantado em contestação – descumprimento contratual por parte da autora –, não foi em momento algum abordado na sentença.
Inicialmente, cumpre esclarecer a distinção entre as formas de vícios da sentença por falta de sintonia com os pedidos formulados pela parte. Segundo HÉLIO DO VALLE PEREIRA, três são esses: sentenças extra, ultra e citra petita (in: Manual de Direito Processual Civil: roteiros de aula – Processo de Conhecimento. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. p. 705).
Na definição do autor, sentença extra petita é aquela que "defere a prestação jurisdicional em face de pedido não invocado pela parte, não havendo autorização legislativa para atuação de ofício" (op. cit. p. 705).
A sentença ultra petita, por sua vez, ocorre quando o magistrado vai além do buscado pela parte, ultrapassa os limites do pedido. "A nulidade existe, mas somente parcialmente. O Tribunal reduz a condenação ao montante legítimo, retirando o 'excesso', sem prejuízo daquela porção válida" (PEREIRA, op. cit. p. 706).
A sentença citra petita, por fim, e que aqui interessa, é aquela em que se julga aquém do pleiteado. "É o que se passa quando o juiz, havendo pluralidade de pretensões, analisa apenas uma delas ou, ocorrendo pedido único, não delibera a este respeito na integralidade" (PEREIRA, op. cit. p. 705). Para o jurista, a sentença citra petita é nula, devendo o magistrado de origem proferir outra em substituição.
O instituto da nulidade do julgamento citra petita tem origem em dois princípios constitucionais previstos na Carta Magna de 1988, mais especificamente em seu art. 5°. Primeiramente, o inciso XXXV, garantindo que "a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Da lição de ALEXANDRE DE MORAES, tem-se:
O princípio da legalidade é basilar na existência do Estado de Direito, determinando a Constituição Federal sua garantia, sempre que houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça (art. 5º, XXXV). Dessa forma, será chamado a intervir o Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição, deverá aplicar o direito ao caso concreto. (...)
Importante, igualmente, salientar que o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é um princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue. (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 103).
Assim, não é dado ao juiz omitir-se sobre ponto que, obrigatoriamente, deveria se manifestar. Ao segundo grau de jurisdição compete decretar a nulidade do decisum, remetendo os autos ao juízo sentenciante para proferimento de nova decisão, sob pena de injustificada supressão de instância:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – IPTU – SENTENÇA CITRA PETITA – ANULAÇÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM MANTIDA.
1. Considera-se citra petita a sentença que não aborda todos os pedidos feitos pelo autor. 2. Na hipótese dos autos, havendo julgamento aquém do pedido, correto o encaminhamento dado pelo Tribunal de origem de anular a sentença para que outra seja proferida. 3. Recurso especial improvido. (STJ. REsp 686.961, do Rio de Janeiro. Relª. Minª. ELIANA CALMON. Julg. 04/04/2006).
Não permite a legislação que o magistrado silencie acerca de ponto sobre o qual está obrigado a se manifestar, vinculando-se não aos pedidos mas a toda a matéria que lhe foi levada a conhecimento, em homenagem ao princípio da inércia da jurisdição. A manifestação do juiz sobre as questões submetidas pelas partes é requisito da sentença, estampada no art. 458, III, do Código de Processo Civil.
Contudo, igualmente não se olvida que o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão (STJ. EDcl-EDcl-RMS 21.742. Proc. 2006/0072718-6/ES. Primeira Turma. Rel. Min. LUIZ FUX. Julg. 16/10/2008).
Na espécie, a magistrada singular entendeu por bem que cumpridos os requisitos necessários para o deferimento do pedido condenatório formulado pela autora, muito embora a tese da ré de descumprimento contratual não tenha sido confrontada diretamente. E se, da fundamentação exposta, é possível se extrair argumentos suficientes e satisfatórios para a condenação, a tese de julgamento citra petita fica afastada.
Julgado do Superior Tribunal de Justiça que assim defende:
PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. FIXAÇÃO. AUSÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.
(...)
II - O julgador não está obrigado a discorrer sobre todos os regramentos legais ou todos os argumentos alavancados pelas partes. As proposições poderão ou não ser explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando o seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice e com a legislação que entender aplicável ao caso concreto. (STJ. Edcl na MC 6.862, do Rio de Janeiro. Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO. Julg. 07/10/2004).
Não fosse esse o caso e reconhecido o julgamento citra petita, aplicar-se-ia a regra contida no art. 515, § 3°, do Código de Processo Civil – § 3° Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.
Não se olvida que, na espécie, não se está diante de extinção do processo sem resolução do mérito e que a nulidade pelo julgamento citra petita precisa ser superada. Porém, ainda que ignorado o tema do descumprimento contratual na sentença, não se vislumbra óbice a apreciação da matéria em segundo grau diante das particularidades do caso.
A causa encontra-se madura para o julgamento, a tese – facilmente afastável, antecipe-se – trata-se de pleito de importância reduzida frente a todo o objeto da lide. Ademais, a ação tramita no Judiciário Estadual há mais de 03 (três) anos, muito embora trate de questões sem maiores complexidades.
Admitindo esse entendimento, em hipóteses excepcionais, como definitivamente é a dos autos, veja-se o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça, que permite a apreciação, no Tribunal de Justiça, de questão sobre a qual não se debruçou o juízo singular:
IMPOSTO DE RENDA. CORREÇÃO MONETÁRIA. GANHO DE CAPITAL. OMISSÃO E FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO AO ART. 515, § 3º, DO CPC. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO CITRA/EXTRA PETITA. FUNDAMENTO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL.
[...]
II - Hígido o proceder do Colegiado de origem, pois, após reconhecer o julgamento citra petita por parte da sentença e em homenagem ao Princípio da celeridade processual, julgou o mérito da contenda, tendo em vista que se cuidava de matéria exclusivamente de direito, cuja apreciação fora suscitada em apelação a pronunciar-se e, ao fazê-lo, observou rigorosamente o Princípio do non reformatio in pejus. Inexistência de afronta ao § 3º do art. 515 do CPC. [...] (STJ. AgRg no Resp 1.085.925/RS, rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Primeira Turma. Julg. 19/02/2009).
Destarte, considerando a excepcionalidade do caso em apreço, penso possível a análise do pleito recursal referente ao pedido condenatório, ainda que a questão não tenha sido satisfatoriamente enfrentada em primeira instância, sobretudo diante dos postulados da economia e celeridade processuais, elevados a categoria de princípio constitucional.
Com as alterações introduzidas na Constituição Federal através da Emenda Constitucional 45/2004, a razoável duração do processo foi alçada à categoria de direito fundamental, catalogado no art. 5.º da Carta Magna, com a redação que segue:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Eis os julgados que embasam essa interpretação extensiva do conteúdo do art. 515, § 3°, do CPC:
1) PROCESSUAL CIVIL - PREVIDENCIÁRIO - JULGAMENTO CITRA PETITA - RECONHECIMENTO E ANULAÇÃO DE OFÍCIO - CONHECIMENTO DO MÉRITO - PARÁGRAFO 3º DO ARTIGO 515 DO CPC - [...].
Reconhecido o julgamento citra petita, achando-se a causa madura, interpretação extensiva do parágrafo 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil permite que se conheça diretamente do pedido. - Não há supressão de grau de jurisdição, pois a questão posta nos autos, por ser de direito, já se acha em condições de ser julgada.[...]. (TRF 3ª Região. AC 905141. Proc. 2003.03.99.031802-2. Relª Desª Fed. EVA REGINA TURANO DUARTE DA CONCEIÇÃO. DEJF 28/05/2009);
2) SENTENÇA CITRA PETITA. ARTIGO 515, § 3º, CPC.
É possível a análise, pelo Tribunal, de matéria sobre a qual a sentença não se manifestou, quando o processo estiver em condições de imediato julgamento, aplicando-se, numa interpretação mais extensiva, o disposto no § 3º do artigo 515 do CPC, acrescido pela Lei n.º 10.032/01, mesmo não sendo hipótese de extinção do processo sem julgamento de mérito. [...]. (TRF 4ª Região. AC 2006.71.99.000741-3, do RS. Quinta Turma. Rel. Des. Fed. RÔMULO PIZZOLATTI. Julg. 06/10/2009); e
3) ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSO CIVIL. [...]. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 535, II. 515, § 3º; 165, 333 E 458, II, TODOS DO CPC, BEM COMO DOS ARTS. 93, IX, E 5º, LV, DA CF. "CAUSA MADURA" PARA O JULGAMENTO DA APELAÇÃO. AUSÊNCIA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. [...].
[...]. 3. Alegada violação do art. 515, § 3º, do CPC. O caso dos autos amolda-se ao conceito de "causa madura" trazida pela doutrina e jurisprudência, uma vez que o Tribunal a quo, ao estabelecer que não eram as rés partes ilegítimas, adentrou desde logo no mérito da questão, pois toda a instrução probatória já se fazia presente nos autos, bem como assim lhe permitia o art. 515, § 3º, do CPC. 4. O art. 515, § 3º, do CPC deve ser lido à luz do disposto no art. 330, I, do mesmo diploma, que trata do julgamento imediato do mérito. Poderá o Tribunal (assim como o juiz de primeiro grau poderia) pronunciar-se desde logo sobre o mérito se as questões de mérito forem exclusivamente de direito ou, sendo de fato e de direito, não houver necessidade de produção de novas provas. Entendimento doutrinário e jurisprudencial. [...]. (STJ. REsp 797.989. Proc. 2005/0190305-7, de SC. Segunda Turma. Rel. Min. HUMBERTO MARTINS. Julg. 22/04/2008. DJE 15/05/2008).
Portanto, ainda que fosse reconhecido o julgamento citra petita, o que aqui se admite apenas a título argumentativo, posto que, como dito alhures, o magistrado não está obrigado a se manifestar sobre todos os pontos suscitados pela parte, mas admitido o julgamento por esta Corte, nos termos do art. 515, § 3°, do Código de Processo Civil – em sua interpretação extensiva –, passo à análise do mérito recursal.
3. Do alegado descumprimento contratual
Argumenta a apelante que, muito embora a autora tivesse cobertura securitária por danos materiais causados a terceiros, previa o contrato, igualmente, que ficaria a seguradora desobrigada do pagamento do prêmio no caso de o segurado deixar de cumprir as obrigações convencionadas na apólice. Mais especificamente, não poderia a segurada antecipar-se ao pagamento do conserto do veículo do terceiro envolvido no acidente sem que a seguradora tivesse a autorizada a tanto.
Dessa maneira, não poderia, agora, pleitear o ressarcimento desses valores, pois descumpriu com suas obrigações contratuais.
Realmente, no manual do segurado juntado aos autos pela apelante (fls. 57-59) extrai-se, do item 2.1 Reconhecimento da responsabilidade civil pelo segurado (fl. 59), que:
De acordo com o parágrafo II do artigo 787, do Código Civil Brasileiro, é proibido ao segurado reconhecer a responsabilidade ou confessar a ação, bem como o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa da Confiança Cia. Seguros.
O art. 787, § 2°, do CC/2002, referido na cláusula retro, justamente estipula que é defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador.
ERNESTO TZIRULNIK, FLÁVIO DE QUEIROZ B. CAVALCANTI e AYRTON PIMENTEL, na obra conjunta O contrato de seguro de acordo com o Novo Código Civil, editora RT, ano 2003, ao comentarem o dispositivo legal sob análise, esclarecem:
A norma do § 2° oferece grande discussão. Veda ao segurado reconhecer sua responsabilidade, o que se daria extrajudicialmente, e confessar a ação, o que mais propriamente corresponderia a reconhecer o pedido em processo judicial, na hipótese de ter sido dirigida contra si a pretensão. Além disso, veda seja prestada indenização ao terceiro, sem prévia autorização da seguradora. O parágrafo não prevê a consequência do descumprimento do segurado a essas vedações.
Na verdade, sob pena de se comprometerem valores superiores, o comando só pode ser compreendido como norma destinada a esclarecer que o segurado não vinculará a seguradora tão-só porque declarou sua responsabilidade, reconheceu o pedido contra si formulado, ou pagou a indenização. Todos têm o dever de atuar de boa-fé e com veracidade, constituindo ilícito o comportamento que contrarie essa regra de conduta. Nenhum contrato pode submeter qualquer das partes a agir contra o Direito. Nem seguro pode restringir o direito de extinguir uma obrigação.
Declarando-se responsável sem o ser, reconhecendo pedido total ou parcialmente incongruente com os fatos ou com o direito aplicável, ou pagando indenização indevida no todo ou em parte, a seguradora não estará obrigada a seguir seus atos, isto é, nada prestará caso inexistente a responsabilidade que veio a ser declarada, nem prestará, não obstante o reconhecimento do pedido, senão o devido em virtude dos fatos e do direito a eles aplicável, nem reembolsará qualquer quantia indevida que tenha sido paga ao terceiro sem sua autorização.
Interessante notar que algumas vezes as circunstâncias de fato determinam sejam adotadas medidas preventivas que correspondem a salvamento, como a prestação de socorro à vítima do acidente. Se o segurado, ainda convicto de que, por exemplo, o atropelamento ocorreu graças à culpa exclusiva da vítima, caso deixe de prestar-lhe socorro poderá vir a ser responsabilidade por tal fato. Assim, as despesas incorridas para o salvamento devem ser reembolsadas pela seguradora. (p. 144-145).
Ou seja, o intuito do referido diploma legal é o de evitar a fraude por parte do segurado, o que não se vislumbra na espécie – questão que será melhor abordada quando da análise do ponto seguinte –, sendo devido o pagamento pela segurada apenas das quantias que efetivamente se mostrem adequadas e que, em outra situação, seriam indenizadas.
Esse é o entendimento jurisprudencial, também:
1) AGRAVO INTERNO NA APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO. CONFISSÃO FICTA. PERDA DA COBERTURA SECURITÁRIA. NÃO OCORRÊNCIA. [...]. RECURSO DESPROVIDO.
1. O preceito veiculado pelo art. 787, § 2º, do Código Civil, por importar em uma limitação aos direitos do segurado, deve ser interpretado restritivamente, só incidindo naquelas hipóteses em que os contornos da situação concreta sejam indiciários de fraude, o que não verifico no caso em apreço, mesmo porque a confição ficta não induz à imediata procedência do pedido. [...]. (TJES. AGInt-AC 30030021098. Quarta Câmara Cível. Rel. Des. CARLOS ROBERTO MIGNONE. Julg. 14/07/2009); e
2) AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO. ACIDENTE DE TRÂNSITO.
[...].. Quanto à vedação de transação processual sem anuência da seguradora (art. 787, § 2º do CC/2002), objetiva evitar acordos escusos pelo segurado, que poderia envidar tratativas com o outro envolvido mesmo sem culpa, numa situação vantajosa a ambos e prejudicial apenas àquela. Inaplicável aqui a imposição, pois além de a responsabilidade do segurado pelo infortúnio ser patente, a ausência da participação no ajuste não se deu de má-fé, senão em razão da negativa ao vínculo, que impediu a atração da seguradora àquele processo e precisou ser dirimida na presente lide. Portanto, uma vez fixada a validade do contrato, devem ser pagos também os danos à terceira vítima. (TJSC. AC 2007.041065-9, de Concórdia. Terceira Câmara de Direito Civil. Relª Desª MARIA DO ROCIO LUZ SANTA RITTA. DJSC 25/08/2009).
Rejeitada, igualmente, a alegação de descumprimento contratual na qual a apelante sustenta sua ausência de responsabilidade em indenizar o sinistro.
4. Da culpa pelo sinistro e o dever de indenizar
Afastada a prejudicial de nulidade e a tese de descumprimento contratual suscitadas pela apelante, incumbe a análise das provas contidas nos autos no que se refere à culpa do segurado pelo sinistro, sendo que, em caso positivo, há de ser mantida a condenação imposta na origem.
O boletim de ocorrência de fls. 20-21 não se presta a elucidar maiores detalhes acerca do acidente, até porque não foi elaborado croqui – os envolvidos que se dirigiram até a Delegacia e não o contrário – e as versões apresentadas pelos motoristas são similares, sem que nenhum imputasse ao outro a culpa pelo acidente.
Contudo, o mesmo não se pode dizer do documento de fl. 30, elaborado pela assessoria de sinistros da seguradora após visitação ao local do acidente. Extrai-se desse documento:
Em relação ao sinistro ocorrido em 04/12/2006 envolvendo os veículos Toyota Hilux (segurado) e o VW Gol (terceiro), temos a informar que estivemos no local do acidente e verificamos a seguinte dinâmica relatada pelos envolvidos:
- O veículo Hilux estava subindo em curva para a esquerda, onde a estrada de chão batido está inclinada para a esquerda, obrigando o motorista a fechar na curva e adentrar na pista contrária, quando o seu condutor não conseguiu desviar do veículo Gol que vinha em sentido contrário, descendo em curva para a direita e com a estrada inclinada para a direita.
Sendo assim, entendemos que o veículo Hilux estava, realmente, contornando a curva já na pista contrária.
[...].
No local, entrevistamos alguns funcionários do segurado, os quais foram categóricos em afirmar que o condutor da Hilux saiu às pressas do canteiro de obras e consequentemente, foi imprudente em transitar em alta velocidade e não respeitar a via de trânsito do veículo Gol.
No local do acidente a estrada é larga o suficiente para que transitem dois veículos lado a lado
Estivemos na Delegacia da Polícia Civil de Brusque, onde foi registrado o B.O. De n° 8400, juntamente com os dois condutores, em audiência com o Delegado, onde o mesmo alterou a descrição do acidente do condutor do veículo Gol, pois se analisarmos motodicamente as declarações, perceberemos que elas foram copiadas e somente alteradas no sentido dos veículos. A declaração do condutor do veículo Gol ficou distorcida.
Foram efetuadas duas declarações com reconhecimento de firma em cartório, uma de cada condutor dos veículos envolvidos para que sejam analisadas pela cia, pois cada uma traz a verdade sobre o ocorrido.
Desta forma, pedimos que seja reaberto o processo e reanalisada a culpa do segurado baseado nos documentos que estamos apresentando. (grifei).
Essa versão dos fatos, em que caracterizada a culpa do condutor do veículo segurado, é confirmada em juízo pela testemunha Lino Sergio Dela Bruna, motorista do veículo VW Gol no momento do sinistro:
[...]; que descia uma rua, quando bateu com uma Toyota que vinha em sentido oposto, o qual invadiu a sua pista, momento em que contornava a curva; que a curva era para a direita do depoente e a camionete vinha "quebrando" a curva. [...]. (fl. 83).
De se destacar que o contrato de seguro repousa, fundamentalmente, na boa-fé, com o segurador pautando-se quase que exclusivamente na lealdade e veracidade das declarações prestadas pelo segurado. Ou seja, a boa-fé objetiva é princípio que norteia e dá suporte à interpretação de todas as cláusulas contratuais, bem como ao agir das partes envolvidas, garantindo, em última análise, o equilíbrio do contrato.
Acerca desse princípio, extrai-se o ensinamento de ANTÔNIO HERMAN V. BENJAMIN, CLAUDIA LIMA MARQUES e LEONARDO ROSCOE BESSA:
Em geral, identificam-se três funções essenciais do princípio da boa-fé: 1) diretriz ou critério hermenêutico; 2) criação de deveres anexos, conexos, laterais ou acessórios; 3) limitação do exercício de direitos subjetivos. As três funções interligam-se e servem para melhor delimitar a aplicação do princípio.
Como diretriz hermenêutica, a boa-fé estabelece que, entre as diversas possibilidades, deve-se interpretar os contratos em consonância com a esperada lealdade e honestidade das partes. [...]
Em relação à função de criação de deveres anexos, o princípio da boa-fé significa que os deveres não decorrem unicamente do contrato e de suas cláusulas, ou seja, independem da manifestação de vontade dos contratantes. Tais deveres relacionam-se com informação, cuidado, segurança, colaboração. [...]
Em relação à terceira função, a boa-fé serve como limite para o exercício de direitos subjetivos. Funciona como parâmetro para valorar a conduta das partes de modo a concluir pela arbitrariedade do exercício de determinado direito, ou seja, da prática de abuso de direito (in: Manual de direito de consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 284-286).
Incumbia à ré, portanto, fazer prova da má-fé do segurado – fraude no reconhecimento da culpa pelo sinistro –, posto que as provas contidas nos autos apontam para outro sentido, o que, aliado ao fato de a boa-fé ser presumida, impõe a manutenção da sentença condenatória por seus termos.
Por fim, no que tange ao valor desembolsado pela segurada no conserto do veículo, também não há o que se discutir.
Argumentou a segurada que o veículo foi encaminhado à oficina mecânica conveniada com a seguradora e na qual os veículos são levados quando o conserto é suportado por este – fato que não foi alvo de impugnação pela ré.
Ademais, não trouxe a seguradora, aos autos, provas – sequer indícios – de que os valores desembolsados com a reforma do veículo foram superiores aos comumentes cobrados no mercado, limitando-se a impugnar genericamente o valor, o que, mais uma vez, privilegia a segurada e sua presumida boa-fé.
De se conhecer do recurso interposto mas negar-lhe provimento, mantendo inalterada a sentença objurgada.
É o voto.
DECISÃO
Ante o exposto, por unanimidade, a Câmara decide conhecer do recurso e, afastada a prejudicial de nulidade da sentença, negar-lhe provimento, nos termos supra.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni, com voto, dele participando o Exmo. Sr. Des. Marcus Tulio Sartorato.
Florianópolis, 24 de agosto de 2010.
Henry Petry Junior
RELATOR
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STJ - Superior Tribunal de Justiça. TJSC - Civil. Seguro. Ação condenatória. Acidente de trânsito. Danos a terceiros. Cobertura. Negativa administrativa. Procedência na origem Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2011, 14:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Jurisprudências/25000/tjsc-civil-seguro-acao-condenatoria-acidente-de-transito-danos-a-terceiros-cobertura-negativa-administrativa-procedencia-na-origem. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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